Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1122/11.8TBBCL.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: TERCEIROS
REGISTO
NULIDADE
ANULAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - O art. 291.º, nºs 1 e 2 do Código Civil está em vigor, não tendo sido revogado pelos arts 5.º, nº 1 e 17.º, nº 2, do Código de Registo Predial.
2 – O conceito de terceiro para efeito do registo não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes do mesmo transmitente e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, numa cadeia de negócios inválidos.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos.
3 - O terceiro a que se refere o artigo 291.º do CC é protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.
4 – Contudo, para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1122/11.8TBBCL.G1
2.ª Secção Cível – Apelação
Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 527)
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.RELATÓRIO
“R – Instituição Financeira de Crédito, SA” deduziu ação declarativa contra “V – Unipessoal. Lda.”, Joaquim R, “R – Automóveis, Lda.” e Paulo J pedindo que se declare a nulidade dos contratos celebrados, a que aludem os artigos 17.º a 19.º da petição inicial, ordenando o cancelamento do registo de propriedade inscrito a favor dos réus, que se reconheça judicialmente o direito de propriedade da autora sobre a viatura de marca Renault, modelo Megane Break II, chassi/n.º série: VF1KMSEC640026683 e matrícula 43-HB-06, condenando-se os réus a proceder á restituição da referida viatura à autora, em bom estado de conservação.
Alegou que celebrou contrato de locação financeira com a 1.ª ré, tendo esta deixado de pagar as rendas respetivas, o que conduziu à resolução do contrato. Acontece que, falsificando assinaturas e documentos, a 1.ª ré vendeu a viatura ao 2.º réu que, por sua vez, a vendeu à 3.ª ré e esta ao 4.º réu, em nome de quem se encontra registada.
Contestou a ré “R – Automóveis, Lda.” afirmando ter adquirido a viatura ao 2.º réu, pelo preço de € 14.000,00, depois de se certificar junto da CRA que, sobre o veículo em questão, não existiam quaisquer ónus ou encargos, estando registada a favor do vendedor e, posteriormente, vendeu-a ao 4.º réu por € 18.000,00, na prossecução da sua atividade de comércio de automóveis.
Contestou, também, o réu Paulo J afirmando ter adquirido a viatura de boa fé, a um stand de automóveis – a 3.ª ré – pelo preço de € 18.000,00, confiando na aparência do registo e tendo procedido ao registo da aquisição em seu nome, pelo que a mesma deve ser declarada sua propriedade. Para o caso de se vir a julgar procedente a ação, invoca o direito de retenção sobre o veículo até ser restituído de tudo quanto nele despendeu – preço, seguro, imposto -, invocando, ainda o enriquecimento sem causa para o caso de ter de restituir o veículo à autora.
Contestou, ainda, Joaquim R, alegando que comprou a viatura por € 10.000,00 a Aníbal S que se intitulava proprietário da mesma, tendo-se certificado que sobre a mesma não impendiam quaisquer ónus ou encargos no registo e tendo procedido ao registo da sua aquisição, desconhecendo as relações existentes entre o Aníbal e a 1.ª ré e entre esta e a autora. Posteriormente, vendeu a viatura à 3.ª ré, por € 14.000,00.
A 1.ª ré foi citada editalmente.
A autora respondeu, mantendo o já alegado.

Após audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, declarando a nulidade dos contratos celebrados, a que aludem os artigos 16.º, 17.º e 19.º, ordenando-se o cancelamento do registo de propriedade a favor dos réus, declarando o direito de propriedade da autora sobre o veículo e condenando os réus a procederem à restituição do mesmo à autora.

Discordando da sentença, dela interpôs recurso o réu Paulo J, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
I. Em sede de contestação o Réu, alegou e provou o pagamento da viatura e da sua boa-fé, desconhecendo a origem primária da viatura, e em síntese, concluindo, solicitou a atuação do juiz a quo nos seguintes termos:
“Finalmente e, na eventualidade de V/ Exa. decretar a procedência dos presentes autos, o que não se consente, perante a obrigação que recai sobre o 4.º Réu de restituir à Autora o veículo deverá aquele ser ressarcido da quantia de € 19.472,37, sob pena de enriquecimento sem causa quer da Autora, quer do 1.º Réu, quer da 3.º Ré
II. A sentença recorrida opta por ignorar e omitir a sua actuação, não se pronunciando quanto ao direito de crédito do Recorrente, nem quanto ao instituto do enriquecimento sem causa.
III. Os artigos 6º e 547º do C.P. Civil atribuem ao juiz o poder de direcção do processo, deferem-lhe a competência para, em superação da omissão da parte, providenciar pelo suprimento dos pressupostos processuais susceptíveis de sanação e convidar as partes a praticar os actos necessários à modificação subjectiva da instância.
IV. Mais do que isso, prescreve ainda (nº1 do art. 6º) que ao juiz cabe providenciar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
V. Este dever de gestão é concretizado, por exemplo no art. 590º (Gestão inicial do Processo), no âmbito da intervenção do Juiz na fase anterior à audiência prévia, e a propósito do indeferimento da petição, da diligência pelo suprimento de excepções dilatórias, do aperfeiçoamento dos articulados e da instrução da causa para conhecimento de excepções ou do seu mérito.
VI. Toda a marcha processual deverá ser orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, ou seja, deverá suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais.
VII. O juiz a quo não atuou em conformidade com os poderes que lhe são conferidos.
VIII. Na verdade o Réu, peticionou e alegou o instituto do enriquecimento sem causa, dando lhe o devido fundamento, socorrendo se dos fundamentos do art. 552º, nº 1, al. d). A insuficiência de qualquer destes articulados poderá ser suprida antes da audiência prévia, a convite do tribunal, com sujeição aos limites da alteração do pedido e da causa de pedir e ao condicionamento da defesa pela contestação apresentada, como se retira da remissão feita no art. 590º, nºs 3, 4 e 5, para o art. 265º e para os arts. 573º e 574º, respectivamente.
IX. Destarte, sempre se defenderá que se encontram reunidas as condições do enriquecimento sem causa, porquanto considerando o teor do artigo 473º n.º 2 “a obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”
X. São pressupostos da verificação do enriquecimento sem causa e, bem assim, da restituição do recebido indevidamente a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) Que haja um enriquecimento; b) que o mesmo não tenha causa que o justifique; c) Que o mesmo seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição e que - em razão da subsidiariedade do instituto, artigo 474º do Código Civil d) não exista outro meio jurídico para que o Autor possa obter o respectivo ressarcimento.
XI. O recorrente confronta-se, agora, com um empobrecimento do seu património, pois pagou uma viatura que deverá restituir por imperativos legais, sem agilização da restituição do que lhe é devido!!!!!
XII. O poder judicial foi chamado a intervir nesta causa, possui todos os dados e factos que possam avaliar a questão que lhe foi submetida e mesmo assim conclui, alegando uma questão meramente formal em detrimento direto e evidente dos factos que constam da acção.
XIII. O recorrente invocou todos os elementos consubstanciadores da sua situação e do enriquecimento de outrem à custa do seu património, após entrega da viatura mas o tribunal precludiu a matéria pela formalidade.
XIV. No que respeita ao direito de retenção exposto nos artigos 754º e seguintes do código civil é um regime flexível no sentido da não imposição de requisitos cumulativos para o seu exercício, e consiste na faculdade que o devedor de uma coisa possui de a não entregar enquanto não for pago do crédito que por sua vez lhe assiste.
XV. A este propósito veja-se o Ac. Do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2005, - “O direito de retenção traduz-se no direito conferido ao credor, que se encontra na posse de coisa que deva ser entregue a outra pessoa, de não a entregar enquanto esta não satisfizer o seu crédito, verificada alguma das relações de conexidade entre o crédito do detentor e a coisa que deva ser restituída a que a lei confere tal tutela - arts. 754º e 755º C. Civil. (…) Assim, desde que o credor tenha um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, reconhece-se-lhe o direito de garantia, válido erga omnes e atendível no concurso de credores. Com efeito, o retentor não pode opor-se à execução, singular ou universal, movida por outros credores, mas é-lhe assegurada a posição preferencial que legitima a recusa em abrir mão da coisa até ao pagamento do seu crédito
XVI. Conclui-se pois pela legitimidade do direito de retenção do Recorrente enquanto este não vir satisfeito o seu crédito e regularizado o seu património.
XVII. Resulta dos factos provados que a recorrida foi representada por um falso procurador e cuja assinatura foi reconhecida por advogada, e faz fé pública em função da atribuição de poderes aos advogados, perante entidades públicas e privadas da regularidade do registo e dos poderes para o acto.
XVIII. Em bem da verdade, não resulta do processo que tenha sido assacada ou haja tal pretensão, responsabilidade ao dito procurador e à ilustre mandatária.
XIX. Ora, este comportamento omissivo da Autora e com a conivência do Tribunal, coloca em causa a posição jurídica do Recorrente, que alheio à, alegada, falsificação, adquiriu o veiculo de forma onerosa, de boa-fé e fazendo fé no registo público, do qual não constava nenhum registo de locação financeira.
XX. Por força do n° 2 do art. 17° do Código do Registo Predial, a declaração de nulidade do registo de aquisição a favor do 1° Réu nunca poderá implicar a nulidade ou o cancelamento do registo de aquisição a favor do 4º Réu, aqui Recorrente, na medida em que se verificam todos os requisitos exigidos por aquela disposição: - aquisição do direito (direito real de garantia, neste caso) a título oneroso; - boa fé do terceiro - prioridade do registo dos correspondentes factos relativamente ao registo da acção de nulidade e cancelamento.
XXI. A “guerra” entre a aplicação do artigo 291º do C.C. e artigo 17º n.º 2 do C.R.Predial suscita várias posições na doutrina nacional.
XXII. Porém o recorrente não adquiriu a viatura ao 1º Réu que, alegadamente, se tornou, por iniciativa própria e através de artifícios registrais, dono do veiculo. O recorrente adquiriu a viatura após duas aquisições. Nesta corrente de alienações o Recorrente fez fé pública no registo e na legítima propriedade da mesma pelo 3º R.
XXIII. O registo predial português é dotado de fé pública, com a inerente presunção de verdade, por actuação de um princípio de legalidade substancial, logrando mesmo desencadear a aquisição de direitos dominiais.
XXIV. Ao decidir-se como se decidiu, em preclusão da aplicação do artigo 17º n.º 2 do código registo Predial, e não integrando os actos no âmbito do art° 5° n°s 1 e 4 do C.R. Predial, se comete uma inconstitucionalidade material, violando os princípios da Boa-Fé nos negócios, na publicidade do registo da equidade e da Justiça, incorrendo assim no disposto dos art°s 12°, 13°, 204° e 277° da Constituição da República Portuguesa.
XXV. Cremos que deverá existir sempre uma analise casuística dos autos, na medida em que a aplicação dos institutos legais se faça de forma a responder ás necessidades e aos direitos específicos em causa.
XXVI. A este propósito reitera-se a jurisprudência advogada no acórdão do STJ de 21-10-2004, P. 05ª1316, in DGSI: “I – A declaração de nulidade e consequente cancelamento da inscrição de propriedade a favor do transmitente de certo bem imóvel não afecta os direitos sobre ele adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé se o registo desta aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade; II – Só nos casos em que o terceiro de boa fé não agiu com base no registo, isto é, quando o negócio inválido não foi registado, é que deve aplicar-se o regime previsto no artigo 291.º do Código Civil em lugar do estabelecido no artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial;”
XXVII. Perfilhando a citada jurisprudência, o artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial ajusta-se perfeitamente a situação sub judice tornando-se, assim, irrelevante, averiguar o “prazo de quarentena” previsto no n.º 2 do artigo 291.º do CC.
Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada e consequentemente ser substituída por outra que:
a) Seja o recorrente/4.º réu declarado legítimo dono e possuidor do veículo automóvel nestes autos em causa, por aquisição atributiva por força do efeito registal, previsto no artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial;
b) Na eventualidade de V. Exas. pugnarem pela manutenção da decisão recorrida considere a alegação de enriquecimento sem causa do recorrente como reconvenção, o que resulta da matéria de facto e, em consequência, seja declarado e reconhecido o seu direito de crédito nos presentes autos perante o 3.º réu e a autora; e que,
c) Seja reconhecido o seu direito de retenção nos termos e para os efeitos do artigo 754.º e ss. do Cód. Civil.
Assim se fará a inteira e sã Justiça!

Também a ré “R – Automóveis, Lda.” interpôs recurso da sentença, finalizando a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
I. Para os efeitos do n.º 2 do artigo 17.º do Código do Registo Predial, a boa-fé traduz-se no desconhecimento sem culpa por parte do terceiro, da desconformidade entre a situação registral e a situação substantiva.
II. O recorrente foi considerado terceiro de boa-fé.
III. A questão cinge-se em saber se os direitos adquiridos pelos réus, são prejudicados em consequência do vício que está na sua base, mais concretamente o negócio de compra e venda de bem alheio.
IV. A delimitação entre as hipóteses que caem sob a alçada do n.º 2 do artigo 17.º do CRP e as que estão sujeitas ao regime previsto no art.º 291º do Código Civil deve fazer-se de acordo com o seguinte critério: o regime previsto no art.º 291.º do Código Civil só deve aplicar-se quando o terceiro de boa-fé não tenha atuado com base no registo, isto é, quando o negócio nulo ou anulável não tenha sido registado, à contrario o regime previsto no artigo 17 nº2 do CRP, deverá ser observado quando o adquirente tenha atuado de boa-fé e com base no registo.
V. Estando provada a boa-fé da recorrente e a anterioridade do registo do seu direito, não pode a mesma ser prejudicada pela declaração de nulidade dos contratos de compra e venda e cancelamento do registo de propriedade a favor os réus.
TERMOS EM QUE:
E contando com o douto suprimento de Vªs Exªs, deverá ser concedido inteiro provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida.
Pois, só assim se fará a almejada Justiça.

A autora contra alegou, pugnando pela improcedência das conclusões das apelações.
Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em averiguar dos efeitos da nulidade de negócio de venda de bem alheio em relação a terceiros de boa fé, campo de aplicação do disposto nos artigos 291.º do Código Civil e 17.º do Código de Registo Predial, bem como, quanto à apelação do recorrente Paulo J, averiguar da possibilidade de aplicação do direito de retenção e do enriquecimento sem causa.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Factos provados
Do depoimento das testemunhas, do teor dos documentos juntos aos autos e das declarações prestadas, resultam provados os seguintes factos:
1º - No exercício da sua actividade comercial, a autora celebrou com a 1ª ré o “Contrato de Locação Financeira n.º LSG08505030001”, composto de “Condições Gerais” e de “Condições Particulares” – artigo 1º da petição inicial.
2º - O contrato começou a produzir os seus efeitos no dia 17 de Janeiro de 2009, pelo prazo de 84 (oitenta e quatro) meses – artigo 2º da petição inicial.
3º - Nos termos do referido contrato, a autora adquiriu o veículo de marca Renault, modelo Megane Break II, chassis / nº série: VF1KMSEC640026683 e matricula 43-HB-06 – artigo 3º da petição inicial.
4º - A autora procedeu ao registo da viatura e do ónus da locação financeira a favor da ré junto da Conservatória do Registo Automóvel – artigo 4º da petição inicial.
5º - Tendo facultado a utilização do equipamento à 1ª ré – artigo 5º da petição inicial.
6º - Nos termos do contrato de locação financeira a 1ª ré estava obrigada ao pagamento de 84 (oitenta e quatro) rendas mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de € 577,02 (quinhentos e setenta e sete euros e dois cêntimos) e as restantes no valor de € 404,02 (quatrocentos e quatro euros e dois cêntimos) – artigo 6º da petição inicial.
7º - Sucede que a 1ª ré não cumpriu as suas obrigações decorrentes do referido contrato, não tendo pago, nas datas de vencimento, as rendas vencidas a 01/03/2009, 30/03/2009; 30/04/2009; 30/05/2009; 30/06/2009; 30/07/2009; 30/08/2009, 30/09/2009, 30/10/2009, 30/11/2009, 30/12/2009, 30/01/2010, 01/03/2010, 30/03/2010, 30/04/2010, 30/05/2010, 30/06/2010 – artigo 7º da petição inicial.
8º - Em consequência do referido em 7º a autora veio, usando da faculdade prevista no art.º 13º das “Condições Gerais”, resolver, por carta registada com aviso de recepção, datada de 15 de Julho de 2010, o contrato de locação financeira – artigo 8º da petição inicial.
9º - Na carta de resolução foi a 1ª ré informada das consequências da mesma, nomeadamente da obrigação de restituição do equipamento locado nas instalações da autora – artigo 9º da petição inicial.
10º - Sucede que a mesma não procedeu à restituição da viatura – artigo 10º da petição inicial.
11º - A autora nunca vendeu nem autorizou a venda do veículo a nenhum dos réus nem a qualquer outra pessoa - artigo 13º da petição inicial.
12º - Em 05.08.2009, o veículo identificado em 3º foi registado em nome da ré V Unipessoal, Lda., conforme resulta de fls. 29/30, cujo teor se dá como
integralmente reproduzido.
13º - Consta do documento apresentado para concretização do registo mencionado em 12º, que a autora foi representada nesse acto por um procurador de nome Paulo A e a assinatura reconhecida pela advogada, Dr.ª Gracinda Saudade Costa, conforme resulta de fls. 31, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
14º - Paulo A nunca foi procurador da autora, tendo-se feito passar pelo mesmo com vista ao registo da propriedade do veículo a favor da 1ª ré - artigo 16º da petição inicial.
15º - Em 05.08.2009, foi requerido o registo de propriedade do veículo identificado em 3º em nome do réu Joaquim R, conforme resulta de fls. 32/34, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
16º - Tal veículo acabaria por ser vendido pela 1ª ré ao 2º réu – resposta ao artigo 15º da petição inicial.
17º - Sucede que em 11 de Agosto de 2009, o 2º réu vendeu à 3ª ré o referido veículo – resposta ao artigo 16º da petição inicial.
18º - Em 12.08.2009, foi requerido o registo de propriedade do veículo identificado em 3º em nome da ré R – Automóveis, Lda., conforme resulta de fls. 36/38, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
19º - Em 8 de Setembro de 2009, a 3º ré procedeu à venda da viatura ao 4º réu pelo valor de € 18.000,00 – resposta ao artigo 19º da petição inicial.
20º - Encontrando-se a mesma registada a favor do 4º réu desde o dia 9 de Setembro de 2009 – resposta ao artigo 20º da petição inicial.
21º - A 3ª ré adquiriu o veículo ao 2º réu pelo preço de € 14.000,00 - resposta ao artigo 8º da contestação da ré R.
22º - No momento mencionado em 21º, a 3ª ré adquiriu o veículo junto de quem em face do título de registo automóvel, justificava possuir legitimidade para tanto, inexistindo qualquer menção ao facto de sobre a viatura impender um contrato de locação financeira que beneficiasse a autora - resposta aos artigos 13º e 15º da contestação da ré R.
23º - O 4º réu estava convicto de que tinha adquirido a propriedade do veículo ao seu junto de quem tinha legitimidade para o vender, ignorando os factos descritos em 11º a 14º – resposta aos artigos 2º e 12º da contestação do réu Paulo J.
24º - Desde a data de aquisição do veículo automóvel, o 4º réu mantém-se no gozo e fruição do mesmo, retirando todos os proveitos e utilidades, exercendo todos os actos materiais como um verdadeiro dono - resposta aos artigos 36º a 38º da contestação do réu Paulo J.
25º - O 2º réu comprou o veículo à 1ª ré pelo preço de € 10.000,00, entidade essa que em face do título de registo automóvel, justificava possuir legitimidade para tanto, inexistindo qualquer menção ao facto de sobre a viatura impender um contrato de locação financeira que beneficiasse a autora – resposta aos artigos 5º a 9º da contestação do réu Joaquim R.
26º - A presente acção foi instaurada em 31.03.2011 e registada em 20.02.2012, conforme resulta do teor da certidão junta a fls. 147, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
Factos não provados
Não se provaram, com relevância para a decisão da causa, que o réu Paulo J pagou para seguro o valor de € 1196,00 e a importância de € 275,95, devida a título de imposto de circulação.
Os restantes factos alegados que não se encontram elencados nos factos dados como provados ou não provados, foram considerados pelo tribunal como conclusivos, irrelevantes, repetidos, que encerram conceitos de direito ou se encontram em contradição com os factos dados como provados.

A decisão de facto não está impugnada, pelo que cabe apreciar do mérito da decisão jurídica.
Comecemos por analisar os contornos da questão colocada ao tribunal, relativamente à venda de bem alheio, partindo do facto assente que, carecendo a ré V de legitimidade para alienar o veículo da autora, tal venda consubstancia uma venda de bem alheio, que é nula, nos termos do disposto no artigo 892.º do Código Civil, cabendo averiguar se os direitos adquiridos pelos restantes réus – três registos posteriores – são ou não prejudicados em consequência do vício substantivo que está na sua base.
Deve desde já dizer-se que esta venda de bem alheio, se encontra ferida de nulidade nas relações entre alienante e adquirente, mas ela é ineficaz em relação ao proprietário – veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 189 “No que se refere ao verdadeiro proprietário da coisa, a venda, como res inter alios, é verdadeiramente ineficaz (anotação de Vaz Serra ao Acórdão do STJ de 21/01/1972, na RLJ, ano 106.º, pág. 26)”.
E esta é uma questão muito importante nestes autos. A autora, como proprietária do veículo, poderia ter-se limitado a uma ação de reivindicação, regressando o veículo à sua posse. Não estamos aqui perante aquela ação em que a mesma pessoa vende um bem a mais que um comprador, sendo estes terceiros para efeitos de registo, nos termos consagrados pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/99 “terceiros para efeitos do disposto no artigo 5.º do CRP, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”. Não é o caso dos autos, em que se verifica uma sucessão de negócios jurídicos nulos, em que o transmitente e o adquirente são sempre diferentes.

Mas vejamos mais detalhadamente.
Ambos os recorrentes sustentam que, ao caso, deveria ter-se aplicado o disposto no artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial e não o disposto no artigo 291.º do Código Civil.
Dispõe o artigo 291.º, n.º 1 do Código Civil o seguinte:
“A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio”
Contudo, conforme decorre do disposto no n.º 2 deste artigo 291.º do CC, no caso dos autos, os direitos de terceiros não estariam protegidos, uma vez que a ação foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. É que a tutela do interesse do proprietário está limitada a um período de três anos decorridos após a conclusão do negócio que, no caso dos autos, ocorreu a 05/08/2009, tendo a ação sido instaurada a 31/03/2011 e registada a 20/02/2012. A lei pretende, com este prazo, dar uma oportunidade ao verdadeiro proprietário para repor a verdade jurídica material, considerando que, após o decurso do prazo, o seu interesse deixa de merecer proteção.
No caso dos autos, tendo a ação sido intentada e registada dentro daquele período de três anos, não são reconhecidos os direitos de terceiros.

Seria, então de aplicar o artigo 17.º do Código do Registo Predial?
Vejamos.
A presunção derivada do registo automóvel, decorrente das disposições conjugadas dos arts 29.º do Dec-lei 54/75, de 12 de Fevereiro, e do art. 7.º do Cód. Reg. Predial, é uma mera presunção "juris tantum", ilidível mediante prova em contrário.
Tal prova pode resultar da nulidade do próprio registo ou da invalidade do acto substantivo inscrito (Antunes Varela, R.L.J. Ano 118- 307).
O art. 17, nº 2, do C.R.P. proclama:
"A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da acção de nulidade ".
Mas esta disposição tem de ser conjugada com o art. 291.º do Cód. Civil – veja-se, neste sentido, Acórdão do STJ de 27/04/2005, relator Azevedo Ramos, processo 05A837, in www.dgsi.pt.
Pronunciando-se sobre a matéria, escreve Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 617):
"No actual Código Civil, o problema da oponibilidade da nulidade ou anulabilidade a terceiros foi resolvido de forma original, através de um sistema de compromisso entre os interesses que estão na base da invalidade e os interesses legítimos de terceiros e do tráfico.
Em princípio, tais formas de invalidade são oponíveis a terceiros, salvo o caso especial de simulação, que é inoponível a terceiros de boa fé (art. 243).
Em nome da protecção dos legítimos interesses de terceiros e dos interesses do tráfico jurídico, estabeleceu-se, contudo, que a declaração de nulidade ou a anulação do negócio respeitante a bens sujeitos a registo, se não for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio, é inoponível a terceiros de boa fé, adquirentes a título oneroso, de direitos sobre os mesmo bens".
Na mesma esteira, Antunes Varela (R.L.J. Ano 118-310) também ensina:
De acordo com a solução decorrente do art. 291, nºs 1 e 2, do C.C., "os efeitos extintivos característicos da nulidade ou anulação (do contrato) mantém-se plenamente durante os três anos posteriores à conclusão do negócio impugnado, desde que a acção, estando sujeita a registo, seja efectivamente registada.
Passado, no entanto, esse período de defeso cerrado, se o contrato nulo ou anulado respeitar a bens imóveis (ou a móveis sujeitos a registo), e esses bens tiverem sido alienados ou onerados a favor de terceiro, que tenha registado a sua aquisição, os efeitos da nulidade ou anulação podem ter que ceder perante o direito do terceiro adquirente.
Bastará para tal que o registo da aquisição de terceiro seja anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, que a aquisição tenha sido a título oneroso e que o adquirente tenha agido de boa fé ".
Logo a seguir, o insigne Professor Antunes Varela acrescenta que a disciplina instituída pelo citado art. 291 do Cód. Civil pode, assim, ser retratada sob um duplo prisma de observação (obra e local cit.):
"Por um lado, a disposição legal confirma a falta de valor constitutivo (autónomo) do registo, na medida em que durante os três anos posteriores à conclusão de qualquer contrato não defende o titular do direito formalmente inscrito nos livros do registo predial contra os efeitos da nulidade ou da anulação do contrato que tenha servido de pressuposto à sua aquisição ".
" (...) Por outro lado, o preceito legal representa uma primeira e significativa conquista do registo contra o regime tradicional da nulidade ou anulação, na medida em que permite ao titular da inscrição efectuada no registo, embora só a partir de certo momento posterior à conclusão do contrato nulo ou anulável, fazer prevalecer o seu direito (real) referente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo sobre o direito, relativo à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou anulação ".
E conclui:
A nova disciplina formulada no art. 291 do Cód. Civil (...) " não representa uma limitação à força anteriormente atribuída ao registo, mas, bem contrário, um triunfo, uma vitória, uma conquista em suma (embora limitada e condicionada) do registo sobre a eficácia (extintiva ou destruidora) reconhecida no direito anterior à declaração de nulidade (absoluta ou relativa) ” – citações retiradas do Acórdão do STJ de 27/04/2005, já citado.

Ou seja, o art. 291.º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil está em vigor, não tendo sido revogado pelos arts 5.º, nº 1 e 17.º, nº2, do C.R.P. (veja-se, também, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-11-96 Col. Ac. S.T.J., IV, 3º, pág. 104).
“De resto, a plena vigência do mencionado art. 291 da lei civil é aceite pela generalidade da doutrina (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed, pág. 267; Antunes Varela, R.L.J. Ano 118- 310; Mota Pinto, Teoria Geral de Direito Civil, 3ª ed, pág. 617; Menezes Cordeiro, Direitos Reais, I, 1979, pág. 383 e segs; Heinrich Horst, Rev. de Dir. e Economia, Ano 8º, pág. 136 e segs)” – Ac. STJ de 27/04/2005.

Relembramos que o conceito de terceiro de boa fé para efeitos de registo (AUJ n.º 3/99, já citado), que está implícito na redação do artigo 17.º do CRP, não tem aplicação no caso dos autos, uma vez que não existe aqui uma situação de conflito entre dois adquirentes, em que um dos negócios é válido e em que se protege a confiança do adquirente nos dados constantes do registo.
O que existe é uma sucessão de negócios jurídicos nulos, em que o conflito se estabelece entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, pressupondo-se, não a validade (como no caso dos terceiros para efeitos de registo), mas antes a invalidade do primeiro negócio de transmissão.
Ou seja, declarada a nulidade de um contrato de compra e venda, em simultâneo deve o comprador restituí-lo ao vendedor e este entregar àquele o respectivo preço (artigos 290º, 874º e 879º do Código Civil).
Todavia, excepcionalmente, por um lado, a declaração de nulidade do negócio jurídico respeitante a bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre eles a título oneroso por terceiro de boa fé – desconhecedor do vício sem culpa no momento da aquisição - no caso de o registo da aquisição ser anterior ao registo da acção (artigo 291º, nºs 1 e 3, do Código Civil).
E, por outro, em quadro de limitação daquela excepção, os direitos de terceiro não são reconhecidos se a acção for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio (artigo 291º, nº 2, do Código Civil).
“Este último artigo reporta-se, por exemplo, aos casos em que uma pessoa, por contrato afectado de nulidade, vendeu a outra um prédio, e esta última o vendeu invalidamente a outrem.
Visa o referido normativo, verificados os pressupostos a que alude, proteger, por exemplo, o referido comprador do efeito da declaração da nulidade do primeiro contrato de compra e venda.
O terceiro a que este artigo se reporta é, pois, o sub-adquirente posterior à celebração do primeiro contrato afectado de nulidade por ilegitimidade substantiva, portanto no quadro de aquisição a non domino.
É protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.
O conceito de terceiro a que se refere este artigo, sob motivação de estabilidade de situações jurídicas, pressupõe, pois, a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último subadquirente, pelo que é diverso do conceito de terceiros para efeito de registo predial” – Acórdão do STJ de 21/06/2007, relator Salvador da Costa, processo 07B1847, www.dgsi.pt.
A função do registo predial, sendo declarativa e não constitutiva, não pode suprir a falta do direito nem sanar os vícios que envolvam os direitos transmitidos.
E continua, de forma esclarecedora, aquele Acórdão do STJ de 21/06/2007: “As situações prevenidas pelo conceito de terceiros para efeitos de registo, são situações em que ocorre uma relação triangular consubstanciada em dupla transmissão pelo mesmo alienante de um bem imóvel ou de um bem móvel sujeito a registo a um primeiro transmissário, que não inscreve no registo a aquisição, e depois a um segundo, que opera a respectiva inscrição registal.
São situações de conflito entre dois adquirentes, é válido o primeiro negócio de transmissão e não o segundo, mas o primeiro adquirente não pode opor ao segundo a sua aquisição, porque ela não constava no registo, e o último não podia, dada a fé pública derivada do registo, conhecer que o alienante já não era o titular do direito em causa.
Mas este conceito de terceiro para efeito do registo, tal como acima se referiu, não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos em termos de excepção ao disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil”.
Não se verifica qualquer inconstitucionalidade material por violação dos princípios da boa fé nos negócios, na publicidade do registo da equidade e da justiça, conforme pretende o recorrente Paulo J – conclusão XXIV da sua alegação – uma vez que a não aplicação do artigo 17.º do CRP não resulta de qualquer discordância, ou interpretação mais restritiva desse normativo, mas pura e simplesmente, porque o mesmo não é de aplicar à situação dos autos, existindo, na lei civil, norma que tutela a questão substantiva em análise, de acordo com a opção do legislador ordinário, a quem cabe densificar os conceitos em causa.

Importa, ainda, lembrar o que acima referimos quanto à ineficácia do acto em relação ao verdadeiro proprietário. Conforme refere Maria Clara Sottomayor, in “Invalidade e registo, A protecção do terceiro adquirente de boa fé”, Almedina, Coimbra, 2010, p. 338 «(…) o fundamento do art. 291.º é a estabilidade dos negócios jurídicos, sofrendo o alienante que deu origem à cadeia de negócios inválidos as consequências de não ter actuado, dentro do prazo de três anos, interpondo a acção de nulidade ou de anulação. A lei faz uma conciliação entre os interesses do verdadeiro proprietário, que pode impor a realidade jurídico-material ao terceiro, durante um prazo de três anos, a contar da data da conclusão do negócio inválido, e os do terceiro sub-adquirente, interessado em salvaguardar a sua aquisição dos efeitos retroactivos da invalidade»


Contudo, como refere a Conselheira Clara Sottomayor, no Acórdão do STJ de 19/04/2016, processo n.º 5800/12.6TBOER.L1-A.S1, in www.dgsi.pt: “esta proteção opera apenas quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé. A aquisição a non domino prevista no art. 291.º, n.º 1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo…ob. cit., p. 481).
Sendo assim, dentro da lógica de um registo meramente declarativo, o art. 291.º do Código Civil não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido.
Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro”.

Daí que improcedem as conclusões de ambos os recursos no que toca à questão de saber se a nulidade do primeiro negócio afeta, ou não, a posição dos terceiros de boa fé.

O apelante Paulo J invoca, também, a nulidade da sentença por não se ter pronunciado sobre os institutos por si invocados do direito de retenção e do enriquecimento sem causa.
Ora, por um lado, não é verdade que tal tenha sucedido. A sentença refere-se expressamente a essas questões nas páginas 17, 18 e 19.
Quanto ao direito de retenção, entendeu-se na sentença sob recurso, que não se verificam os requisitos de reciprocidade de créditos entre o detentor da coisa e aquele que tem direito à restituição da mesma e quanto ao enriquecimento sem causa, esclarecendo no que consiste o mesmo e quais os seus pressupostos, entendeu que não pode ser apreciado in casu, por não ter sido deduzido qualquer pedido reconvencional.
Também aqui – e sem necessidade de reproduzir requisitos e pressupostos destas duas figuras, ali corretamente enunciados – estamos de acordo com a sentença proferida em 1.ª instância.
Quanto ao direito de retenção, é óbvio que o recorrente não dispõe de um crédito sobre a autora.
Quanto ao enriquecimento sem causa, insiste o apelante na desconformidade entre a situação formal e a material, pretendendo que o juiz deveria ter suprido ou convidado ao aperfeiçoamento da sua contestação, de forma a contornar a falta de pedido reconvencional.
Ora, salvo o devido respeito, o poder de gestão do juiz, previsto no artigo 590.º do Código de Processo Civil, não abarca a possibilidade de introdução de novos pedidos, designadamente reconvencionais, face ao que estabelece o artigo 583.º do CPC e considerando o princípio da estabilidade da instância preconizado pelo artigo 260.º do mesmo Código, com as alterações possíveis decorrentes do artigo 265.º.
Ainda que assim não se entendesse, não se vislumbra como pode o apelante sustentar o enriquecimento da autora, que é a verdadeira proprietária do veículo e que nenhum preço recebeu por ele, acabando por se ver restituída à posse do mesmo, através desta ação, com um empobrecimento de quem pagou um preço pelo veículo que teve que restituir, é certo, mas sem o correspondente enriquecimento da autora.
Poderá ter havido enriquecimento por parte de quem vendeu o veículo e recebeu o preço combinado, sem que aquele lhe pertencesse, mas tal questão não poderá ser apreciada nesta ação.

Em suma, improcedem ambas as apelações, sendo de confirmar a sentença recorrida, ainda que com fundamento algo divergente.

Sumário:
1 - O art. 291.º, nºs 1 e 2 do Código Civil está em vigor, não tendo sido revogado pelos arts 5.º, nº 1 e 17.º, nº 2, do Código de Registo Predial.
2 – O conceito de terceiro para efeito do registo não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes do mesmo transmitente e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, numa cadeia de negócios inválidos.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos.
3 - O terceiro a que se refere o artigo 291.º do CC é protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.
4 – Contudo, para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedentes ambas as apelações, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas de cada uma das apelações pelo apelante respetivo.

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Guimarães, 27 de outubro de 2016