Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1386/11.7TABCL.G1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: REJEIÇÃO DO RECURSO
ARGUIDO RECORRENTE
INTERESSE EM AGIR
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) Um recurso deve diretamente fazer valer uma pretensão pessoal, e ser dirigido à defesa das pretensões pessoais do recorrente.
II) Daí que lhe esteja vedada a interposição de recurso, quando através deste não visa a prossecução direta dos seus interesses pessoais no processo.

III) Neste sentido, não sendo a decisão recorrida proferida contra o arguido, porquanto não afetou nenhum direito do recorrente a exigir qualquer tutela jurisdicional, a mesma é irrecorrível, não tendo o mesmo interesse em agir – legalmente válido - para recorrer, pelo que nem sequer devia ter sido admitido o recurso, que é, por isso, de rejeitar, face ao disposto nos artigos 414º nº 2 (falta de condições necessárias para recorrer), 419º nº 4 a) e 420º nº 1, todos do Código de Processo Penal.

IV) O pleno exercício pelo arguido das garantias de defesa que lhe assistem tem como pressuposto lógico a estabilização do objeto processual logo que este tenha sido fixado pela acusação ou pela pronúncia, quando esta exista, objeto esse que, de acordo com o disposto nos arts. 283.º e 308.º nº 2 do CPP, se compõe obrigatoriamente de uma narrativa factual e de um certo enquadramento jurídico-penal dos factos narrados.

V) Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objeto processual tem de ser necessariamente excecional e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária.

VI) Com efeito, o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que tenha tido a possibilidade de adequadamente se defender.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

Inconformado com a decisão sumária proferida em 27 de Junho de 2016, através da qual foi decidido rejeitar, por inadmissibilidade legal, os recursos que apresentara, reclama o arguido/recorrente Manuel S., para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 417º/8 C P Penal, alegando o seguinte:

“(…) não se conformando com a decisão singular (…) proferida, porque entende, tal como entendeu a primeira instância, que manifestamente se verifica uma alteração dos factos, com factos novos, não constantes da acusação, que levaram à pronúncia do Recorrente.

A simples alteração da qualificação jurídica, no caso em apreço nestes autos – passagem de crime simples de que vinha o recorrente acusado, referente a um único momento temporal, para crime continuado, que implica uma série de momentos temporais, implica, necessariamente, uma alteração profunda dos factos da acusação, isto é, “qualquer alteração do sentido da incriminação implica necessariamente a alteração dos próprios factos” (cfr. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2ª Edição, 2008, anot. ao art.358º, p.928).

Entende também o Recorrente, que a alteração em apreço implica uma violação do princípio constitucional da estrutura acusatória do processo penal (art.32º, nº5 da C.R.P.), do princípio da presunção de inocência e dos demais vertidos já no requerimento de recurso.

Vem pois, à luz do disposto no art.417º, nº8 do C.P.P., da Decisão Singular reclamar para a Conferência, de forma a adequa-la através de plural escrutinação à reclamada legalidade, nos termos explanados neste requerimento e no requerimento de recurso, levando de seguida também este (recurso) a idêntica avaliação colegial.”

*

Vejamos, no entanto, primeiramente, a decisão reclamanda, transcrevendo o essencial da sua fundamentação:

“ (…)

Efetuado o exame preliminar, considerámos que ambos os recursos apresentados devendo ser rejeitados pela existência de causa que deveria ter determinado a sua não admissão, como se encontra estabelecido no artigo 420º número 1 alínea b) do Código de Processo Penal

(…)

No que ao primeiro concerne vem o arguido recorrer da decisão proferida pela senhor juíza de instrução que comunicou, nos termos do artigo 303º do Código de Processo Penal, a alteração não substancial de factos constantes da acusação.

Esta decisão é insuscetível de recurso, porquanto a comunicação a que alude o artigo 303º do citado diploma legal, não implica, ipso facto, a efetiva alteração dos factos comunicados, mas apenas a manifestação da intenção, por parte do tribunal, de assim poder vir a proceder, intenção que pode não se concretizar. Basta pensar na possibilidade de arguido, usando a prerrogativa que a lei lhe concede, apresentar prova que afaste a dita alteração. Não é portanto uma decisão definitiva que contenda com direitos do arguido impondo tutela jurisprudencial.

Apenas a decisão que vier a ser proferida se e quando incorporar os factos alterados é que pode vir a ser objeto de recurso.

Destarte para se concluir portanto pela rejeição do primeiro dos dois recursos apresentados.

No segundo interposto o arguido vem recorrer da decisão instrutória.

Ora, estatui o artigo 310º do Código de Processo Penal que:

“1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.

2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.

3 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.”

No final do inquérito foi deduzida acusação contra os arguidos Jorge M., Marco R., Paulo M., Vítor H. e Rui J. imputando-lhes a prática em co-autoria material, em concurso real e na forma consumada de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos artigos 255º, al.a) e 256º, nº1, al a) c) e e), 3 e 4 do CP e um crime de burla qualificada p e p pelo artigo 217º, 218º, nº1 e 2, als a) e c), 202º, al b) todos do CP.

Apenas o arguido Rui J. requereu a abertura da instrução.

Aquando da leitura da decisão instrutória (fls.1617 a 1620), diligência na qual estiveram presentes todos os arguidos representados pelos seus Ilustres defensores, e os arguidos Rui J. (requerente da instrução) e Manuel S. também pessoalmente, a Senhora Juíza de instrução comunicou aos presentes uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, passando a referi-los concretamente, dando assim cumprimento ao preceituado no artigo 303º número 1 do Código de Processo Penal e acabando por pronunciar todos os arguidos, como se lhe impunha por força do estatuído no número 6 do artigo 307º do Código de Processo Penal pela prática, em co-autoria material, concurso real, na forma consumada e de forma continuada, nos termos do artigo 30º, nº2, do CP, um crime de falsificação de documento previsto e punido pelos artigos 255º, al a) e 256º, nº1, al.a) c) e e), 3 e 4 do CP e um crime de burla qualificada p e p pelo artigo 217º, 218º, nº1 e 2, als a) e c), 202º, al b) todos do CP.

Como decorre do que se acaba de dizer os arguidos foram pronunciados exatamente pelos mesmos crimes que constavam da acusação.

No que concretamente ao arguido aqui recorrente concerne, porque só o que a ele respeita aqui nos ocupa, são rigorosamente os mesmos factos que constavam já da acusação os que lhe foram imputados na pronúncia, limitando-se a senhora juíza a dar-lhes uma outra ordem narrativa.

Muitas vezes se tem verificado que, sob a veste de comunicação de alteração não substancial de factos, o que juiz se limita a fazer é descrever de modo mais claro, concretizando ou especificando o que constava já da acusação. Depois, por uma questão de cautela, para não ser “acusado” de ter procedido a uma alteração dos factos e de não ter dado conhecimento ao arguido, o tribunal procede à comunicação a que alude o artigo o artigo 358º do Código de Processo Penal.

Vejamos no concreto quais os factos alterados que respeitam ao arguido: claramente o que se encontra referido sob o nº13 apenas acrescentou na frase o verbo declarar tornando mais claro e explicita o que constava já da acusação.

E nos factos vertidos o que foi acrescentado encontra-se realçado:

7- Assim, os arguidos Jorge M., Marco R., aproveitando-se da situação vulnerável e da fragilidade emocional da ofendida Susete M., bem como dos problemas de saúde mental que a mesma padecia (não estando no domínio das suas faculdades mentais), gizaram um plano, que inicialmente teve como principal objetivo apoderarem-se de montantes indeterminados em dinheiro do BCE, provenientes da reforma que a ofendida mensalmente auferia e que estavam depositados na Caixa Geral de Depósitos, e, posteriormente, contactaram os arguidos Paulo M., Vitor H. e Rui J., que entraram no plano, apoderarem-se dos bens imóveis da mesma, vendendo-os e ficando para os arguidos o valor do seu preço.

Ora estes factos apenas se limitam a transpor para este artigo o que constava do ponto 15 da acusação onde concretamente se dizia que “ (…) no seguimento do plano ardiloso acordaso por todos os arguidos, sendo de salientar que os mesmos se conheciam mutuamente, pelo menos desde o ano de 2009 e mantinha uma relação de amizade muito próxima e permanente, aliás, que ainda perdura presentemente, tomaram a decisão conjunta, de continuarem a extorquir o património da ofendida Susete M., contra a vontade da mesma (…)”, portanto, como se vê, não há aqui qualquer alteração não substancial de factos, há sim uma “arrumação” diversa, que a senhora juiz entendeu por bem fazer, de modo a que a narração dos factos se fizesse de modo mais adequado, sendo descrito neste artigo a adesão, por parte daqueles três referidos arguidos (Paulo, Vitor e Rui), ao plano inicialmente gizado de extorquir dinheiro à ofendida o que se encontrava na acusação dito apenas um pouco mais adiante.

No ponto 20 constava da acusação o seguinte:

“ No dia 11 de Agosto de 2011, nas instalações do Cartório Notarial, do Notário arguido Paulo S., sito na Av…., em …, na presença deste e pelo seu próprio punho, foi outorgada uma outra procuração na qual a ofendida Susete M. constituiu seu bastante procurador o arguido Marco R. a quem conferiu os necessários poderes para justificar através do instituto da usucapião a propriedade para ela, outorgante, referente ao prédio rústico sito no Lugar do …, Freguesia da …, concelho de …”

Aqui só foi acrescentado a expressão “foi aposta a declaração de que” a seguir a “na qual” e antes de “a ofendida”. Este é claramente um daqueles casos a que acima nos referimos. Não haveria necessidade de, ao proferir a decisão instrutória, proceder a qualquer tipo de comunicação.

Esta só se impõe por lei quando, como refere Frederico Isasca, “se verifica uma modificação da realidade factual posta”. Quando assim não sucede quando tudo se passa dentro daquele “pedaço de vida” que na acusação se encontra vertida e que fixa e concretiza o objeto do processo, não existe qualquer alteração de factos (não substancial ou substancial) que importe dar a conhecer ao arguido para que ele possa, sobre eles, tomar posição. Isto porque a acusação limita e determina o âmbito do que pode o tribunal conhecer, mas não impõe o estilo, o modo, as concretas palavras de quem profere a pronúncia (ou de quem julga). “não se pode confundir alteração da factualidade quando se descreve a mesma mediante uma redação distinta, porquanto o que releva são os factos, enquanto acontecimentos ou circunstâncias da realidade”.

Contudo está abrangida pela irrecorribilidade prevista no artigo 310º nº1 do Código de Processo Penal, a decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, ainda que o Tribunal proceda a uma alteração não substancial dos factos que daquela constam.

Pelo exposto, vão rejeitados os recursos interpostos pelo arguido Paulo M., por inadmissibilidade legal, e o recorrente condenado em 3 UC de taxa de justiça, a que acrescem outras 3 UC nos termos do nº4 do art.420º do C.P.P.”.

*

Apreciando

Relativamente à decidida rejeição do recurso interposto da comunicação efetuada nos termos e para os efeitos do disposto no art.303º, nº1, do C.P.P. dir-se-á, como aliás já foi dito na decisão sumária de que o recorrente ora reclama, que “ (…) a comunicada alteração mais não é do que uma verdadeira declaração de intenções, que pode ou não vir a concretizar-se na decisão instrutória. Assim, tal advertência não tem qualquer outro conteúdo decisório, posto que, embora qualificando tais novos factos como alterações não substanciais, não é uma decisão no sentido da pronúncia definitiva sobre certo caso da vida. Nestes termos, a referida comunicação de uma alteração não substancial de factos é meramente ''provisória e transitória'', não afectando nenhum direito do recorrente a exigir qualquer tutela jurisdicional.”

Assim sendo, averiguemos, então do interesse em agir do recorrentes e, consequente, legitimidade para interpor o recurso apresentado da comunicação efetuada nos termos e para os efeitos do disposto no art.303º, nº1, do C.P.P..

O artigo 401º, n.º1 al. b), do CPP, estabelece que têm legitimidade para recorrer o arguido e o assistente das decisões contra eles proferidas. E o artigo 401º, n.º1, al. d), admite o recurso daqueles que tiverem de defender um direito afetado pela decisão.

Nos termos do artigo 401º, nº 1, alínea b) do CPP, o arguido pode, pois, recorrer das decisões contra ele proferidas. Decorre do disposto no artigo 61.º, nº1, al.i) do CPP que tais decisões são as que lhe forem desfavoráveis.

O poder do arguido de interpor recurso das decisões que “lhe sejam desfavoráveis”, previsto no artigo 61º, n.º1, al. i), identifica-se com a legitimidade para recorrer das decisões «contra ele proferidas», conferida pelo artigo 401º, n.º1 al. b).

A única exigência feita pela lei ao arguido para poder recorrer de uma decisão é que esta seja proferida contra ele, sendo que o interesse em agir do arguido, em sede de recurso, remete para a necessidade que ele tem de lançar mão desse meio para reagir contra uma decisão que comporte para si uma desvantagem, que frustre uma expectativa ou interesse legítimos, a significar que ele só pode recorrer de uma decisão com esse alcance, de acordo com Figueiredo Dias, in in RLJ, ano 128, p. 134, que conclui, citando Roxin: «Aquele a quem a decisão não inflige uma desvantagem não tem qualquer interesse juridicamente protegido na sua correção, não lhe assistindo, por isso, qualquer possibilidade de recurso».

Sendo assim, deve concluir-se que o texto da alínea b) do n.º1 do art. 401º já abrange o interesse em agir, ao exigir, para além da qualidade de arguido, que a decisão proferida lhe seja desfavorável, ou seja, que lhe cause prejuízo ou frustre uma expectativa ou interesse legítimos. O arguido tem interesse em pugnar por uma decisão que não seja favorável às suas expectativas.

Assim, para que o recurso seja admissível, não basta que o recorrente tenha legitimidade. É necessário que tenha interesse em agir, tal como decorre do art. 401º, nº 2, do CPP.

A respeito deste requisito para interposição de recurso, acrescentado pela Reforma do CPP instaurada por via da Lei 59/98 de 25/08, afirmava o Dr. Rui Pereira, na Comissão de Revisão (cfr. – Actas, p. 239): “legitimidade e interesse em agir exprimem pressupostos diferentes, autonomizados na doutrina Portuguesa por Palma Carlos e Manuel de Andrade, respeitando a legitimidade à posição do sujeito em relação ao processo e o interesse em agir à possibilidade de obter um ganho ou uma vantagem”.

Uma realidade é ter interesse na apreciação jurisdicional (legitimidade), outra ter necessidade de recorrer (interesse em agir).

O interesse em agir não se afere pela vantagem que para o recorrente advenha de uma decisão favorável, mas, sim, na utilidade objetiva da utilização da via de recurso.

Ressalvado o caso do MºPº (face ao seu estatuto e extensão dos seus deveres), a sua existência tem de ser ajuizada perante as circunstâncias de cada caso, interposto o recurso.

«Enfatiza este preceito dois pressupostos processuais em matéria de recursos penais: a legitimidade e o interesse em agir. Trata-se, em suma, de, por esta via, assegurar uma ligação do recorrente ao objeto do processo por forma a permitir que o desfecho do litígio satisfaça um interesse concreto assente ou relacionado diretamente com o concreto objeto da causa. No fundo uma garantia de economia processual de modo a impedir, nomeadamente, que o tribunal seja chamado a pronunciar-se sobre questões académicas, para mais, ao sabor de quem quer que, arbitrariamente, entendesse dever desencadear o processo” (cfr. António Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 401º, pág. 1283).

Como salienta Maia Gonçalves no seu Código de Processo Penal anotado e comentado, em anotação ao citado artigo, “A norma do nº2 significa que, para poder recorrer, além dos requisitos da legitimidade, deve ainda o recorrente ter necessidade de, no caso concreto, para realizar o seu direito usar o meio processual que é o recurso.”

No caso dos autos, a questão a dirimir consiste em saber se não se mostrando, com o supra referido despacho, afetado qualquer direito do recorrente a exigir tutela jurisdicional, o arguido pode, do mesmo, interpor recurso.

Ora, não pode afirmar-se ter a decisão sido desfavorável quanto ao mesmo, porquanto o sentido da decisão nesse particular em nada afeta os seus direitos ou interesses, que não foram colocados em causa.

Porém um recurso deve diretamente fazer valer uma pretensão pessoal, e ser dirigido à defesa das pretensões pessoais do recorrente.

Daí que lhe esteja vedada a interposição de recurso, quando através deste não visa a prossecução direta dos seus interesses pessoais no processo.

Neste sentido, e no caso concreto, não sendo a decisão recorrida proferida contra o arguido, porquanto não afetou nenhum direito do recorrente a exigir qualquer tutela jurisdicional, a mesma é irrecorrível, não tendo o mesmo interesse em agir – legalmente válido - para recorrer, pelo que nem sequer devia ter sido admitido o recurso, que é, por isso, de rejeitar, face ao disposto nos artigos 414º nº 2 (falta de condições necessárias para recorrer), 419º nº 4 a) e 420º nº 1, todos do Código de Processo Penal.

*

- Do recurso interposto da decisão instrutória

Vejamos:

A acusação do Ministério Público delimita o objeto do processo.

Com efeito, o tribunal está vinculado ao objeto do processo definido pela acusação ou pela pronúncia, e o objeto do processo pode ser definido, segundo uma conceção prevalecente na doutrina e na jurisprudência "como o facto, o acontecimento global da vida, o acontecimento histórico, incluindo todos os acontecimentos com ele ligados, do qual deriva a acusação admitida" (cfr.Frederico Isasca, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, 84).

Depois de fixado na acusação, o objeto do processo deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da sentença - é o chamado princípio da identidade.

Quer isto dizer que a acusação (ou a pronúncia, tendo havido instrução) define e delimita o objeto do processo, fixando o thema decidendum, sendo o elemento estruturante de definição desse objeto, não podendo o tribunal promovê-lo para além dos limites, o que constitui uma consequência da estrutura acusatória do processo penal.

O objeto do processo é assim constituído por aquele facto naturalístico que se discute, situado no passado, com a sua identidade, imagem e valoração social, que viola bens jurídicos penalmente tutelados, e por cuja prática o agente é alvo de censura.

Porém, se a acusação do Ministério Público delimita o objeto do processo, não delimita o objeto da discussão.

Com efeito, o tribunal está vinculado ao objeto do processo definido pela acusação ou pela pronúncia, mas não está vinculado à acusação ou à pronúncia - sendo que este último segmento do que vem de ser dito, carece de ser entendido em termos mais complexos.

Um facto pode ser constituído por uma multiplicidade de factos singulares que se conjugam numa unidade de sentido, permitindo apercebê-lo como um acontecimento da vida real, dotado de individualidade e de características próprias (o tal pedaço de vida), incindível enquanto formando um todo significante do ponto de vista social e do ponto de vista jurídico, na medida em que esse complexo de elementos pode ser também relevante deste último ponto de vista e, nomeadamente, do ponto de vista jurídico-penal.

Por conseguinte, o objeto do processo é a acusação, sim, mas enquanto descrevendo esse pedaço de vida, esse acontecimento da vida real e social, portador de uma unidade de sentido e, como tal, suscetível de um juízo de subsunção jurídico-penal. Esse é que é o quid que se tem de manter idêntico até à decisão final (a eadem res), não obstante as mutações que venha a sofrer. Em tal sentido, a acusação funciona como garantia para o arguido: "(...) a garantia de que apenas do que é acusado se terá de defender, e de que só por isso será julgado, posto que a eadem res da acusação à sentença é seguramente uma fundamental garantia para uma defesa pertinente e eficaz, segura de não deparar com surpresas incriminatórias e de ter assim um julgamento leal -, mas, por outro lado, no sentido também de não frustrar uma averiguação e um julgamento justos e adequados da infração acusada" (cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 210).

E é de realçar que são apenas os “factos” e não a qualificação jurídica que fixam a identidade e o objeto do processo penal.

Como refere Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2ª edição, 273, "por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afetada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo".

E, nos termos do nº4 do art.339º do Código de Processo Penal, a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação; os factos alegados pela defesa; os factos que resultarem da prova produzida em audiência; as soluções jurídicas pertinentes, em obediência ao princípio da verdade material.

Como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17.06.2009, in Procº 122/07.7GCACB.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc, "O processo penal não é um processo acusatório puro e o legislador não deixou o juiz na completa dependência dos sujeitos processuais relativamente ao esclarecimento dos factos. Ao processo penal estão subjacentes preocupações de justiça que impõem uma mais completa indagação da verdade permitindo que a versão dos factos construída no processo e a realidade se aproximem. O que aponta para a necessidade de ser encontrado um ponto de equilíbrio que resolva a tensão entre princípios aparentemente em litígio, remetendo-nos para a magna questão da definição do objeto do processo e das condições em que a conformação dos factos constantes da acusação pode ser alterada".

" (...) Os factos hão-de ser entendidos como acontecimentos históricos, como eventos naturalísticos, como sendo aquele "pedaço de vida" que em concreto se vai analisar.

O facto é um "certo caso concreto" que suscita um problema concreto, é um quid ontologicamente determinado mas juridicamente referenciado e, nessa medida, problemático-metodológico. O caso da vida, o acontecimento, é um "dado" de um problema, "um dado real", é certo, e de um problema, mas um dado axiológico-juridicamente referenciado, portanto um dado que coloca um certo problema, qual seja um problema jurídico.

O acontecimento histórico não é o facto naturalístico isoladamente considerado, ou exclusivamente apreciado de um ponto de vista jurídico, ou um "dado" de uma questão de direito que coloca um problema jurídico.

O acontecimento histórico é "um pedaço de vida" que se destaca da realidade e como tal, isto é, como pedaço da vida social, cultural e jurídica de um sujeito, se submete à apreciação judicial. A forma como ele é visto e compreendido, do ponto de vista social, torna-se num referente indispensável para a determinação e delimitação do conceito (...). O facto processual, como acontecimento ou pedaço de vida, não corresponde, do ponto de vista ontológico, a um único facto, mas a uma pluralidade de factos singulares que se aglutinam em torno de certos elementos polarizadores que permitem a sua compreensão, de um ponto de vista social, como um comportamento que encerre em si um conjunto tal de elementos que tornam possível identificá-lo e individualizá-lo como um autónomo pedaço de vida, isto é, uma fração destacável do contínuo comportamento de um sujeito, capaz de ser analisado em si e por si e, nessa medida, suscetível de um juízo de subsunção jurídico-penal, cuja cindibilidade seria tida como não natural, quer do ponto de vista da experiência social da vida (portanto não só pela sociedade como até do próprio agente), quer à luz da perspetiva jurídica.

Os princípios da unidade e indivisibilidade permanecem intocáveis. E respeitados ficam também, o princípio da vinculação temática - dentro da qual deve ser total a liberdade de qualificação jurídica e os poderes de investigação - e com ele o da máxima proteção do arguido" (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 6.10.2010, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp).

O Código de Processo Penal distingue, no âmbito da alteração dos factos, as situações em que a alteração é substancial daquelas em que não é substancial, sendo a disposição a considerar, na fase de instrução, no tocante a esta matéria o arts.303º do Código de Processo Penal.

Dispõe o art.303º do Código de Processo Penal:

1 - Se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.

2 - Não tem aplicação o disposto no número anterior se a alteração verificada determinar a incompetência do juiz de instrução.

3 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

4 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo.

5 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução.

" (...) Alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido.

(...) A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites das sanções aplicáveis" (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.03.2007, Procº 07P024, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj".

"Só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporte a factos constitutivos de crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave. A modificação dos restantes factos que constem da acusação ou da pronúncia constitui alteração não substancial dos factos, desde que sejam relevantes para a decisão da causa" (cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Sérgio Pinto de "Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem", 2ª edição atualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 37).

Assim, como decorre da letra do art.1º, nº1, al.f) do Código de Processo Penal, nem toda a modificação dos factos deve ser considerada "substancial". Com efeito, o Código de Processo Penal refere uma outra: "a alteração não substancial dos factos".

Para além dos factos constantes da acusação, que como já referido, constituem o objeto do processo em sentido técnico, podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjetivo, histórico, normativo finalista, sociológico, temporal, psicológico, etc.

Esses factos novos fazem parte do chamado "objeto do processo em sentido amplo". Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, isto é, não contendem com a identidade do objeto do processo, mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto nos arts.303º, nº1 do C.P.P. (na fase de instrução) ou 358º, nº1, do C.P.P. (na fase de julgamento).

"O crime será o mesmo, ou melhor, não será materialmente diverso, desde que o bem jurídico tutelado seja essencialmente o mesmo. E será essencialmente o mesmo quando os seus elementos constitutivos essenciais não divergirem. Se os novos factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrita na acusação, podem alterar-se as modalidades da ação, pode o evento material não ser inteiramente coincidente com o modo descrito, podem alterar-se as circunstâncias e a forma de culpabilidade que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça o mesmo " (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 382).

Na al. f) do art. 1.º do CPP classifica-se como alteração substancial dos factos, em contraste com a alteração não substancial, aquela que envolva a imputação de crime diverso ou o agravamento da moldura penal. Ponto é, no entanto, que se verifique uma alteração de factos, pois quando os factos se mantêm intocados, e apenas se procede a uma qualificação jurídica diversa da que constava da acusação, essa alteração é equiparada pelo legislador à alteração não substancial dos factos.

Crime diverso não é o mesmo que tipo incriminador diverso. É que o mesmo juízo de desvalor pode ser comum a diversas normas, a diversos tipos, que mantendo em comum o juízo de ilicitude divergem apenas na sua quantidade, não na essência, mas na gravidade.

É a este segundo aspeto que atende a parte final do art. 1.°, n.º 1, al. f), quando considera que há alteração substancial ainda quando se mantenha o mesmo crime, desde que resultem agravados os limites máximos das sanções aplicáveis. Se da alteração dos factos resultar agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, ainda que não resulte diversidade entre o crime acusado e o apreciado pelo tribunal, a lei considera que o tribunal não pode também considerar os novos factos.

Assim, qualquer alteração dos factos descritos na acusação, desde que não implique alteração do juízo base de ilicitude nem agrave os limites máximos das sanções aplicáveis ao agente do crime acusado, pode ser tomada em conta, assegurando-se ao arguido a possibilidade de se defender em razão da alteração, mas já não nas hipóteses contrárias.

Como já se disse, o crime será o mesmo, ou melhor, não será materialmente diverso, desde que o bem jurídico tutelado seja essencialmente o mesmo. E será essencialmente o mesmo quando os seus elementos constitutivos essenciais não divergirem. Se os novos factos puderem ainda integrar a hipótese de facto histórico descrita na acusação, podem alterar-se as modalidades da ação, pode o evento material não ser inteiramente coincidente com o modo descrito, podem alterar se as circunstâncias e a forma de culpabilidade que o crime não será materialmente diverso, desde que a razão do juízo de ilicitude permaneça a mesma.

O crime não será também materialmente diverso quando apenas variarem as formas de execução do crime ou as modalidades de autoria ou comparticipação, desde que os atos acusados e apurados possam ainda reconduzir-se ao mesmo facto histórico, ou seja, na expressão de Castanheira Neves, desde que esteja «em congruência com o sentido jurídico-criminal problematicamente constitutivo do caso concreto» (ob. cit., p. 262).

Para ocorrer uma alteração dos factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles. Não ocorre uma alteração dos factos quando o tribunal qualifique de maneira diversa, sem os modificar, os factos descritos na acusação. (Neste sentido Acs. do STJ de 17.09.2009 e 15.04.2010, in www.dgsi.pt).

Ora, no caso "sub judice" não há alteração substancial de factos.

Com efeito, analisando a acusação e a decisão instrutória, verifica-se que os factos naquela constantes não divergem dos constantes na decisão instrutória, ainda que, nesta, com redação própria, verificando-se uma homogeneidade da factualidade, porquanto o sentido da acusação mantém-se o mesmo, os factos com a redação da decisão instrutória refletem a mesma realidade vertida na acusação, sendo passíveis de idêntico juízo social, ou seja, idênticos do ponto de vista da sua valoração social, destinando-se a especificar e enquadrar circunstancialmente factos já constantes da acusação. Com efeito, a ação manteve-se inalterada, ou seja, o núcleo substancial do facto, objeto do processo, manteve-se inalterado. De diferente, apenas a redação. Trata-se, assim, de elementos da atividade que constitui objeto do processo que nada tem que ver com a própria ação. Não há modificação dos factos, há apenas um relato diverso.

O pleno exercício pelo arguido das garantias de defesa que lhe assistem tem como pressuposto lógico a estabilização do objeto processual logo que este tenha sido fixado pela acusação ou pela pronúncia, quando esta exista, objeto esse que, de acordo com o disposto nos arts. 283.º e 308.º nº 2 do CPP, se compõe obrigatoriamente de uma narrativa factual e de um certo enquadramento jurídico-penal dos factos narrados.

Nesta ordem de ideias, qualquer alteração do objeto processual tem de ser necessariamente excecional e tem de ocorrer de modo a deixar ao arguido a oportunidade de reorganizar a sua defesa, na medida necessária.

Com efeito, o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que tenha tido a possibilidade de adequadamente se defender.

Aliás, o processo penal tem que ser um processo equitativo e justo, não sendo admissível, num Estado de Direito, a possibilidade de ao arguido poder ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido e avisado, isto é, sem que lhe seja dado oportuno e adequado conhecimento da possibilidade do que nela possa vir a ser condenado.

E tal foi assegurado nos presentes autos.

Assim sendo, vejamos agora o art.310º do CPP, que no seu nº1 preceitua que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias e incidentais, e determina a imediata remessa dos autos ao tribunal competente para o julgamento.

Por conseguinte, sendo agora indiscutível a total irrecorribilidade da decisão instrutória que determinar a sujeição do arguido a julgamento pelos atos comportamentais imputados na acusação do M.º P.º, impõe-se a rejeição do recurso em questão, por inadmissibilidade legal, (cfr. art.º 420.º, n.º 1, por referência ao 414.º, n.º 2, do C. P. Penal, e 420.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal).

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Dispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- julgar improcedente a reclamação para a conferência, apresentada pelo arguido Pedro M., mantendo e confirmando a decisão sumária proferida em 27 de Junho de 2016, que, por inadmissibilidade legal, rejeitou os recursos interpostos pelo arguido/recorrente.

- Taxa de justiça, pelo reclamante, que se fixa em 4 UC,s.

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Guimarães, 24 de Outubro de 2016

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Laura Goulart Maurício

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Alda Tomé Casimiro