Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1336/15.1T8VRL.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: REPÚDIO DA HERANÇA
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - Pendente acção contra o falecido, e sendo os seus sucessíveis citados para com eles prosseguirem os termos da demanda, em incidente de habilitação deduzido pelo comparte ou pela parte contrária, é de entender que, na falta de contestação ou apresentação do documento legal de repúdio, dentro do prazo fixado, a herança se tem por aceita, sendo aqueles habilitados como sucessores, não relevando a apresentação de documento de repúdio em momento posterior, ainda que dele conste data anterior.

II – Sem prejuízo, requerida e admitida a habilitação dos sucessores do primitivo réu, enquanto herdeiros daquele, é de considerar que a reconfiguração da titularidade da relação material controvertida importa a reconformação do pedido inicial – no caso, de condenação da primitiva R. no pagamento de dívida à A. – em função dessa nova vertente subjectiva, devendo entender-se que os sucessores/herdeiros habilitados são condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelas forças da herança.
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

M. C. intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra M. B., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 21.509,50 a título de créditos laborais e de indemnização por danos patrimoniais causados em virtude do despedimento ilícito de que foi alvo.
Para tanto alegou, em síntese, os factos constantes da sua petição inicial que se prendem com o contrato de trabalho entre as partes celebrado e que a R. fez terminar sem justa causa, mais alegando os créditos e direitos laborais daquele decorrentes e que, apesar de vencidos, se encontram por liquidar.
Tendo a R. falecido em 28/11/2015, no incidente de habilitação processado por apenso, que não contestaram, foram habilitados como seus sucessores os seus filhos C. B. e H. B., por decisão de 8/03/2016, que não impugnaram, tendo a mesma transitado em julgado.
Em 30/06/2016, os habilitados vieram juntar aos autos procurações a constituir mandatário judicial e documentos particulares datados de 10/02/2016 a repudiar a herança da falecida R..
Seguidamente, com fundamento em falta de contestação, foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Assim e em conformidade com o estatuído na última parte do nº 1 do art. 57º do C.P.T. em apreço, verifica-se que os factos confessados conduzem inequivocamente à procedência da acção, uma vez que todas as pretensões da A. têm cabimento legal.
Pelo exposto, mais não resta senão aderir, deste modo, aos fundamentos de facto e de direito invocados pela aqui demandante e condenar os RR. integralmente no pedido.
Custas pelos RR. - cfr. art. 446º do C.P.C.»
Os RR., inconformados, vieram interpor recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«PRIMEIRA CONCLUSÃO No dia 14 de Agosto 2015, foi intentada a ação de processo comum em que este recurso se originou, tendo, como autora, a aqui recorrida, M. C., e, como ré, M. B. .
SEGUNDA CONCLUSÃO Posteriormente, e no dia 28 de Novembro de 2015, a atrás referida ré, M. B., faleceu, tendo sido, através do incidente próprio, habilitados para lhe suceder, os seus dois filhos, os aqui recorrentes, C. B. e H. B..
TERCEIRA CONCLUSÃO Os quais, contudo, em 06 de fevereiro de 2016, repudiaram a herança da mãe deles, juntando aos autos, no dia 30 de junho de 2016, os documentos que corporizaram tal renúncia.
QUARTA CONCLUSÃO Renúncia e documentos corporizantes da mesma que forma devidamente notificados, em 17 de Julho de 2016, à autora, aqui recorrida, que, sobre isso, e como resulta dos autos, nada disse.
QUINTA CONCLUSÃO Ficando assim provado no processo, que esse repúdio dos recorrentes à herança da mãe deles se verificou.
SEXTA CONCLUSÃO E, considerado que seja provado, o facto único atrás referido, é evidente que não poderia ter sido prolatada a sentença sob recurso, nem aliás, pelo menos no momento em que o foi, qualquer outra sentença, pois que, antes disso, ou seja, antes de tal prolação, mister era habilitar os sucessores dos repudiantes, para que a ação com tais sucessores pudesse prosseguir, nos termos exigidos pelos artigos 269.º-1-a) e 270.º, ambos do CPC 2013 e 1.º-2-a), do CPT.
SÉTIMA CONCLUSÃO padecendo também a sentença em causa e independentemente de ser, ou não, dado como provado, o facto único atrás referido, de um erro de julgamento, consistente em não poder tal sentença ter condenado, como condenou, os recorrentes no pedido formulado pela autora na petição inicial.
OITAVA CONCLUSÃO E por a isso se oporem, como se opõem, seja os artigos, 2046.º, do CC e 11.º-1 e 12.º-a), ambos do CPC 2013, seja, os artigos 2.068.º, 2.069.º, 2.074.º e 2.097.º, todos do CC.
NONA CONCLUSÃO Motivos pelos quais, e por ter violado, como violou, as normas legais atrás referidas, deverá, e muito embora sem que isso possa constituir, nem constitua, qualquer demérito, por pequeno ou mínimo até que seja, para com a Ilustre Senhora Doutora Juíza de 1ª instância que a prolatou, ser, apesar de mui douta, anulada a sentença, que através do presente recurso está a por em crise, o que se peticiona.»
A A. apresentou resposta ao recurso dos RR., defendendo a sua inadmissibilidade por extemporaneidade e a sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto foi emitido parecer no sentido da inadmissibilidade do recurso por extemporaneidade.
Seguidamente, a ora Relatora proferiu decisão sumária nos termos do art. 656.º do Código de Processo Civil, julgando o recurso improcedente.
Não obstante, os Recorrentes vieram requerer que a decisão seja objecto de acórdão nos termos previstos no art. 652.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Notificada a parte contrária, nada disse.
Assim, colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:
- tempestividade do recurso;
- se a sentença não podia ter condenado os RR. em virtude de estes terem antes juntado documentos particulares a repudiar a herança da primitiva R..

3. Fundamentação de facto

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do Relatório supra.

4. Fundamentação de direito

Relativamente à questão da tempestividade do recurso, verifica-se que as partes foram notificadas da sentença por correio electrónico expedido em 3/11/2016 e que os RR. apresentaram o recurso em 2/12/2016, 3.º dia útil (considerando, além do mais, que o dia 1/12 foi feriado) subsequente ao do termo do prazo de 20 dias a contar da notificação, pagando imediatamente a respectiva multa.
Em face do exposto, sem necessidade de mais considerações, considera-se que o recurso foi interposto tempestivamente.
Relativamente à questão de saber se a sentença não podia ter condenado os RR. em virtude de estes terem antes juntado documentos particulares a repudiar a herança da primitiva R., há que ter em conta que, nos termos do art. 351.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, o incidente processual regulado no respectivo Capítulo visa a habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, sendo que, nos termos do art. 354.º, n.º 1 do mesmo diploma, no caso de a legitimidade ainda não estar reconhecida por decisão judicial, escritura notarial ou inventário, o juiz decide o incidente logo que, findo o prazo da contestação, se faça a produção de prova que no caso couber.
Ora, tendo a primitiva R. falecido em 28/11/2015, foi deduzido incidente de habilitação por apenso, onde os ora Apelantes foram citados e não apresentaram contestação ou qualquer documento, tendo sido habilitados como sucessores daquela, atenta a sua qualidade de filhos, devidamente comprovada, por decisão de 8/03/2016, que os mesmos Recorrentes não impugnaram, tendo aquela decisão transitado em julgado.
É certo que, em 30/06/2016, os habilitados vieram juntar aos autos procurações a constituir mandatário judicial e documentos particulares datados de 10/02/2016 a repudiar a herança da falecida R..
Contudo, para começar, os Apelantes não demonstraram que o pretenso repúdio de herança fosse válido em razão da forma utilizada, considerando o disposto nos arts. 2063.º e 2126.º do Código Civil.
Por outro lado, a posição assumida pelos Recorrentes no incidente de habilitação pressupõe a aceitação tácita e irrevogável da herança, nos termos dos arts. 217.º, n.º 1, 2050.º, 2056.º e 2060.º do mesmo diploma legal.
Com efeito, nos termos do art. 2049.º do Código em apreço, se o sucessível chamado à herança, sendo conhecido, a não aceitar nem repudiar dentro dos quinze dias seguintes, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para, no prazo que lhe for fixado, declarar se a aceita ou repudia (n.º 1); na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento legal de repúdio dentro do prazo fixado, a herança tem-se por aceita (n.º 2).
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora, 1998, p. 93), está em causa um caso típico de declaração tácita de aceitação, em que, “[s]e o sucessível chamado, depois de solenemente notificado para, nos termos referidos nessa disposição, declarar se aceita ou repudia, dentro de certo prazo, não fizer nenhuma declaração, entende a lei, partindo do sentido normal da atitude do interpelado e do ónus de responder à autoridade judicial que as circunstâncias concretas lançam sobre o interpelado, que o silêncio dele equivale a aceitação da herança.”
Ora, de modo semelhante, estando pendente acção contra o falecido, e sendo os seus sucessíveis citados para com eles prosseguirem os termos da demanda, em incidente de habilitação deduzido pelo comparte ou pela parte contrária, é de entender que, na falta de contestação ou apresentação do documento legal de repúdio, dentro do prazo fixado, a herança se tem por aceita, sendo aqueles habilitados como sucessores.
A habilitação como sucessores pressupõe a aceitação da herança pelos sucessíveis.
Assim sendo, é irrelevante a apresentação de documento de repúdio em momento posterior, ainda que dele conste data anterior, e para mais se for um documento particular, que independentemente daquela data pode ter sido forjado em qualquer outra, uma vez que, como se disse, a aceitação da herança, ainda que tácita, é irrevogável.
Neste sentido, vejam-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Março de 2007 (Relator Rijo Ferreira), o Acórdão da Relação do Porto de 26 de Maio de 2009 (Relator Mário Serrano) e o Acórdão da Relação de Évora de 1 de Março de 2007 (Relator Sílvio Sousa), disponíveis em www.dgsi.pt.
No requerimento de sujeição da questão a conferência, os Recorrentes não trouxeram argumentos novos, limitando-se a remeter para os termos das alegações de recurso e a jurisprudência e doutrina aí invocadas.
Porém, a jurisprudência e doutrina invocadas reportam-se a questão distinta, a saber, a de que, requerida e admitida a habilitação dos sucessores do primitivo réu, enquanto herdeiros daquele, é de considerar que a reconfiguração da titularidade da relação material controvertida importa a reconformação do pedido inicial – no caso, de condenação da primitiva R. no pagamento de dívida à A. – em função dessa nova vertente subjectiva, devendo entender-se que os sucessores/herdeiros habilitados são condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelas forças da herança (cfr., v.g., o Acórdão da Relação de Lisboa de 7 de Abril de 2016 (Relator Ezaguy Martins), disponível em www.dgsi.pt).
Essa questão, que sem qualquer dúvida deve assim ser entendida, pressupõe obviamente que ocorreu a habilitação de herdeiros e, por inerência – nos termos que sufragamos –, a aceitação irrevogável da herança: o que sucede é que a condenação dos habilitados, como herdeiros do primitivo réu, nos termos da lei, mormente dos arts. 2068.º, 2071.º, 2097.º e 2098.º, entre outros, do Código Civil, tem necessariamente em conta que só os bens da herança respondem pelo pagamento das dívidas do de cujus e que, após a partilha, cada herdeiro só responde na proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.
Poderia levantar-se a questão, isso sim, de dever ser expressamente afirmado na sentença que os sucessores/herdeiros habilitados são condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelas forças da herança, como parece defender alguma jurisprudência, mas julga-se que o mesmo não é indispensável, por resultar implicitamente da intervenção processual na qualidade de herdeiros habilitados.
Improcede, pois, o recurso.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.
Guimarães, 4 de Outubro de 2017

(Alda Martins)
(Eduardo Azevedo)
(Vera Sottomayor)


Sumário (elaborado pela Relatora):

I - Pendente acção contra o falecido, e sendo os seus sucessíveis citados para com eles prosseguirem os termos da demanda, em incidente de habilitação deduzido pelo comparte ou pela parte contrária, é de entender que, na falta de contestação ou apresentação do documento legal de repúdio, dentro do prazo fixado, a herança se tem por aceita, sendo aqueles habilitados como sucessores, não relevando a apresentação de documento de repúdio em momento posterior, ainda que dele conste data anterior.

II – Sem prejuízo, requerida e admitida a habilitação dos sucessores do primitivo réu, enquanto herdeiros daquele, é de considerar que a reconfiguração da titularidade da relação material controvertida importa a reconformação do pedido inicial – no caso, de condenação da primitiva R. no pagamento de dívida à A. – em função dessa nova vertente subjectiva, devendo entender-se que os sucessores/herdeiros habilitados são condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelas forças da herança.

(Alda Martins)