Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
256/09.3TBMNC.G1
Relator: MARIA CRISTINA CERDEIRA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
PRÉDIO ENCRAVADO
DIREITO DE AQUISIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I) – A razão de ser do artº. 1551º do Código Civil está no facto de a lei entender que a servidão de passagem não é absoluta, pelo que ninguém deve ser obrigado a suportá-la no caso dela representar um encargo excessivo, desproporcional e injusto sobre o prédio serviente, tendo em conta a especial natureza deste.
II) - O regime do citado artº. 1551º do Código Civil só é invocável perante uma servidão legal de passagem, imposta por sentença judicial ou decisão administrativa, e não já face a uma servidão constituída por destinação do pai de família, como a dos autos, que se radica num acto voluntário (ainda que presumido, de forma iniludível), não tendo, nessa medida, os Autores direito a tal aquisição forçada ou, sequer, a qualquer indemnização.
III) – Resulta do nº. 1 do artº. 1551º do Código Civil que o direito (potestativo) de adquirir o prédio encravado visa impedir a constituição da servidão, extinguindo-se se não for exercido, por via reconvencional, na acção intentada para esse efeito.
IV) - O direito potestativo de adquirir o prédio encravado, ao abrigo daquele artº. 1551º do Código Civil, tem de ser invocado num momento em que o direito potestativo de impor a servidão de passagem não foi ainda actuado pelo dono do prédio dominante ou numa altura em que não está ainda constituída ou reconhecida qualquer servidão.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Eduardo R e Daniel L intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra:
1ª - Maria P
2ª- Maria F
3º - Carlos A
4º - Alda M e marido João P
5º - Vitalina G e marido José M,
pedindo a condenação solidária dos RR. a cederem aos AA. a propriedade do imóvel descrito nos artºs 28º a 31º da petição inicial, pelo preço de € 8 800,00, por forma a que os AA. se possam subtrair à passagem sobre o seu prédio.
Para tanto, alegam, em síntese, que AA. e RR. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano identificado no artº. 2º da petição inicial, tendo a referida casa de morada, desde 1981, ficado dividida em duas partes fisicamente autónomas e independentes, separadas entre si e com entradas separadas, descritas nas alíneas a) e b) do artº. 17º daquele articulado.
Após invocarem factos tendentes a demonstrar a aquisição originária (por usucapião), por parte dos AA., do direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito na alínea a) do artº. 17º supra referido, mais alegam que em 30/01/1989 o falecido marido da 1ª Ré, Júlio M, adquiriu por escritura pública de compra e venda o prédio rústico identificado no artº. 36º da petição inicial, que se situa entre os terrenos dos AA. e dos RR. referidos nos autos, sendo que este terreno, agora propriedade dos RR., não tinha comunicação directa com a via pública pelos prédios dos AA. que foram objecto da partilha referida naquele articulado, mas teria possibilidade de tal comunicação ser estabelecida pelos terrenos dos RR., bastando manter aberto o portão que estes entretanto taparam.
Mais alegam que os agora RR. intentaram uma acção ordinária contra os aqui AA., precedida de uma providência cautelar de restituição provisória da posse, que correu termos sob o nº. 318/06.9TBMNC, mediante a qual visam a constituição de uma servidão de passagem a favor do aludido prédio rústico dos RR. e a onerar o prédio dos AA., a qual se encontra provisoriamente estabelecida, estando descrita nos artºs 41º e 42º da petição inicial.
Referem, ainda, que os terrenos dos AA. se encontram vedados com muros altos, de pedra, formando uma pequena “quintinha” murada, tendo como único acesso um portão e sendo todos eles adjacentes da casa de morada dos Autores, e onerando o aludido caminho de servidão, ainda que provisoriamente, o prédio dos AA. a favor dos terrenos comprados pelo falecido marido da 1ª Ré, que estão encravados pois não têm outra via de comunicação com a via pública e nenhuma possibilidade de a constituírem, assiste aos AA. o direito de adquirirem o prédio dos RR., a fim de se desonerarem da obrigação de dar passagem, pelo preço de € 8 800,00 que consideram justo e equilibrado.

Os 1º, 3º, 4º e 5º RR. contestaram, suscitando o incidente do valor da causa e invocaram a excepção dilatória de ilegitimidade processual passiva, alegando que a 1ª Ré foi casada, no regime da comunhão geral de bens, com Júlio M, falecido em 29/07/1992, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido, como únicos e universais herdeiros, o cônjuge sobrevivo e os filhos de ambos Maria F, Carlos A, Alda M e Vitalina G (todos aqui RR.), fazendo parte do respectivo acervo hereditário o prédio rústico em causa nestes autos, e não tendo havido ainda partilha dos bens que compõem essa herança, deveria a presente acção ter sido proposta contra a Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Júlio M, representada em juízo por todos os seus herdeiros acima referidos, e não contra os RR. em nome próprio.
Defendem-se, ainda, por impugnação, negando a verificação dos pressupostos de que depende o exercício do alegado direito dos AA., uma vez que em face do circunstancialismo descrito na contestação, a servidão de passagem sobre o prédio dos AA. a favor do prédio dos RR. constituiu-se por usucapião, por força da aplicação do preceituado no artº. 1547º, nº. 1 a contrario sensu do artº. 1548º ambos do Código Civil.
Mais alegam que em 1/08/2006, os aqui RR., por si e em representação da herança do falecido Júlio Evangelista, propuseram contra os agora AA. uma acção com processo ordinário, que corre seus termos sob o nº. 416/09.6TBMNC – e à qual se encontra apensa a mencionada providência cautelar de restituição provisória de posse nº. 318/06.9TBMNC, que foi decretada por sentença proferida em 25/07/2006, confirmada por sentença de 23/04/2007 que julgou improcedente a oposição deduzida pelos requeridos (aqui AA.), tendo tal decisão sido confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31/01/2008 – sendo que naquela acção ordinária, os ali AA. (aqui RR.) não pedem a constituição de uma servidão de passagem, mas antes que seja judicialmente declarado que a mesma já se encontra constituída (por usucapião), onerando o prédio dos AA. e que estes sejam condenados a reconhecerem esse direito.
Referem, ainda, que acaso se viesse a entender que com a mencionada acção ordinária nº. 416/09.6TBMNC, os aqui RR. queriam, efectivamente, constituir uma servidão legal de passagem, a verdade é que na contestação ali oferecida pelos agora AA. estes não fizeram uso da faculdade a que alude o artº. 1551º, nº. 1 do Código Civil, mormente em sede de pedido reconvencional, extinguindo-se, assim, aquele seu direito por caducidade, excepção esta que invocam.
Invocam o abuso de direito por parte dos AA. ao intentarem a presente acção e não aceitam o preço de € 8 800,00 proposto pelos AA. para aquisição do prédio rústico denominado “Poça e Ria”, nem a avaliação que foi feita desse prédio, entendendo que o justo valor a pagar pela aquisição coerciva deste prédio aos RR., não deverá ser inferior a € 42 500,00.
Concluem, pedindo que sejam julgados procedentes o incidente do valor da acção e as excepções deduzidas e pugnando pela improcedência da acção e consequente absolvição dos RR. do pedido, bem como pela condenação dos AA. por litigância de má fé no pagamento de uma multa e indemnização a favor dos RR. de montante não inferior a € 1 000.

Os AA. apresentaram réplica, impugnando o incidente do valor da causa e os factos alegados pelos RR. atinentes às excepções por eles deduzidas, requerendo, ainda, a intervenção principal provocada da Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Júlio M, representada por todos os RR. supra identificados, com vista a suprir a ilegitimidade passiva invocada por estes.

Em 28/01/2010 foi proferido despacho a determinar a realização de arbitramento com vista a apurar o valor de mercado do imóvel descrito nos artºs 28º a 31º da petição inicial, para apreciação do incidente de verificação do valor da causa e a admitir a intervenção principal provocada da Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Júlio M, a fim de ocupar a posição passiva na instância (cfr. fls. 208 a 212).

Em 20/06/2011 foi proferido despacho a determinar a suspensão da instância por existência de causa prejudicial, até ao trânsito em julgado da sentença que viesse a ser proferida no âmbito do processo nº. 416/06.9TBMNC (cfr. fls. 265 a 268).

Por despacho proferido em 6/07/2015 foi julgado parcialmente procedente o incidente do valor da causa suscitado pelos RR. e, em consequência, fixado à mesma o valor de € 18 897,50 (cfr. fls. 316 e 317).

Em 3/11/2015 realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, onde se procedeu ao saneamento da acção, verificando-se a validade e regularidade da instância, se determinou a junção aos autos da certidão da sentença proferida no processo nº. 416/06.9TBMNC, com a respectiva nota de trânsito em julgado, e a notificação de ambas as partes para se pronunciarem sobre o eventual conhecimento do mérito da causa, dado o Tribunal “a quo” considerar que o processo se encontrava em condições de proferir decisão de mérito (cfr. fls. 330 a 367).

Ambas as partes vieram fazer uso do contraditório relativamente à questão do conhecimento do mérito da causa, mantendo as posições expendidas nos respectivos articulados (cfr. fls. 368 a 376).

Em 27/11/2015 foi proferida sentença que conheceu do mérito da causa em face dos elementos constantes do processo, julgando improcedente a presente acção, com a consequente absolvição dos Réus do pedido formulado pelos Autores, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas pelas partes, nomeadamente, a questão da litigância de má fé suscitada pelos Réus.

Inconformado com tal decisão, o Autor Eduardo R dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:
A. A questão substancial em questão nos autos é a seguinte:
“…a) Constituída uma servidão legal de passagem por destinação de pai da família pode o detentor do direito potestativo conferido pelo artigo 1551º do CC adquirir o prédio encravado?”
B. A sentença supra expressamente condena no seguinte:
“…b) Declarar que sobre o prédio dos Réus E
e mulher Maria C, e Daniel L e mulher Maria I, identificado na alínea D) dos factos assentes, e a favor do prédio da Autora, está constituída uma servidão de carro de tracção animal, tractor e máquinas agrícolas, a exercer em duas épocas do ano: durante o mês de Maio, para preparação dos terrenos e sementeiras; durante o mês de Outubro, para fazer as colheitas, sendo essa serventia feita através da faixa de terreno que descreve a resposta ao quesito 5º.”
C. Os Réus/requeridos pretenderam por via da acção nº 416/06.9TBMNC a alteração profunda da servidão existente.
Logo,
D. Pretendendo alteração da servidão existente para nova servidão de conteúdo mais amplo os Autores deram fundamento aos Réus para a presente acção que tem fundamento legal e acolhimento no teor do nº 1 do artigo 1551º do CC.
E. O disposto no nº 1 do art. 1551º do Código Civil tem como pressuposto a existência da obrigação de ceder passagem e por isso se essa obrigação não existe não pode o dono e possuidor do prédio adquirir o prédio encravado.
Isto é, é pressuposto lógico a existência de servidão anterior a obrigação de ceder passagem anterior à possibilidade de o proprietário do prédio (exactamente por isso chamada serviente) usar da faculdade potestativa do nº 1 do art. 1551º do CC.
F. O pedido formulado pelo aqui Autor foi-o com base na seguinte fundamentação:
O pedido não foi fundamentado na desnecessidade, foi-o antes com base nos fundamentos seguintes:
­ Pedido de alteração de servidão pelos Autores.

E por seu turno outro fundamento nos surge do decurso da instrução do processo:
­ Aquando da elaboração do Relatório pericial verificou-se que os Autores construíram no prédio encravado um armazém agrícola e uma cozinha de campo, instalando no prédio rústico um prédio urbano novo.
G. É consequência desta construção de um prédio urbano novo no prédio dominante – a alteração da servidão anteriormente existente, que aos Autores é legítimo “deitar mão” do disposto no nº 1 do artigo 1551º do CC.
H. A questão fundamental é: É a de se determinar e decidir se a servidão de passagem constituída por destinação do pai de família que onera o prédio dos Autores a favor do prédio adquirido dos Réus, para lá do ónus da servidão de passagem, preenche os quesitos legais que integram a sua qualificação como servidão de passagem a favor do prédio do Autor recorrente.
I. No caso em apreço só não goza da faculdade prevista no nº 1 do artigo 1551º do CC o prédio onerado com uma servidão legal de passagem, e não o que está onerado com uma qualquer servidão de passagem.
J. Que “uma servidão de passagem constituída por destinação do pai de família, embora seja legal no sentido da sua existência estar legalmente prevista e ser regulada pela lei e, nesse sentido, ser ou constituir uma servidão legal, não é, contudo, nem preenche os requisitos legais previstos e exigidos no Capítulo III, Secção I do Código Civil…”
Concluem entendendo que a sentença viola o disposto no artº. 1551º do CC e nos artºs 615º nº 1 al. b) e c) e bem assim no artº. 605º do CPC, pelo que deve ser substituída por outra que, dando provimento ao recurso, julgue a acção procedente e condene os Réus no pedido formulado pelo Autor.

Os RR. contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida e, a título subsidiário, procederam à ampliação do objecto do recurso, pedindo que seja julgado procedente, por provado, que a servidão de passagem que efectivamente onera o prédio dos recorrentes foi constituída, há mais de 50 anos, quer por destinação do pai de família quer por usucapião, assumindo-se como uma servidão voluntária de passagem e não como uma servidão legal, não cabendo aos recorrentes, por essa razão, a faculdade contemplada no nº. 1 do artº. 1551º do Código Civil, concluindo nos seguintes termos [segue transcrição das conclusões]:
AMPLIANDO O OBJETO DO RECURSO:
XVII.- Por modo a fazer uso da faculdade consagrada no n.º 1 do artigo 1551.º do CC, é fulcral que sobre o prédio serviente se venha a constituir, a favor do prédio dominante, uma servidão legal;
XVIII.- O direito potestativo de adquirir o prédio encravado tem de ser invocado num momento em que o direito potestativo de impor a servidão de passagem não foi ainda atuado ou numa altura em que não foi constituída qualquer servidão;
XIX.- Os Recorrentes não alegaram que a servidão de passagem que onera o seu prédio se assume como uma servidão legal de passagem nos termos definidos pelo n.º 1 do artigo 1547.º e pelo n.º 1 do artigo 1550.º ambos do CC, porquanto sempre afirmaram que o prédio dos Recorridos teria toda a possibilidade de ter comunicação com a via pública se estes não tivessem, alegadamente, tapado um portão que, também alegadamente, permitiria que essa ligação fosse estabelecida;
XX.- Tendo os Recorrentes sustentado que o prédio dos Recorridos teria a possibilidade de ter comunicação com a via pública, haverá que concluir que não poderiam aqueles pretender lançar mão ao do dispositivo vertido no artigo 1551.º do CC, uma vez que estes não caracterizaram o prédio dos Recorridos como um prédio encravado;
XXI.- A servidão de passagem que efetivamente onera o prédio serviente foi constituída, há mais de 50 anos a esta parte, quer por destinação do pai de família quer por usucapião, pelo que, de facto, esta se assume como uma servidão voluntária de passagem e não como uma servidão legal, não cabendo aos Recorrentes, por essa razão, a faculdade contemplada no n.º 1 do artigo 1551.º do CC.
Os recorrentes não apresentaram resposta à ampliação do objecto do recurso.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 408.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do Novo Código de Processo Civil (doravante NCPC), aplicável “in casu” por a decisão sob censura ter sido proferida depois de 1/09/2013 (artº. 7º, nº. 1 da Lei nº. 41/2013 de 26/6).

Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelo Autor Eduardo R, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à apreciação das seguintes questões:
I) – Nulidade da sentença recorrida;
II) – Saber se é aplicável o direito conferido pelo artº. 1551º do Código Civil no caso de constituição de servidão de passagem, quer por destinação do pai de família, quer por usucapião.

Os RR., ora recorridos, nas suas contra-alegações, requereram a ampliação do objecto do recurso, a título subsidiário, no sentido de ser julgado procedente que a servidão de passagem que onera o prédio dos recorrentes foi constituída, há mais de 50 anos, quer por destinação do pai de família quer por usucapião, assumindo-se como uma servidão voluntária de passagem e não como uma servidão legal, não cabendo aos recorrentes, por essa razão, a faculdade contemplada no nº. 1 do artº. 1551º do Código Civil.

Na sentença recorrida foram considerados provados por documento (certidão da sentença proferida no processo nº. 416/06.9TBMNC, transitada em julgado), com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos [transcrição]:
1. Com data de 29/01/2015 e trânsito em julgado em 17/06/2015, foi proferida sentença cuja certidão se mostra junta a fls. 332 e seguintes para onde se remete e que aqui se dá por reproduzido.
2. Consta do teor da referida sentença que:
“Com interesse para esta questão, resultou apurado:
Júlio M faleceu no dia 29.07.1992 no estado de casado no regime de comunhão geral de bens com Maria P. (al. A) dos factos provados)
Para além da Autora Maria P, sucederam, como únicos e universais herdeiros de Júlio M, os filhos Maria F, Carlos A, Alda M e Vitalina G. (al. B) dos factos provados)
Dos bens que compõem o acervo hereditário deixado por Júlio M faz parte o seguinte prédio:
Prédio rústico, sito no lugar de Ponte de Mouro, freguesia de Barbeita, concelho de Monção, composto de terreno de cultura e vinha em ramada, com área de 4.250 m2, a confrontar de norte com herdeiros de Júlio M, Eduardo R e Daniel L, do sul com caminho, do nascente com Rio Mouro e do poente com Eduardo R e Daniel L, descrito na Conservatória do Registo Predial de Monção sob o n.º 1.281/Barbeita, e inscrito à matriz predial respectiva sob o artigo 509º da indicada freguesia de Barbeita. (al. C) dos factos provados)
Os Réus são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio:
Prédio rústico, sito no lugar de Ponte de Mouro, freguesia de Barbeita, concelho de Monção, com área de 1.200 m2, a confrontar de norte com caminho público, sul com caminho, do nascente com a herança Autora e do poente com Viriato B, inscrito à matriz predial respectiva sob o artigo 510º da indicada freguesia de Barbeita. (al. D) dos factos provados)
Até 30.01.1989 o prédio referido na anterior alínea C) pertenceu a António M. (al. E) dos factos provados)
Esse prédio referido na alínea C) não tem comunicação directa com a via pública ou possibilidade física de a constituir directamente. Sendo certo que o caminho localizado a sul é uma pequena “Caneja”, um caminho pedonal estreito, com não mais que 1 metro de largura, e fundo, situado num plano inferior ao piso do prédio de C). (ponto 4 dos factos provados)
O trajecto de acesso directo à via pública do prédio referido em C) faz-se através do prédio referido em D) da seguinte forma:
Entrada por um portão, com 4 metros de largura, situado no limite poente de D); continua por uma faixa de terreno compacto, com 9 metros de comprimento por 4 metros de largura, no sentido poente/nascente, até à inserção junto a um anexo; depois deste flecte ligeiramente para norte, contornando esse anexo, prosseguindo numa faixa de terreno delimitada e pavimentada em calçada, com 1,85 metros de largura mínima e 12,90 metros de comprimento, até atingir o prédio de C). (ponto 5 dos factos provados)
Há mais de 50 anos que esse caminho vem sendo usado para passar com carro de tracção animal, tractor e máquinas agrícolas entre a via pública e o prédio referido em C) dos factos assentes. (ponto 6 dos factos provados)
Ao longo dos mais de 50 anos de existência, sempre a referida faixa de terreno descrita no anterior artigo 5° se apresentou cavada, trilhada em duro. (ponto 7 dos factos provados)
A utilização desse caminho verificava-se apenas em duas épocas do ano, na altura da preparação dos terrenos e sementeiras, pelo mês de Maio, e na época das colheitas, durante o mês de Outubro, e apenas para esse efeito. (ponto 16 dos factos provados)
No ponto onde tal referido caminho se inicia, junto a via pública, está instalado um portão. O portão referido encontrava-se habitualmente fechado sem chave, o que permitia aos herdeiros da A. e antepossuidores do prédio referido em C) abri-lo nos períodos em que tinham o direito de passar quando tinham necessidade de aceder de e para o seu prédio. (pontos 9 e 10 dos factos provados)
Das vezes que encontrou o portão fechado à chave, Maria Pinheiro Gonçalves avisou o Réu Eduardo que prontamente o abriu. (ponto 11 dos factos provados)
A servidão referida foi constituída na altura em que ambos os prédios referidos em C) e D) dos factos assentes, pertenciam ao mesmo dono. E, à data da separação do domínio sobre esses prédios, existiam os sinais visíveis e permanentes referidos no anterior artigo 7°. (pontos 31 e 32 dos factos provados)
Perante a matéria de facto apurada, parece evidente a existência, ao tempo da separação dos domínios dos prédios hoje da autora e dos réus/reconvintes, de sinais visíveis e permanentes que atestam uma estável relação de serventia do prédio agora da autora, (Entrada por um portão, com 4 metros de largura, situado no limite poente de D); continua por uma faixa de terreno compacto, com 9 metros de comprimento por 4 metros de largura, no sentido poente/nascente, até à inserção junto a um anexo; depois deste flecte ligeiramente para norte, contornando esse anexo, prosseguindo numa faixa de terreno delimitada e pavimentada em calçada, com 1,85 metros de largura mínima e 12,90 metros de comprimento, até atingir o prédio de C), através do prédio hoje dos réus. Há mais de 50 anos que esse caminho vem sendo usado para passar com carro de tracção animal, tractor e máquinas agrícolas entre a via pública e o prédio referido em C), e ao longo desses mais de 50 anos de existência sempre a referida faixa de terreno se apresentou cavada, trilhada em duro.
Na verdade, a constituição da servidão por destinação do pai de família depende, como acima se expendeu, da simples existência de sinais que, no momento da separação dos prédios, revelem uma situação objectiva de concessão (ou possibilidade de concessão) de uma utilidade por um em benefício do outro.
Razão pela qual “não é preciso demonstrar a intenção do proprietário no sentido de constituir uma eventual servidão futura, nem mesmo de criar o condicionalismo de sujeição de um prédio a outro. É suficiente a vontade ou consciência de criar uma situação de facto estável e duradoura, uma situação que objectivamente corresponda à duma servidão aparente”. (Mário Tavarela Lobo, ob. e vol. cits., pág. 233).
De qualquer modo, e no caso em apreço, ambos os prédios antes da separação pertenceram ao mesmo dono, e a servidão em questão foi constituída quando a sua titularidade era assim encabeçada, e dos sinais visíveis e permanentes apontados se pode inferir, à data dessa separação, uma relação de serventia de um prédio relativamente ao outro. Ilação que, manifestamente, se extrai na situação sub judice, o uso exclusivo do trajecto de travessia para fins que, em si, revelavam serventia ou dependência, o seu aproveitamento como passagem. Sendo certo que também resultou apurado que, à data da dita separação dos domínios, esses sinais visíveis e permanentes já existiam.
Não temos, por isso, dúvidas de que, sobre o prédio dos réus, através do trajecto acima identificado, se constituiu, a favor do prédio da autora uma servidão de passagem por destinação do pai de família, com a extensão, exercício e o objecto apurados, ou seja, com carros de tracção animal, tractor e máquinas agrícolas, apenas em duas épocas do ano, no mês de Maio, para preparação de terrenos e sementeiras, e durante o mês de Outubro, para a colheita dos produtos, e apenas para esse efeito.”
3. E do respetivo dispositivo que:
“Pelo exposto, decido:
A) Declarar que o “prédio rústico, sito no lugar de Ponte de Mouro, freguesia de Barbeita, concelho de Monção, composto de terreno de cultura e vinha em ramada, com área de 4.250 m2, a confrontar de norte com herdeiros de Júlio M, Eduardo R e Daniel L, do sul com caminho, do nascente com Rio Mouro e do poente com Eduardo R e Daniel L, descrito na Conservatória do Registo Predial de Monção sob o n.º 1.281/Barbeita, e inscrito à matriz predial respectiva sob o artigo 509º da indicada freguesia de Barbeita” pertence, em propriedade, à Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de Júlio M, falecido no dia 29/07/1992, na freguesia de Barbeita, concelho de Monção e, assim, em comum e sem determinação de parte ou direito, aos requerentes Maria P, Maria F, Carlos A, Alda M e à chamada Vitalina G;
B) Declarar que sobre o prédio dos RR. Eduardo R e mulher Maria C, e Daniel L e mulher Maria I, identificado na alínea D) dos factos assentes, e a favor do prédio da A., está constituída uma servidão de carro de tracção animal, tractor e máquinas agrícolas, a exercer em duas épocas do ano: durante o mês de Abril (vide despacho rectificativo de fls. 366 e 367), para preparação dos terrenos e sementeiras; durante o mês de Setembro (vide despacho rectificativo de fls. 366 e 367), para fazer as colheitas, sendo essa serventia feita através da faixa de terreno que descreve a resposta ao quesito 5º;
C) Julgar improcedente tudo o demais peticionado pela autora neste processo, com a consequente absolvição da ré;
D) Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional e reconhecer que os réus/reconvintes Eduardo R e mulher Maria C, e Daniel L e mulher Maria I são donos e legítimos possuidores do seguinte imóvel “prédio rústico, sito no lugar de Ponte de Mouro, freguesia de Barbeita, concelho de Monção, com área de 1.200 m2, a confrontar de norte com caminho público, sul com caminho, do nascente com a herança Autora e do poente com Viriato B, inscrito à matriz predial respectiva sob o artigo 510º da indicada freguesia de Barbeita”;
E) Julgar improcedente tudo o demais peticionado pelos réus/reconvintes neste processo, com a consequente absolvição da autora/reconvinda.”
*
Apreciando e decidindo.
I) – Nulidade da sentença recorrida:
O Autor, ora recorrente, invoca a nulidade da sentença por violação do disposto no artº. 1551º do Código Civil e no artº. 615º, nº. 1, al. b) e c) do NCPC, e ainda por violação da norma vertida no artº. 605º do NCPC, alegando, em síntese, que:
- os aqui RR., com a instauração da acção nº. 416/06.9TBMNC supra referida, pretenderam a alteração da servidão de passagem existente para nova servidão de conteúdo mais amplo, concedendo aos ora AA. fundamento para intentarem a presente acção, lançando mão do disposto no artº. 1551º, nº. 1 do Código Civil;
- é pressuposto lógico da aplicação do supra citado preceito legal a existência de servidão anterior, a obrigação de ceder passagem anterior à possibilidade do proprietário do prédio serviente usar da faculdade potestativa do nº. 1 do artº. 1551º do Código Civil;
- no caso em apreço, só não goza da faculdade prevista no mencionado preceito legal o prédio onerado com uma servidão legal de passagem, e não o que está onerado com uma qualquer servidão de passagem.
Dispõe o artº. 1551º, nº. 1 do Código Civil que os proprietários de quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos podem subtrair-se ao encargo de ceder passagem, adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor.
Como decorre do disposto no artº. 615º, nº. 1 do NCPC, e no que para o caso releva, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão [alínea b)], ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão tomada ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível [alínea c)].
A nulidade prevista na mencionada al. b) do nº. 1 do artº. 615º do NCPC traduz-se na falta de motivação da sentença, ou seja, na falta de exteriorização dos fundamentos de facto e de direito que os nºs 3 e 4 do artº. 607º do NCPC impõem ao julgador.
Como é sabido, constitui entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência que tal nulidade apenas se verifica quando haja falta absoluta, ausência total de fundamentação de facto e de direito que justificam a decisão, e não quando a fundamentação seja simplesmente deficiente, incompleta, medíocre ou mesmo errada, pois neste caso afecta apenas o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a tão só ao risco de ser revogada ou alterada em sede de recurso, mas não produz nulidade (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140 e Prof. Lebre de Freiras, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, pág. 707; acórdãos do STJ de 21/12/2005, proc. nº. 05B2287 e de 19/09/2006, proc. nº. 06A2230; acórdãos da RE de 8/04/2014, proc. nº. 1166/13.5TBABT-C e de 19/06/2014, proc. nº. 70/09.6TBMMN, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No que se refere à nulidade prevista na alínea c) do nº. 1 do artº. 615º do NCPC – que se traduz na oposição entre os fundamentos e a decisão ou na ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – constitui entendimento pacífico da doutrina e da nossa jurisprudência que a oposição entre os fundamentos e a decisão só se verifica quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença expressa; ou seja, o raciocínio do juiz aponta num determinado sentido e o dispositivo conclui de modo oposto ou diferente (cfr. Prof. Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 141; acórdãos do STJ de 23/11/2006, proc. nº. 06B4007 e da RE de 19/01/2012, proc. nº. 1458/08.5TBSTB, de 17/01/2013, proc. nº. 613/08.2TBVNO-F e de 19/12/2013, proc. nº. 538/09.4TBELV, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica, ou, muito menos, com o erro na interpretação desta; quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante um erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se (cfr. Prof. Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 704).
Quanto à ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, tem entendido a doutrina que “a sentença é obscura quando contém um passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos” (cfr. Pais do Amaral, Direito Processual Civil, 11ª ed., Agosto de 2013, Almedina, pág. 400).
Ainda sobre esta matéria escreve o Juiz Conselheiro Francisco Manuel Ferreira de Almeida (in Direito Processual Civil, Vol. II, Abril de 2015, Almedina, pág. 371) o seguinte: «Diz-se que a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade: de ambiguidade quando algumas das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante do 2º segmento da al. c) do nº. 1 do artº. 615º, se tais vícios tornarem a “decisão ininteligível” ou incompreensível».
Ora, analisada a sentença recorrida verifica-se que nela consta a indicação dos factos provados tidos como relevantes para a decisão da causa, a fundamentação de tais factos dados como assentes (com base na certidão da sentença proferida no aludido processo nº. 416/06.9TBMNC junta aos autos) e a subsunção da matéria de facto aos preceitos legais tidos por aplicáveis, que conduzem à decisão tomada, num silogismo lógico e claro, perfeitamente compreensível aos seus destinatários quanto às conclusões alcançadas e às razões subjacentes à formação da convicção do julgador, não se podendo, por isso, afirmar que na sentença recorrida não foram especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão tomada.
Por outro lado, também não se vislumbra que os fundamentos da decisão sob escrutínio estejam em oposição com esta ou que tenha ocorrido alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Ademais, analisando a decisão recorrida entendemos que o Tribunal “a quo” procedeu a um correcto enquadramento legal e a uma correcta aplicação do normativo constante do artº. 1551º, nº. 1 do Código Civil.
Senão, vejamos:
A razão de ser da norma do nº. 1 do artº. 1551º do Código Civil está no facto de a lei entender que a servidão de passagem não é absoluta, pelo que ninguém deve ser obrigado a suportá-la no caso dela representar um encargo excessivo, desproporcional e injusto sobre o prédio serviente, tendo em conta a especial natureza deste. É que tratando-se de “quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos”, entendeu o legislador atribuir ao dono desses prédios (servientes) o direito de afastar o ónus da servidão de passagem sobre eles, adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor (cfr. acórdão da RP de 7/04/2005, proc. nº. 0531170, acessível em www.dgsi.pt).
Por modo a fazer uso desta faculdade, é fulcral que sobre o prédio serviente se pretenda vir a constituir, a favor do prédio dominante, uma servidão legal, ou seja, uma servidão a favor de um prédio encravado no sentido definido pelo artº. 1550º, nº. 1 do Código Civil, isto é, de prédio sem comunicação com a via pública ou com comunicação insuficiente (cfr. acórdão do STJ de 1/02/1995, na CJ/STJ, Ano III - Tomo I, pág. 60).
Ora, como ficou assente no ponto 2 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida - que transcreve o que ficou decidido no processo nº. 416/06.9TBMNC, em relação à servidão de passagem que aqui nos ocupa - a servidão de passagem que efectivamente onera o prédio serviente (pertencente ao recorrente) foi constituída há mais de 50 anos, quer por destinação do pai de família, quer por usucapião, numa altura em que ambos os prédios do recorrente e dos recorridos pertenciam ao mesmo proprietário.
Assim, perante esta realidade e tendo em linha de conta o acima exposto, não subsistem dúvidas que a servidão de passagem que onera o prédio do recorrente se assume como uma servidão voluntária (quer por destinação do pai de família, quer por via da usucapião) e não como uma servidão legal.
Daí que o Tribunal “a quo” tenha entendido que a disciplina do artº. 1551º do Código Civil, é aplicável apenas às servidões legais de passagem e que resulta claramente do nº. 1 daquele preceito legal que o direito (potestativo) de adquirir o prédio encravado visa impedir a constituição da servidão, extinguindo-se se não for exercido, por via reconvencional, na acção intentada para esse efeito (cfr. acórdão da RL de 26/01/2012, proc. nº. 5218/07.2TMSNT, acessível em www.dgsi.pt; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 639), referindo-se na sentença recorrida que, nascendo a servidão por destinação do pai de família no momento da separação dos prédios, “não faria qualquer sentido vir posteriormente invocar o direito potestativo conferido pelo artigo 1551º, com o intuito de obstar à constituição de uma servidão que já se acha constituída (o mesmo valendo para a constituição da servidão por via originária, por usucapião)”, o que determinou que julgasse improcedente o pedido formulado pelos Autores.
Com efeito, o que acontece “in casu” é que o recorrente discorda da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, sendo que isso não é motivo de nulidade mas sim de apreciação de mérito.
Na verdade, a decisão recorrida é o corolário lógico dos fundamentos em que assenta - ou seja, o Tribunal “a quo” enunciou os factos que considerou provados e para ele, esses mesmos factos são fundamento da decisão que proferiu - por isso, não se vislumbra a existência da invocada nulidade, tratando-se, quando muito, de uma questão de erro de julgamento a ser tratada em momento próprio.
Quanto à invocada nulidade da sentença por violação do artº. 605º do NCPC, não se vislumbra como a mesma poderá padecer deste vício que lhe é apontado pelo recorrente.
Como resulta deste preceito legal, os princípios da imediação e da plenitude – e, bem assim, como corolário destes, o princípio da plena assistência do juiz – impõem que toda a prova se realize perante o tribunal de forma directa e que só possam intervir na decisão de facto e de direito os juízes que tenham assistido a todos os actos de instrução e de discussão praticados.
Merecendo tal entendimento pleno acolhimento no seio do nosso ordenamento jurídico, a principal alteração a ele imposta pela entrada em vigor da Lei nº. 41/2013 de 26/6, prendeu-se com o facto de este princípio da plenitude da assistência se passar a estender à prolação da sentença e não somente à decisão da matéria de facto.
Ora, conforme se alcança dos autos, a Mª Juíza que proferiu a sentença ora colocada em crise pelo recorrente, foi quem compulsou o processo e todos os elementos de prova para ele carreados e quem também, na sequência de tal análise, procedeu à fixação da matéria dada como provada e aplicou o direito.
Em face do acima exposto, entendemos que a sentença recorrida não padece das nulidades que lhe são apontadas, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto pelo Autor.
*
II) – Saber se é aplicável o direito conferido pelo artº. 1551º do Código Civil no caso de constituição de servidão de passagem, quer por destinação do pai de família, quer por usucapião:
O direito cujo exercício o ora recorrente pretende que lhe seja reconhecido encontra-se previsto no mencionado artº. 1551º, nº. 1 que está integrado na Secção I (Servidões Legais de Passagem), do Capítulo III (Servidões Legais), do Título VI (Das Servidões Prediais) do Código Civil e consubstancia-se na atribuição, aos proprietários de quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos, da faculdade de estes se poderem subtrair ao encargo de ceder passagem, adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor.
Conforme se alcança das alegações de recurso e respectivas conclusões, o recorrente procura sustentar a tese de que os ora RR./recorridos, por via da acção nº. 416/06.9TBMNC, pretenderam uma “alteração profunda da servidão existente” para nova servidão de conteúdo mais amplo e concederam aos ora AA. fundamento para intentarem a presente acção, lançando mão do disposto no nº. 1 do artº. 1551º do Código Civil.
Entende, ainda, o recorrente que é pressuposto lógico da aplicação do supra citado preceito legal a existência de servidão anterior e, no caso em apreço, só não goza da faculdade prevista naquele artigo o prédio onerado com uma servidão legal de passagem, e não o que está onerado com uma qualquer servidão de passagem.
Porém, salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.
Conforme resulta da certidão junta aos autos, o que os ora recorridos, efectivamente, pretenderam com a instauração da mencionada acção nº. 416/06.9TBMNC, foi apenas que fosse reconhecido judicialmente que se encontrava constituída a seu favor uma servidão voluntária de passagem, cujos exactos contornos se apuraram no decorrer daquela acção, e não que se procedesse a uma alteração dessa servidão.
Nesta conformidade, não tendo os ora recorridos procurado promover uma alteração de uma servidão de passagem já legalmente existente, e tendo estes fundamentado o pedido que formularam na existência de uma servidão voluntária (e não legal, na acepção do nº. 2 do artº. 1547º do Código Civil), não pode o ora recorrente exercer o direito (potestativo) consagrado do nº. 1 do artº. 1551º do mesmo Código.
Relacionado com esta matéria, perfilhamos a posição defendida no acórdão da Relação de Lisboa de 24/09/2009 (proc. nº. 2574/04.8TVLSB, acessível em www.dgsi.pt), onde se refere que “O regime do artigo 1551º do Código Civil só é invocável perante uma servidão legal de passagem, imposta por sentença judicial ou decisão administrativa, e não já face a uma servidão constituída por destinação de pai de família, como a dos autos, que se radica num acto voluntário (ainda que presumido, de forma iniludível), não tendo, nessa medida, a Ré o direito a tal aquisição forçada ou, sequer, a qualquer indemnização”.
Esta posição surge ainda reforçada pelo acórdão da Relação do Porto de 7/04/2005 supra citado, que se adapta perfeitamente ao caso dos autos, segundo o qual carecem os AA. do direito expropriativo previsto no artº. 1551º, nº. 1 do Código Civil, uma vez que o seu prédio já se encontrava, à data da instauração da presente acção, sujeito à servidão de passagem, quer por usucapião, quer por destinação do pai de família, servidão essa que veio a ser reconhecida judicialmente.
Complementando este entendimento, afirma-se naquele acórdão da Relação do Porto o seguinte: “Temos por correcto o entendimento que a faculdade prevista no art. 1551º, nº 1 do Cód. Civil apenas pode fazer-se valer no caso de ainda se não encontrar já constituída a servidão legal de passagem. [Sendo certo, também, obviamente, que o disposto no artº 1551º tem como pressuposto a existência da obrigação de ceder passagem - e por isso, se esta obrigação não existir não pode o dono do prédio adquirir o prédio encravado]. O mesmo é dizer que o direito potestativo de adquirir o prédio encravado tem de ser invocado num momento em que o direito potestativo de impor a servidão de passagem não foi ainda actuado pelo dono do prédio dominante ou numa altura em que não está ainda constituída ou reconhecida qualquer servidão”.
Aliás, este direito (faculdade) de o proprietário do prédio serviente lançar mão daquele preceito deve ser exercido antes de constituído o direito de servidão de passagem, “extinguindo-se se não for exercido, por via reconvencional, na acção intentada para esse efeito” (cfr. acórdão da RC de 30/10/1990, CJ. Ano XV - Tomo IV, pág. 85 e Parecer do Prof. Menezes Cordeiro sob o tema “Servidões Legais e Direito de Preferência” de 8/08/1988, publicado na CJ. Ano XVII – Tomo I, pág. 63).
Por outro lado, os Autores, em momento algum dos seus articulados, alegaram que a servidão de passagem que onera o seu prédio constitui uma servidão legal de passagem nos termos definidos pelos artºs 1547º, nº. 1 e 1550º, nº. 1 ambos do Código Civil. Aliás, conforme consta do artº. 39º da petição inicial, os AA. alegaram que o prédio dos RR. teria toda a possibilidade de ter comunicação com a via pública se estes não tivessem, alegadamente, tapado um portão que, também alegadamente, permitiria que essa ligação fosse estabelecida.
Perante o alegado pelos AA. de que aquele prédio teria a possibilidade de ter comunicação com a via pública, ter-se-á de concluir que não poderiam aqueles pretender lançar mão do dispositivo do supra citado artº. 1551º do Código Civil, uma vez que estes não caracterizaram o prédio dos RR. como um prédio encravado.
Por tudo o que atrás se deixou exposto, entendemos que bem andou o Tribunal “a quo” ao considerar afastado o uso por parte dos AA. do direito (potestativo) consagrado no artº. 1551º, nº. 1 do Código Civil, não merecendo, por isso, qualquer censura a sentença recorrida.
Nestes termos, improcede o recurso de apelação interposto pelo Autor Eduardo R.
Em face da improcedência do recurso interposto pelo Autor, fica prejudicada a apreciação do pedido de ampliação do objecto do recurso deduzido pelos RR. a título subsidiário.
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SUMÁRIO:
I) – A razão de ser do artº. 1551º do Código Civil está no facto de a lei entender que a servidão de passagem não é absoluta, pelo que ninguém deve ser obrigado a suportá-la no caso dela representar um encargo excessivo, desproporcional e injusto sobre o prédio serviente, tendo em conta a especial natureza deste.
II) - O regime do citado artº. 1551º do Código Civil só é invocável perante uma servidão legal de passagem, imposta por sentença judicial ou decisão administrativa, e não já face a uma servidão constituída por destinação do pai de família, como a dos autos, que se radica num acto voluntário (ainda que presumido, de forma iniludível), não tendo, nessa medida, os Autores direito a tal aquisição forçada ou, sequer, a qualquer indemnização.
III) – Resulta do nº. 1 do artº. 1551º do Código Civil que o direito (potestativo) de adquirir o prédio encravado visa impedir a constituição da servidão, extinguindo-se se não for exercido, por via reconvencional, na acção intentada para esse efeito.
IV) - O direito potestativo de adquirir o prédio encravado, ao abrigo daquele artº. 1551º do Código Civil, tem de ser invocado num momento em que o direito potestativo de impor a servidão de passagem não foi ainda actuado pelo dono do prédio dominante ou numa altura em que não está ainda constituída ou reconhecida qualquer servidão.

III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Autor Eduardo R e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Guimarães, 24 de Novembro de 2016 (1 a 30/6 – baixa médica da relatora; 16/7 a 31/8-férias judiciais)
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)
(Maria Cristina Cerdeira)
(Espinheira Baltar)
(Eva Almeida)