Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5612/21.6T8GMR.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: FACTOS ESSENCIAIS
INSTRUMENTAIS
COMPLEMENTARES E CONCRETIZADORES
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- O tribunal só pode conhecer dos factos alegados pelas partes, com a excepção resultante do previsto no art. 5º, nº 2, do C.P.C. quanto aos factos instrumentais, aos complementares ou concretizadores, aos notórios e àqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, nas condições aí previstas.

- São factos instrumentais aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente para prová-los, podendo ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa.

- Os factos complementares concretizam os principais que foram alegados para servirem de base à acção ou à execpção. Essa complementaridade ou concretização tem de ser aferida pela factualidade alegada na petição inicial, isto é, pela causa de pedir invocada pelo autor, ou pela factualidade que fundamenta a excepção invocada na contestação. Por isso, não se podem provar os primeiros sem que os segundos o estejam.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO (que se transcreve)

AA, representada por BB, na qualidade de curadora provisória, intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra CC e DD, pedindo que:

- Seja declarada nula, por indeterminabilidade do objeto, a procuração que outorgou à 1.ª Ré no dia 9 de novembro de 2015;
- Seja decretada a anulabilidade da mesma procuração, por falta de vontade da Autora;
- Seja decretada a anulabilidade da escritura pública de compra e venda outorgada a 2 de dezembro de 2015, por usura;
- Em virtude das arguidas nulidade e anulabilidade, seja restituída à Autora o valor que a sua moradia inscrita na matriz sob o art. ...90, fração ..., descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...12 da freguesia ..., tiver à data da sentença, de acordo com a peritagem requerida e que se relega para a execução da sentença que condene os Réus.

Alegou, em síntese, que apresenta, desde 1 de novembro de 2015, um quadro de demência, tendo as suas capacidades cognitivas profundamente reduzidas.
Sabendo disso, a 1.ª Ré, sua sobrinha, convenceu-a a outorgar uma procuração, datada de 9 de novembro de 2015, a conferir-lhe amplos poderes, inclusive para vender quaisquer bens do seu património.
Entretanto, a 1.ª Ré, que se encontrava numa situação financeira desesperada, obteve um empréstimo de € 40 000,00 junto do 2.º Réu. Tendo-lhe este exigido uma garantia real de cumprimento da obrigação de restituição da quantia emprestada, a 1.ª Ré, munida da referida procuração, declarou, em representação da Autora, vender ao 2.º Réu, que no mesmo ato declarou comprar, pelo preço de € 63 200,00, de que aquela deu quitação, a moradia supra identificada, que era propriedade da Autora.
Acontece que a Autora nunca quis conferir poderes para a 1.ª Ré transmitir a moradia de que era proprietária, tendo assinado a referida procuração sem ter alcançado o seu sentido, atento o estado de demência em que se encontrava, pelo que a procuração deve ser “anulada por falta de vontade da Autora” (sic). De qualquer modo, a procuração, na medida em que não especifica os bens que a 1.ª Ré podia vender, tem objeto indeterminável e, por isso, deve ser declarada nula nos termos do disposto no art. 280 do Código Civil, o que acarreta, também, a nulidade da venda feita ao 2.º Réu, por falta de poderes de representação da Autora por parte da 1.ª Ré.
Como quer que seja, a compra e venda foi celebrada apenas para conferir uma garantia real de cumprimento do mútuo celebrado entre os Réus. Porque, para esse efeito, o 2.º Réu aproveitou uma situação de desespero da 1.ª Ré, obtendo um ganho ilegítimo, posto que o preço declarado é claramente inferior ao valor da moradia, deve ser considerada como um negócio usurário, o que tem como consequência a sua anulabilidade, nos termos do art. 282 do Código Civil.
Entretanto, o 2.º Réu, que não pagou qualquer preço à Autora, vendeu a moradia a um terceiro. Uma vez que já passaram mais de três anos desde essa venda, esse terceiro beneficia da proteção do art. 291 do Código Civil, o que torna impossível a restituição da moradia à Autora como consequência da invalidade da compra e venda celebrada entre os Réus. Assim, devem os Réus restituir o valor atual da moradia.

Citados os Réus, apenas o 2.º contestou dizendo, também em síntese, que adquiriu a identificada fração confiando na validade da procuração apresentada pela representante da Autora, a quem pagou o preço convencionado. Revendeu a fração em 2017, pelo preço de € 100 000,00, tendo pago € 6 150,00 de comissão à mediadora imobiliária que contratou para esse efeito. No mais, negou o alegado na petição inicial quanto à finalidade que presidiu à aquisição da fração e impugnou, por desconhecimento, o alegado quanto ao quadro de demência da Autora. Disse, finalmente, que o direito da Autora obter a anulabilidade da compra e venda
caducou, uma vez que o seu acompanhante teve conhecimento do ato há mais de três anos.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que se afirmou tabelarmente a verificação dos pressupostos de validade e regularidade da instância.

Seguiu-se a delimitação dos termos do litígio e o enunciado dos temas da prova.

Por despacho de 29 de abril de 2022, a representação da Autora passou a caber a EE, entretanto nomeado como seu acompanhante na ação que, sob o n.º 1151/21...., correu termos pelo Juízo Local Cível ..., Lugar ..., o qual, notificado, ratificou os atos processuais praticados pela anterior representante.

Rejeitado o articulado superveniente apresentado pela Autora, realizou-se audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

- “Nestes termos, decide-se julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência,
Declarar a nulidade, por indeterminabilidade do objeto, da procuração outorgada pela Autora, AA, no dia 9 de novembro de 2015, autenticada, na mesma data, no Cartório da Notária ..., na parte em que confere poderes à Ré CC poderes para, em sua representação, “Comprar, prometer-comprar, vender, prometer-vender, permutar, pelo preço que entender quaisquer bens móveis (incluindo automóveis) ou imóveis da Outorgante, podendo assinar contratos-promessa aos quais poderá atribuir eficácia real”;
Declarar a ineficácia em sentido estrito, em relação à Autora, AA, do contrato de compra e venda celebrado entre a Ré CC e o Réu DD, através de escritura pública lavrada no dia 2 de dezembro de 2015, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis ..., pelo qual a 1.ª declarou vender, na qualidade de representante da Autora, e o 2.º declarou, comprar, pelo preço de € 63 200,00, a fração autónoma, destinada à habitação, identificada pela letra ..., correspondente ao ... e ... andar, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito no lugar ... – ..., freguesia ... (... e ...) e ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art. ...90 e inscrito na CRP sob o n.º ...12;
Absolver os Réus, CC e DD, do demais peticionado pela Autora, AA;
Condenar a Autora, AA, e os Réus, CC e DD, no pagamento das custas, na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em ½ para a primeira e ½ para os segundos.”

Inconformado com a sentença dela veio recorrer o 2º Réu formulando as seguintes conclusões:

1. A Autora/recorrida, intentou a presente ação declarativa, contra a 1ª R. CC, sua sobrinha, e o 2º R. DD, ora recorrente, pedindo, entre outras coisas, que fosse declarada nula, por indeterminabilidade do objeto, a procuração que outorgou à 1.ª Ré no dia 9 de novembro de 2015.

2. No uso dessa procuração, a 1ª R. tinha vendido ao 2º R., a 2 de dezembro de 2015, o imóvel identificado no ponto 3. dos factos provados.

3. Contestou o 2º R. dizendo, entre outras coisas, que a A. sabia que estava a dar poderes à sua sobrinha (1ª R) para vender a sua única casa, sita em ..., nas condições que a mesma entendesse (artº 30º contestação), e por isso o objecto não era indeterminável (artº 34º contestação).

4. Feita a instrução da causa, foi proferida douta sentença, que começou por enunciar as questões a decidir, sendo a primeira a de saber se a procuração outorgada pela Autora/recorrida tinha um objeto indeterminado.

5. No ponto 5. dos factos provados foi dado por assente o teor da procuração outorgada pela Autora/recorrida a favor da 1ª R., dia 9 de novembro de 2015, no cartório notarial .... FF.

6. Após ter feito algumas considerações de direito sobre a procuração, e citado jurisprudência a propósito da indeterminabilidade do seu objecto, o Tribunal a quo entrou na parte decisória propriamente dita, tendo concluído que:
- procuração mais não exprima que um poder genérico para praticar atos de disposição e oneração do seu património o que, à luz do que vimos, é insuficiente para que determinar o respetivo objeto;
- Nenhum facto existe que permita concluir que a Autora quis conferir poderes à 1.ª Ré para vender um concreto prédio existente no seu património, mais concretamente a identificada fração autónoma. Desconhece-se mesmo se tal fração era o único imóvel existente no património da Autora;
- na medida em que não expressa poderes específicos para a venda de um concreto imóvel, mas de qualquer imóvel existente no património da Autora, tem objeto indeterminado;
Não havendo elementos que permitam individualizar esse objeto, ele tem de ser também considerado indeterminável, o que implica que, nesta parte, a procuração seja irremediavelmente nula.

7. Em face disso, julgou o Tribunal a quo a acção parcialmente procedente e, em consequência, declarou a nulidade, por indeterminabilidade do objeto, da procuração outorgada pela Autora/recorrida no dia 9 de novembro de 2015 a favor da 1ª R.

8. Com o devido respeito, parece-nos ter existido erro de julgamento na apreciação da prova pelo Tribunal a quo.

9. O juízo de prova vertido na sentença recorrida cinge-se ao teor da procuração, dado por assente nos factos provados (ponto 5), tendo o Tribunal a quo desconsiderado outros meios de prova produzidos perante si e que seriam de molde a infirmar as conclusões a que o mesmo chegou e acima plasmadas no ponto 6. Destas conclusões.

10. Esses meios de prova são o depoimento da testemunha BB (prestado na audiência de julgamento do dia 12/01/2023, entre as 10:25:49 e as 11:07:39, com o tempo de 00h41m 49s ) e as alegações orais do Ilustre Mandatário da Autora/recorrida (prestado na mesma data entre as 14:46:52 e a 15:01:26, com o tempo de 00:14:33).

11. Do depoimento desta testemunha resulta que já era vontade de Autora/recorrida vender a casa e que por isso não se importou em ter sido vendida, podendo concluir-se que essa vontade foi expressa e materializada na procuração outorgada à 1ª R.

12. E das alegações do Ilustre Mandatário resulta que a Autora/recorrida não tinha quaisquer outros imóveis no seu património para além da fracção em ....

13. Deveria, assim, o Tribunal a quo ter dado por assente que a Autora/recorrida conferiu poderes à 1ª R. para vender o seu único imóvel, imóvel esse sito em ... e melhor identificado no ponto 3. dos factos provados.

14. Dando esta matéria por assente, não poderia o Tribunal a quo concluído que o objecto da procuração não era determinável, dado que, na verdade, ele estava determinado ab initio – seria, por isso, impossível não saber a mandante a que imóvel a procuração se referia.

15. Perante esta alegação, e pese embora nos encontremos no domínio da livre apreciação da prova, parece-nos que o Mº Juiz não poderia fazer dela tábua rasa e dizer, como disse, que se desconhece se tal fracção era o único imóvel existente no património da Autora.

16. E se tal não foi suficiente para formar a sua convicção, no uso dos poderes de investigação que a lei lhe confere, parece-nos que deveria ordenar diligências complementares de prova, designadamente a prestação de informação à Administração Tributária ou ao próprio representante da Autora/recorrida, ainda que para isso fosse necessário proceder à reabertura da audiência – nulidade que à cautela se invoca, por influir na decisão da causa.

17. Com efeito, a violação do princípio do inquisitório constitui mesmo uma nulidade processual, nos termos do nº1 do artº 195º, nº1 do CPC, a invocar no recurso que vier a ser interposto da sentença, como tem vindo a ser entendido pela doutrina e jurisprudência.

18. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou, pelo menos, as seguintes disposições legais: artº 5º, nº2, 411 e 413º do CPC.
Termos em que julgando o recurso procedente e revogando a douta sentença recorrida farão, Vossas Excelências, Justiça.
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Não houve contra-alegações.
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O recurso foi admitido pelo tribunal a quo, tendo o mesmo se pronunciado sobre a nulidade invocada as conclusões da apelação, tendo-se entendido que a sentença recorrida não enferma da apontada nulidade.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir
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II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo Recorrente, cumpre apreciar:

- Da pretendida alteração da matéria de facto;
- Se, em consequência, deve ser revogada/alterada a sentença, nos termos pugnados na apelação.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A - Matéria de facto julgada provada na sentença:

1 A Autora nasceu a .../.../1935, cf. certidão do assento de nascimento apresentada como documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

2  Está aposentada desde que completou os 70 anos de idade.

3 Pela apresentação n.º 11, de 7 de março de 1985, foi inscrita, na CRP ..., a aquisição, por compra, pela Autora do direito de propriedade sobre a fração autónoma, destinada à habitação, identificada pela letra ..., correspondente ao ... e ... andar, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito no lugar ... – ..., freguesia ... (... e ...) e ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art. ...90 e inscrito na CRP sob o n.º ...12, cf. documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

4 No ano de 2015, a Autora era apoiada pela 1.ª Ré, sua sobrinha, que por ela se deslocava aos bancos, designadamente para levantar a sua pensão, fazia compras e aviava receitas.

5 Do escrito datado de 9 de novembro de 2015, intitulado “Procuração”, consta que a Autora “constitui sua bastante procuradora CC (…), a quem confere, com a faculdade de substabelecer, os mais amplos poderes para a prática dos atos que a seguir se individualizam: - Comprar pelo preço e nas condições que entender mesmo sobre a forma de leasing, bens ou matéria necessária em nome da Outorgante, assinando os respetivos contratos, incluindo veículos automóveis, bem assim, vender aqueles que entenda por conveniente; - Comprar, prometer-comprar, vender, prometer-vender, permutar, pelo preço que entender quaisquer bens móveis (incluindo automóveis) ou imóveis da Outorgante, podendo assinar contratos-promessa aos quais poderá atribuir eficácia real; - Junto de quaisquer entidades e instituição bancárias ou de crédito, abrir, movimentar, quaisquer contas bancárias, a débito ou a crédito, podendo para o efeito depositar ou levantar quaisquer quantias em dinheiro, assinar recibos ou cheques, fazer pedidos de segundas vias de depósitos a prazo, pedidos de segundas vias de caderneta e de cheques ou de qualquer outro documento que repute pertinente, levantamento por antecipação de depósitos a prazo, requisição de livros de cheques, endossar e sacar cheques, passagem de extrato de contas; - Levantar nas Estações Postais (Correios ...) de ... e outra qualquer correspondência, nomeadamente cartas registadas, cartas registadas com aviso de receção, encomendas, mercadorias, vales postais, depósitos e tudo o mais que for dirigido à Outorgante mandante; - Junto de qualquer serviço público ou administrativo (…) requerer alvarás e licenças, apresentar projetos, contratar prestação de serviços, alterar ou rescindir os respetivos contratos, requerer e levantar em noma da Outorgante todo e qualquer documento que a ela seja dirigido ou respeite; - Junto da Administração Fiscal, requerer todo e qualquer ato incluindo pagar IMT, contribuições ou impostos, reclamar dos indevidos ou excessivos, receber títulos de anulação e as suas correspondências, importâncias ou fazer quaisquer declarações de natureza fiscal (…); - Proceder a quaisquer atos de registo predial, comercial e automóvel, provisórios ou definitivos, requerer averbamentos ou cancelamentos (…); - Representá-la junto a quaisquer entidades bancárias ou de crédito para contrair empréstimo hipotecário, podendo assinar o respetivo instrumento, dando em garantia da dívida hipotecária, em qualquer grau, a favor de qualquer entidade e instituição bancária ou de crédito, de qualquer imóvel pertencente à Outorgante (…); - E de um modo geral, requerer, praticar e assinar tudo o que necessário se torne aos fins que acima se individualizar. A procuradora poderá celebrar negócio consigo mesmo, nos termos do art. 261.º do Código Civil.”

6 No final desse escrito, a Autora manuscreveu o seu nome.

7 Levou-o depois, no dia 9 de novembro de 2015, ao Cartório da Notária ... onde, dizendo estar inteirada do seu conteúdo e da correspondência deste à sua vontade, assinou termo de autenticação.

8 Esse termo foi assinado na presença de GG, colaboradora da referida Notária, autorizada para a prática do ato (registo e autorização publicado sob o n.º 264/9 no site da Ordem dos Notários em 15 de setembro de 2014), que também o assinou, tudo conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

9 Por escritura pública lavrada no dia 2 de dezembro de 2015, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis ..., a 1.ª Ré, na qualidade de representante da Autora, declarou, “em nome da sua representada”, vender ao 2.º Réu, que declarou comprar, pelo preço de € 63 200,00, a fração autónoma identificada em 3.

10 No mesmo ato, a 1.ª Ré declarou que já tinha recebido o preço, tudo conforme documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

11 No referido dia 2 de dezembro de 2015, o 2.º Réu emitiu e entregou à 1.ª Ré dois cheques sobre a conta por si titulada no Banco 1..., um à ordem da Autora, no montante de € 48 000,00 (cheque n.º ...98), outro ao portador, no montante de € 15 200,00.

12 O 1.º desses cheques foi depositado pela 1.ª Ré, no dia 2 de dezembro de 2015, na conta n.º ...98, pela própria titulada no Banco 1....

13 No 2.º foi manuscrito, no local destinado à identificação do portador, B..., Lda., após o que foi o mesmo depositado, no dia 4 de dezembro de 2015, na conta titulada por esta sociedade na Banco 2....

14 A Autora não recebeu qualquer quantia proveniente da transmissão para o 2.º Réu do direito de propriedade sobre a fração identificada em 3.

15 A aquisição do direito de propriedade sobre a fração pelo 2.º Réu, tendo como causa a compra à Autora, foi inscrita, na CRP ..., pela apresentação n.º 805, de 2 de dezembro de 2015, cf. documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

16 O 2.º Réu nunca contactou a Autora nem se inteirou da real vontade desta em transmitir-lhe a propriedade da fração autónoma identificada em 3.

17 Por escritura pública lavrada no dia 2 de outubro de 2017, no Cartório Notarial ..., o 2.º Réu declarou vender a HH, que no mesmo ato declarou comprar, pelo preço de € 100 000,00, a fração autónoma identificada em 3.

18 No mesmo ato, os referidos outorgantes declararam que o negócio foi objeto de intervenção da mediadora imobiliária F..., Unipessoal, Lda., tudo conforme documento ... apresentado com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

19 O 2.º Réu pagou a comissão à referida imobiliária e respetivo IVA, no total de € 6 150,00.

20 O facto referido em 17 foi inscrito, na CRP ..., através da apresentação n.º ..., de 3 de outubro de 2017, cf. documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.

21 No início do ano de 2017, a Autora ficou acamada e totalmente dependente de terceiros para os atos correntes da sua vida.

22 Começou a apresentar dificuldades de memória e de compreensão, bem como sinais de desorientação.

23 Vive, pelo menos desde meados de 2016, em casa do seu acompanhante, sendo cuidada pelo cônjuge deste, BB, pais da 1.ª Ré.

24 Em 16 de janeiro de 2018, foi diagnosticada com demência P70.

25 Por sentença de 22 de fevereiro de 2022, transitada em julgado, proferida na ação especial de acompanhamento de maior que, sob o n.º 1151/21...., correu termos pelo Juízo Local Cível ..., Lugar ..., ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi determinado o seu acompanhamento, com a nomeação de EE para o exercício das funções de acompanhante.

26 A mesma sentença determinou as seguintes medidas de acompanhamento: a) Representação geral para todos os atos da vida  corrente, sem prejuízo dos que careçam de autorização judicial; b) Administração total de bens; c) Limitação do exercício de direitos pessoais, os quais compreendem, entre outros, o direito de ser tutor, vogal do conselho de família ou administrador de bens de incapazes, de desempenhar as funções de cabeça-de-casal, de se deslocar sozinha no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, de testar e de aceitar ou rejeitar liberalidades.

27 E fixou o dia 1 de novembro de 2015 como a data em que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes, tudo conforme certidão judicial apresentada com o requerimento com a ref. ...35, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
***
B - Factos não provados:

28 Em 1 de outubro de 2012, a Autora sofreu um acidente vascular cerebral que lhe causou doença do foro neurológico.

29 Passou a ter dificuldades de entendimento e a ser facilmente manipulável.

30 A partir da referida data, a demência, decorrente da doença de Alzheimer, começou a desenvolver-se.

31 No início de 2015, a Autora apresentava um quadro clínico de insuficiência cardíaca e demência.

32 Em 1 de novembro de 2015, tinha as suas capacidades cognitivas profundamente diminuídas.

33 A Autora assinou a procuração transcrita no ponto 5 sem que tivesse compreendido o sentido das declarações nela exaradas.

34 A 1.ª Ré encontrava-se, desde o ano de 2013, com falta de liquidez e sem meios económicos para fazer face às suas despesas correntes.

35 A 1.ª Ré chegou ao contacto do 2.º Réu, a quem solicitou o empréstimo de quantia de € 40 000,00.

36  O 2.º Réu dispôs-se a emprestar essa quantia à 1.ª Ré, exigindo que esta providenciasse pela passagem, para a sua propriedade, da fração autónoma identificada em 3, como forma de garantir a restituição do capital mutuado.

37 A 1.ª Ré aceitou as condições impostas e acertou com o 2.º Réu que a garantia exigida por este seria constituída através da celebração de um contrato de compra e venda da referida fração autónoma.

38 Para esse efeito, a 1.ª Ré redigiu a minuta da procuração transcrita em 5, convencendo a Autora a assiná-la.

39 A 1.ª Ré projetou transmitir para o 2.º Réu a fração autónoma identificada em 3 sem o conhecimento nem o consentimento da Autora.

40 A 1.ª Ré nunca deu conhecimento desse negócio à Autora.

41 A Autora nunca quis que propriedade da identificada fração fosse transmitida para o 2.º Ré.

42 A fração autónoma identificada em 3 tinha, em 2 de dezembro de 2015, um valor duas a quatro vezes superior a € 63 200,00.

43 No ano de 2015, tendo o 2.º Réu algumas poupanças, fruto do seu trabalho, decidiu investi-las comprando uma casa para revender ou arrendar, na zona do ....

44 Conheceu um cliente a quem manifestou, em jeito de conversa, essa intenção de comprar um imóvel, pedindo-lhe mesmo para o informar se soubesse de alguém que estivesse interessado em vender.

45 Como esse cliente conhecia uma terceira pessoa que fazia algumas transações imobiliárias, contactou-a dando-lhe a saber das intenções do 2.º Réu.

46 Passado algumas semanas, esse terceiro ligou diretamente ao Réu dizendo-lhe que sabia de uma casa para vender na zona de ... e que poderia agendar uma visita caso houvesse interesse da parte deste.

47 Tendo o 2.º Réu manifestado interesse em visitar o imóvel, foi agendada a visita ao mesmo, com essa pessoa, que tinha na sua posse as respetivas chaves.

48 O 2.º Réu apenas conheceu o intermediário no negócio no dia da visita.

49 O intermediário mostrou o imóvel ao 2.º Réu, com quem ajustou o preço da venda.

50 A partir de então, o 2.º Réu apenas voltou a encontrar-se com o intermediário na data da escritura.

51 Foi nessa data que o 2.º Réu conheceu a 1.ª Ré.

52 No ato da escritura, o 2.º Réu recebeu as chaves da fração.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da impugnação da matéria de facto

Alega o Recorrente que a Autora/recorrida, intentou a presente ação declarativa, contra a 1ª R. CC, sua sobrinha, e o 2º R. DD, ora recorrente, pedindo, entre outras coisas, que fosse declarada nula, por indeterminabilidade do objeto, a procuração que outorgou à 1.ª Ré no dia 9 de novembro de 2015; que no uso dessa procuração, a 1ª R. tinha vendido ao 2º R., a 2 de dezembro de 2015, o imóvel identificado no ponto 3. dos factos provados; que contestou o 2º R. dizendo, entre outras coisas, que a A. sabia que estava a dar poderes à sua sobrinha (1ª R) para vender a sua única casa, sita em ..., nas condições que a mesma entendesse (artº 30º contestação), e por isso o objecto não era indeterminável (artº 34º contestação); que feita a instrução da causa, foi proferida douta sentença, que começou por enunciar as questões a decidir, sendo a primeira a de saber se a procuração outorgada pela Autora/recorrida tinha um objeto indeterminado; que no ponto 5. dos factos provados foi dado por assente o teor da procuração outorgada pela Autora/recorrida a favor da 1ª R., dia 9 de novembro de 2015, no cartório notarial .... FF; que após ter feito algumas considerações de direito sobre a procuração, e citado jurisprudência a propósito da indeterminabilidade do seu objecto, o Tribunal a quo entrou na parte decisória propriamente dita, tendo concluído que:
- procuração mais não exprima que um poder genérico para praticar atos de disposição e oneração do seu património o que, à luz do que vimos, é insuficiente para que determinar o respetivo objeto;
- Nenhum facto existe que permita concluir que a Autora quis conferir poderes à 1.ª Ré para vender um concreto prédio existente no seu património, mais concretamente a identificada fração autónoma. Desconhece-se mesmo se tal fração era o único imóvel existente no património da Autora;
- na medida em que não expressa poderes específicos para a venda de um concreto imóvel, mas de qualquer imóvel existente no património da Autora, tem objeto indeterminado;
- Não havendo elementos que permitam individualizar esse objeto, ele tem de ser também considerado indeterminável, o que implica que, nesta parte, a procuração seja irremediavelmente nula; que em face disso, julgou o Tribunal a quo a acção parcialmente procedente e, em consequência, declarou a nulidade, por indeterminabilidade do objeto, da procuração outorgada pela Autora/recorrida no dia 9 de novembro de 2015 a favor da 1ª R.
Entende o Recorrente que parece ter existido erro de julgamento na apreciação da prova pelo Tribunal a quo.

Cabe assim apreciar se o tribunal cometeu algum erro da apreciação da prova e assim na decisão sobre a matéria de facto.
A este propósito o recorrente impugnou a decisão da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art. 640º do CPC, pugnando que determinado facto seja considerado provado, a saber:

“- A Autora/recorrida conferiu poderes à 1ª R. para vender o seu único imóvel, imóvel esse sito em ... e melhor identificado no ponto 3. dos factos provados.”

Na versão do Recorrente, tal facto é essencial para o desfecho da acção em termos favoráveis ao mesmo, no sentido de se considerar que o objecto da procuração não era indeterminável e, por isso, não é nula tal procuração.
Alega para tanto que este facto se funda no depoimento da testemunha BB, e na confissão produzida nas alegações orais pelo Ilustre Mandatário da Autora/recorrida.
Ora, antes de mais, cumpre notar que esta factualidade que Réu pretende ver incluída no rol de factos provados, não foi alegada pelo mesmo na contestação, nem resulta do teor da petição inicial, sendo que, por consequência, o mesmo não consta do elenco dos factos não provados da sentença.
Isso mesmo foi salientado no douto despacho proferido pelo tribunal a quo, a que alude o art. 641º, nº 1, do CPC, ao afirmar que (…) “Mais determinante ainda é a consideração de que o facto – acaso fosse relevante – não foi alegado nos articulados das partes. Perante a pretensão de nulidade com fundamento na indeterminabilidade do objeto, caberia ao interessado na manutenção do negócio jurídico a alegação de que, não obstante o teor indeterminado da declaração, havia um critério objeto de consenso que permitia a determinação do objeto. Seria um raciocínio do tipo “Sim-Mas”, a integrar defesa por exceção, que não foi feito na sua sede própria – a contestação.”
Na verdade, a este respeito o Réu apenas alega no art. 30 da contestação que “Sabia por isso a A., nessa altura, que estava, entre outras coisas, a dar poderes à sua sobrinha para vender a sua única casa, sita em ..., nas condições que a mesma entendesse.”
Ora, a alegação de que a Autora era dona de uma única casa não é o mesmo que alegar-se que a mesma é dona apenas de um imóvel, pois a Autora poderia ser dona de outros imóveis, por exemplo, urbanos destinados a comércio (lojas) ou rústicos, o que não se alegou. Ou seja, a alegação vertida no artigo 30 da contestação não exclui, de per si, a eventual existência de outros imóveis, para além da referida casa, sendo que o Réu não alegou que o património da Autora, no que tange a bens imóveis, era apenas constituído pela referida casa.
Acresce que do teor da mencionada procuração não resulta individualizado o concreto imóvel a vender ou a alienar.
De acordo com o art. 5º, nº1, do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

O tribunal só pode, assim, conhecer dos factos alegados pelas partes, com a excepção resultante do previsto no art. 5º, nº 2, do CPC, que nos diz que “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda do considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”

Os factos que resultam da discussão da causa, como decorre da formulação do nº 2 do art. 5º do Código de Processo Civil - “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz” - a), b) e c), são factos, passe a expressão, que só foram “descobertos”, que chegaram ao conhecimento do Tribunal na fase instrutória da causa.
O juiz pode servir-se dos factos principais, que foram alegados pelas partes, e, para lá destes, os notórios, o que dir-se-ia constitui a regra. Já assim não sucede quanto aos factos acessórios.
“Estes factos (probatórios e acessórios) são factos instrumentais, que como tais não têm de ser alegados pelas partes nem de ser incluídos na base instrutória, podendo surgir no decorrer da instrução da causa. O juiz tem, portanto, de os considerar, independentemente da alegação das partes” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição, pág.15 e 16.
Na noção de Castro Mendes (Direito Processual Civil, p. 208), factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes e, para Teixeira de Sousa (Introdução ao Processo Civil, p. 52), são aqueles que indiciam os factos essenciais. Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais.
Numa distinção clara, Lopes do Rego (Comentário ao Código de Processo Civil, p. 201) escreve que “factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa e, por isso mesmo, não carecem de ser incluídos na base instrutória, podendo ser livremente investigados pelo juiz no âmbito dos seus poderes inquisitórios de descoberta da verdade material”, enquanto que “factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu”.
Mantém-se actual a consideração de que são “São factos instrumentais aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente para prová-los, pela convicção que criam da sua ocorrência” – Acórdão este Supremo Tribunal de Justiça, de 18.5.2004 – Proc. 1570/04.
“O conceito de causa de pedir é delimitado pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o demandante formula, cumprindo às partes a alegação desses factos, apenas nos quais o juiz funda a sua decisão, embora possa atender, ainda que ex officio, aos instrumentais, que resultem da instrução e da discussão e aos que sejam complemento ou concretização de outros.
O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, mas a substanciação (ou consubstanciação) permite-lhe definir livremente o direito aplicável aos factos que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando as normas jurídicas” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.5.2009 – Revista n.º 162/09.1YFLSB.
É assim pacífico que os factos instrumentais, mesmo que não constem da alegação das partes, podem ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa.
E o que dizer dos factos complementares ou concretizadores, referidos no citado art. 5º do CPC?
Do acima já exposto, resulta que são factos principais aqueles que integram o facto ou factos jurídicos que servem de base à acção ou à excepção. Estes podem dividir-se em essenciais ou complementares (ou concretização dos que as partes tenham alegado), sendo os primeiros aqueles que constituem os elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, e os segundos aqueles que, de harmonia com a lei, lhes dão a eficácia jurídica necessária para fazer essa actuação. E sendo complemento ou concretização dos essenciais, em rigor lógico não se podem provar os segundos sem que os primeiros o estejam.

A este propósito, concordamos inteiramente com o sentido do acórdão da Relação de Coimbra, de 23.02.2016, no processo nº 2316/12.4TBPBL.G1, disponível em dgsi.pt, sumariado nos seguintes termos:

“1- Os factos complementares ou concretizadores são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.
2.- Se não forem oportunamente alegados e se nem as partes nem o tribunal, ao longo da instrução da causa, os introduzirem nos autos, garantindo o contraditório, a decisão final de mérito será desfavorável àquele a quem tais factos (omitidos) beneficiavam.
3. Sem prejuízo de às partes caber a formação da matéria de facto, mediante a alegação, nos articulados, dos factos principais que integram a causa de pedir, a reforma do processo civil atribuiu ao Tribunal a assunção de uma posição muito mais activa, por forma a aproximar-se da verdade material e alcançar uma posição mais justa do processo.
4. Reconhecendo-se agora ao Juiz, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e de prova a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais, bem como os essenciais à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.
5. Os factos essenciais, a que se refere o art.5º nCPC, têm necessariamente de ser complementares ou concretizantes de outros factos essenciais oportunamente alegados em fundamento do pedido ou da excepção.
6. Essa complementaridade ou concretização tem de ser aferida pela factualidade alegada na petição inicial, isto é, pela causa de pedir invocada pelo autor, ou pela factualidade que fundamenta a excepção invocada na contestação.(…)”

Revertendo ao caso, considerando a causa de pedir e pedidos dos presentes autos, bem como a defesa do Réu espelhada na contestação, afigura-se-nos claro que a factualidade que o Réu agora pretende ver considerada como provada, não é instrumental, nem configura um complemento ou concretização dos que o mesmo alegou para dar corpo à respectiva defesa, sendo que também está afastada a possibilidade de tais factos integrarem a categoria prevista na aludida al. c).
Deste modo, não se verificando, in casu, nenhuma das apontadas situações excepcionais em que o tribunal pode conhecer de factos não alegados pelas partes, não se pode considerar a factualidade invocada na apelação, improcedendo, assim, a impugnação da matéria de facto.
Em todo o caso, ainda que se entendesse ou concluísse que a factualidade em causa se encontra de alguma forma alegada, a mesma não se nos afigura ter relevância jurídica decisiva para a questão da determinabilidade do objecto da procuração em apreço.
Com efeito, acompanhamos aqui o afirmado pelo Mmº Juiz a quo no despacho a que alude o art. 641º do CPC, em considerar que o facto em causa “não tem qualquer relevo para a decisão: o conteúdo indeterminado (e indeterminável) da declaração negocial afere-se em função dela mesma e não de elementos exteriores, ainda para mais quando estes são suscetíveis de mutação, como sucede com o património de uma pessoa. Não prevendo a procuração um limite temporal para os poderes de representação por ela conferidos ao mandante, não pode aceitar-se a tese de que seu objeto definido pela expressão “todo e qualquer” pode ser determinado pela análise dos bens e direitos que, num determinado momento, existem no património do devedor, como, aliás, resulta da fundamentação da sentença proferida.”
Donde se conclui que sempre seria um acto inútil apreciar se a factualidade impugnada na apelação deve ou não ser julgada provada, como pretende o Recorrente, de harmonia com o disposto nos art. 2º, nº 1 e 130º do C.P.C..
Neste sentido, como se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 02/02/2017, “a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante»
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavras se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10)”. [1]
Deste modo, por falta de utilidade para a decisão de mérito a proferir, sempre seria de rejeitar o conhecimento do recurso relativo à pretensão do Réu quanto ao aditamento do referido facto ao elenco dos factos provados.
*
Da nulidade por omissão da prática de actos inerentes ao cumprimento do princípio do inquisitório

Alega ainda o Recorrente que, para prova do apontado facto, se os elementos probatórios indicados não forem suficientes para formar a convicção do tribunal, no uso dos poderes de investigação que a lei lhe confere, deveria o mesmo ter ordenado diligências complementares de prova, designadamente a prestação de informação à Administração Tributária ou ao próprio representante da Autora/recorrida, ainda que para isso fosse necessário proceder à reabertura da audiência – nulidade que à cautela se invoca, por influir na decisão da causa; que a violação do princípio do inquisitório constitui mesmo uma nulidade processual, nos termos do nº1 do artº 195º, nº1 do CPC, a invocar no recurso que vier a ser interposto da sentença, como tem vindo a ser entendido pela doutrina e jurisprudência; e que ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou, pelo menos, as seguintes disposições legais: artº 5º, nº2, 411 e 413º do CPC.
Estamos aqui perante matéria cujo conhecimento se mostra prejudicado pela solução por nós dada supra sobre a impugnação da matéria de facto, nos termos do art. 608º, nº 2, do CPC.
Em todo o caso, diremos o seguinte.
O artigo 411.º, sob a epígrafe - Princípio do inquisitório, prevê que “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”

Por sua vez, o art. 412º do CPC, dispõe que:

1 - Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.
2 - Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.

No dizer de Rui Pinto, CPP Anot., Vol. I, pág. 623 e ses, “O objecto do inquisitório são os factos que tenham sido adquiridos no processo, nos termos do artigo 5º e do art. 412º. Esses factos são: os essenciais, tanto principais, como complementares, alegados pelas partes, e os de conhecimento oficioso carentes de prova: os factos instrumentais resultem da instrução e os factos que sejam complementares ou concretização dos que as partes hajam alegado. (…) o juiz não pode apurar a verdade quanto a factos essenciais não alegados pelas partes”.
No caso vertente, como acima afirmamos, a factualidade na base da qual o Recorrente sustenta a alegada violação do princípio do inquisitório, apesar de essencial à tese do Apelante, não foi alegada pelas partes.
Por isso, ao juiz está vedado apurar a verdade sobre esse facto, inexistindo, por consequência, a apontada violação do inquisitório por parte do tribunal e a decorrente nulidade por omissão da prática de acto a tal respeito.
Aqui chegados, improcedendo a impugnação da matéria de facto, na base da qual o Recorrente pugnava pela revogação da sentença, nenhuma questão se suscita a subsunção jurídica nela efectuada.
Deste modo, improcede a apelação, devendo manter-se a sentença recorrida.
*
Sumário:

- O tribunal só pode conhecer dos factos alegados pelas partes, com a excepção resultante do previsto no art. 5º, nº 2, do C.P.C. quanto aos factos instrumentais, aos complementares ou concretizadores, aos notórios e àqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, nas condições aí previstas.

- São factos instrumentais aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente para prová-los, podendo ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa.

- Os factos complementares concretizam os principais que foram alegados para servirem de base à acção ou à execpção. Essa complementaridade ou concretização tem de ser aferida pela factualidade alegada na petição inicial, isto é, pela causa de pedir invocada pelo autor, ou pela factualidade que fundamenta a excepção invocada na contestação. Por isso, não se podem provar os primeiros sem que os segundos o estejam.

DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Guimarães, 22.06.2023

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: José Manuel Flores
Margarida Gomes



[1] Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães, de 02/02/2017m proferido no processo nº 121/15.5T8VVD.G1, in www.dgsi.pt