Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7074/18.6T8BRG.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO REGISTO
MINISTÉRIO PÚBLICO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Só a estrita impugnação do ato de registo e, por via disso, a eventual afetação da fé pública que enforma os correspondentes atos (e que visa a salvaguarda da segurança jurídica inerente à fé pública que os registos oficiais devem inspirar) poderá explicar a atribuição de legitimidade ao Ministério Público para propor uma ação judicial de declaração de nulidade do registo, tal como taxativamente prevista nos artigos 16.º-B, n.º 3, e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial.
II- Nestes casos, o pedido só pode visar a declaração de uma nulidade de um ato de registo, assente por isso nas concretas causas objetivas legalmente enunciadas e determinativas do vício registal, pelo que a ação correspondente configura uma ação de “registo”.
III- Ao interesse público traduzido na fidedignidade do registo importa apenas que sejam expurgados os vícios do registo após o que permanecerá como titular inscrito o que resultar do último registo válido, só nesta medida resultando reflexamente protegido o interesse particular daquele que aproveita do facto registado.
IV- Perante a invocação do direito de propriedade exclusiva sobre um concreto veículo automóvel, e estando em causa pedido expresso de declaração ou de reconhecimento da existência de um direito a favor de quem não é parte no processo, nem está regularmente representado no mesmo, conforme configuração dada à ação pelo autor, importa reconhecer que o objeto da ação não se insere no âmbito direto da prossecução de interesses coletivos ou genericamente tutelados pelo direito, antes implicando o exercício de direito dependente de legitimação singular pelo correspondente titular.
V- Daí que face aos termos e aos pedidos concretamente enunciados pelo autor na petição inicial se deva concluir que o Ministério Público atua fora das suas atribuições, carecendo efetivamente de legitimidade processual para demandar os réus nos presentes autos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

O Ministério Público instaurou ação de processo comum contra Herdeiros de D. D., A. L. e M. C., formulando os seguintes pedidos:

a) se declare que C. S. é o legítimo proprietário do veículo da marca SAME, com a matrícula EV, quadro ... e motor ..., que adquiriu a X - Sociedade ... de Máquinas Agrícolas, Lda., e cuja propriedade se encontra registada a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel pela apresentação n.º .. de 03-06-1978; e, b) em consequência, se declare a nulidade dos registos feitos a coberto das apresentações: - n.º 4 de 13-05-1986 - registo de propriedade a favor de D. D.; - n.º 12 de 07-10-1996 - registo de propriedade a favor de A. L.; - apresentação n.º .., de 27-07-2006 - registo de propriedade a favor de M. C.; c) se ordene o cancelamento das supra referidas transcrições.

Para tanto, alegou, em síntese:
- o trator com a marca SAME, quadro n.º ... e motor ... foi inscrito no registo automóvel pela apresentação n.º 6 de 9-11-1977 a favor de X-Sociedade ... de Máquinas Agrícolas, Lda.;
- pela apresentação n.º 9 de 03-06-1978 foi inscrita no registo automóvel a propriedade do veículo atrás referido a favor de C. S., por compra verbal a X-Sociedade ... de Máquinas Agrícolas, Lda., encontrando-se presentemente à guarda de um dos herdeiros de C. S., sua filha M. J.;
- o trator marca SAME, quadro ..., motor ... foi igualmente inscrito no registo automóvel, desta feita pela apresentação n.º 4 de 13-05-1986, sob a matrícula EV, a favor de D. D., por compra a J. J..
- o primeiro veículo indicado pelo autor não foi vendido nem entregue por C. S. a J. J., sendo que com a apresentação n.º 4 de 13-05-1986 e correspondente pedido de registo não foi anexado qualquer documento identificativo do veículo cuja propriedade se pretendia registar, nomeadamente o título de propriedade do referido veículo, sendo falso o requerimento para registo de propriedade do veículo a favor de D. D. porquanto J. J. nunca comprou o veículo acima referido e o C. S. nunca entregou o veículo com a matrícula EV, quadro n.º ... e motor n.º ... a J. J., não se tratando do mesmo veículo cujo registo foi requerido pela apresentação n.º 4 de 13-05-1986, sendo por isso, nulo o registo, como o são os relativos às subsequentes apresentações pois ao veículo de matrícula EV correspondeu sempre o quadro n.º ... e o motor nº ..., não tendo nunca sido atribuída a referida matrícula a veículo com o quadro n.º ....
O réu M. C. contestou, suscitando, além do mais, a ilegitimidade passiva por não figurar da ação um dos titulares da relação material controvertida, J. J., o suposto (primeiro) proprietário do veículo trator de marca SAME, com matricula EV, n.º de quadro ... e de motor o n.º ..., após o que veio o autor deduzir incidente de intervenção principal de J. J., o que foi deferido.
Foi citado o chamado J. J., o qual aderiu à contestação já apresentada pelo réu M. C..
Comprovado o óbito do chamado J. J. foram habilitados os respetivos sucessores para os termos da presente ação.
Findos os articulados foi o autor convidado a esclarecer o alcance dos pedidos formulados atenta a eventual ilegitimidade ativa do Ministério Público face aos mesmos, vindo o Ministério Público reiterar os pedidos formulados e a respetiva legitimidade para propor a presente ação em face da relação material controvertida configurada na petição inicial.
Em contraditório face aos esclarecimentos prestados pelo autor vieram os intervenientes/habilitados M. J. e M. L. pugnar pela ilegitimidade processual ativa do Ministério Público na presente ação por atuar fora das suas atribuições e competências, sustentando que a prossecução do interesse público implicaria que o autor visasse a fidedignidade do registo automóvel e não antes, e em primeira instância, a declaração da titularidade do veículo de matrícula EV a favor de C. S., tanto mais que o registo automóvel nem sequer é constitutivo de direitos, não existindo norma legal expressa que atribua ao Ministério Público competência em matéria de defesa dos interesses particulares prosseguidos na presente ação.
Fixado o valor da ação, foi proferido despacho saneador no qual o Tribunal a quo julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, entendendo que os pedidos não permitem enquadrar a atuação do Ministério Público em nenhuma das alíneas do respetivo Estatuto, em consequência do que determinou a absolvição dos réus da instância.

Inconformado, o autor apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que julgue improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade e declare o Ministério Público parte legítima, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1.ª) A legitimidade da intervenção do Ministério Público para propor acções que tenham por objecto a validade do Registo decorre das suas competências na defesa do Estado Colectividade, nos termos dos artigos 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, 16.º-B e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial, aplicável ao Registo automóvel por força do disposto no artigo 29.º, do Decreto n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, e 30.º, do Código de Processo Civil.
2.ª) É do interesse do Estado Colectividade que os registos oficiais da situação jurídica dos veículos a motor sejam autênticos, tutelando-se, em primeiro lugar, os interesses de terceiros indeterminados e do público e, reflexamente, o interesse privado daquele que aproveita do facto registado.
3.ª) O Ministério Público estruturou e configurou a Petição Inicial destinada à declaração de nulidade do registo assentando, no essencial, na premissa de que o requerimento apresentado por D. D., na Conservatória de Registo Automóvel, a 13-05-1986, para registo de aquisição a seu favor, por compra, do tractor com a matrícula EV é falso, por dois motivos:
(i) porque quem constava no registo como seu proprietário – C. S. – o não transmitira a quem quer que fosse;
(ii) e porque nesse requerimento se fez corresponder a matrícula EV ao quadro n.º ... e ao motor n.º ..., tendo este o quadro n.º ... e o motor ... (fls. 10 e artigos 6.º e 12.º, da PI).
4.ª) A declaração de falsidade da Apresentação de 13-05-1986 pressupõe que o legitimo proprietário fosse C. S. e não, como se fez constar falsamente do registo, D. D..
5.ª) Caso o petitório do Ministério Público fosse “estritamente privado”, como se diz ser na douta decisão recorrida, sempre a consequência do primeiro pedido seria a condenação dos RR. a restituírem o tractor ao seu legitimo proprietário e não, como se pediu, a declaração de nulidade dos registos subsequentes.
6.ª) Tanto assim é que, existindo dois tractores com a mesma matrícula e com diferentes números de quadro e de motor, é incontrovertido qual deles pertença a quem, não se alcançando sequer que da procedência da acção resultem consequências no património dos RR.
7.ª) Procedendo o pedido, tal-qual vem formulado, assegurar-se-á a autenticidade do Registo Automóvel e preservar-se-á a fé pública que o mesmo deve inspirar em todos os seus elementos e foi para alcançar tais utilidades, que consubstanciam interesses públicos cuja realização está a cargo do Ministério Público, que o pedido foi formulado nos aludidos termos.
8.ª) Não é por a procedência da acção ter reflexos na esfera jurídica dos particulares que o Ministério Público se priva de legitimidade para agir.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, determinando-se a revogação do douto despacho ora recorrido, substituindo-se por outro que julgue improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade e declare o Ministério Público parte legítima.
V.as Ex.as, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça!»
O réu M. C. apresentou resposta na qual defende a manutenção do decidido.
Também os intervenientes/habilitados - M. J. e M. L. - apresentaram contra-alegações, sustentando a manutenção do decidido.
O recurso foi então admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, tendo o recurso sido admitido nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto do presente recurso circunscreve-se a aferir se o Ministério Público detém legitimidade processual para a instauração da ação em referência.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda as seguintes incidências processuais que se consideram devidamente documentadas nos autos:
1.1.1. Mediante petição inicial apresentada a 21-12-2018 o Ministério Público instaurou a presente ação alegando, além do mais, o seguinte:
1- Pela apresentação nº 6 de 9-11-1977 foi inscrita no registo automóvel a favor de X-Sociedade ... de Máquinas Agricolas, Lda a propriedade do veículo (tractor)de marca SAME, com a matricula EV, quadro nº ... e motor nº ...- cfr doc. nº1 e doc. nº2.
2- Pela apresentação nº 9 de 03-06-1978 foi inscrita no registo automóvel a propriedade do veiculo atrás referido a favor de C. S. por compra verbal a X-Sociedade ... de Máquinas Agricolas, Lda.- cfr. Docs nºs. 2 e 3.
3- C. S. nunca vendeu o referido veiculo.
4- C. S. faleceu em --12-2007 - cfr. Doc. nº.
5- O referido veiculo encontra-se à guarda de um dos seus herdeiros, sua filha M. J., na sua residência, sita em Rua …, Ponte de Lima .- cfr. doc. nº5 a 7. Porém,
6- Pela apresentação nº 4 de 13 de Maio de 1986, foi inscrita no registo automóvel a propriedade do veiculo tractor de marca de marca SAME, com a matricula EV, quadro nº ... e motor nº ... a favor de D. D. por compra a J. J.- cfr. Doc. nº 8.
7- A essa apresentação e pedido de registo não foi anexado qualquer documento identificativo do veiculo cuja propriedade se pretendia registar.- cfr. Doc. nº8.
8- C. S. não conheceu J. J..
9- C. S. não vendeu o veiculo com a matricula EV a J. J..
10- C. S. nunca entregou o veiculo com a matricula EV, quadro nº ... e motor nº ... a J. J..
11- O veiculo referido no artigo 6º desta p.i. não é o mesmo veiculo que C. S. comprou a X-Sociedade ... de Máquinas Agricolas, Lda e melhor identificado no artº 1º desta p.i..
12- J. J. nunca comprou o veiculo acima referido, pelo que o requerimento para registo da propriedade do veiculo a favor de D. D. é falso.
13- Pela apresentação nº2 de 08-01-1993 foi requerida por D. D. a emissão de duplicado de titulo de registo de propriedade do veiculo com a matricula EV, por extravio do titulo.- cfr. Doc. nº9.
14- Esse titulo de registo de propriedade veio a ser emitido, constante do mesmo, o numero de quadro ... , uma vez que o registo da aquisição de do veiculo tractor, marca SAME, com a matricula EV, quadro nº ... e motor nº ... por D. D. tinha erradamente sido efectuado por referência ao veiculo (tractor)de marca SAME, com a matricula EV, quadro nº ... e motor nº ... .
15- Assim, D. D. vendeu o veiculo a A. L., o qual, pela apresentação nº 12 de 07 de Outubro de 1996 requereu a inscrição do registo de propriedade a seu favor, relativamente ao veículo (tractor)de marca SAME, com a matricula EV, quadro nº ... e sem identificar o numero de motor , por compra a D. D..- cfr. Doc. nº 10.
16- Pela apresentação nº2645 de 27 de Julho de 2006 foi inscrita no registo automóvel a favor de M. C. a propriedade do veículo (tractor)de marca SAME, com a matricula EV, quadro nº ... e sem identificar o numero de motor , por compra a A. L..- cfr. Doc. nº 11.
17- Do certificado de matricula respeitante ao veiculo com a matricula EV emitido consta como proprietário M. C. e o quadro é identificado com o numero ....- cfr. Doc. nºs 2, 12, 13, e 14
18- Ao veiculo de matricula EV correspondeu sempre o quadro nº ... e o motor nº ..., não tendo nunca sido atribuída a referida matricula a veiculo com o quadro nº ....- cfr. Doc. nº doc. nº14
19- Nos termos do disposto no Dec-Lei nº 54/85 de 4 de Março, na redacção vigente à data do registo da propriedade do veiculo a favor de D. D. , era já obrigatório o registo da propriedade dos veículos (artigo 5º, nº1-a) e nº2), assim como,
20- Nenhum acto sujeito a anotação no título de registo ou que tivesse por objecto a extinção ou modificação de factos nele anotados podia ser efectuado sem que o título já emitido fosse apresentado.(artº11º).
21- Ora, o registo de propriedade do veiculo a favor de D. D. por compra a J. J. é falso e foi feito sem que fosse apresentado qualquer documento, nomeadamente o titulo de propriedade do referido veiculo.- cfr. Doc. nº8
22- O registo de propriedade do veiculo de matricula EV a favor de D. D. a coberto da Ap nº 4 de 13-05-1986 deve ser declarado nulo, nos termos do disposto no artº 16º, alíneas a), b) e c) do Cod. Registo Predial, aplicável por via do artº aplicável por via do disposto no artº 29º (vigente à data dos factos e actual) do Dec-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro
23- Devendo, por isso, e consequentemente ser declarados nulos todos os registos de propriedade relativos transacções subsequentes, ou seja, os registos feitos a coberto das apresentações:
-nº 4 de 13-05-1986- registo de propriedade a favor de D. D.;
- nº 12 de 07-10-1996- registo de propriedade a favor de A. L.;
- nº 2645 de 27-07-2006- registo de propriedade a favor de M. C.
24- Esse registo de aquisição também é nulo porque foi lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado, nos termos do disposto no artº 16º-b) do Cod. de Registo Predial, aplicável por via do disposto no artº 29º (vigente à data dos factos e actual) do Dec-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro.
24- O que deve ser declarado pelo Tribunal.

Nestes termos, deve a presente acção ser declarada procedente por provada:

a. Declarando-se que C. S. é o legitimo proprietário do veiculo marca SAME, com a matricula EV, quadro nº ... e motor nº ...- que adquiriu a X-Sociedade ... de Máquinas Agricolas, Lda e cuja propriedade se encontra registada a seu favor na Conservatória do Registo Automovel pela apresentação nº 9 de 03-06-1978 e,
b. Em consequência, declarar-se a nulidade dos registo feitos a coberto das apresentações:
- nº 4 de 13-05-1986- registo de propriedade a favor de D. D.;
- nº 12 de 07-10-1996- registo de propriedade a favor de A. L.;
- nº 2645 de 27-07-2006- registo de propriedade a favor de M. C..
c. Ordenando-se o cancelamento das supra referidas transcrições».

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

O recorrente, nas respetivas alegações, expressa a sua discordância quanto ao despacho saneador proferido nos autos em referência, na parte em que apreciou oficiosamente a exceção de ilegitimidade ativa, julgando-o parte ilegítima com a consequente absolvição dos réus da instância.

O despacho recorrido, na parte que entendemos relevante para o objeto da presente apelação, tem o seguinte teor:
«(…) No caso em apreço, há, ainda, de ter presente a circunstância de estar em causa ação instaurada pelo Ministério Público, cumprindo aferir se o foi no âmbito das suas atribuições e competências ou não.
Importa, neste âmbito, ter presente o Estatuto do Ministério Público, Lei 47/86, de 15 de Outubro.
De acordo com o artigo 3º da Lei 47/86, de 15 de Outubro, compete ao MP “1 - Compete, especialmente, ao Ministério Público: a) Representar o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta; b) Participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania; c) Exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade; d) Exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social; e) Assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos; f) Defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis; g) Promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade; h) Dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades; i) Promover e realizar ações de prevenção criminal; j) Fiscalizar a constitucionalidade dos atos normativos; l) Intervir nos processos de falência e de insolvência e em todos os que envolvam interesse público; m) Exercer funções consultivas, nos termos desta lei; n) Fiscalizar a atividade processual dos órgãos de polícia criminal; o) Recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa; p) Exercer as demais funções conferidas por lei. 2 - A competência referida na alínea f) do número anterior inclui a obrigatoriedade de recurso nos casos e termos da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional. 3 - No exercício das suas funções, o Ministério Público é coadjuvado por funcionários de justiça e por órgãos de polícia criminal e dispõe de serviços de assessoria e de consultadoria.”
Dir-se-á que, de acordo com os esclarecimentos prestados a atuação do Ministério Público se inscreve na alínea e) do n.º 1 do artigo 3º do EMP, contudo, se é certo que parte da alegação (causa de pedir) autoriza tal leitura, não o faz o petitório formulado, que é estritamente privado e mais se inscreve na defesa da propriedade dos alegados atuais detentores do trator descrito em 1º da PI, sendo os demais pedidos decorrentes do primeiro 3 e com ele conexionados, acrescentando-se que mesmo da leitura da causa de pedir ressalta que as nulidades apontadas aos registos cujo cancelamento é peticionado decorrem da alegada falta de título para o registo.
Mais a mais, em momento algum o MP alega que os alegados atuais detentores são incapazes ou estão ausentes.
Seja, os pedidos não permitem enquadrar a atuação do MP em nenhuma das alíneas do artigo 3º, n.º1 do EMP e a verdade é que o Tribunal está limitado pelo pedido e só no âmbito do pedido pode conhecer (cfr. artigos 3º, n.º1 e 609º, n.º1 do CPC), não podendo a interpretação dos pedidos formulados abstrair-se do sentido dos mesmos para os interpretar de forma que não tem um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento ainda que imperfeitamente expresso (cfr. 236º e 238º do CC).
Como tal, cumpre concluir, face à configuração dada à ação e, particularmente, aos pedidos formulados, que o MP atua fora das suas atribuições e competências, carecendo, pois, de legitimidade processual para demandar os réus nestes autos e até de interesse processual para tal, o que determina a absolvição dos réus da instância – cfr. artigos 576º, n.º2, 577º, al. e), 578º, todos os CPC».
Como se sabe, a lei procede à classificação das exceções entre dilatórias e perentórias (artigo 576.º, n.º 1 do CPC), estabelecendo que as primeiras obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (n.º 2 do citado preceito), enquanto as exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (artigo 576.º, n.º 3 do CPC).
Ora, a legitimidade das partes, incluindo em todas as situações em que se considere que existe preterição de litisconsórcio necessário ativo ou passivo, configura um pressuposto processual que a lei classifica expressamente como exceção dilatória, de conhecimento oficioso, e cuja verificação dá lugar à absolvição do réu da instância, sem prejuízo dos casos em que tal exceção é sanável, nos termos conjugados dos artigos 30.º, 33.º, 261.º, 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, al. e), todos do CPC.
Deste modo, no direito substantivo o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo, ao passo que como pressuposto processual (geral), ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjetivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o (1).
Assim, a questão da legitimidade tem que ser apreciada e decidida à luz do que dispõe o artigo 30.º do CPC, que reporta a legitimidade do autor ao interesse direto em demandar (n.º 1 do referido preceito), o qual, por sua vez, se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação (n.º 2 do referido preceito).
Tal como resulta da redação do n.º 3 do artigo 30.º do CPC, o legislador consagrou o critério da determinação da legitimidade em função da titularidade da relação material controvertida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial, ao dispor que «Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».
Deste modo, «[a] partir da introdução de um preceito com a redação do actual n.º 3, ficou claro que tal pressuposto processual é identificado em função da relação jurídica configurada pelo autor. Assim, avaliado tal pressuposto por um critério formal, o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva se for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica» (2).
Daí que se saliente no Ac. TRL, de 3-10-2017 (3): «A legitimidade, quer activa, quer passiva, não é, assim, algo fixo, variando com a natureza e o objecto da acção, tal como configurada pelo autor.
A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade».
Em conclusão, «a legitimidade processual apenas pode ser procedentemente impugnada pelo réu ou negada pelo tribunal nos casos em que o autor convoca para o processo pessoas que não são as que expõe como integrando a relação material» (4), pois ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última (5).
Porém, a par do critério residual em que assenta a legitimidade direta, pautado pela titularidade da relação controvertida tal como esta é configurada pelo autor, hipóteses há em que o próprio legislador indica quais os titulares do direito de ação ou de defesa, tal como decorre do segmento inicial do n.º 3 do artigo 30.º do CPC.
Como tal, a regra da aferição da legitimidade ativa pela titularidade do interesse direto em demandar, traduzido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, deixa de se aplicar nos casos excecionais de atribuição do direito de ação a titulares de um interesse indireto e nos de tutela de interesses coletivos e difusos (6).
Como salienta o Prof. Anselmo de Castro (7), «[e]ste fenómeno da ampliação do direito de acção verifica-se sempre que o objecto da acção se apresente como algo de prejudicial em relação às pretensões de outros sujeitos (relações conexas) ou afecte interesses públicos».
Assim, casos há em que o interesse público subjacente às ações explica que se alargue o círculo dos legitimados, e que o próprio Ministério Público tenha legitimidade para a sua propositura (8).
Todavia, quando a disponibilidade adjetiva não decorre da alegada titularidade da situação objetiva, é indispensável a atribuição legal da legitimidade, pois sem essa atribuição legal, a parte não será legítima (9).

No caso em apreciação vem invocada pelo autor a legitimidade da intervenção do Ministério Público para propor ações que tenham por objeto a validade do registo, atribuição que decorre da natureza pública do sistema registal português, que visa, primeiro que tudo, “a tutela dos interesses de terceiros indeterminados e do público e reflexamente o interesse privado daquele que aproveita do facto registado”. Para o efeito, alude o autor aos artigos 16.º-B, n.º 3 e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial, aplicáveis ao registo automóvel por força do disposto no artigo 29.º, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12-02 ( «Registo Automóvel»), preceitos que conferem expressamente ao Ministério Público a legitimidade para propor «ação judicial de declaração de nulidade do registo (…) logo que tome conhecimento do vício».
Conclui que a autenticidade dos registos oficiais e a defesa da fé pública que os mesmos devem inspirar em todos os seus elementos é do interesse do Estado. A falsidade do registo constitui uma lesão desse interesse do Estado pelo que não podem subsistir dúvidas sobre a legitimidade da intervenção do Ministério Público para propor uma ação judicial de declaração de nulidade do registo automóvel, inserida que se encontra nas competências oficiosas que lhe são conferidas pelos aludidos preceitos.
Analisada a decisão recorrida temos por evidente que o Tribunal a quo não deixou de ponderar o interesse em que se baseia o autor para instaurar a presente ação, aferindo da existência do interesse relevante que justifica a legitimidade ativa à luz dos preceitos legais antes citados - de resto, oportunamente invocados em sede de petição inicial.
Nesta medida, e tal como decorre da fundamentação vertida na decisão em referência, o Tribunal a quo não deixou de ponderar que de acordo com os esclarecimentos prestados pelo autor/Ministério Público a respetiva intervenção no processo inscreve-se na alínea e) do n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público (10) e que parte da alegação (causa de pedir) autoriza tal leitura.
Porém, o Tribunal a quo ponderou a configuração dada pelo autor à ação e entendeu que estava limitado pelo pedido e só no âmbito do pedido podia conhecer.
Deste modo, reportando-se expressamente à análise do petitório formulado, concluiu que os pedidos não permitem enquadrar a atuação do Ministério Público em nenhuma das alíneas do citado preceito do correspondente Estatuto, inscrevendo-se antes a primeira pretensão formulada na defesa da propriedade dos alegados atuais detentores do trator descrito em 1.º da petição inicial, sendo os demais pedidos decorrentes do primeiro e com ele conexionados.
Em consequência, considerou a decisão recorrida que o Ministério Público atua na presente ação fora das suas atribuições, carecendo de legitimidade processual para demandar os réus nos presentes autos.
Nas alegações da apelação, o recorrente/Ministério Público não discute que os pedidos atinentes à declaração de nulidade dos registos feitos a coberto das apresentações: - n.º 4 de 13-05-1986 - registo de propriedade a favor de D. D.; - n.º 12 de 07-10-1996 - registo de propriedade a favor de A. L.; - apresentação n.º 2645, de 27-07-2006 - registo de propriedade a favor de M. C. e de cancelamento das referidas transcrições sejam dependência do pedido formulado na al. a) do petitório: que se declare que C. S. é o legítimo proprietário do veículo da marca SAME, com a matrícula EV, quadro ... e motor ..., que adquiriu a X - Sociedade ... de Máquinas Agrícolas, Lda., e cuja propriedade se encontra registada a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel pela apresentação n.º 9 de 03-06-1978.
Ainda que o recorrente admita ter estruturado e configurado a presente lide como uma ação destinada à declaração de nulidade do ato de registo, e ao seu consequente cancelamento, alega que a declaração de falsidade do registo depende da prévia declaração de que, à data do registo feito a coberto da apresentação n.º 4 de 13-05-1986, o legitimo proprietário do veículo com a matrícula EV (que tinha o quadro n.º ... e motor n.º ...) era o citado C. S. e não, como se fez constar falsamente do registo, D. D. que o adquirira a J. J.. Em suma, sustenta que a declaração de falsidade do registo depende desse pressuposto.
Neste contexto, julgamos pertinentes, em primeiro lugar, os fundamentos invocados pelos intervenientes/habilitados, M. J. e M. L. - no âmbito da resposta apresentada às alegações da apelação - quando referem que a nulidade do registo automóvel, cuja legitimidade processual ativa é também atribuída ao Ministério Público, assenta em causas objetivas que resultem do processo da Conservatória.
Daí que ao interesse público traduzido na fidedignidade do registo importe apenas que sejam expurgados os vícios do registo após o que permanecerá como titular inscrito o que resultar do último registo válido.
Com efeito, o registo automóvel não tem eficácia constitutiva pois tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor, tendo em vista a segurança do comércio jurídico (11), bastando-se com a mera presunção estabelecida no artigo 7.º do Código do Registo Predial (12), ilidível nos termos do artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo.
Ora, atendendo à natureza das normas atributivas de legitimidade invocadas pelo apelante, concordamos com a alegação dos recorridos de que o pedido de declaração de um determinado particular individualizado como proprietário de determinado veículo extravasa, manifestamente, as atribuições legalmente conferidas ao recorrente Ministério Público pois não constitui pressuposto ou condição da nulidade do registo no âmbito e para os efeitos da ação judicial de declaração de nulidade do registo, tal como prevista nos artigos 16.º-B, n.º 3, e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial (13).

No caso em apreciação vem invocada na petição inicial a nulidade dos registos com base no artigo 16.º, als. a), b), e c), do Código do Registo Predial, alegando-se então, e no essencial, que à apresentação n.º 4 de 13-05-1986 (14), não foi anexado qualquer documento identificativo do veículo cuja propriedade se pretendia registar, concretamente o título de propriedade do referido veículo (cf. os pontos 6, 7, 19, 20, 21 e 22 da petição inicial), sendo que o veículo registado através da apresentação n.º 4 de 13-05-1986, a favor de D. D., não é o mesmo veículo a que se reporta a apresentação n.º 9 de 03-06-1978 (15). Para concluir que o J. J. nunca comprou o veículo a que se reporta a apresentação n.º 9 de 03-06-1978 sendo falso o requerimento para registo da propriedade do veículo a favor de D. D. (cf. o alegado nos pontos 11 e 12 da petição inicial).
A matéria dos vícios do registo encontra-se regulada nos artigos 14.º e ss. do Código do Registo Predial: inexistência (artigo 14.º); nulidade (artigo 16.º) e inexatidão (artigo 18.º).

No que releva para o objeto do presente recurso, importa atentar no disposto no artigo 16.º do Código de Registo Predial, com a epígrafe «Causas de nulidade», que prevê que o registo é nulo:

a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos;
b) Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado;
c) Quando enfermar de omissões ou inexatidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do objeto da relação jurídica a que o facto registado se refere;
d) Quando tiver sido efetuado por serviço de registo incompetente ou assinado por pessoa sem competência, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil e não possa ser confirmado nos termos do disposto no artigo seguinte;
e) Quando tiver sido lavrado sem apresentação prévia ou com violação do princípio do trato sucessivo».

Neste domínio, estabelece o artigo 16.º-B do Código de Registo Predial (sob a epígrafe «Invocação da falsidade dos documentos»:

1 - Os interessados podem, mediante apresentação de requerimento fundamentado, solicitar perante o serviço de registo que se proceda à anotação ao registo da invocação da falsidade dos documentos com base nos quais ele tenha sido efetuado.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, são interessados, para além das autoridades judiciárias e das entidades que prossigam fins de investigação criminal, as pessoas que figuram no documento como autor deste e como sujeitos do facto.
3 - A invocação da falsidade a que se refere o n.º 1 é anotada ao registo respetivo e comunicada ao Ministério Público, que promoverá, se assim o entender, a competente ação judicial de declaração de nulidade, cujo registo conserva a prioridade correspondente à anotação.
4 - Os registos que venham a ser efetuados na pendência da anotação ou da ação a que se refere o número anterior, que dependam, direta ou indiretamente, do registo a que aquelas respeitem estão sujeitos ao regime da provisoriedade previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 92.º, sendo-lhes aplicável, com as adaptações necessárias, os n.os 6 a 8 do mesmo artigo.
5 - A anotação da invocação de falsidade é inutilizada se a ação de declaração de nulidade do registo não for proposta e registada dentro de 60 dias a contar da comunicação a que se refere o n.º 3.

Por último, prevê o artigo 17.º do Código do Registo Predial (sob a epígrafe «Declaração da nulidade»):
1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado.
2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.
3 - A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício».

Como vimos, os vícios do registo concretamente invocados no âmbito da causa de pedir (16) enunciada na presente ação parecem assentar na alegada falsidade do requerimento para registo da propriedade do veículo a favor de D. D. (apresentação n.º 4 de 13-05-1986) (17), que deu origem ao registo impugnado, ao fazer corresponder a tal apresentação uma matrícula pré-existente, associada a um trator suscetível de individualização pelo número do seu motor, a um outro trator, que tem um outro número de motor.
Verifica-se, ainda, que associado a tal vício surge a invocação de um outro, consubstanciado na alegação de que não foi anexado qualquer documento identificativo do veículo cuja propriedade se pretendia registar, concretamente o título de propriedade do referido veículo.
Ora, quer se trate da declaração de nulidade do registo por ter sido lavrado com base em títulos falsos - artigo 16.º, al. a), do Código do Registo Predial - quer por ter sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado - artigo 16.º, al. b), do Código do Registo Predial - a lei acaba por indicar de forma expressa quem tem legitimidade para propor a correspondente ação judicial de declaração de nulidade, atribuindo indiscutivelmente legitimidade ao Ministério Público para qualquer uma delas - cf. os citados artigos 16.º-B, n.º 3, e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial.
Sucede que, nas referidas circunstâncias, o pedido só pode visar a declaração de uma nulidade de um ato de registo, assente por isso nas concretas causas objetivas legalmente enunciadas e determinativas do vício registal.
Daqui decorre que a ação correspondente configura uma ação de “registo”.
Ora, estando em causa um processo de registo, «a relação registal (diversa da relação que se estabelece entre sujeito activo e sujeito passivo que precede o acto de registo e que lhe é subjacente), estabelece-se, por um lado, entre o apresentante (pessoa que participou no procedimento registal como apresentante ou como representada deste (…) e por outro, o conservador, que vai avaliar da viabilidade da entrada no registo do facto jurídico a inscrever. É a decisão registal do conservador que está em causa nos autos» (18).
De resto, só a estrita impugnação do ato de registo e, por via disso, a eventual afetação da fé pública que enforma os correspondentes atos (e que visa a salvaguarda da segurança jurídica inerente à fé pública que os registos oficiais devem inspirar) poderá explicar a atribuição de legitimidade ao Ministério Público para propor uma ação judicial de declaração de nulidade do registo, tal como taxativamente prevista nos supra citados preceitos legais.
Com efeito, o registo destina-se, em primeira linha, à tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e só reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado (19).
Neste domínio, importa sublinhar que o facto de poder estar em causa um eventual vício extrínseco (20) não retira a qualificação da presente ação como ação de registo.

No caso vertente, vindo alegada a existência de um registo efetuado com base em título falso (alegada falsidade do requerimento para registo da propriedade do veículo a favor de D. D. - apresentação n.º 4 de 13-05-1986) ou insuficiente, resulta manifesto que a nulidade do ato de registo tem na sua base a invocada falsidade do documento (título) (21) em que aquele registo se baseou e/ou a sua insuficiência (por alegadamente não ter sido anexado qualquer documento identificativo do veículo cuja propriedade se pretendia registar, concretamente o título de propriedade do referido veículo).
Como tal, são estes os vícios cujo reconhecimento ou declaração poderão configurar-se como pressupostos essenciais da pretendida nulidade registal, pois é através do título que se testemunha de forma qualificada a ocorrência dos factos ou das declarações de vontade objeto do registo (22).

Deste modo, a eventual declaração de nulidade do registo tem subjacente o reconhecimento da nulidade (ou falsidade) do título (23) com base no qual foi lavrado o registo mas não depende da prévia declaração ou do reconhecimento judicial do direito de C. S. como legítimo proprietário do veículo da marca SAME, com a matrícula EV, quadro ... e motor ..., que adquiriu a X - Sociedade ... de Máquinas Agrícolas, Lda., como defende o recorrente.
Assim, a eventual procedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade de C. S. sobre o veículo em causa pressupõe desde logo, e a título principal, a alegação e prova dos factos integradores da correspondente forma de aquisição - originária ou derivada - atinente ao correspondente direito de propriedade de quem não é parte no processo nem está representado no mesmo, situação que não é enquadrável, nem se justifica, no estrito âmbito das causas objetivas legalmente determinativas do vício registal (24) e, por isso, fica fora do âmbito de atuação ou de tutela do Ministério Público por via das atribuições que a lei lhe confere especial e diretamente com vista à prossecução do interesse público relacionado com a fé pública dos atos de registo.
Ora, mesmo nas hipóteses em que o próprio legislador indica quais os titulares do direito de ação ou de defesa, a legitimidade processual ativa não pode deixar de aferir-se pela natureza da relação jurídica material ou subjacente tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre a causa de pedir e o pedido, sendo este, na definição legal, o efeito jurídico pretendido com a ação (artigo 581.º, n.º 4, do CPC).
Por isso, o artigo 552.º, n.º1, al. e), do CPC impõe ao autor o ónus de formular o pedido, iniciativa que é insubstituível, pois só a ele cabe solicitar a tutela jurisdicional, que não pode ser oficiosamente concedida (art. 3-1) (25).
Assim, como refere o Prof. Anselmo de Castro (26), «[n]inguém pode propor uma acção na qual se limite a expor determinada situação de facto, deixando ao tribunal a escolha das medidas a adoptar, assim como não se pode requerer ao tribunal determinada providência sem que se exponha a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade de um direito que se pretende ver tutelado. Daí que o pedido nos apareça como o círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir».
O pedido formulado pelo autor, conformando o objeto do processo, «condiciona o conteúdo da decisão de mérito, com que o tribunal lhe responderá: o juiz, na sentença, “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”, não podendo ocupar-se de outras (art. 608-2), e “não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (art. 609-1), sob pena de nulidade (art.615-1, alíneas d) e e))» (27).
Deste modo, vindo pedido a título principal se declare que C. S. é o legítimo proprietário do veículo da marca SAME, com a matrícula EV, quadro ... e motor ..., que adquiriu a X - Sociedade ... de Máquinas Agrícolas, Lda., e cuja propriedade se encontra registada a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel pela apresentação n.º 9 de 03-06-1978, e configurando-se os restantes pedidos atinentes à declaração de nulidade dos registos feitos a coberto das apresentações: - n.º 4 de 13-05-1986; n.º 12 de 07-10-1996; n.º 2645, de 27-07-2006 -, e de cancelamento das referidas transcrições, como dependência do primeiro pedido formulado, será em função deste que se deve aferir a questão da titularidade do direito de ação e, com ela, a legitimidade processual ativa para a presente causa.
Ora, perante a invocação do direito de propriedade exclusiva sobre um concreto veículo automóvel, e estando em causa pedido de expresso de declaração ou de reconhecimento da existência de um direito a favor de quem não é parte no processo, nem está regularmente representado no mesmo, conforme configuração dada à ação pelo autor, revela-se manifesto que o objeto da ação não se insere no âmbito direto da prossecução de interesses coletivos ou genericamente tutelados pelo direito, antes implicando em termos primordiais o exercício de direito dependente de legitimação singular pelo correspondente titular.
Por conseguinte, face aos termos e aos pedidos concretamente enunciados pelo autor na petição inicial resta concluir que o Ministério Público atua fora das suas atribuições, carecendo efetivamente de legitimidade processual para demandar os réus nos presentes autos, tal como considerou a decisão recorrida.
Nestes termos, improcedem as conclusões do apelante.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Síntese conclusiva:

I - Só a estrita impugnação do ato de registo e, por via disso, a eventual afetação da fé pública que enforma os correspondentes atos (e que visa a salvaguarda da segurança jurídica inerente à fé pública que os registos oficiais devem inspirar) poderá explicar a atribuição de legitimidade ao Ministério Público para propor uma ação judicial de declaração de nulidade do registo, tal como taxativamente prevista nos artigos 16.º-B, n.º 3, e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial.
II - Nestes casos, o pedido só pode visar a declaração de uma nulidade de um ato de registo, assente por isso nas concretas causas objetivas legalmente enunciadas e determinativas do vício registal, pelo que a ação correspondente configura uma ação de “registo”.
III - Ao interesse público traduzido na fidedignidade do registo importa apenas que sejam expurgados os vícios do registo após o que permanecerá como titular inscrito o que resultar do último registo válido, só nesta medida resultando reflexamente protegido o interesse particular daquele que aproveita do facto registado.
IV - Perante a invocação do direito de propriedade exclusiva sobre um concreto veículo automóvel, e estando em causa pedido expresso de declaração ou de reconhecimento da existência de um direito a favor de quem não é parte no processo, nem está regularmente representado no mesmo, conforme configuração dada à ação pelo autor, importa reconhecer que o objeto da ação não se insere no âmbito direto da prossecução de interesses coletivos ou genericamente tutelados pelo direito, antes implicando o exercício de direito dependente de legitimação singular pelo correspondente titular.
V - Daí que face aos termos e aos pedidos concretamente enunciados pelo autor na petição inicial se deva concluir que o Ministério Público atua fora das suas atribuições, carecendo efetivamente de legitimidade processual para demandar os réus nos presentes autos.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente Ministério Público - cf. artigo 4.º, n.º1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais.
Guimarães, 29 de abril de 2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Joaquim Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)



1. Cf. o Ac. TRC de 12-06-2011, relator Carlos Querido, p. 1223/10.0TBTMR.C1, acessível em www.dgsi.pt.
2. Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pg. 59.
3. Relatora Cristina Coelho, p. 20120/16.9T8LSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt.
4. Cf., Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª edição, 2015, Coimbra Editora, p. 65.
5. Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º - 4.ª edição - Coimbra, Almedina, 2018, p. 93.
6. Cf., a propósito, José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Ob. cit., p. 92.
7. Cf. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Coimbra, 1982, Livraria Almedina, p. 169.
8. Cf. Anselmo de Castro, Ob. cit. , p. 170.
9. Cf. o Ac. TRL, de 17-01-2012 relatora Maria João Areias, p. 9814/03.9TVLSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt.
10. Aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15-10, republicado pela Lei n.º 60/98, de 27-08, sendo que ao artigo 3.º, n.º1, al. e), em vigor à data em que foi proposta a ação, corresponde o atual artigo 4.º, al. h), do (novo) Estatuto do Ministério Público, - Lei n.º 68/2019, de 27-08, com a seguinte redação: «1 - Compete, especialmente, ao Ministério Público: (…) h) Assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos».
11. Cf. o artigo 1.º do Dec. Lei n.º 54/75, de 12-02 «Registo Automóvel».
12. Aplicável ao registo de automóveis.
13. Aplicável à situação dos autos por força do disposto no artigo 29.º, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12-02.
14. Através da qual foi inscrita no registo automóvel a propriedade do veículo trator de marca de marca SAME, com a matricula EV, quadro nº 7389 e motor nº 17642 a favor de D. D. por compra a J. J.- cf. Doc. n.º 8 junto com a petição inicial.
15. Pela qual foi inscrita no registo automóvel a propriedade do veículo automóvel de marca SAME, com a matrícula EV, a favor de C. S. por compra verbal a SEMAL-Sociedade … de Máquinas Agrícolas.
16. Prescreve o artigo 5.º, n.º 1 CPC, que cabe às partes, além do mais, «alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (…)», correspondendo esta ao facto ou factos jurídicos concretamente invocados para sustentar o direito que o autor se propõe fazer declarar, o efeito jurídico pretendido ou o pedido formulado - cf. artigo 581.º, n.º 4, do CPC.
17. Por alegadamente se reportar a outro veículo que não corresponde ao que foi registado através da apresentação n.º 9 de 03-06-1978 (que serviu de base ao registo a favor de C. S.).
18. Neste sentido, cf. o Ac. TRL de 11-12- 2018 relatora Micaela Sousa, p. 21390/17.0T8LSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt.
19. Cf. o Ac. TRC de 03-02-2010 relatora Cecília Agante, p. 593/09.7TBAVR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
20. Tal como se refere no citado Ac. TRL de 11-12- 2018, «um registo é extrinsecamente nulo, nomeadamente, quando tiver sido lavrado com base num título nulo ou que venha a ser anulado ou quando tiver sido lavrado com base num título falso».
21. Tal como refere Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, pgs. 280-281, «A doutrina define a falsidade como a qualidade de um documento genuíno consubstanciada na desconformidade entre o facto representativo nele contido e a realidade de todos ou de algum dos seus elementos. Daí que seja considerado falso o documento produzido com o propósito de desfigurar a realidade que se destina a reproduzir, ou porque supõe a efectivação de uma ocorrência que se não deu ou porque, referindo-se a um facto sucedido, se alterou a sua realidade por via da modificação consciente de algum dos seus elementos», esclarecendo, ainda, o referido autor que a falsidade é suscetível de se distinguir em material ou gráfica e intelectual, verificando-se este último vício «quando se menciona no documento, aquando da sua elaboração, a prática de algum acto ou facto que realmente não ocorreu».
22. Cf. o citado Ac. TRL de 11-12- 2018.
23. Ainda que, no caso, não se mostre comprovada a prévia invocação por qualquer interessado da falsidade dos documentos, mediante apresentação de requerimento fundamentado perante o serviço de registo, solicitando que se proceda à anotação ao registo da invocação da falsidade dos documentos com base nos quais ele tenha sido efetuado, nos termos previstos no citado artigo 16.º-B do Código de Registo Predial.
24. Vício que no caso em análise se reporta especificamente à idoneidade dos títulos que serviram de base a apresentação n.º 4 de 13-05-1986 - registo de propriedade a favor de D. D..
25. Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, p. 490.
26. Cf. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, Coimbra, 1981, Livraria Almedina, p. 201.
27. Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Ob. cit. , p. 490.