Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
510/04.0TBBCL.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/27/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1) A prestação de contas destina-se a apurar e aprovar as receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se;
2) O apuramento do saldo das contas não se compadece com uma apreciação com recurso a valores estimados;
3) A falta de apresentação de contas pelos réus não tem o efeito de validar as contas que sejam apresentadas pelas autoras, independentemente da sua apreciação, nesse sentido se podendo afirmar que aquela omissão não tem efeito cominatório.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
A) M… e marido F… e M… vieram intentar ação especial de prestação de contas contra C… e esposa M… e J…, onde concluem pedindo, na procedência da ação, que os réus sejam notificados para, no prazo de 30 dias, apresentarem contas.
Para tanto alegam, em síntese, que na sucessão aberta por óbito de M…, ocorrida em 30 de Setembro de 1976, foram habilitados como únicos herdeiros daquela, as autoras M…, M… e os réus C… e J….
Faz parte integrante do acervo hereditário, um estabelecimento comercial que possui quatro lojas de venda ao público de calçado e acessórios, cuja gestão sempre esteve a cargo dos réus C… e J…, os quais nunca prestaram contas dessa atividade.
Apenas os réus C… e esposa M… apresentaram contestação, onde impugnam alguns dos factos alegados na petição e entendem dever a ação ser julgada improcedente, por não provada, devendo os réus serem isentos da obrigação de prestação de contas.
Os autores M… e marido F… e M… apresentaram resposta onde requerem a intervenção principal provocada dos herdeiros de D…, já falecido, G…, A…, D…, P…, M… e C…, por ter sido aquele quem tratava da parte contabilística e concluem como na petição inicial.
Foi proferido despacho que não admitiu o incidente.
Produzida a prova, foi proferida a decisão de fls. 337 e segs., onde se julgou procedente o pedido e existente a obrigação de prestar contas.
Inconformados com a decisão, vieram os réus C… e esposa M… interpor recurso (fls. 345), o qual foi admitido como sendo de apelação a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeitos suspensivo (fls. 346).
Foi proferido Acórdão nesta Relação (fls. 416 e segs.) que julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença recorrida, determinando a notificação dos réus para apresentarem as contas dentro de 20 dias, com a cominação do nº 5 do artigo 1014º-A do Código de Processo Civil.
Os réus não apresentaram contas e, notificados para o efeito, os autores apresentaram contas juntando os documentos constantes de fls. 541 e segs., tendo o tribunal a quo determinado que um administrador de empresas se pronunciasse sobre as verbas inscritas pelo autor, o que sucedeu, tendo o mesmo junto o relatório e parecer técnico por si elaborado a fls. 562 e segs.
As autoras M… e M… vieram requerer a nomeação de novo perito e a realização de nova perícia (fls. 599), o que foi deferido (fls. 606).
Entretanto, foi dado conhecimento do falecimento do réu C… e procedeu-se à habilitação dos herdeiros do mesmo, tendo sido julgados habilitados como seus herdeiros M… e C….
A fls. 933 veio a autora M… desistir do pedido de prestação de contas contra todos os requeridos, desistência essa que foi homologada pela sentença de fls. 934.
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B) Foi proferida a sentença de fls. 1073 e segs., onde se decidiu não se julgarem boas as contas apresentadas, a fls. 541 – 542, pela autora M…, pelo que não foram as mesmas aprovadas.
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C) Inconformada com a decisão, veio a autora M… interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (fls. 1112).
Nas suas alegações, a apelante M… formulou as seguintes conclusões:
1. Os réus foram condenados a apresentar contas à autora, da sua gestão dos estabelecimentos, entre os anos de 1976 e 2006.
2. Os administradores de um estabelecimento comercial estão obrigados nos termos do artigo 29º do Código Comercial a possuir escrituração mercantil, nos termos definidos na lei.
3. Os réus não apresentaram contas.
4. Os réus justificaram tal facto com base no alegado desaparecimento misterioso dos elementos contabilísticos e demais documentos de suporte dos estabelecimentos comerciais em causa, por si administrados.
5. Os réus estavam legalmente obrigados a elaborar e manter a contabilidade organizada e a guardar os respetivos documentos.
6. Ao permitirem o misterioso desaparecimento de tais documentos impossibilitaram de todo modo a apresentação de contas rigorosas por parte da autora, ou de qualquer outra pessoa.
7. A autora apresentou, no entanto, as contas possíveis, elaboradas com base no único registo sobrevivente ao “misterioso desaparecimento documental” – o registo manual diário das vendas.
8. Nomeado um perito para se pronunciar sobre as contas apresentadas, limitou-se o mesmo a pronunciar-se sobre os documentos apresentados pelos réus, abstendo-se de se pronunciar sobre uma que fosse das verbas inscritas pela autora.
9. Face à incapacidade do Sr. Perito em se pronunciar sobre o que lhe foi pedido, foi nomeado colégio pericial para o efeito.
10. Este colégio, no entanto, nada avançou relativamente às contas apresentadas pela autora, reafirmando a necessidade de ter em sua posse os documentos contabilísticos necessários a “obter a verdadeira situação financeira e patrimonial da empresa”, sem que, porém, em algum momento do processo tal tarefa lhe tivesse sido confiada!
11. Nenhuma análise foi efetuada às contas apresentadas, nenhuma das suas parcelas foi questionada ou discutida.
12. Todos se escudaram na falta de suporte documental para se absterem de praticar os atos a que estavam obrigados: os réus na apresentação de contas; os Peritos na apreciação das contas apresentadas.
13. As peritagens realizadas revelaram-se assim absolutamente inúteis, pois ressalta claro que os Srs. Peritos não compreenderam a finalidade para a qual foram chamados aos autos.
14. Culmina toda esta situação com a sentença agora objeto de recurso que, na mesma esteira da falta de dados documentais, justifica a não aprovação das contas, em manifesta contradição com o texto e o espírito do artigo 1015º nº 2 do CPC, com claro benefício de quem incumpriu porque não apresentou contas e deixou desaparecer os elementos contabilísticos de suporte e manifesto prejuízo de quem confiou na gestão de outrem e na administração da justiça e por duas vezes viu frustrada a sua confiança.
15. A sentença recorrida está em contradição com a lei e também com a jurisprudência pelo que deverá ser revogada, ao exigir das contas apresentadas pela autora um rigor que a lei não exige nem pretende.
16. Ao decidir como decidiu beneficiou a referida sentença o infrator em claro prejuízo de quem nele confiou.
17. Ao não aprovar as contas apresentadas violou a sentença recorrida o disposto no artigo 659º nº 2, o artigo 668º nº 1, al. d) e o artigo 1015º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Termina entendendo dever o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que aprove as contas apresentadas pela autora, com todas as demais consequências legais.
As apeladas M…, M… e C… apresentaram resposta onde entendem dever ser julgado totalmente improcedente o recurso e mantida a sentença recorrida.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) A questão a decidir neste recurso é a de saber se deverão ser aprovadas as contas apresentadas pelas autoras.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Consideram-se provados os seguintes factos:
1) Em 30/09/1976 faleceu M…, tendo sido habilitados como únicos herdeiros as autoras M… e M… e os réus C… e J….
2) Em 14/01/2009 faleceu o réu C…, tendo sido julgados habilitados como suas únicas herdeiras M… e C…
3) Faz parte integrante do acervo hereditário, um estabelecimento comercial que gira sob o nome “M…, Herdeiros”, que tem como atividade a venda ao público de calçado e acessórios;
4) Foi proferida sentença nestes autos, em 24/04/2006, que julgou procedente o pedido e existente a obrigação de os réus apresentarem contas (fls. 337 e (segs), a qual foi confirmada por Acórdão desta Relação de Guimarães de 22/02/2007 (fls. 416 e seg), que determinou a notificação dos réus para apresentarem contas no prazo de 20 dias;
5) As rés, notificadas para o efeito, não apresentaram contas da sociedade irregular “M…, Herdeiros;
6) As autoras M… e M… apresentaram as contas, juntando os documentos de fls. 541 e 542;
7) Tais contas foram elaboradas, não obstante a ausência de elementos contabilísticos e respetivos suportes, tendo em conta o livro de registo manual diário do montante das vendas efetuadas por cada um dos estabelecimentos do Grupo Sapatarias C…;
8) As mesmas contas partiram do montante das vendas e abateram-se os valores estimados relativos:
a) ao custo das mercadorias, admitindo uma percentagem média na ordem dos 100% sobre o valor de compra;
b) às despesas com salários dos trabalhadores, tendo como critério os valores do salário mínimo nacional;
c) as despesas com os salários dos gerentes, tendo por base o valor dos salários dos professores, dado que era por essa tabela que alegadamente se faziam pagar;
d) despesas com contribuições para a segurança social de trabalhadores e gerentes (apenas até 1998, pois a partir dessa data não foram efetuados pagamentos àquela entidade);
e) despesas com encargos fiscais (apenas até 1998 pois sabe-se que após aquela data não foram cumpridas as obrigações fiscais dos estabelecimentos) que se fixaram numa percentagem média anual de 30%;
9) Os estabelecimentos não tinham encargos com rendas de imóveis.
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B) O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações das recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.*
C) A prestação de contas destina-se a apurar e aprovar as receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se (artigo 941º NCPC).
Na situação a que os autos se referem ficou determinada a obrigação de prestação de contas por parte dos réus e foi fixado o prazo de 20 dias para o efeito, não tendo os mesmos apresentado contas.
Notificados para o efeito, vieram as autoras apresentar contas, através dos documentos juntos a fls. 541 e 542, relativamente ao período de 1977 até 2005.
Conforme se referiu, o tribunal a quo determinou que um administrador de empresa se pronunciasse sobre as verbas inscritas pelo autor, o que sucedeu tendo o mesmo junto o relatório e parecer técnico por si elaborado a fls. 562 e segs., onde refere, designadamente, que:
- Não foi entregue o modelo 22 de IRC, relativo ao exercício de 1993, não existindo quaisquer elementos contabilísticos ou fiscais que permita a apreciação desse exercício;
- Relativamente aos exercícios de 1999 e 2000, foi considerado que as contas apresentadas não são fiáveis.
As autoras M… e M… vieram requerer a nomeação de novo perito e a realização de nova perícia (fls. 599), o que foi deferido (fls. 606), determinando-se a realização de uma segunda perícia, tendo os três Srs. Peritos nomeados afirmado inexistirem elementos contabilísticos que permitam apurar a verdadeira situação financeira e patrimonial da empresa em questão, não lhes sendo possível efetuarem o relatório solicitado, devido à inexistência de elementos contabilísticos suficientes.
Daí que tenha sido proferida a sentença de fls. 1073 e segs., onde se decidiu não se julgarem boas as contas apresentadas, a fls. 541 – 542, pela autora M…, pelo que não foram as mesmas aprovadas.
Importa notar que uma das finalidades do processo especial de prestação de contas é o apuramento do saldo das contas e que tal resultado não se compadece com uma apreciação com recurso a valores estimados, isto é, por estimativa.
Se atentarmos nas contas apresentadas pelas autoras – que, rigorosamente não se mostram sequer corretamente apresentadas, uma vez que deveriam apresentar-se sob a forma de conta-corrente (cfr. artigo 944º nº 1 NCPC) – verificamos que as mesmas, de acordo com o requerimento que apresentaram, foram elaboradas na ausência de elementos contabilísticos e respetivos suportes, tendo em conta o livro de registo manual diário do montante das vendas efetuadas por cada um dos estabelecimentos do Grupo, partiram do montante das vendas e abateram-se os valores estimados relativos ao custo das mercadorias, às despesas com salários dos trabalhadores, às despesas com os salários dos gerentes, às despesas com contribuições para a segurança social de trabalhadores e gerentes e às despesas com encargos fiscais.
Isto é, é da essência do processo especial de apresentação de contas que as mesmas sejam rigorosas, baseadas em elementos concretos e tangíveis e não com recurso a valores estimados ou aproximados.
Trata-se de matéria em que não é permitido o recurso a critérios de equidade, dado que a lei na sua letra e no seu espírito, não previu tal possibilidade e, de resto, contrariaria a sua natureza.
Outra questão que importa esclarecer tem a ver com o disposto no artigo 943º nºs 1 e 2 NCPC, que corresponde ao artigo 1015.º do anterior Código de Processo Civil, onde se estabelece que:
1 - Quando o réu não apresente as contas dentro do prazo devido, pode o autor apresentá-las, sob a forma de conta corrente, nos 30 dias subsequentes à notificação da falta de apresentação, ou requerer prorrogação do prazo para as apresentar.
2 - O réu não é admitido a contestar as contas apresentadas, que são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor.
A questão que se levanta é a de saber qual a apreciação a fazer em situações em que os réus não apresentaram as contas e – como no caso presente – foram apresentadas pelas autoras, em termos de avaliação das mesmas.
Desde logo, importa esclarecer que a falta de apresentação de contas pelos réus não tem o efeito de validar as contas que sejam apresentadas pelas autoras, independentemente da sua apreciação, nesse sentido se podendo afirmar que aquela omissão não tem efeito cominatório.
A consequência é, antes, quanto aos réus, a impossibilidade de contestarem as contas apresentadas pelas autoras.
No entanto, privilegia-se a descoberta da verdade material ao estabelecer-se que as contas são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor (artigo 943º nº 2 NCPC).
Daí que, independentemente do facto de as contas terem sido apresentadas pelas autoras, por não terem sido apresentadas pelos réus, o que verdadeiramente interessa é a fiabilidade real das contas apresentadas, a sua justificação material em face dos elementos disponíveis que, no caso presente, não podem justificar a sua aceitação, pelo que bem andou o tribunal a quo em não as julgar boas e não as aprovar.
E não adianta tentar deslocar o centro de gravidade da questão para o facto de os Peritos não terem realizado a perícia, dado que não dispunham de elementos para realizar a perícia solicitada, por falta de elementos fidedignos, uma vez que, conforme já se referiu está em causa a descoberta da verdade material que, com os elementos disponíveis, não se mostrava possível de apurar.
Por todo o exposto e sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de improceder e confirmar-se a douta sentença recorrida.
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D) Em conclusão:
1) A prestação de contas destina-se a apurar e aprovar as receitas obtidas e as despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se;
2) O apuramento do saldo das contas não se compadece com uma apreciação com recurso a valores estimados;
3) A falta de apresentação de contas pelos réus não tem o efeito de validar as contas que sejam apresentadas pelas autoras, independentemente da sua apreciação, nesse sentido se podendo afirmar que aquela omissão não tem efeito cominatório.
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III. DECISÃO
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Guimarães, 27/03/2014
António Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Duarte
Fernando F. Freitas