Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
134/21.8GCGMR.G1
Relator: MARIA TERESA COIMBRA
Descritores: DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
ARMA BRANCA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
A posse de um objeto corto-perfurante com lâmina de 30 cm e cabo metálico de 17cm não é punível, nos termos da al. d) do nº 1 do art. 86º da Lei 5/2006 de 23.02, na atual redação, se for justificada à luz da atividade profissional do possuidor e as demais circunstâncias apuradas permitirem concluir pela razoabilidade da explicação para a sua posse.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo abreviado que, com o nº 134/21.8GCGMR, corre termos pelo juízo local criminal de Guimarães foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

a) Condena-se o arguido F. D., pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23/02 de 6/5, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24/07, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa de 7,00 (sete euros).
b) Condena-se o arguido no pagamento de 02 UC´s de taxa de justiça, e nas demais
encargos do processo.
c) Declaro perdida a favor do Estado a arma apreendida (aludida em 7) dos factos provados) e determino a sua entrega à PSP art.º 109º do Código Penal e 78º da Lei 5/2006, de 23/02, alterada pela Lei nº 17/2009, de 6/5.
(…)
*
Inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal e concluiu o recurso do seguinte modo (transcrição):

1 – O ARGUIDO, ORA RECORRENTE, NÃO SE CONFORMA COM A DOUTA SENTENÇA A QUO, QUE O CONDENOU PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA.
2 – A PROVA PRODUZIDA EM SEDE DE JULGAMENTO - DEVIDAMENTE DOCUMENTADA NOS AUTOS - NÃO FOI CORRECTAMENTE JULGADA ENQUANTO MATÉRIA DE FACTO DA DECISÃO ORA RECORRIDA, ASSIM COMO IMPUNHA UMA DECISÃO DIVERSA QUANTO A ESTE CRIME, NOMEADAMENTE, A ABSOLVIÇÃO DO ORA RECORRENTE PELA PRÁTICA DESTE CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA..
3 – RAZÃO, PELA QUAL, O ORA RECORRENTE IMPUGNA A DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO CONSTANTE NO PONTO 1 A 11 DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NO PONTO ÚNICO DA MATERIA DE FACTO NÃO PROVADA, CONSTANTE DA DOUTA SENTENÇA PROFERIDA.
4 - ASSIM, NOS TERMOS DA ALÍNEA A), N.º 3, DO ARTIGO 412.º DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL, A PROVA TRANSCRITA NO PRESENTE RECURSO JUSTIFICA A ALTERAÇÃO DOS PONTOS DE FACTO QUE, NO NOSSO ENTENDER, FORAM INCORRECTAMENTE JULGADOS.
5 - OS DEPOIMENTOS PRESTADOS PELAS TESTEMUNHAS DE ACUSAÇÃO E DE DEFESA CONTRASTAM DE TODO COM O SENTIDO DA DECISÃO TOMADA E ORA RECORRIDA.
6 - EXISTE, AINDA, CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE A DECISÃO E A SUA FUNDAMENTAÇÃO E/OU MOTIVAÇÃO (ARTIGO 410.º, N.º 2, AL.ª B) DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL), POIS, O TRIBUNAL A QUO DESVALORIZOU POR COMPLETO O DEPOIMENTO DAS TESTEMUNHAS.
7 – UMA LAMINA COM 30 CM E 17 CM DE CABO, MESMO PODENDO SER CONSIDERADA UMA ARMA BRANCA, DEVE SER CONSIDERADO UM OBJECTO DE USO AGRICOLA, CUJA DETENÇÃO NÃO É PROIBIDA, MESMO QUE A DETENÇÃO OCORRA NA VIA PUBLICA.
8 - DE ACORDO COM O ESTATUÍDO NO ART.º 86º N.º 1 D), DO RJAM, ESTANDO EM CAUSA ARMA BRANCA, APENAS INCORRE NO CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA QUEM DETIVER, SEM AUTORIZAÇÃO OU FORA DAS CONDIÇÕES LEGAIS, “ARMA BRANCA DISSIMULADA SOB A FORMA DE OUTRO OBJETO, FACA DE ABERTURA AUTOMÁTICA, ESTILETE, FACA DE BORBOLETA, FACA DE ARREMESSO, ESTRELA DE LANÇAR, BOXERS, OUTRAS ARMAS BRANCAS OU ENGENHOS OU INSTRUMENTOS SEM APLICAÇÃO DEFINIDA QUE POSSAM SER USADOS COMO INSTRUMENTOS DE AGRESSÃO E O SEU PORTADOR NÃO JUSTIFIQUE A SUA POSSE”.
9 – NESTA CONFORMIDADE, A IMPUTAÇÃO DO CRIME DEPENDE DA CARACTERIZAÇÃO DA ARMA BRANCA EM CAUSA. E, NÃO CABENDO NAS CATEGORIAS EXPRESSAMENTE ELENCADAS MAS TÃO-SÓ “NAS OUTRAS ARMAS BRANCAS”, A PUNIÇÃO DEPENDE DA ALEGAÇÃO E PROVA CUMULATIVA DOS SEGUINTES REQUISITOS:
a) NÃO TENHA APLICAÇÃO DEFINIDA;
B) POSSA SER USADA COMO ARMA DE AGRESSÃO;
C) O SEU PORTADOR NÃO JUSTIFIQUE A POSSE;
10 – ORA, AS ARMAS BRANCAS SÓ SÃO PASSÍVEIS DE INTEGRAR A PREVISÃO SUPRA REFERIDA SE SE REVELAR QUE NÃO TEM APLICAÇÃO DEFINIDA (ART.º 86º N.º 1 D)), O QUE NÃO É O CASO, UMA VEZ QUE ESTAMOS PERANTE UMA LAMINA ROÇADEIRA DE MATO, POR NATUREZA AFETA ÀS LIDES AGRÍCOLAS E FLORESTAIS;
11 – A DETENÇÃO DO OBJECTO DOS AUTOS PELO ARGUIDO NÃO INTEGRA O CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA, P. E P. PELO ARTIGO 86º, N.º 1 AL. D) DA LEI 5/2006, DE 23/02, PELO QUE DEVE O ARGUIDO SER ABSOLVIDO DO MESMO.
12 – ACRESCE QUE, O RELATÓRIO PERICIAL JUNTO AOS AUTOS TIPIFICA O OBJECTO DESCRITO NO FACTO PROVADO 7 COMO ARMA DE CLASSE A. CONTUDO, ERRADAMENTE, POIS REFEREM ESTAR NA PRESENÇA DE UMA LÂMINA DE BAIONETA.
13 - SE ASSIM FOR, A MESMA ESTARIA EXCLUÍDA DA APLICAÇÃO DA LEI 5/2006, POR FORÇA DA SUA AL. ª, DO N.º4, DO ARTIGO 1.º DA RESPETIVA LEI:
14 - NESTES TERMOS, DEVERÁ SER PROFERIDO UM JUÍZO ABSOLUTÓRIO QUANTO Á PRÁTICA DO CRIME IMPUTADO AO ORA RECORRENTE.
15 - O DOUTO ACÓRDÃO A QUO AO CONDENAR O ARGUIDO PELO REFERIDO CRIME P. E P. NO ARTIGO 275.º DO CÓDIGO PENAL E ARTº 6º DA LEI Nº 22/97, DE 27 DE JUNHO VIOLA OS REFERIDOS NORMATIVOS E O PRINCíPIO DA TIPICIDADE.
16 - VERIFICAM-SE ATENUANTES ESPECIALMENTE MITIGADORAS DA ALEGADA CULPA DO ARGUIDO COMO O FACTO DE TER CONFESSADO A POSSE DOS OBJECTOS, TER PERMITIDO A BUSCA EFECTUADA AO CARRO, O FACTO DO ARGUIDO SER UM ADULTO SEM QUALQUER ANTECEDENTE CRIMINAL; COM UM PERCURSO PESSOAL E PROFISSIONAL IRREPREENSÍVEL; PERFEITAMENTE INTEGRADO NA SOCIEDADE; COM UM AGREGADO FAMILIAR COMPOSTO POR ESPOSA; SEM GRANDES RECURSOS FINANCEIROS; CONSIDERADO POR FAMILIARES, AMIGOS E COLEGAS DE TRABALHO COMO UMA PESSOA PACIFICA, HONESTA E TRABALHADORA.
17 - PELO QUE, CONSIDERA O ARGUIDO QUE A PENA DE MULTA DEVERÁ SER REDUZIDA AO MÍNIMO LEGAL ESTABELECIDO.
18 - DESTA FEITA, E NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO ARTIGO 77.º DO CÓDIGO PENAL, DEVEM V. EXC.AS CONSIDERAREM AJUSTADA E ADEQUADA DETERMINAR-SE UMA PENA NUNCA SUPERIOR A 50 DIAS.
19 – ENTENDE, ASSIM, O RECORRENTE QUE OS ARTIGOS 40º, NºS. 1 E 2, 70º E 71º, NºS. 1 E 2, TODOS DO CÓDIGO PENAL, FORAM VIOLADOS.
Nestes termos e nos mais de direito aplicável deve dar-se provimento ao presente recurso, modificando-se a douta decisão recorrida, nos termos vindos de expor, com todas as legais consequências. ASSIM SERÁ FEITA JUSTIÇA!
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O recurso foi corretamente admitido e a ele respondeu o Ministério Público em primeira instância pugnando pela sua improcedência.
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Remetidos os autos a este Tribunal, o Ministério Público emitiu parecer defendendo o entendimento de que o recurso deve improceder.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP).
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Após os vistos, foram os autos à conferência.

II.
Cumpre apreciar e decidir, tendo em conta que são as conclusões do recurso que delimitam a apreciação a fazer - sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - e que, analisando a síntese conclusiva se impõe aferir:

- se a matéria de facto foi erradamente apreciada (nos concretos segmentos indicados, com sublinhado, pelo recorrente na motivação);
- se a decisão enferma do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (alínea b) do 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal);
- se ocorreu uma errada aplicação do direito aos factos;
- subsidiariamente, se é excessiva a pena imposta, sendo bastante a pena de 50 dias de multa.
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É a seguinte a matéria de facto fixada na sentença recorrida (transcrição):

1. No dia -.04.2021, pelas 23.30 horas, na EN 101, …, foi fiscalizada a viatura de matrícula RA, marca Citroen, Saxo, conduzida pelo arguido, o qual se mostrou bastante agitado, e fazia movimentos a balançar no banco do condutor.
2. O militar da GNR, verificou que o arguido trazia nas costas um cabo que parecia de uma faca.
3. Perguntado ao arguido se trazia algo de ilícito, respondeu que trazia uma faca à cintura, mais concretamente nas costas, de forma dissimulada por baixo da camisola, tendo-a retirado e entregue.
4. Foi realizada uma busca à viatura, onde foi encontrada uma lâmina em metal, bastante afiada e perfurante, sendo semelhante a um sabre (espada de tamanho pequeno), que se encontrava dissimulada na parte de trás do veículo por baixo do banco do pendura.
5. O arguido referiu que a lâmina ainda não estava afiada a seu gosto, e que tinha uma paixão por armas brancas, nomeadamente facas.
6. A arma aludida em 3), tem 10 centímetros de lâmina e 12 centímetros de cabo em madeira e metal.
7. A arma aludida em 4), tem 30 centímetros de lâmina e 17 centímetros de cabo metálico.
8. As armas aludidas em 6) e 7), foram apreendidas.
9. O arguido F. D. agiu livre e deliberadamente, com o propósito concretizado de deter a arma melhor descrita no auto de notícia e no exame pericial de fls. 62, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, conhecendo as suas características e sabendo que a sua posse não lhe era permitida, resultado este que representou.
10. O arguido sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
11. O arguido não mostrou arrependimento na audiência de julgamento.
12. O arguido já beneficiou de uma suspensão provisória do processo, nos autos nº 498/20.0AILSB, decretada em 10.11.2020, pelo crime de detenção ou tráfico de armas proibidas, com injunção de 80 horas de serviço de interesse público.
13. O arguido descende de uma família de médios recursos socioeconómicos, constituída pelos pais, e dois irmãos do arguido, descrevendo o relacionamento intrafamiliar, como estável e afetivo.
14. O arguido apresenta um percurso escolar sem registo de incidentes dignos de registo, tendo concluído a licenciatura em Engenharia Mecânica na Universidade do …, em 1998.
15. Com 23 anos aproximadamente, iniciou-se profissionalmente como diretor de produção numa empresa da área da construção civil, tendo saído por não lhe agradar as funções exercidas. Retomou logo a atividade profissional numa outra empresa da área da metalomecânica, onde permaneceu durante cerca de 18 meses e onde desempenhou o mesmo cargo.
16. O arguido saiu desta empresa em 2001, a conselho médico e depois de evidenciar sintomas associados a um esgotamento, tendo iniciado acompanhamento médico no Departamento de Psiquiatria do Hospital de …, com toma de medicação.
17. O arguido permaneceu inativo durante cerca de sete meses, trabalhando depois ao serviço de outras empresas, exercendo cargos de diretor de produção.
18. Contudo, o arguido voltou a suspender a atividade profissional, por razões de saúde e que na sua opinião, se deveram a um esforço excessivo na execução das suas funções, às quais se tem dedicado com grande empenho.
19. Em 2004 iniciou o Mestrado, desistindo algum tempo depois, por alteração das regras em vigor e associadas à implementação do “Processo de Bolonha” nas Universidades, segundo expressa.
20. Nesse mesmo ano, o arguido ingressou como docente, no Instituto Politécnico de …, onde se manteve até 2015. Durante esse período, o arguido iniciou o doutoramento em 2008, requisito exigido para manter as funções de docência, acabando por desistir, nomeadamente, por falta de tempo, uma vez que mantinha a atividade laboral.
21. O arguido ficou em situação de desemprego, beneficiando do subsídio de desemprego, durante cerca de dois anos. Durante este período, o arguido e a companheira, constituíram uma pequena empresa de produção de cogumelos, sendo que apesar de alguma produção, não foi possível a comercialização dos produtos, prevendo em breve, encerrar a atividade da empresa.
22. Em 2018, o arguido ingressou na Universidade do … (polo de …), como Técnico Superior, desempenhando as suas funções num laboratório do Departamento de Engenharia Mecânica.
23. O casal vive num apartamento de tipologia T2, adquirido com recurso a empréstimo bancário e cuja prestação é de cerca de 350€. Os rendimentos totalizam cerca de 2000 euros mensais e as restantes despesas fixas do agregado, totalizam cerca de 200€ e respeitam aos consumos de água, luz, gás, condomínio e mensalidade da MEO.
24. O arguido mantém a medicação prescrita pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital de …, referenciando um agravamento dos sintomas, na altura dos factos do presente processo judicial, pelo que permaneceu então de baixa médica, durante cerca de um mês.
25. Nos tempos livres, o arguido pratica tiro desportivo, na Sociedade de Tiro de …, desde há quatro anos, e dedica-se aos cuidados de um terreno agrícola, herdado dos pais.
26. O arguido foi descrito como um profissional dedicado e bastante empenhado, que mantém uma relação cordial com colegas de trabalho e alunos da Universidade.
27. No meio de residência, os contactos com vizinhos são circunstanciais, mantendo o arguido uma atitude reservada.
28. O arguido não tem antecedentes criminais.

2. Factos Não Provados:

a. O arguido detinha e destinava a lâmina aludida em 7), para roçar ou cortar o mato do seu terreno, e assim tinha aplicação definida e justificou a sua posse.
***
III Motivação da decisão de facto:

O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:

- os documentos: nomeadamente auto de apreensão, auto de exame directo e
avaliação, fls. 124 e seguintes;
- as declarações do arguido, o qual, em suma, relatou que não disse aos polícias
que a arma era para defesa pessoal. Nem disse que tem gosto por armas.

Foi à … com os GNRs porque não tinha consigo os documentos e foi lá buscá-
los.
Esteve a usar a navalha no laboratório e depois colocou-a à cintura, como é
normal, e esqueceu-se dela aí.
A lâmina tinha sido por si preparada para limpar eras e mato do seu terreno.
A lâmina estava debaixo do banco do pendura para não chamar a atenção.
Também tinha berbequins e outras ferramentas no carro.
Toma antidepressivos e ansiolíticos.
Como foi uma situação agressiva, teve que ir ao hospital e ficou um mês de baixa
por causa da ansiedade.
A arma trata-se de uma mola, na qual fez os entalhes, com a rebarbadora, para
poder colocar um cabo, e afiou dos dois lados.
- O tribunal formou, ainda, a sua convicção no depoimento das testemunhas:
- H. C., militar da GNR, a qual prestou um depoimento verosímil, relatou, em suma, que estava a fazer uma fiscalização aleatória, nas circunstâncias de tempo e lugar aludidas nos factos provados, e verificou que o arguido ficou agitado balançando para a frente e para trás com o corpo, e ele achou estranho, tendo reparado nessa altura que ele trazia um cabo atrás nas costas, tendo-lhe perguntado se trazia algo ilícito, ao que o arguido respondeu que sim, e mostrou a navalha.
Perguntou ao arguido se trazia mais coisas, e ele respondeu que não sabia, pelo que fizeram uma revista e busca, tendo encontrado um sabre (lâmina) que estava debaixo do banco do pendura.
O arguido disse que gostava de facas.
Nunca disse que ia usar a lâmina para limpar o terreno.
Ficou muito surpreendido por ver que o arguido trazia uma navalha atrás das costas não é normal nas fiscalizações.
O arguido estava muito agitado, e depois percebeu que ele tinha problemas de saúde.
- A. M., irmão do arguido, a qual prestou um depoimento inverosímil e parcial, relatou, em suma, que a lâmina era para o irmão limpar o terreno, vegetação e eras.
O irmão gosta de fazer coisas e trabalhar e anda sempre com muitas ferramentas no carro.
O irmão sofre de depressão e toma medicação.
O irmão já teve outro processo porque importou uma navalha através da internet.
O terreno tem cerca de 1000m2 mas não é todo limpo com a lâmina.
- A. C., cunhada do arguido, a qual prestou um depoimento inverosímil e parcial, relatou, em suma, que o arguido usa muitas ferramentas, e leva-as no carro.
Ele limpa o terreno com a lâmina.
Nunca se apercebeu que ele andasse com navalhas.
Ele é nervoso, mas pacato.
- L. R., a qual prestou um depoimento coerente, relatou, em suma, que foi aluno do arguido, o qual sempre foi pessoa equilibrada e exemplar.
Feita esta breve súmula da prova produzida em audiência de julgamento, há que concluir que merecem resposta positiva os factos dados como provados. Na verdade, o próprio arguido admitiu ser detentor da lâmina, quando seguia no seu veículo automóvel, bem como ter sido ele quem a construiu, transformando uma mola metálica.
No mesmo sentido o depoimento da testemunha H. C., militar da GNR, que relatou todo o contexto, nomeadamente que foi por causa do arguido trazer uma navalha à cintura, dissimulada atrás nas costas, que foi feita a busca à viatura e detectada a lâmina (sabre), debaixo do banco do pendura. Mais esclareceu que logo o arguido disse ter uma paixão por armas brancas, e não ter alegado qualquer aplicação definida para a deter ou justificar a sua posse.
Ora, conjugando estes depoimentos com o teor dos documentos, tem que se concluir que a tese da acusação é verosímil e em acordo com o normal acontecer e juízos de experiência comum, pelo que merecem resposta positiva os factos dados como provados.
No que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja, a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção. Com efeito, o comportamento do arguido, ao ser fiscalizado, revela que sabia que estava a praticar uma conduta ilícita, porque não só se mostrou agitado, balançando, como até questionado logo disse que trazia algo de ilícito consigo.
O facto dado como não provado mereceu tal resposta por não se ter provado a sua ocorrência, e ter-se provado até a tese contrária. Na verdade, o contexto é revelador de que o arguido manifesta realmente apreço por este tipo de armas. E é assim porquanto já foi sujeito a suspensão provisória do processo (despacho em 16.11.2020), acima aludido, por ter tentado importar, no ano de 2020, uma navalha de abertura automática - proibida por lei.
Logo pouco meses após, o arguido construiu a arma (sabre), apreendida nos autos, conforme relatou ao tribunal, com as características aludidas a fls. 41, a partir de uma mola em metal, criando um cabo, e afiando a lâmina, a qual mede 30 cms.
E aquando da fiscalização, ainda, trazia à cintura a navalha, também apreendida.
Ademais, não só aquele objecto não tem aplicação definida, por ter sido criado a partir de uma mola metálica, como o arguido não justificou a sua posse. Nem aos militares da GNR, como referiu a testemunha, nem em tribunal. É que a alegação de que se tratava de um objecto para ser usado na limpeza de um terreno de 1000m2, não colheu por ser totalmente inverosímil e estar em desacordo com juízos de experiência comum e normal acontecer. Não é de todo um instrumento habitualmente usado na agricultura, nem se mostra adequado aos olhos do cidadão médio para tal utilização - ao contrário da tese tentada passar pelas testemunhas A. M. e A. C., as quais prestaram depoimentos parciais e incoerentes por si e quando conjugados com a demais prova.
O arguido não demonstrou qualquer arrependimento em julgamento, quer através de actos ou palavras, mostrando antes uma atitude de desresponsabilização e desculpabilização sobre o acontecido. Vide Ac. TRG nº Acórdão de 2017-12-04 (Processo n.º127/16.7PBRG.G1), publicado em DRE, 2017-12-que no caso se consubstanciou em mera declaração verbal proferida em audiência de julgamento, perante o Tribunal, mas sem apresentação de qualquer gesto ou conduta do arguido em que o propalado arrependimento se tivesse materializado.
No que respeita às condições pessoais, económicas e sociais, o tribunal relevou o relatório social, as declarações do arguido e depoimento da testemunha L. R..
A (in)existência de antecedentes criminais, resultaram do certificado de registo criminal junto aos autos.
*
Apreciação do recurso.

Questão Prévia.

Na conclusão 15ª o recorrente afirma que foi condenado pelo tribunal a quo nos termos previstos no artigo 275º do Código Penal e 6º da Lei 22/97 de 27/06. Trata-se de um manifesto lapso, uma vez que a condenação do arguido não ocorreu ao abrigo dos citados normativos, que não serão considerados, portanto, na apreciação a fazer por este tribunal do recurso.
*
Não obstante na ordem pela qual o recorrente trouxe a este tribunal as questões que pretende ver apreciadas, não ter começado por invocar a existência do vício de contradição insanável entre a decisão e a fundamentação (artigo 410º, nº 2 alínea b) do CPP), vindo a fazê-lo só depois de invocar a errada apreciação da prova, por uma questão de lógica na apreciação do recurso, começar-se-á por analisar a existência do referido vício.
Os vícios a que alude o artigo 410º, nº 2 do CPP são de conhecimento oficioso e todos eles respeitam ao texto da decisão. Na sua motivação o recorrente refere a existência dos três vícios constantes do nº 2 do artigo 410º do CPP, embora nas conclusões venha apenas a invocar a existência do vício de contradição insanável, abandonando a referência ao erro notório na apreciação da prova e à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Esta abordagem recursiva poderia ter dado origem a um convite ao aperfeiçoamento na medida em que as conclusões têm de projetar, resumidamente, o que na precedente motivação foi alegado. No entanto, lendo a motivação facilmente se percebe que o que o recorrente pretende afirmar é que a prova foi mal apreciada.
Isto é, quando o recorrente na conclusão 6 defende a existência de contradição insanável entre a decisão e a sua fundamentação, fá-lo pelo entendimento de que “o tribunal a quo desvalorizou por completo o depoimento das testemunhas”.
Ora, não é isto o indicado vício. Ocorre o vício previsto na alínea b) do artigo 410º, nº 2 do CPP quando se dá como provado e não provado o mesmo facto, quando se afirma ao mesmo tempo um facto e o seu contrário, quando se julgam provados factos contraditórios, quando a fundamentação da matéria de facto colide com a decisão, isto é, quando por um raciocínio lógico, a partir de uma determinada factualidade se teria de chegar a uma solução contrária.
Mas não é este entendimento que motivou a invocação do vício para o recorrente.
O recorrente entende que a partir dos depoimentos prestados a solução do tribunal teria de ter sido outra.

É, então, essa análise que passa a fazer-se, a partir da prova produzida em primeira instância, que o recorrente concretamente impugna. E para melhor se perceber o que está em causa nestes autos impõe-se olhar para as duas versões com as quais o tribunal a quo se viu confrontado:

- A versão da acusação, segundo a qual o arguido era portador de uma faca dissimulada na roupa e de uma lâmina afiada também dissimulada debaixo do banco do pendura, mostrando-se muito nervoso e afirmando que tinha uma paixão por armas brancas, nomeadamente por facas;
- A versão do arguido segundo a qual, sendo engenheiro mecânico, tinha consigo uma navalha que usou no laboratório da Universidade para “retirar rebarbas de nylon” onde tinha estado a trabalhar até tarde (e onde levou os agentes para verificarem os documentos que lá esquecera) e bem assim, uma outra ferramenta (além de muitas outras berbequins, cabos de bateria, ponteiras para apertar e desapertar parafusos…) feita a partir de uma peça de um automóvel que estava a preparar para com ele obter um instrumento, com o qual procederia à limpeza de terrenos da família.
(- Do julgamento resultou ainda, como resumo das características de personalidade, que o arguido sofre de transtorno de ansiedade, mas é pessoa pacífica, profissional, dedicado e bastante empenhado que mantém uma relação cordial com colegas de trabalho e alunos da Universidade.)

A questão que de imediato se põe é, então, a de saber qual das versões é a mais congruente com a realidade apurada, ou, dizendo de outro modo, a de saber se se está perante “armas” (como o tribunal as apelidou), ou perante “ferramentas” (como referido pelo arguido).
Mas ainda antes há que atentar na circunstância de o tribunal ter feito referência - nos pontos 2, 3 e 6 da matéria de facto provada - à posse pelo arguido de “uma faca com 10 cm de lâmina e 12cm de cabo em madeira” e tal referência ser indevida. Efetivamente, o Ministério Público não deduziu acusação pela posse desta “arma”, na medida em que como resulta de fls 63 e 63 verso, trata-se tão só de uma navalha, com 8,5cm de lâmina, sem classificação na lei das armas e não podendo ser considerada arma branca, por não caber na alínea m) do nº 1 do artigo 2º do RJAM. Afigura-se que o tribunal considerou tal matéria por força da remissão constante da acusação para o auto de notícia, sem, contudo, atentar na circunstância de na remissão o Ministério Público ter apenas feito referência ao objeto peritado a fls 62, uma vez que já constava dos autos a informação pericial de não ser punível a posse da referida navalha.
Assim sendo, é possível desde já afirmar que deverá ser eliminada a matéria dos pontos 2, 3 e 6, passando o ponto 8 a referir-se tão só ao objeto a que alude o ponto 7.
Centremo-nos agora na “arma”/“ferramenta” de 30 cm de lâmina e 17cm de cabo metálico cuja posse pelo arguido levou o tribunal a entender consubstanciar a prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p. artigo 86º, nº 1 alínea d) da Lei 5/2006 de 23.02, na redação atual.
A noção de arma branca é dada pela alínea m) do nº 1 do artigo 2º da Lei das Armas. Aí se define “arma branca” como sendo “todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente de comprimento superior a 10cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões”;
Tendo em conta a definição legal o objeto fotografado e peritado a fls 62 é claramente um instrumento portátil dotado de lâmina com dimensão superior a 10cm, pelo que pelas suas caraterísticas cabe na definição legal de arma branca.
Por outro lado, a classificação das armas encontra-se no artigo 3º da referida lei. Aí se diz que, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização são classificáveis em classes de A a G.
Dentro das armas de classe A temos - para o que agora nos interessa - na alínea f) as armas brancas sem afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não seja objeto de coleção; na alínea g) quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão e na alínea ab) as armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção quando encontradas fora dos locais de seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse.

Na posse das definições legais e ainda no âmbito do enquadramento jurídico, vejamos agora a alínea d) do nº 1 do artigo 86º do RJAM que preceitua que:

1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:
(…)
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou de ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, (…) quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão (…),é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;
(…)
O tribunal a quo entendeu que o arguido não justificou a posse, que o objeto apreendido não tem aplicação definida e é apto a ser usado como arma de agressão, concluindo pelo enquadramento da conduta na referida previsão legal.
Isto é, não cabendo o objeto em nenhuma das categorias e definições elencadas na norma em apreço, foi considerado que integra o conceito de outras armas brancas. Neste caso para a sua punição exige a lei três requisitos cumulativos: “ausência de aplicação definida”, “capacidade para uso como arma de agressão” e a “não justificação do agente para a sua posse” (neste sentido, entre muitos outros, cfr. Ac. RE de 24/09/2013 - processo 356/09.0GELLE.E1 e Ac. RL de 19/10/2016 – processo 116/15.9PASXL.L1-3 ambos em www.dgsi.pt.)
(Aqui impõe-se fazer uma pausa na exposição do raciocínio para dizer que competia à acusação elencar a factualidade de onde pudesse retirar-se a existência cumulativa dos três requisitos exigidos por lei, para que tal factualidade viesse a transitar para a sentença a nível de factualidade apurada e não apurada.
É certo que a forma de processo abreviado levou à supressão da acusação nos termos habituais, tendo cabido ao tribunal a fixação da factualidade, aditando os factos que entendeu necessários à decisão, sem prévio cumprimento do disposto no artigo 358º do CPP.
Trata-se de uma forma de proceder que não merece aplauso, mas que não obteve por parte do arguido qualquer tipo de censura, razão pela qual não há que sobre ela refletir, ou retirar quaisquer consequências legais.)
É incontroverso que o arguido era portador de um objeto com 30 cm de lâmina e 17 cm de cabo metálico (facto 7) e que tal objeto pode ser usado como arma de agressão – como, aliás, qualquer objeto com determinadas características de dimensão e dureza.
A questão a avaliar cinge-se, então, a aferir se tinha aplicação definida e se a sua posse foi justificada.
O arguido, engenheiro mecânico e confessadamente com gosto por desenvolver atividades fora da universidade onde trabalha (gosta, como disse e foi confirmado por quem com ele priva, de tratar de um terreno da família, de cuidar do seu automóvel, de reparar coisas…) disse ter utilizado uma parte (“mola”) de um veículo e estar a trabalhá-la por forma a obter um instrumento com lâmina com a qual iria tratar da limpeza do terreno da família. O objeto era para ele, portanto, uma ferramenta, como outras que também tinha no veículo.
O tribunal a quo deu como não provado que o objeto se destinasse a roçar o mato no seu terreno, mas admitiu na fundamentação da sentença que foi criado a partir de uma peça de um veículo (mola metálica) e admitiu também (facto 25) que o arguido nos tempos livres se dedica a cuidar de um terreno agrícola herdado dos pais. No entanto, apesar das explicações dadas pelo arguido, entendeu o tribunal condená-lo por ser o contexto revelador de que o arguido manifesta realmente apreço por este tipo de armas.
Não se configura, contudo, que o contexto apurado permita a conclusão a que chegou o tribunal a quo. Vejamos porquê.
Desde logo porque o apreço por armas brancas - mesmo que fosse verdadeiro por parte do arguido - não é proibido por lei, desde que não materializado de forma ilícita.
Depois, porque aquilo que para um cidadão comum pode ser visto como uma arma, pode ser, para outros, entendido como instrumento de trabalho. Por exemplo, a navalha que o arguido trazia consigo - e a que já atrás fizemos referência - além de a sua posse não ser punível (o que o tribunal não teve em conta), foi usada, como explicou e consta da sentença, como um instrumento de trabalho. Portanto, o facto de o arguido dela ser portador, não serve para justificar o apreço por armas. (Como não serve o facto de o tribunal ter tido em conta que já anteriormente o arguido tinha encomendado uma navalha de abertura automática, na medida em que tal levou à suspensão provisória do processo pela consideração de que a culpa não se configurava elevada, tornando-se desnecessário prosseguir o procedimento criminal).
Depois ainda, porque não é verdade que o arguido não tenha justificado a posse e a aplicação que iria dar “à ferramenta que estava a preparar para limpar o terreno”. Trata-se de uma pessoa com formação na área da mecânica, com experiência profissional na área da metalomecânica, que se interessa por ferramentas, com as quais trabalha e que costuma andar com elas “porque a Universidade não as tem e usa-as para auxiliar os alunos”.
Ora a justificação apresentada, tendo em conta a profissão do arguido e as atividades que desenvolve, revela-se absolutamente plausível, não podendo extrair-se que da posse daquele instrumento resulte perigo para a ordem e segurança públicas, que é o que está verdadeiramente em causa na punição da detenção de armas.
É certo que o arguido manifestou nervosismo com a abordagem da GNR - o que permitiu aos agentes a leitura de que o arguido escondia algo, até porque tinha à cintura, debaixo da roupa, uma navalha -, mas também para isso os autos apresentam uma clara justificação: o arguido sofre há vários anos de ansiedade, como está documentado, e perante a abordagem dos agentes, à noite, que “o trataram como se fosse um criminoso” (talvez porque quando encontram pessoas com armas não costumam deparar-se com docentes universitários), manifestou-o também fisicamente, apresentando ansiedade e tremuras.
Portanto, a conjugação de todas as circunstâncias leva claramente a outra interpretação. É que, ouvindo a prova, não há dúvida de que o arguido vinha apenas do seu trabalho na Universidade, onde esteve até tarde e consigo trazia instrumentos de trabalho que tinha usado. Ora, como é dito, no Ac STJ de 23/04/2008 in CJ, STJ, XVI, II, 2008, 203 “o crime de detenção de arma branca da previsão do artigo 86º, nº 1 alínea d) da Lei 5/2006 de 23/02 só ocorre quando essa detenção não for justificada, o que deve ser concretamente aferido e resultar quer da ausência de qualquer explicação razoável para a sua posse, quer de uma desadequação, segundo as regras de experiência, entre a natureza do objeto e a atividade do sujeito, dos usos comuns do objeto e as circunstâncias específicas da posse.
Assim sendo, a prova avaliada no seu conjunto tendo em conta a profissão do arguido, as atividades que desenvolve, a justificação plausível que deu para a posse das ferramentas em especial da lâmina feita a partir da peça de um automóvel e a explicação para o nervosismo demonstrado que levantou suspeitas aos agentes, mas que tem explicação médica, impõe, portanto, que se conclua pela veracidade ou, pelo menos, pela plausibilidade da justificação apresentada.
É que basta ouvir a testemunha L. R., militar da GNR e ex-aluno do arguido – depoimento que o tribunal considerou credível – para perceber que atendendo à profissão do arguido, à forma como a desenvolve e à personalidade que ostenta que “faz sentido, na sua profissão, transportar ferramentas de corte”.
Por outro lado, não se percebe por que razão foram os depoimentos do irmão e cunhada considerados “inverosímeis”, porquanto depuseram sobretudo sobre traços de personalidade, saúde e modo de vida (que vieram a ser julgados provados), e ajudaram a perceber que o arguido usa o carro como uma “oficina ambulante”.
E não se diga também que a dimensão do terreno que o arguido disse ir limpar – o que o irmão e cunhada confirmaram – impedia a conclusão de que era para esse efeito que o arguido estava a preparar a peça retirada do automóvel. É que como o irmão explicou no terreno não há só mato, há uma estufa e uma casa (que o arguido construiu) e a limpeza que há a fazer não é em todo o terreno e não seria possível ser feita com catana, como o arguido explicou.
Aqui chegados é já possível concluir que o facto julgado não provado, o foi erradamente, devendo passar para o elenco dos factos provados.
Acresce que não é também despiciendo o facto de o arguido ter refutado de forma veemente e credível a afirmação feita no auto de notícia de que disse aos agentes que gostava de armas brancas e de que era portador de armas proibidas. O facto de os agentes terem demorado a acreditar no que o arguido dizia (o arguido disse que o trataram como um criminoso, o ameaçaram com dois tiros e que só na Universidade, - onde se deslocaram com ele para obter os documentos que lá tinha esquecido, como o agente H. C. confirmou - lhe tiraram as algemas) ajuda a compreender a atitude e o depoimento, justificante da atuação, que veio a ser prestado pelo agente autuante que foi ouvido em julgamento. É que não se consegue compatibilizar, deixando sérias dúvidas a este tribunal, que uma pessoa aterrorizada com a abordagem policial, a tremer descontroladamente, afirme aos agentes, naquelas circunstâncias, que tem paixão por armas
Posto tudo isto é evidente que a decisão não pode manter-se, por ter ocorrido um claro erro de julgamento.
Portanto, não obstante se reconhecer que o objeto em causa pode ser usado como arma de agressão e que é, evidentemente, perigoso por ser um instrumento corto-perfurante, tendo em conta que não foi fabricado com essa finalidade e que a posse foi justificada, é forçoso concluir que os requisitos legais atrás enunciados e, consequentemente, os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime por que o arguido foi condenado não se mostram preenchidos, impondo-se que sejam julgados não provados os factos 9 e 10, com a consequente absolvição do arguido.

III.
Assim, em função do que fica dito e ao abrigo dos poderes que nos são conferidos pelos artigos 428º e 431º do CPP, decide-se alterar a matéria de facto nos seguintes termos:

- os pontos 2, 3 e 6 são eliminados;
- do ponto 5 é eliminado o segmento “e que tinha uma paixão por armas brancas, nomeadamente facas”;
- Dos pontos 7 e 8 a expressão "arma" é substituída por "objeto";
- Os pontos 9 e 10 passam para matéria de facto não provada;
- O facto não provado passa para a matéria de facto provada.

IV. DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães julgar procedente o recurso interposto e, consequentemente:

a) Procedem à alteração da matéria de facto, conforme referido em III;
b) Revogam a sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância e absolvem o arguido F. D. da prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23/02, alterada pela Lei n.º 50/2019, de 24/07, por que foi condenado.
Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 30 de junho de 2022

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho
Fernando Chaves