Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
635/10.3GEGMR.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: INJÚRIA
OFENSAS À HONRA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I – A expressão “Olha filha! Chegou o abutre”, proferida por alguém referindo-se ao seu sogro, contém uma carga depreciativa e um sentido pejorativo para o visado. É um comportamento eticamente censurável.
II – Porém, não se reveste de uma carga ofensiva suficiente para a fazer alcançar o patamar da tipicidade, justificando a atribuição de dignidade penal, se tiver sido proferida no contexto de muitas discussões exaltadas, motivadas por diferentes opiniões dos ex-membros de um casal quanto à regulação do exercício do poder paternal duma filha menor, que envolviam frequentemente os avós da criança, num envolvimento de intenso litígio.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Por sentença proferida nestes autos de processo comum n.º 635/10.3GEGMR por tribunal singular no 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, o arguido Bruno S... foi condenado pela prática, em autoria material e concurso real, de três crimes de ameaça, p. e p. pelos art.os 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa por cada um dos crimes, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 150 (cento e cinquenta)dias de multa, pela prática, em autoria material, de um crime de injúria p. e p. pelo art.º 181.º do Código Penal na pena de 80 (oitenta) dias de multa, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 430 (quatrocentos e trinta) dias de multa à razão diária de € 9,00 (nove euros), o que perfaz a pena de multa de € 3.870,00.

Na parcial procedência do pedido de indemnização civil, foi o arguido demandado condenado no pagamento, a título de danos não patrimoniais, , a quantia de € 500,00 (quinhentos euros) à demandante Maria M... e a quantia de € 800,00 (oitocentos euros) a cada um dos demandantes José M... e Ana M..., acrescidas de juros a contar da notificação do pedido até efectivo paga­mento.

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso pedindo a revogação da sentença condenatória com a consequente absolvição do recorrente.

O Ministério Público, representado pela magistrada no Tribunal Judicial de Guimarães, apresentou resposta concluindo que o recurso não merece provimento.

3. Neste Tribunal da Relação de Guimarães onde o processo deu entrada em 30 de Outubro de 2013, o Exm.º. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

4. Questões a decidir

Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

As questões a apreciar, são as seguintes, pela ordem lógica de conhecimento: a) Vícios decisórios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova b) Impugnação da decisão em matéria de facto ( aqui se incluindo além do mais a violação do princ. in dubio pro reo); d) Preenchimento do tipo de crime de injúria e) Medida da pena.

5. Matéria de facto

Para a fundamentação da presente decisão, torna-se imprescindível transcrever parcialmente a sentença objecto de recurso.

O tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):

1) No dia 08 de Outubro de 2010, pelas 19h30m, o arguido deslocou-se à residência da sua ex-mulher, Ana M..., e dos pais desta, José M... e Maria M..., sita no F..., Vizela, para visitar a sua filha menor;
2) Quando aí se encontrava, o arguido, revoltado com a Ana M... e com os pais desta, José e Maria, com quem se encontra incompatibilizado desde o divórcio do casal começou a discutir com eles e, em tom alto e intimidatório, disse-lhes: “o vosso fim está próximo, vou-te matar a ti, ao teu pai e à tua mãe”;
3) Com tais expressões, quis o arguido causar medo e receio na Ana M..., no José M... e na Maria M..., fazendo-os crer que atentaria contra a sua integridade física e a sua vida;
4) Devido ao conflito existente com o arguido Bruno S... e à agressividade por ele demonstrada, a Ana M..., o José e a Maria, convencidos de que aquele a qualquer momento, na concretização destes propósitos anunciados, os viesse a agredir corpo-ralmente, passaram a recear pela sua integridade física e pela sua vida;
5) Com a conduta acima descrita, o arguido actuou com o propósito, concretizado, de provocar na Ana M..., no José e na Maria, receio e temor pela sua integridade física e pela sua vida, bem sabendo que o seu comportamento era susceptível de provocar medo e inquietação nos visados e de prejudicar a sua liberdade de determinação;
6) Posteriormente, no dia 19 de Maio de 2011, pelas 14h30m, junto do Café “F...”, sito em Vizela e próxima da residência dos assistentes, quando a Ana M... se encontrava a conversar com um amigo, surgiu o arguido Bruno S... que, de imediato se aproximou dela e, sem que nada o fizesse prever, agarrou-a pelo braço, apertando-o com força, ao mesmo tempo que lhe dizia que queria falar com ela;
6) O comportamento do arguido Bruno S... foi ainda causa directa e necessária de dores para a Ana M... no braço, para além de nervosismo e ansiedade de consequências não apuradas.
7) O arguido Bruno S... sabia que não podia atingir o corpo da Ana M... e que, agindo da forma como o fez, lhe causava as dores acima descritas;
8) Nas circunstâncias de tempo e lugar referias em 1), quando o assistente José M... entrou em casa, onde o arguido se encontrava, este, virado para a sua filha, que tinha ao colo, referindo-se ao assistente, disse "Olha filha! Chegou o abutre";
9) Tal expressão foi proferida em voz alta, sendo ouvida pelas pessoas que ali se encontravam, visando o arguido ofender o assistente na sua honra, bom-nome e dignidade pessoal e social;
10) Agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
11) O assistente José M... sentiu-se triste e muito ofendido com a expressão que o arguido lhe dirigiu, o que aconteceu na sua residência e na presença da sua família;
12) De tal forma que passou a evitar, inclusive frequentar determinados locais, como o fazia, com receio de se vir a confrontar com o arguido e que este venha novamente a atentar contra a sua honra e consideração;
13) O assistente José M... sentiu ainda medo e inquietação pela ameaça proferida pelo arguido, exacerbada pela sua frágil saúde, dado que padece de problemas do foro cardíaco que o tornam especialmente vulnerável;
14) Desde então evita deslocar-se a determinados locais, como anteriormente fazia, de forma a não se ver confrontado com o arguido;
15) Tendo, inclusive, deixado de frequentar, como anteriormente fazia, a casa de férias que detém na localidade de A..., freguesia B..., concelho de Viana do Castelo, com receio de aí poder encontrar o arguido, que aí tem fixada residência;
16) O assistente evita andar sozinho na rua, o que anteriormente fazia, amedrontado com a ideia de poder ser agredido pelo arguido;
17) A assistente Maria M... sentiu medo e inquietação pela ameaça proferida pelo arguido;
18) Desde então evita deslocar-se a determinados locais, como anteriormente fazia, de forma a não se ver confrontado com o arguido;
19) Tendo, inclusive, deixado de frequentar, como anteriormente fazia, a casa de férias que detém na localidade de A..., freguesia B..., concelho vê Viana do Castelo, com receio de aí poder encontrar o arguido, que aí tem fixada residência;
20) A assistente evita andar sozinha na rua, amedrontada com a ideia de poder ser agredida pelo arguido;
21) A assistente Ana M... sentiu medo e inquietação pela ameaça proferida pelo arguido, agravados na medida em que o arguido veio posteriormente à mesma a atentar contra a sua integridade física;
22) Agressão que ocorreu próximo da sua residência, em local público, causando-lhe dores e sentindo-se humilhada por ter sido agredida na presença de um amigo;
23) Desde então tem receio de que o arguido venha a concretizar a ameaça que fez;
24) A assistente ficou num profundo estado de constante tristeza e ansiedade, vivendo em constante medo de que o arguido venha a qualquer momento a concretizar a ameaça que fez;
25) O arguido vive com a mãe, em casa própria, pagando de prestação ao banco € 300,00 mensais;
26) É médico dentista, ganha € 1.100,00 e paga de pensão de alimentos à filha com 3 anos € 125,00 mensais mais € 105,00, correspondente a metade da mensalidade da creche;
27) Não tem antecedentes criminais”

Quanto à matéria de facto não provada, consta na sentença recorrida:

Não se provou:
a) Que o assistente José M... passou a sofrer crises de ansiedade e de pânico em consequência da conduta do arguido;
b) Que o assistente José M... praticamente deixou de circular a pé;
c) Que o assistente José M... se tornou uma pessoa triste, perdendo a boa disposição e jovialidade que sempre o caracterizaram e que por todos era enaltecida, tornando-se uma pessoa introvertida, tendo-se votado ao isolamento;
d) Que a assistente Maria M... passou a sofrer crises de ansiedade e de pânico em consequência da conduta do arguido;
e) Que a assistente Maria M... se tornou uma pessoa inquieta, nervosa e reservada, tendo-se votado ao isolamento;
f) Que a conduta do arguido criou na assistente Ana M... recorrentes e graves episódios de ansiedade e de pânico, vivendo profundamente aterroriza-la;
g) Que a assistente Ana M... deixou ter qualquer vida social, evitando sair e restringindo as suas deslocações ao mínimo indispensável e que se tenha votado ao isolamento.
Não resultaram provados, com relevância para a decisão, quaisquer outros factos, invocados nas peças processuais ou alegados em audiência, que não estejam em oposição ou não tenham ficado prejudicados pelos que foram dados como provados e não provados.”

Na motivação da decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto, consta o seguinte:

A convicção do tribunal fundou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência.
Essencialmente, nas declarações dos assistentes que, apesar disso, o fizeram de forma isenta e verdadeira, sendo ainda bem evidente o efeito que os factos tiveram neles e relatando de forma coerente e precisa aquilo que presenciaram e sofreram, contrariando a versão trazida pelo arguido de que ele é que foi insultado e agredido pelo pai da sua ex-esposa.
De facto, o arguido confirmou ter estado nos lugares e momentos referidos nas acusações, bem como a presença das mesmas pessoas que viriam a ser referidas pelos assistentes, negando porém ter ameaçado ou insultado alguém ou agredido a ex-esposa, referindo que de facto a viu, lhe pediu para conversar e foi atrás dela insistindo para que falassem, tendo a ex-esposa entrado para o prédio onde vive, nunca lhe tendo tocado e vindo a ser depois agredido pelo homem que a acompanhava com um objecto afiado que lhe espetou nas costelas.
Como se referiu, as declarações dos assistentes, que mereceram toda a credibilidade, viriam a contrariar a sua versão, não havendo qualquer outra referência nos autos ou na prova produzida a qualquer agressão ao arguido.
Assim, a ex-esposa confirmou que o arguido lhe solicitou uma visita à filha de ambos, tendo concordado em recebê-lo em casa, pois os pais não estavam, sempre tendo evitado que eles se encontrassem, pois as relações não eram boas, culpando-os o arguido do divórcio. Em casa estava a sua avó quando o arguido chegou, tendo ficado com a filha ao colo no hall. Ao contrário do que previa e pretendia, até porque o arguido fez a visita mais tarde do que tinham acordado, entretanto chegou a casa o seu pai, tendo logo o arguido, que se encontrava com a filha ao colo, dito, "Olha filha, chegou o abutre", tendo o pai dito que não admitia que o tratasse assim, começando a discutir, pelo que pegou na filha ao colo, tendo o arguido dado um empurrão ao pai, que foi contra a caixa do quadro eléctrico. O pai afastou-se e disse ao arguido que se fosse embora, tendo ele dito que não saía e começado a filmar com o telemóvel, tendo também feito uma chamada. O pai voltou e disse que já tinha chamado a GNR. O arguido então saiu, dizendo que o fim deles estava próximo, que os ia matar a todos, a ela, depois ao pai e à mãe. Todos eles ficaram receosos com a ameaça, atentas as más relações existentes. Relatou ainda que algum tempo depois, quando se dirigia para casa com um amigo, depois de terem estado a tomar café num café ali existente, o arguido, que se encontrava numa outra esplanada, dirigiu-se para si, dizendo que lhe queria falar e agarrou-a com força no braço. Tentou soltar-se mas não conseguiu porque o arguido agarra-va com força. O amigo tentou intervir mas o arguido disse que não era nada com ele, que aquilo era entre os dois. Depois o arguido largou-a e entrou no prédio, tendo ficado com os dedos marcados no braço e sentido dores. Referiu também que o seu pai tem problemas cardíacos e que tem piorado o seu estado. Tanto ela como os pais estão sempre alerta, com medo de encontrar o arguido e que aconteça alguma coisa. Os pais deixaram de ir para uma casa de férias que têm na zona de Viana do Castelo, onde sempre passavam férias e fins-de-semana, pois é próximo da residência do arguido, tendo-a à venda. Disse ainda ter sentido vergonha pela agressão que sofreu, pois foi em local público, presenciado por um amigo e várias outras pessoas que a conhecem, sendo ela e os pais pessoas conhecidas em Vizela.
Também o assistente José M... fez um relato coincidente com o da filha, quanto ao que se passou em casa, pois que ao outro episódio não assistiu, tendo-lho a filha logo relatado pelo telefone. Quando entrou em casa ficou surpreendido de ali ver o arguido, pois as visitas à filha eram programadas de forma a que ele e a esposa nunca estivessem presentes e que o arguido, que estava com a filha ao colo, disse "Olha filha, chegou o abutre", tendo-se sentido muito ofendido com tal expressão, proferida na presença da sua filha e sogra, tendo dito ao arguido que não admitia que o tratasse assim, tendo-se gerado uma discussão e sido empurrado pelo arguido. Ligou para a GNR, que não compareceu e entretanto chegou a sua esposa. Disseram ao arguido que se fosse embora, estando o arguido a filmar com o telemóvel. Quando o arguido resolveu ir embora disse que não tinha medo de ninguém, que os ia matar a todas, à ex-esposa, a si e à sua esposa. Referiu que sofre de miocardiopatia e que ficou perturbado e com medo que o arguido viesse a fazer-lhe mal, a si ou à esposa e filha. Deixou de ir para a casa de férias, que ficou junto da residência do arguido, com receio de o encontrar e que o arguido pudesse fazer alguma coisa contra si. A esposa e a filha também ficaram muito perturbadas e receosas.
A assistente Maria M... relatou também o que se passou, de forma coincidente, referindo ter chegado a casa depois do marido, não tendo ouvido as palavras que o arguido lhe dirigiu, mas que notou que o marido estava pálido e perturbado, tendo-lhe relatado o que se tinha passado. Disseram ao arguido para se ir embora e ele disse que os ia matar a todos, à filha, a si e ao marido. Disse ter ficado com muito receio de que o arguido fizesse alguma coisa, referindo que mais tarde agarrou o braço da sua filha, factos a que não assistiu, tendo-lhe a filha contado. Também o marido e a filha ficaram muito incomodados e receosos. Também referiu que deixaram de ir para a casa de férias, para onde iam também aos fins-de-semana, por ser junto à residência do arguido, com medo dele. Referiu que o marido sofre de doença do foro cardíaco e que tem agravado o seu estado.
A testemunha Maria F..., avó da assistente Ana M..., já com avançada idade e com problemas de audição depôs de forma muito imprecisa, não ficando dúvida de que assistiu aos factos que se passaram na residência, o próprio arguido diz que ela aí se encontrava, que se apercebeu da discussão e tensão havida, ficando dúvidas se percebeu as palavras que se disseram, repetindo, talvez o que no decorrer do tempo e possivelmente logo após os factos, se comentou entre os assistentes, com quem vive.
As testemunhas Cristalina R... abonaram a personalidade do arguido.
Fundou-se ainda o tribunal nas declarações do arguido quanto à sua condição pessoal e no CRC junto aos autos.”

6. Uma primeira forma de colocar em crise a decisão da matéria de facto em primeira instância consiste na alegação de um dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova.

Neste caso, também de conhecimento oficioso, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: como consta da previsão da norma legal (desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida), o vício decisório apenas pode ser considerado se resultar do teor da sentença, por si só ou conjugado com as regras normais de experiência comum.

A motivação da decisão da matéria de facto da sentença, acima transcrita, enuncia de uma forma suficientemente clara os meios probatórios e o raciocínio lógico que estiveram subjacentes na formação da convicção do tribunal.

Salvo melhor entendimento, o recorrente não distingue os diferentes planos ou perspectivas, uma vez que invoca insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, mas não indica um único fundamento para a verificação dos vícios decisórios das alíneas a) e c) do n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. a partir do texto da decisão, restringindo a argumentação ao considera ser uma errada apreciação e valoração pelo tribunal das declarações dos assistentes e dos depoimentos das testemunhas. Deve ser mantida a distinção perante a impugnação da decisão em matéria de facto : como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2011, Rel. Cons. Pires da Graça, proc. nº 7266/08.6TBRG.G1.S1, “A apreciação da prova é um juízo valorativo, de raciocínio objectivo, de ponderação do que é revelado por cada prova produzida, e em conjugação com as demais, e eventual erro que daqui derive é um erro de julgamento na credibilidade de determinada prova, cuja impugnação é feita através do recurso em matéria de facto, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP. O erro notório na apreciação da prova, é um conceito jurídico processual, técnico legal, que ao subsumir-se ao disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, apenas tem a ver com o texto da decisão recorrida, perspectivado na matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação (…).” Por outro lado, poder-se-á considerar adquirido que o vicio da alínea a) do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal existe quando se conclua, a partir do próprio texto da sentença, isoladamente considerada ou em conjugação com regras de experiência comum, que a matéria de facto provada se revela insuficiente para a decisão correcta de direito, ou seja, a decisão justa, a composição mais próxima da “ideal” e que, tendencialmente, declara a justiça no caso concreto, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objecto do processo.

Uma vez que o recorrente se limita a afirmar um entendimento próprio a partir da prova gravada e transcrita e porque inexiste desacerto ostensivo ou grosseiro ou insuficiência da matéria de facto no segmento da decisão destinado à enunciação dos factos provados e à motivação da decisão da matéria de facto provada, improcede a arguição dos vícios decisórios.

7. Impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 412.º, n.ºs 3 e 4, 428.º e 431.º do Código de Processo Penal):

7.1 Num segundo plano, este já de “verdadeiro recurso de impugnação da decisão em matéria de facto”, a análise não se restringe ao texto da decisão e envolve uma reapreciação autónoma do juízo valorativo e da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados.

A questão a resolver restringe-se a saber se ocorreu erro no julgamento de facto ou seja, se houve valoração indevida de elementos de prova, sem esquecer, contudo, os limites próprios da apreciação em segunda instância Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2012 Rel. Cons. Pires da Graça, proc. 1243/10.4PAALM.L1.S: “Não pode ignorar-se que a apreciação da prova assenta, fora das excepções relativas a prova legal, na convicção do julgador e nas regras da experiência, nem também pode esquecer-se o que a imediação dá em 1.ª instância e o que o julgamento da Relação não permite, como as reacções dos depoentes ou de outros, as hesitações, as pausas, os gestos, as expressões faciais, enfim, todas as particularidades de todo um evento que é impossível de reproduzir (acessível in www.dgsi.pt ).

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18.01.2006, Cons. Fernanda Palma, “O recurso para a Relação, mesmo em matéria de facto, não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada (ou todas as questões abordadas na decisão da 1.ª Instância) é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente (ou tornaria a decidir as questões suscitadas).
Assim, o julgamento em 2.ª Instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas a admitidas alegações escritas).

Este o entendimento presente na afirmação do acórdão recorrido que constitui um dado adquirido no estádio actual de evolução do processo penal, entre nós, e que não enferma de nenhum pecado constitucional “ (acessível in www.tribunalconstitucional.pt)

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Neste âmbito, impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada, para os efeitos do artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal, não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. Assim, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente mas que não a “tornam necessária” ou racionalmente “obrigatória”, então deve manter a decisão da primeira instância tal como está. Isto resulta da constatação que o “verdadeiro” julgamento de facto se faz na primeira instância, onde existe integral observância da imediação e da oralidade e são produzidas todas as provas Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-07-2009, Rel. Cons. Raul Borges, proc 103/09, 3ª secção: “ (…) Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento parcelar, de via reduzida.

IX - A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
X - A jusante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.” (acessível in http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2009.pdf)

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No caso destes autos, o recorrente questiona a decisão quanto a toda a matéria de facto relevante (todos os factos enunciados nos pontos 2, 3, 6 e 9 da matéria de facto provada) e invoca discordância quanto à apreciação da prova feita pelo tribunal, no que diz respeito a segmentos das declarações do assistente José M..., da assistente Ana M... e do depoimento da testemunha Maria E..., que enuncia e transcreve na motivação. Serão portanto estas as concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar, juntamente com outras que entenda relevantes (artigos 412.º n.º 3, n.º 4 e n.º 6 do Código do Processo Penal).

Por conveniência de exposição, iremos distinguir os factos susceptíveis de integrar o cometimento dos crimes de ameaça, dos eventos referentes ao crime de injúria.

7.2 Tanto quanto nos foi possível extrair da audição integral das declarações prestadas em audiência de julgamento, o arguido negou peremptoriamente a sua responsabilidade por qualquer um dos factos de que vinha acusado; Por outro lado, o assistente José M... descreveu os acontecimentos de modo circunstanciado, seguro e consistente, relatando que, depois da desavença verbal e já ao sair, o arguido pronunciou, em tom sério, a frase “vou-te matar a ti, ao teu pai e à tua mãe”, dirigindo-se à Ana M... e na presença das três pessoas visadas. Segundo concluímos da audição do respectivo registo áudio, a declarante Ana M... descreveu os mesmos acontecimentos de uma forma coincidente, coerente e segura, evidenciando segurança quanto aos factos directamente percepcionados. Também a declarante Maria M..., relatou os eventos referentes por idêntico encandeamento e de modo concordante com o marido e a filha quanto à frase dita no fim e de significado ameaçador. Afigura-se-nos que o juízo de aquisição probatória do tribunal recorrido se encontra devidamente alicerçado nos depoimentos prestados na audiência, segundo critérios de razoabilidade e á luz e regras normais de experiência comum.

Em nossa apreciação a partir da audição do registo áudio, as declarações seguras e coerentes da assistente permitem igualmente considerar assente, para além de uma dúvida razoável, que o arguido agarrou e apertou com força o braço de Ana M..., sabendo e querendo causar-lhe dor nas regiões atingidas.

Naturalmente que o relacionamento familiar, o interesse individual na condenação e o intenso desentendimento com o arguido constituem circunstâncias que podem toldar o discernimento da testemunha ou declarante e devem fazer recear pela credibilidade do depoimento. A decisão recorrida evidencia essa preocupação, em modo que se nos afigura adequado.

Sabemos ainda que o tribunal não se encontra adstrito a uma desvalorização absoluta do depoimento das pessoas com intervenção directa nos eventos relevantes e interesse directo numa determinada decisão. O juízo de valoração do tribunal em relação ao conteúdo dos depoimentos dependerá - tal como sempre acontece - de elementos tão díspares como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso ou a emoção exteriorizada.

Ora, no caso concreto e tanto quanto se pode apreender através do registo da prova, a fidedignidade e a credibilidade da narração dos assistentes, quer pela forma, quer pelo conteúdo, resistem a essas eventuais dúvidas criadas a partir da existência de um interesse pessoal na condenação do arguido, da verificação de sentimentos de profunda desavença ou de um hipotética motivação de represália por outros factos anteriores. São ainda assim compreensíveis algumas imprecisões em aspectos secundários, tendo em conta a carga psicológica da própria audiência e a natureza dos factos em causa, ocorridos num espaço de tempo de alguns minutos.

Em nosso entendimento, improcede a argumentação do recorrente que pretende desvalorizar a prova, com fundamento numa alegada situação de inferioridade e com uma criança ao colo, ou quando invoca a circunstância de o assistente ter fechado “à chave” a porta de saída de casa, assim revelando que nunca se sentiu coagido ou ameaçado.

Com efeito, resulta do registo aúdio das declarações que a atitude do assistente a que o recorrente se refere terá surgido num ímpeto emocional, com o objectivo de reter o arguido até à chegada dos agentes da GNR. Contudo, a porta logo terá sido logo aberta. Em todo o caso, ter-se-á presente que bem pode haver o anúncio da produção de um mal real e efectivo sem que as pessoas visadas se sintam efectivamente ameaçadas naquela ocasião.

Note-se ainda que na descrição relatada pelos ofendidos, o arguido disse as palavras de ameaça, no momento em que já ia a sair da casa, já sem a filha no colo. Assim, não se percebe onde possa existir contradição com um comportamento anterior do assistente ao fechar a porta, nem uma situação de relevante inferioridade do arguido.

Quanto ao princípio in dubio pro reo:

Segundo este princípio fundamental do direito processual penal, o tribunal deve sempre decidir a favor do arguido se não se encontrar convencido da verdade ou falsidade de um facto, isto é, se permanecer em estado de dúvida sobre a realidade do mesmo (numa situação de non liquet). Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Abril de 2011, “Se a acusação, e em última instância o próprio juiz, não conseguem reunir prova da culpabilidade do arguido, a ponto de o tribunal ficar numa situação de dúvida, então impor-se-á a absolvição. O tribunal não pode decidir-se por um non liquet: ou absolve ou condena. As limitações com que se debateu o funcionamento do ius puniendi não poderão prejudicar o arguido. Só que a situação de dúvida tem que se revelar de algum modo, e designadamente através da sentença. A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido. (processo 117/08.3PEFUN.L1.S1 disponível in www.dgsi.pt )

Ou seja, para que se coloque a questão de eventual aplicação do in dubio pro reo, torna-se necessário que o tribunal se encontre numa situação de dúvida e só existe violação do princípio se, perante uma situação assumidamente de dúvida, se decida sem ser a favor do arguido.

No caso concreto, em lado algum transparece que o tribunal recorrido tenha enfrentado uma situação de dúvida sobre a ocorrência dos factos que julgou provados. Sendo inquestionável que também agora em sede de recurso não se nos suscita dúvida que justifique a aplicação daquele princípio,

Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual, improcede igualmente a argumentação do recorrente neste âmbito

Na valoração que fazemos dos elementos probatórios disponíveis, depois de termos procedido à audição do registo áudio das declarações e depoimentos, nestes se incluindo os segmentos indicados na motivação do recurso, não encontramos no processo de formação da convicção do tribunal recorrido qualquer erro de racionalidade ou infracção de regras de experiencia comum quanto a todos factos constantes dos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 11, 14, 18, 22, 23, 24 e 25 do elenco da matéria de facto provada, que assim se devem manter.

7.3 Da injúria

As declarações seguras e coerentes dos assistentes José M... e Ana M... permitem igualmente considerar provado para além de uma dúvida razoável, que o arguido, referindo-se ao assistente, disse em voz alta “Olha filha! Chegou o abutre”.

Segundo a apreciação deste tribunal de recurso, improcede a argumentação do recorrente quanto ao depoimento da testemunha Maria E.... Recorde-se que a avó da assistente Ana M..., relatou que se encontrava presente no decorrer de todos os acontecimentos de 8 de Outubro de 2010 e que ouviu o arguido dizer para o genro e assistente José Martins uma palavra que foi designando ao longo do depoimento como sendo “bruto”, ou “burto”. No relato da testemunha, essa expressão dita pelo arguido seguiu-se a uma reacção do ofendido de desagrado, dizendo “estás-me a agredir aqui dentro da minha casa!”. Questionada pelo tribunal quanto ao significado dessa palavra, a testemunha revelou considerar a palavra que ouviu dita pelo arguido para o genro como “Mal dita!”, que significava “chamar-lhe um nome feio”.

Daqui não se pode extrair qualquer intuito dos assistentes em “falsear a prova”. Estas imprecisões podem perfeitamente ser compreendidas pelas dificuldades de memória e perturbação de ideias, próprias de uma pessoa de cerca de noventa anos e não são susceptíveis de infirmar o juízo probatório, assente, como já exposto, nos depoimentos dos assistentes José M... e Ana M....

Na descrição constante do artigo 181º do Código Penal, a acção típica da injúria pode traduzir-se no comportamento de quem, dirigindo-se directamente a outra pessoa, lhe imputa factos, ainda que sob a forma de suspeita, ou lhe dirige palavras, ofensivos da sua honra ou consideração.

Como tem sido entendido na doutrina e jurisprudência, o elemento subjectivo deste ilícito consiste na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei. Assim, não é elemento do tipo a efectiva lesão do sentimento de honra ou da consideração bastando, para se verificar a consumação do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se, segundo parâmetros de normalidade, de homem médio, que a acção fosse potencialmente adequada a lesar o sentimento de honra ou consideração. O dolo específico (o chamado «animus injuriandi vel diffamandi», ou seja a intenção concreta de ofender determinada pessoa) não integra o tipo subjectivo, enquanto parte do tipo de ilícito.

Enquanto bem jurídico penal, a honra compreenderá uma honra interior ou subjectiva -opinião ou sentimento de uma pessoa sobre o seu próprio valor- e uma honra exterior ou objectiva – compreendo-se aqui a estima, reputação ou bom nome perante a representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa. Para uma concepção “normativo-pessoal” que surge como mais equilibrada, “(…) a honra é vista assim como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior” Costa, José de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, p. 607..

Atendendo ao bem jurídico violado, que é do foro intimo e pessoal, a integração dos elementos do tipo de crime não pode ser deixada ao mero critério subjectivo de cada um (maxime do critério do ofendido). Daí que, em sede de interpretação, se tenha de entender que o critério subjectivo da lesão deve ser temperado com um parâmetro objectivo, reconduzível ao sentimento médio de honra da comunidade : Segundo o critério de Beleza dos Santos, in RLJ, 92º, 167, “aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos, não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena. (...) Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais. (...) O que pode ser ofensa ilícita em certo lugar, meio, época ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo.”

Ou, numa formulação diferente, um comportamento deverá ser susceptível de censura do ponto de vista jurídico-penal quando ultrapassa o limite imposto por um mínimo de respeito moral, cívico e social, comummente aceite como condição para o normal desenvolvimento da vida em comunidadeMendes, António Jorge Oliveira, Os Crimes contra a Honra no Código Penal Revisto, Coimbra, Almedina, 1996, pag. 37 a 39)..

Temos, assim, um critério que apela a um tipo de sentimento médio de honra e consideração da comunidade, atenuando a arbitrariedade do critério subjectivo de cada indivíduo singular, mas também assente na concepção de que nenhum bem jurídico pode beneficiar de protecção plena do Direito Penal: A nossa Constituição proclama a inviolabilidade da integridade moral e física dos cidadãos e reconhece os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (cfr. art.º 25º e 26º da C.R.P.), mas a Constituição também garante, nos seus artºs 37º e 38º, o direito de qualquer pessoa de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, sem impedimento, nem discriminação, não podendo ser impedido ou limitado o exercício desse direito, por qualquer tipo ou forma de censura.

Na realidade, perante direitos ou garantias de igual dignidade e hierarquia constitucional, sem linhas de fronteira predefinidas e estáticas, um eventual conflito entre o direito de liberdade de expressão e o direito à honra terá de ser resolvido com base nas circunstâncias concretas do caso sub judicie, estabelecendo limites a ambos os direitos, por forma a alcançar-se o saldo mais favorável, segundo o princípio da concordância prática dos bens em colisão Herdegen, cit. por Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, p.153. , “traduzido numa mútua compressão, por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível”.

O princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade em sentido amplo, inerente ao Estado de Direito, conduz necessariamente a dois outros princípios fundamentais de limitação da intervenção penal, consagrados no artigo 18º nº 2 da Constituição A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos: os princípios da dignidade penal e da necessidade ou carência de tutela penal. Do primeiro decorre a restrição da protecção jurídico-penal aos bens jurídicos fundamentais (direitos ou interesses constitucionalmente protegidos), enquanto o principio da necessidade de tutela penal impõe o afastamento da intervenção do Direito Penal sempre que exista outro meio menos gravoso ou agressivo susceptível de produzir o mesmo resultado.

Como escreve Figueiredo Dias, para assegurar a legitimidade da intervenção do Direito Penal não basta comprovar a violação de um bem jurídico-penal, sendo necessário ainda que essa mesma intervenção se revele imprescindível para a “livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção, o direito penal constitui na verdade a ultima ratio da politica social e a sua intervenção é definitivamente subsidiária” Direito Penal, Parte Geral, I, 2ª, Coimbra, p. 128.

Esta característica fragmentária do direito penal adquire uma densidade específica na concreta área de eventual conflitualidade entre a liberdade de expressão e o direito à honra, uma vez que não existe uma correspondência absoluta entre os âmbitos do bem jurídico e da sua tutela, permanecendo segmentos da honra fora da área de protecção típica.

Segundo a lição de Costa Andrade, se existem bens jurídicos de estrutura e densidade axiológica claramente estabilizadas e consistentes (como é o caso da vida ou integridade física), “o quadro é outro do lado dos bens jurídicos com a estrutura de manifestações da liberdade pessoal que se exprimem, realizam e actualizam na comunicação inter-subjectiva”. Os bens jurídicos pessoais da honra, privacidade/intimidade, palavra e imagem são consensualmente reconduzidos à categoria de “bens jurídicos socialmente vinculados”. Tanto no que toca à estrutura axiológico-material, como no que respeita ao enquadramento normativo em que avulta, precisamente, a redução qualificada da tutela jurídica Obra citada p. 182 e 184..

De acordo com um entendimento que se vem sedimentando na doutrina e na jurisprudência, o respeito pelo principio constitucional do art. 18.º, n.º 2 da CRP e do princípio do mínimo de intervenção penal, estabelecem um efectivo critério limitador, por forma a restringir a protecção penal na injúria “àquelas situações em que é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros”.

Segundo escreve Faria e Costa, o carácter ofensivo de certas palavras tem de ser visto à luz do concreto contexto situacional de vivência humana em que as mesmas foram proferidas e, se o significante das palavras permanece intocado, o seu significado poderá variar consoante os contextos Comentário Conimbricense, p. 630.. Assim, a análise para verificação do ilícito não se pode circunscrever ou limitar à valoração isolada e objectiva das expressões, exigindo-se que as mesmas sejam observadas e apreciadas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas, tendo ainda em conta realidades relacionadas com o contexto sociocultural e a maior ou menor adequação social do comportamento Vide, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-2008, processo 07P4817 Rel. Cons. Rodrigues da Costa, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2009 processo 08P3056 Rel. Cons. Souto Moura, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 9-2-2011, processo 16/07.6S6LSB.L1-3, rel. Maria José Costa Pinto, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-03-2011, processo 45/08.2TACDR.P1, Rel. Des. Melo Lima e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-06-2012 ,processo 18/11.8SMPRT.P1, rel. Coelho Vieira..

Retomando ao caso concreto, temos como adquirido que o arguido disse em voz alta, referindo-se ao assistente que acabava de entrar em casa, “Olha filha! Chegou o abutre!”. Em sentido figurado, o termo abutre pode significar agiota, a pessoa que anseia ou deseja o desaparecimento ou a morte de outrem para daí obter bens ou vantagens http://www.priberam.pt/dlpo/abutre, pessoa que tira proveito da desgraça alheia, homem usurário, cruel Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 6ª edição..

Nestes termos, as palavras proferidas pelo arguido contêm uma carga depreciativa e um sentido pejorativo para a pessoa do assistente. Em si mesma, a expressão revela seguramente um modo desrespeitoso, rude e incorrecto de relacionamento do arguido perante uma pessoa mais idosa, pai da sua ex-mulher. Se mais não fosse por ser avô da sua filha, o arguido deve respeito social ao aqui assistente. Nesta perspectiva trata-se sem dúvida de um comportamento eticamente censurável.

Porém, tal como também já exposto, as frases têm de ser analisadas no efectivo contexto em que foram proferidas: Segundo decorre unanimemente das declarações e depoimentos prestados em audiência, entre o casal constituído pela assistente Ana M... e pelo arguido houve muitas discussões motivadas pelas diferentes opiniões quanto à regulação do exercício do poder paternal relativamente à filha menor de ambos. Esses conflitos abrangiam frequentemente os avós da criança, num envolvimento de intenso litígio após a separação de facto do casal.

Os factos destes autos ocorreram precisamente no quadro de uma situação de divergência ou conflito entre os diversos intervenientes, de ânimos certamente exaltados, num ambiente de hostilidade que se mantinha há já muito tempo, envolvendo, por um lado, o arguido e, por outro, a mãe Ana M... e os avós maternos da criança.

Se aquelas palavras do arguido fossem ditas entre pessoas sem qualquer relacionamento, ou tivessem sido pronunciadas inopinadamente, poderiam encerrar uma carga particularmente ofensiva. Mas, como já salientado e decorre da matéria de facto provada, as palavras do arguido surgem num encadeamento de intenso desentendimento, significando a animosidade e o afrontamento perante uma outra pessoa com quem existe o desentendimento sobre a vida do casal e a regulação das responsabilidades parentais. Não mais do que isso.

Ou seja, na perspectiva do concreto condicionalismo em que foram ditas, as expressões foram seguramente uma forma (mal) utilizada de o arguido afirmar o seu desacordo perante a postura anterior do sogro e de fazer valer os seus pontos de vista na discussão ou divergência, quanto à vida do casal e à regulação dos contactos com a filha, mas não atingem aquele núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não revestem uma carga ofensiva de tal forma evidente que as faça alcançar o patamar da tipicidade e justifique a atribuição de dignidade penal.

Tendo em conta as considerações acima expostas quanto ao carácter fragmentário do direito penal e a imperiosa necessidade de aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proibição do excesso, forçoso é concluir que o comportamento do arguido ao dizer as palavras “Olha, filha vem aí o abutre!” se configura como atípico e por isso insusceptível de censura penal.

Em consequência deve proceder o recurso nesta parte, absolvendo-se s o arguido do cometimento do crime de injúria.

8. Enquadramento jurídico-penal e consequências jurídicas dos factos

Os factos provados revelam que o arguido cometeu, em autoria material e em concurso real, três crimes de ameaça, previstos e punidos nos artigos 153.º n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1 do Código Penal. Cumpre apreciar o recurso no segmento correspondente à aplicação da pena, aqui restringido à medida correspondente de cada uma das multas, prevista em alternativa nos preceitos incriminadores .

Como se encontra adquirido pela doutrina e jurisprudência, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal deve atender à culpa do agente, que constitui o limite inultrapassável da pena a aplicar, sob pena de, ultrapassando-o, se afrontar a dignidade humana do delinquente. Por seu turno, o limite mínimo da moldura concreta há-de ser dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e pretende corresponder a exigências de prevenção positiva ou de integração.

Assim, esse limite inferior decorrerá de considerações ligadas às exigências de prevenção geral, não como prevenção negativa ou de intimidação, mas antes como prevenção positiva ou de integração, já que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos com um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência das normas infringidas. Estão em causa a integração e reforço da consciência jurídica comunitária e o seu sentimento de segurança face às ocorridas violações das normas.

Finalmente, o tribunal deve fixar a pena concreta de acordo com as exigências de prevenção especial, quer na vertente da socialização, quer na advertência individual de segurança ou inocuização do delinquente Dias, Jorge de Figueiredo As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1995, págs. 228 e segs, Rodrigues, Anabela Miranda, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora pag. 570 a 576 Jescheck, HH Tratado, Parte General , II, pag. 1189 a 1199.

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Os factores concretos de medida da pena, enunciados de forma exemplificativa no artigo 71º nº 2 do Código Penal, compreendem quer circunstâncias referentes à execução do facto, quer relativas à personalidade do agente e, por último, as circunstâncias que relevam da conduta do agente anterior e posterior ao facto.

Os elementos a considerar no caso vertente são fundamentalmente os seguintes:

- Quanto aos crimes de ameaça, ocorridos na mesma ocasião e por uma mesma frase, o juízo de censurabilidade da conduta reveste-se de mediana intensidade, sendo de valorar negativamente que o arguido assim tenha agido na casa de morada dos avós da sua filha, embora num situação de exaltação por desavença;

-Quanto ao crime de ofensa à integridade física, a circunstância de o arguido ter agido perante a sua ex-mulher e num local previsivelmente público agrava a sua responsabilidade, mas o desvalor do resultado é muito reduzido, uma vez que não foram detectadas lesões físicas, nem se comprova que a conduta tenha causado qualquer período de doença.

Como circunstâncias comuns a todos os crimes, dever-se-á ter em conta, por um lado, que a frequência de delitos desta natureza agrava as exigências de prevenção geral e, por outro, que a ausência de antecedentes criminais, bem como a inserção profissional e familiar do arguido fazem atenuar as preocupações de prevenção especial.

Sopesando em conjunto os elementos enunciados, afigura-se-nos que o tribunal recorrido sobrevalorizou as circunstâncias agravativas, devendo fixar-se as penas, como adequadas às exigências de tutela dos bens jurídicos e às concretas necessidades de prevenção especial e como ainda consentidas pela culpa exteriorizada nos factos pelo arguido, em noventa dias de multa para cada um dos três crimes de ameaça e em cento e vinte dias de multa para o crime de ofensa à integridade física.

Na avaliação conjunta dos factos e dos elementos da personalidade do arguido, entende-se justo e equitativo fixar a pena única do concurso (artigo 77.º do Código Penal, numa moldura entre 120 e 390 dias) em duzentos e cinquenta dias de multa.

Conforme o disposto no n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal, a razão diária da multa será fixada entre o montante de € 5 e de € 500, de acordo com a situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. A norma do Código Penal não indica os critérios para a determinação daquela situação económica relevante, nem sequer sugere algum princípio de orientação. Em qualquer caso e como tem sido salientado persistentemente pela jurisprudência, a condenação de natureza criminal tem necessariamente de constituir um sacrifício real ao arguido, de modo a criar-lhe um sentimento de segurança, utilidade, punibilidade e justiça, sob pena de esvaziamento das finalidades punitivas.

Assim, considerando a amplitude dos rendimentos no nosso país, o mínimo legal de 5 € deverá corresponder a pessoas que vivem numa situação de indigência ou de total carência de rendimentos próprios e o máximo legal de 500 €, no pólo oposto, àquelas pessoas, em número diminuto, detentoras do que vulgarmente se define como rendimentos extremamente elevados, de “grandes fortunas”, ou considerados como os “mais ricos” da nossa sociedade.

Da matéria de facto provada ressalta que o arguido é médico dentista, ganha € 1.100,00 e paga de pensão de alimentos à filha com 3 anos € 125,00 mensais mais € 105,00, correspondente a metade da mensalidade da creche, vive com a mãe, em casa própria, pagando de prestação ao banco € 300,00 mensais.

Tendo em conta o nível médio de rendimentos auferidos na nossa sociedade e a amplitude da moldura legal, não se poderá de forma alguma considerar excessiva a fixação de um valor de nove euros para a razão diária da pena de multa do arguido.

9. Quanto ao valor da indemnização civil

Nos termos do artigo 400.º n.º 2 do Código de Processo Penal, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada e estabelece o artigo 24.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de Agosto) que em matéria cível a alçada dos tribunais de 1ª instância é de € 5000 (cinco mil euros).

O valor de cada um dos três pedidos cíveis é inferior à alçada do tribunal de comarca e a quantia fixada na sentença recorrida para cada um dos demandantes também é inferior a metade da alçada do tribunal de primeira instância, pelo que a decisão contida na sentença e relativa ao pedido de indemnização civil seria, em princípio, irrecorrível.

Contudo, em conformidade com o disposto no artigo 403.º n.º 3 do Código do Processo Penal, haverá que ponderar a eventual alteração na indemnização em consequência da parcial procedência do recurso-crime e da revogação da condenação do arguido pelo crime de injúria.

Como bem se decidiu na primeira instância, resulta da factualidade provada que da actuação ilícita e culposa do arguido resultaram danos para os demandantes, que merecem a tutela do direito e justificam a atribuição de indemnização, nos termos dos artigos 483º e 496.º, n.º 1 do Código Civil: os três demandantes sentiram medo e temeram pela sua integridade física e vida, bem como o seu direito à liberdade de determinação e a demandante Ana M... viu lesados os seus direitos à integridade física, sentindo-se envergonhada e humilhada

A concretização ou fixação do montante indemnizatório deverá ser operada segundo juízos de equidade, tendo em conta os danos não patrimoniais sofridos por cada uma das vítimas, em consequência dos factos que integram os enunciados crimes de ameaça e, quanto à demandante Ana M..., também do crime de ofensa à integridade física.

Salvo o devido respeito, será aqui totalmente despiciendo saber se o pedido tinha sido formulado tendo em conta o cometimento de dois ou de três crimes, desde que respeitado o montante global peticionado.

Com relevo para a fixação do quantum indemnizatório, haverá que ponderar, designadamente, no grau de culpabilidade do responsável, na situação económica dos lesados e do demandado, nos padrões de indemnização geralmente adoptados pela jurisprudência e nas flutuações do valor da moeda – cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, Vol. I, 9.ª Ed., Almedina, 1996, 629.

Sopesando estes elementos em conjunto, tendo em conta os valores fixados pelos tribunais em situações semelhantes e os elementos recolhidos quanto à situação económica de demandantes e demandado, concluímos fixar o valor de indemnização por danos não patrimoniais, como equitativo e justificado, em quinhentos euros para cada um dos demandantes José M... e Maria M... e em oitocentos euros para a demandante Ana M....

10. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso, revogando e alterando a sentença recorrida, e, em consequência :-

1.º- Absolvem o arguido Bruno S... do cometimento de um crime de injúria p. e p. pelo art.º 181.º do Código Penal;-

2.º- Condenam o mesmo arguido Bruno S... pelo cometimento em autoria material de três crimes de ameaça, dos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal na pena de noventa dias de multa, por cada um dos crimes, e pelo cometimento em autoria material de um crime de ofensa à integridade física do artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal na pena de cento e vinte dias de multa.

Procedendo a cúmulo jurídico, condena-se o arguido na pena única de duzentos e cinquenta dias de multa, à razão diária de nove euros;-

3.º- Condenam o demandado, no pagamento da quantia de quinhentos euros para cada um dos demandantes José M... e Maria M... e em oitocentos euros para a demandante Ana M..., acrescidas de juros a contar da notificação do pedido até efectivo paga­mento.

4.º- Em tudo o mais, mantêm a sentença recorrida.

Sem tributação, por parcial procedência.

Guimarães, 17 de Dezembro de 2013.