Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
36/14.4TBFAF.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: CONSUMIDOR
PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente e nem pelo recorrido, a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se de todos os elementos probatórios constantes do processo para formar a sua própria convicção.
II – A Directiva n.º 93/13/CEE, de 05/04/1993 veio estabelecer o princípio da interpretação mais favorável ao consumidor no caso dos contratos em que as cláusulas propostas estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, impondo ainda que a redacção dessas cláusulas seja clara e compreensível.
III – No nosso direito interno é ainda a protecção do consumidor, como parte mais frágil, que obriga o predisponente, ainda na fase pré-negocial, a comunicar ao aderente o teor integral das cláusulas contratuais gerais, e a informá-lo dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique, e a prestar-lhe todos os esclarecimentos que lhe solicite, sendo que a cominação para o não cumprimento destes deveres é a de se considerarem excluídas do contrato as cláusulas que não tenham sido comunicadas ou cujo conteúdo não tenha sido devidamente esclarecido.
Decisão Texto Integral: -ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES-

A)RELATÓRIO
I.- ARMANDO O, com os sinais de identificação nos autos, moveu a presente acção declarativa comum contra a “O – COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS, S.A.”, com sede em Porto Salvo, Oeiras, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 17.200,00 para o ressarcir dos danos resultantes da queda de um muro integrante do seu prédio urbano, descrito na C.R.P. sob o n.º 299/19910204, fundando este pedido no contrato de seguro que celebrou com a Ré na modalidade de “MR Protecção Casa”.
Contestou a Ré, aceitando ter celebrado com o Autor um contrato de seguro na modalidade “Riscos Múltiplos Habitação – Protecção Casa”, mas recusando que nele estejam abrangidos os danos invocados já que a queda do muro se ficou a dever a deficiências de construção. Mais alega que, nos termos das condições gerais do contrato, estão excluídos das coberturas relativas a “tempestades e inundações” os danos que se verificarem em muros e vedações, e estão excluídos da cobertura “aluimento de terras” os danos que resultarem de deficiências de construção, de projecto, de qualidade de terrenos ou outras características do risco, que fossem ou devessem ser do conhecimento prévio do tomador do seguro”.
O Autor respondeu na audiência de julgamento e requereu a ampliação do pedido pretendendo que se considerem retiradas do contrato as exclusões invocadas pela Ré por as respectivas cláusulas não lhe terem sido comunicadas e explicadas, ampliação que não foi admitida.
Procedeu-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 7.300 (sete mil e trezentos euros).
Inconformada, traz a Ré o presente recurso visando a revogação desta decisão condenatória.
Contra-alegou o Autor propugnando pela recusa de provimento do recurso.
Recurso que foi recebido como de apelação com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Apelante funda o recurso nas seguintes conclusões:
1ª – Atenta a prova documental e testemunhal produzida, impunha-se resposta diferente dada pelo Tribunal “a quo” aos pontos 1.4., 1.5., 2.3. e 2.7. da matéria de facto, alteração da resposta á matéria de facto que se requer.
2ª – Tendo em consideração a certidão emitida pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera, não impugnado, a resposta ao facto 1.4. deveria ter sido: “Na noite do dia 13 para o dia 14 de Dezembro de 2012, na área da comarca de Fafe, designadamente na freguesia de Golães, o vento soprou de moderado a forte (25 a 40 Kms/hora) de sudoeste, a intensidade máxima instantânea do vento atingiu valores da ordem dos 80 Kms/hora, ocorreu chuva contínua entre as 20 horas do dia 13 e as 8 horas do dia 14, tendo a quantidade de precipitação atingido 40 a 45 milímetros, e a intensidade máxima de precipitação atingiu 2 a 4 milímetros.”
3ª – Valorando os depoimentos das testemunhas da R., Paulo B, Luís S e Paulo O prestados em audiência de discussão e julgamento relativamente a esta matéria em 20/10/2015, gravados e registados, respetivamente, com as referências 20151020103952-4671233-2870580, com início às 9h50m; 20151020105203-4671233-2870580, com início às 10h00m; e 20151020110930-4671233-2870580, com início às 10h22m, que aqui se têm como reproduzidos;
4ª – A resposta ao facto 1.5. deveria ter sido: “A água acumulada por causa da chuva causou pressão sobre o muro e provocou a queda do mesmo”.
5ª – E a resposta ao facto 2.3 deveria ter sido: “Provado que a construção do muro foi erigida em pedra sobreposta, não possui sapatas estruturais nem orifícios de escoamento das águas, que assegurem a necessária drenagem dos terrenos”.
6ª – Não desconsiderando a proposta de seguro junta com a Contestação (doc. nº 1), a resposta ao facto 2.7 deveria ter sido: “Provado que o A. declarou na proposta de seguro serem exatas e completas as declarações por si prestadas e que tomou conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do presente contrato, tendo-lhe sido entregues as respetivas condições gerais e especiais, para delas tomar integral conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre garantias e exclusões, com as quais está de acordo”.
7ª – A alteração da resposta à matéria de facto impõe decisão de mérito diferente.
8ª – O A. não alegou nem demonstrou dos factos constitutivos do direito que reclama relativamente às coberturas de “inundações” e de “tempestades”;
9ª – Sem prescindir, verifica-se a exclusão da queda de muros das supras citadas coberturas de “inundações” e “tempestades”;
10ª – Na data e local do sinistro verificaram-se fenómenos meteorológicos adversos que provocaram acumulação de água no terreno delimitado pelo muro em causa, causando pressão excessiva e consequente queda do mesmo.
11ª – Não verificou qualquer fenómeno geológico de aluimento de terras, não se enquadrando o sinistro na cobertura contratual de “aluimento de terras”.
12ª – Sem prescindir, existiam deficiências construtivas e inadequação do muro construído em pedra sobreposta para as funções de contenção de terras a que se destinava, o que, se não era conhecido, era cognoscível pelo A..
13ª – As condições gerais e especiais do contrato de seguro foram entregues, comunicadas e explicadas ao A. no momento da contratação, designadamente no que diz respeito a garantias e exclusões.
14ª – O sinistro (queda do muro por acumulação de águas no terreno suportado pelo mesmo) não tem enquadramento nas coberturas contratadas.
15ª – Ao decidir como decidiu, o Tribunal “a quo” violou o disposto no contrato de seguro e as regras de repartição do ónus da prova previstas no art. 342º do Código Civil.
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III.- Nas suas contra-alegações o Autor defende a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, alegando não ter sido observado o disposto no n.º 2, alínea a), do art.º 640.º do C.P.C., visando a Recorrente “impossibilitar o contraditório, com vista a protelar os efeitos da douta sentença recorrida” e reafirma que as cláusulas de exclusão da responsabilidade não lhe foram lidas nem explicadas, e também lhe não foi entregue qualquer exemplar delas, pelo que, nos termos do art.º 8.º, alínea a) do Dec.-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro devem ser expurgadas do contrato.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:
- reapreciar a decisão da matéria de facto, quanto aos pontos impugnados;
- reapreciar a decisão de mérito.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
V.- i) A Apelante, como consta das conclusões 1.ª a 6.ª, impugna a decisão da matéria de facto quanto aos pontos transcritos sob os n.os 1.4 e 1.5 (julgados provados) e 2.3 e 2.7 (julgados não provados), propondo para o primeiro uma redacção que transcreve o teor do documento emitido pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera, constante de fls. 146 dos autos, para os segundo e terceiro uma versão que atribui a queda do muro à pressão exercida pela água da chuva e à fragilidade da construção “pedra sobreposta”, não possuindo “sapatas estruturais nem orifícios de escoamento de águas”, suportada nos depoimentos das três testemunhas que indica, e para o quarto propõe a transcrição literal do primeiro parágrafo impresso na proposta de seguro, que começa por “Para efeitos de celebração do presente contrato de seguro, declaro que:…”, constante de fls. 94 dos autos.
O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
Assim é que deverá o recorrente enunciar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do n.º 1), enunciação que é essencial porque delimita o poder de cognição do tribunal ad quem. Com efeito, versando o litígio sobre direitos de natureza disponível, é exclusivo do seu titular a iniciativa de os fazer valer.
Deve ainda o recorrente indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (alínea b) do n.º 1), assim como apresentar o seu projecto de decisão, ou seja, expor, claramente, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do n.º 1).
A Apelante, como acima se deixou referido, cumpriu com todos os ónus que aquele dispositivo legal impõe, enunciados nas três alíneas do n.º 1 do mencionado art.º 640.º.
E no que concerne à alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito legal julga-se suficiente o que consta, designadamente, da 3.ª conclusão, até por este ónus não revestir a mesma importância daqueles, pela sua reduzida, se não nula, utilidade, não só porque a indicação das passagens do depoimento com referência ao tempo da gravação poderá nem estar correcta, como porque a credibilidade de uma testemunha não pode ser avaliada com base em algumas passagens do seu depoimento. Tem que se saber da sua razão de ciência e da sua postura, revelada pelo tom de voz que utiliza e pela forma como responde às perguntas que lhe são feitas por cada um dos inquiridores, o que impõe se alargue a audição do depoimento a outros temas que não, exclusivamente, àquele que está em reapreciação.
Têm-se, pois, por cumpridos todos os ónus legalmente impostos, nada obstando, por isso, à reapreciação da decisão de facto.
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ii) Na reapreciação da decisão referida impõe-se à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C..
Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente e nem pelo recorrido, a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos, valorando-as e ponderando-as com recurso às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se de todos os elementos probatórios constantes do processo para formar a sua própria convicção.
Talqualmente como na 1.ª Instância, a Relação terá em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções naturais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio básico continua a ser o da livre apreciação das provas: relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e também às declarações de parte – cfr. art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.) e 607.º, n.os 4 e 5 e ainda 466.º, n.º 3 (quanto às declarações de parte) este do C.P.C..
De acordo com o art.º 341.º do C.C. as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Sem embargo, não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a um elevado grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192), mas quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como escreveram os Profs. Antunes Varela, et Al. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).
As regras sobre o ónus da prova constam dos art.os 342º. a 346.º do C.C., sendo que o princípio basilar é o que vem estabelecido no primeiro daqueles preceitos legais: quem invoca um direito tem de fazer a prova dos factos que o constituem. Já os factos impeditivos, modificativos ou extintivos têm de ser provados por aquele contra quem o direito é invocado.
Complementarmente àquelas regras e princípios de direito material, cumpre ainda ter presente o princípio de direito adjectivo consagrado no art.º 414.º do C.P.C., que rege sobre a interpretação da dúvida sobre a realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, que se resolve contra a parte a quem o facto aproveita. De resto, o art.º 346.º do C.C. reporta-se, precisamente, à contraprova destinada a tornar duvidosos os factos – estabelecida a dúvida, que terá de ser justificada, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova.
A importância das referidas regras e princípios radica na proibição do tribunal deixar de julgar alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio, nos termos consagrados no n.º 1 do art.º 8.º do C.C..
Desde que seja admitida a prova testemunhal, é igualmente admissível o recurso às presunções judiciais, de acordo com o que dispõe o art.º 349.º do C.C., que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Como referem os Profs. Antunes Varela et Al., “as presunções naturais, judiciais ou de facto são aquelas que se fundam nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos havidos através da observação (empírica) dos factos” e, prosseguem, “É nesse saber de experiência feito que mergulham as suas raízes as presunções continuamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto” (in ob. cit. pág. 486).
Admitindo prova em contrário, como referem ainda os mesmos Mestres, ela “dirige-se contra o facto presumido, visando convencer o juiz de que, não obstante a realidade do facto que serve de base à presunção, o facto presumido não se verificou …” (ob. cit., pág. 488).
Há-de ser, pois, à luz de quanto vem de ser referido que a decisão da matéria de facto será reapreciada.
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VII.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:
1) julgou provado que:
1.1. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 79039460, o A. contratou com a Ré a cobertura dos danos que ocorressem no prédio urbano sito na Rua Casal de Grilo, freguesia de Golães, desta comarca de Fafe, nas condições expressas na apólice de Seguro M. R. Protecção Casa;
1.2. Aquele prédio do A. é suportado e demarcado pelo seu lado nascente com uma borda construída em pedra, terra e terrões, com a altura de cerca de 4 metros e o comprimento de cerca de 30 metros (provém do 5º da petição inicial);
1.3. Borda essa de suporte já construída há mais de 20 e 30 anos, e que suporta toda aquela parte nascente do prédio do A. (provém do 6º da petição inicial);
1.4. Na noite do dia 13 para o dia 14 de Dezembro de 2012 choveu torrencialmente e sopraram ventos fortes, na área da comarca de Fafe, designadamente na Rua Casal de Grilo, freguesia de Golães, desta comarca de Fafe (provém do 9º da petição inicial);
1.5. Que ocasionaram inundações que pressionaram aquela borda de pedra, terra e terrões, e provocaram o seu aluimento e o deslizamento de terras, no comprimento de cerca de 7 metros e na altura de cerca de 4 metros (provém do 10º da petição inicial);
1.6. Para a reparação de tais danos – reparação do aludido suporte de pedra, terra e terrões e reposição de terras -, o A. tem de despender a quantia de € 7300,00 (provém do art. 13º da petição inicial);
2) julgou não provado:
2.1. Que a reparação do muro em causa seja no valor de € 17.300,00; (provém do art. 13º da petição inicial);
2.2. O imóvel seguro está implantado em meio rural e foi construído num terreno com socalcos, sustentado por um muro de pedra montada com cerca de 20 metros de altura e 7 metros de comprimento, de construção muito antiga, com mais de 50 anos; (provém do art. 6º da contestação).
2.3. A construção do muro foi erigida em pedra sobreposta, não possui sapatas estruturais nem orifícios de escoamento das águas, que assegurem a necessária drenagem dos terrenos; (provém do art. 9º, da contestação)
2.4. Que o autor A. sabia destes factos supra referidos (provém do art. 16º, da contestação);
2.5. Que a Ré tenha entregado qualquer duplicado das condições gerais do contrato de seguro ao Autor (provém da resposta apresentada em audiência de julgamento);
2.6. Que a Ré tenha entregado duplicados das condições gerais do aludido contrato (provém da resposta apresentada em audiência de julgamento);
2.7. Que a Ré tenha comunicado e explicado as cláusulas de exclusão a que a ré alude nos artigos 17º, 18º, 19º e 20º da contestação (provém da resposta apresentada em audiência de julgamento).
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VIII.- Com a alegação de que as expressões “choveu torrencialmente” e “sopraram ventos fortes” são “conclusões e não factos”, pretende a Apelante que se desconsiderem os depoimentos das testemunhas e se transcreva o documento (certidão) emitido pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA)”, constante de fls. 146 dos autos.
Não aderimos, porém, a este entendimento. Com efeito, as expressões referidas descrevem realidades apreensíveis por qualquer pessoa, tendo aquelas palavras uma significação igual em todas as latitudes, descritiva da intensidade da chuva e da força do vento, que se fizeram sentir nas circunstâncias de tempo referidas nos autos. De resto, a expressão “vento (moderado a) forte” é utilizada pelo próprio IPMA, que, entre parênteses colocou a velocidade do vento “(25 a 40 Km/h)” a comprovar aquele classificativo.
Por outro lado, o IPMA apresenta o documento em causa como um “parecer”, como bem se compreende porque os registos que consultou reportam uma área do território mais ou menos ampla – in casu a da “freguesia de Golães” – e acontece com frequência, sobretudo em situações de trovoada, caírem chuvas torrenciais num determinado local enquanto no lugar vizinho a chuva praticamente se não faz sentir.
Foi, pois, pertinente o recurso ao depoimento das testemunhas que descreveram o que vivenciaram no próprio local onde aqueles factos naturais ocorreram. De resto, também a testemunha Paulo José da Costa Oliveira, que fez a peritagem cujo relatório consta de fls. 33 a 35, com o título “CERTIFICADO DE VISTORIA” confirmou que na altura dos factos «foi uma altura atípica de ocorrência de tempestades. Chuva forte».
E também esta testemunha admitiu que «a chuva tenha contribuído para o colapso» do muro, isto mesmo fazendo constar daquele documento, nestes termos: “Deste modo, entendemos que a ocorrência da forte pluviosidade terá provocado uma saturação dos terrenos que passaram a exercer uma pressão acrescida sobre o muro, originando a sua rotura parcial” (cfr. o último parágrafo das “Causas do Sinistro”, a fls. 34).
A queda do muro como resultado da pressão exercida pelas águas das chuvas acumuladas naquele local, e bem assim o aluimento e o deslizamento de terras como consequência da penetração das águas nos terrenos e da queda do muro, são fenómenos naturais, facilmente observáveis em circunstâncias similares à descrita nos autos, sendo certo que situações idênticas foram referidas pela supramencionada testemunha Paulo O, e também, designadamente, pelas testemunhas Emília F e Orlando S, tanto mais que, como observou aquela, o terreno ali «é em declive», o que faz com que as águas atinjam maior velocidade, gerando uma força de intensidade maior sobre qualquer obstáculo que se lhes oponha.
Relativamente às características do muro, a que alude o impugnado ponto 2.3, é de confirmar, também quanto a esta parte, a decisão.
Com efeito, pela descrição que consta do relatório a fls. 34, pelo que foi referido unanimemente por todas as testemunhas que foram questionadas, e pelo (bem) que se conhece desta região do Minho, o muro em causa é em “pedra montada” (cfr. fls. 34, no item “Danos próprios”), e já é de construção antiga. É, pois, de presumir que tenha obedecido às melhores regras da arte, até por ter cumprido a sua função até agora, arrostando com dias de tempestade similares e com águas da mesma intensidade. Assim, o muro não terá “sapatas estruturais” que são próprias dos muros em betão, mas terá alicerces, constituídos por pedras grandes e largas, que lhe dão estabilidade, sendo que há uma técnica especial de colocação das pedras nas camadas que se lhe sobrepõem (assentam-se desencontradamente por forma a que umas “travem” as outras). E este tipo de muro não necessita que se lhe pratiquem orifícios de escoamento das águas (como num muro de betão armado), porque eles existem naturalmente - são as fendas, os interstícios, que ficam entre as pedras.
De resto, a testemunha que apresentou o orçamento de valor mais baixo (Agostinho S), que a própria Apelante junta aos autos, declarou que o referido valor é o preço da reconstrução do muro, de características iguais, só que utilizando pedras de tamanho maior.
Daí que se deva concluir ter sido acertada a decisão de julgar “não provada” a facticidade em causa: é que o muro não é de “pedra sobreposta” mas sim de “pedra montada”, isto é, praticamente aparelhada; possui alicerces, que nesta espécie de construção equivale às “sapatas” dos muros de betão armado; e tem muitos “orifícios” (rectius fendas) por onde, de forma natural, se faz o escoamento das águas.
Relativamente ao ponto 2.7, o que a Apelante alegou foi que “no momento da subscrição do contrato de seguro, todas as condições gerais e particulares, bem como o conteúdo da proposta, foram comunicadas e entregues ao A. bem como explicado o seu conteúdo, designadamente quanto a garantias, coberturas e exclusões” (cfr. requerimento de fls. 154- 155, 1.º parágrafo desta folha).
E face à total ausência de prova desta facticidade, pretende que se levem aos factos provados o que se encontra impresso na proposta de seguro constante de fls. 93-95, mais precisamente no primeiro parágrafo da parte rectangular que começa por “Para efeitos de celebração do presente contrato de seguro, declaro que:”, visando, desta forma, superar a completa falta de prova do que alegou – de resto, a Apelante tampouco impugna a decisão na parte em que julgou não provado que tenha sido entregue ao Autor o duplicado das condições gerais do contrato (cfr. ponto 2.5, repetido em 2.6).
Contudo, a própria testemunha António J, que reconheceu a sua assinatura na supramencionada proposta de seguro, afirmou nada se recordar «neste caso», extraindo-se ainda do que disse que normalmente (só) explica o que o seguro abrange, mas nada diz quanto às “exclusões”, ou seja, nem sequer faz uma singela chamada de atenção para elas.
E porque a mesma testemunha afirmou que «a maior parte dos clientes não está ali a ler ao pormenor» é de presumir que o Autor, não “declarou” coisa alguma, tendo-se limitado a assinar no local que lhe foi indicado, tanto mais que, em boa verdade, não podia “declarar” que lhe foram entregues as “Condições Especiais” do contrato, porque este as não tem, ou seja, não foi incluída no contrato qualquer das condições especiais disponíveis, sendo certo que nem tampouco se provou a entrega das condições gerais.
Tal “declaração” (também assinada, como “declarante” pela “Sucursal”), que provadamente não é verdadeira, não pode, pois, como pretende a Apelante, ser admitida como prova idónea da facticidade que alegou, e de que tem o ónus da prova.
Conclui-se, assim, pela total improcedência do recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
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IX.- Sem embargo da antecedente decisão impõe-se corrigir um lapso de omissão no facto transcrito sob o ponto 1.6, que resulta inequivocamente da fundamentação, e influi na decisão (em desfavor do Autor).
De resto, ainda que se entendesse não consubstanciar um lapso, sempre esta Relação tem o poder, que é vinculado, de alterar a decisão, ao abrigo do disposto no art.º 662.º, n.º 1 do C.P.C..
Com efeito, ficou a constar daquele ponto 1.6 que para a “reparação do aludido suporte de pedra, terra e terrões e reposição de terras -, o A. tem de despender a quantia de € 7300,00”, remetendo, na fundamentação, a prova deste facto para o “orçamento junto aos autos a fls. 32”, acrescentando-se “o qual veio a ser confirmado em sede da audiência de julgamento pela testemunha que o elaborou, Agostinho Sousa Lobo”.
Tudo isto corresponde à verdade, mas a mesma verdade impõe que se tenham em consideração a totalidade do documento e do depoimento, e um e outro referiram que àquele valor acresce o “I.V.A. em vigor à data da factura” (cfr. fls. 32, in fine ao fundo em “Obs.”).
Ora, à taxa actual, o IVA representa quase uma quarta parte do preço e por isso, até por singela questão de justiça material, não pode ser desconsiderado, sendo inequívoco que se trata de um encargo que não deixará de ter de ser suportado porque se trata de um imposto devido ao Estado.
Deste modo, altera-se o ponto da matéria de facto acima referido que fica com esta redacção:
1.6. Para a reparação de tais danos - reparação do aludido suporte de pedra, terra e terrões e reposição de terras -, o A. tem de despender a quantia de € 7.300,00, acrescida de I.V.A. à taxa em vigor à data da factura.
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X.- Como resulta dos autos a Apelante celebrou com o Autor um contrato de seguro na modalidade de “Riscos Múltiplos Habitação – Protecção Casa”.
O contrato de seguro é a convenção pela qual uma das partes (o segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado), a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado” (cfr. Prof. Almeida Costa in Rev. Leg. Jurisprudª. ano 109º., 1996/1997, pág. 20).
É um contrato sinalagmático e oneroso – dele emergem obrigações para ambas as partes e implica vantagens também para ambas.
É ainda um contrato aleatório já que a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto, o qual, a verificar-se, poderá ser de valor superior ao que o segurado suporta.
O risco é um elemento essencial do contrato de seguro.
Os contratos de seguro regem-se pelas condições gerais, e pelas condições especiais e pelas particulares que tenham sido subscritas pelo segurado ou tomador do seguro.
Apesar de, em princípio, em matéria de contratos vigorar o princípio da liberdade contratual, quer na vertente de liberdade de contratar, quer na de conformação do conteúdo – cfr. art.º 405.º do C.C. – em sede de contratos de seguro, a liberdade de contratar restringe-se, por vezes, à escolha da seguradora, e é muito mitigada a liberdade de conformação do contrato dado que o tomador do seguro ou segurado é colocado perante cláusulas previamente redigidas, não lhe sendo permitida a introdução de alterações.
Esta posição de fragilidade do tomador do seguro em relação à outra parte contratante, que tem quase o exclusivo da interpretação das cláusulas que, unilateralmente, propõe, impõe que se recorra a mecanismos de correcção que consigam introduzir algum equilíbrio.
E foi com a intenção de proteger os consumidores contra as cláusulas abusivas que o, à altura, Conselho das Comunidades Europeias aprovou a Directiva n.º 93/13/CEE, de 05/04/1993, com vista à uniformização do direito interno dos Estados-Membros, a qual, no art.º 5.º estabelece o princípio da interpretação mais favorável ao consumidor no caso dos contratos em que as cláusulas propostas estejam, na totalidade ou em parte, consignadas por escrito, impondo ainda que a redacção dessas cláusulas seja “clara e compreensível” (in J.O. n.º L 095, de 21/04/1993).
É ainda a intenção de manter o equilíbrio possível entre os contratantes, pressuposto de um contrato sinalagmático, que o art.º 3.º, n.º 1 daquela Directiva classificou como abusiva qualquer cláusula contratual que “não tenha sido objecto de negociação individual” quando, “a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor”.
No direito interno temos o regime das cláusulas contratuais gerais, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 446/85 (alterado pelos Dec.-Lei n.os 220/95, de 31/08, 249/99, de 07/07 e 323/2001, de 17/12, e rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 114-B/95, de 31/08).
Impõe o referido Diploma Legal que o predisponente, ainda na fase pré-negocial, comunique ao aderente o teor integral das cláusulas contratuais gerais, informando-o dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique, e prestando-lhe todos os esclarecimentos razoáveis solicitados, sendo que a cominação para o não cumprimento destes deveres é a de se considerarem excluídas do contrato as cláusulas que não tenham sido comunicadas ou cujo conteúdo não tenha sido devidamente esclarecido, como se retira do disposto nos art.os 5.º; 6.º; e 7.º.
Por outro lado, enquanto cláusulas escritas, na sua interpretação não podem deixar de observar-se as regras constantes dos art.os 236º. e 238º., do C.C..
Na situação sub judicio e para o que agora interessa, foram contratadas as coberturas de danos decorrentes de “tempestades”, “inundações” e “aluimento de terras”.
No que se refere às “tempestades”, para além dos “tufões”, “ciclones” e “tornados”, estão abrangidos pelo contrato os danos resultantes do “Alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício em consequência dos danos causados por aqueles fenómenos – cfr. artigo 2.º, n.º 2, pontos 1 e 2, das Condições Gerais.
No que se refere às “inundações” ficam abrangidos os danos causados em consequência de “Tromba de água ou queda de chuvas torrenciais – precipitação atmosférica de intensidade superior a dez milímetros em 10 minutos no pluviómetro” – n.º 3, ponto 1.
Finalmente, no que se refere ao “aluimento de terras” ficam cobertos os danos decorrentes dos seguintes “fenómenos geológicos: Aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundimentos de terras” – cfr. n.º 25.
No capítulo das exclusões, a que se dedica o artigo 4.º, ficarão fora da cobertura, no que se refere às “tempestades”, designadamente os “danos em muros e vedações” (ponto 3). Outro tanto vem previsto quanto à cobertura relativa às “inundações” (ponto 3).
E no que concerne à cobertura do “aluimento de terras”, prevê-se a exclusão da cobertura (designadamente) das “perdas ou danos acontecidos em edifícios, muros, vedações … que estejam assentes sobre fundações que contrariem as normas técnicas ou as boas regras de engenharia de execução das mesmas, em função das características dos terrenos e do tipo de construção …” (ponto 2) e ainda das “perdas ou danos resultantes de deficiência de construção, de projecto, de qualidade de terrenos ou outras características do risco, que fossem ou devessem ser do conhecimento prévio do Tomador do Seguro e/ou do Segurado …” (ponto 3).
No que se refere àqueles conceitos, como decidiu o S.T.J. no Ac. de 11/04/2000, “se num contrato em que se segura o risco “tempestade” e em que a seguradora não prova ter satisfeito tal dever de comunicação a respeito da “definição de tempestade”, constante das Condições Gerais da Apólice, deve ter-se tal definição de tempestade excluída do contrato, continuando, porém, o risco “tempestade” coberto, mas com o sentido que vulgar e correntemente lhe é atribuído” (in C.J., Acs. do S.T.J., VIII, tomo I, págs. 152-158).
Assim, essencialmente no que se refere às “inundações”, cabendo no sentido com que normalmente é utilizado a “tromba de água” e/ou a “queda de chuvas torrenciais”, uma vez que a Apelante não fez a mínima prova de ter comunicado ao Autor o critério objectivo que elegeu para o preenchimento destes conceitos, dado pela medição da precipitação das águas pluviais no pluviómetro, não pode este ser considerado, tomando-se o termo “chuvas torrenciais” com o seu sentido habitual e comum.
Outro tanto ocorre quanto à cobertura de “aluimento de terras”, por carecer de explicitação o que se quis significar com os “fenómenos geológicos”, tanto mais que na origem de aluimentos, de deslizamentos, de derrocadas e de afundamento de terras, também estão fenómenos climatológicos - períodos de seca severa, que abre gretas na terra, ou, como sucedeu na situação sub judice, de chuvas torrenciais, que tiram consistência aos terrenos.
É ainda o incumprimento do dever de informar e explicar que justifica que se não considerem as situações de exclusão das coberturas contratadas, nos termos do disposto no art.º 8.º, alínea a) da L.C.C.G..
Sem embargo, sempre diremos que à Apelante não assiste razão no fundamento que invoca para não ressarcir o Autor dos prejuízos que sofreu já que ficou provado que “choveu torrencialmente e as chuvas ocasionaram inundações” e a queda do muro, aluimento do terreno e o deslizamento de terras não cabe no ponto 3, visto que o referido muro não foi construído pelo Autor nem a seu mando, e já existia há longos anos quando foi celebrado o contrato de seguro, e por isso é que não podem ser invocadas “deficiências de construção”, deficiências “de projecto” e da “qualidade de terrenos”, se bem que também se não tenha provado que o Autor soubesse que a consistência do muro estava abalada.
Sem embargo, a recorrer-se ao ponto 2 também daí resultaria a improcedência da invocação já que se não provou que o muro em causa, atendendo ao seu “tipo de construção”, assentava sobre “fundações” que contrariavam as normas técnicas ou as boas regras de construção.
Como já foi referido, aquele tipo de construção é a tradicionalmente utilizada nesta Região Norte para suporte de terras, mesmo quando há grandes declives (e para a ver e apreciar, nem é necessária a visita aos socalcos do Douro Vinhateiro), e o facto de o muro ter cedido apenas naquela pequena parte da sua extensão não pode ser atribuível à falta de consistência mas antes ao avolumar das águas que, por algum motivo relacionado com os terrenos, acorreram àquele ponto e aí se acumularam, provocando ainda o deslizamento de terras (o que, em linguagem corrente, se designa por enxurradas).
Este evento integra o conceito de “sinistro”, tal como vem definido nas Condições Gerais da apólice, por se tratar de um acontecimento de carácter fortuito e imprevisto, estando coberto pelas garantias do contrato.
Cumpre, pois, à Apelante cumprindo com a obrigação que assumiu, ressarcir o Autor dos danos que sofreu, suportando o custo da reedificação do muro, assim reconstituindo a situação que existia antes, nos termos do disposto no art.º 562.º do C.C..
Não merece, pois, que seja provida a pretensão recursiva formulada pela Apelante, devendo manter-se a decisão de condenação impugnada, ainda que com o acrescento correspondente ao aditamento introduzido no ponto 1.6 da facticidade provada.
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C) DECISÃO
Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo a decisão de condenação da Apelante a pagar ao Autor a quantia de € 7.300 (sete mil e trezentos euros), acrescida do IVA à taxa em vigor à data da factura.
Custas da apelação pela Apelante.
Guimarães, 23/06/2016
(escrito em computador e revisto)
(Fernando Fernandes Freitas)
(António Figueiredo Almeida)
(Maria Purificação Carvalho)