Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
984/16.7T9BRG.G2
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
NEGLIGÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) À violação do dever objetivo de cuidado/vigilância imposto ao agente, importa ainda averiguar se, no caso concreto, este era capaz ou tinha condições de cumprir tal dever.
II) Para esta análise contribuem, entre outras, as condições objetivas de segurança e a suficiência de meios humanos existentes, o ritmo de trabalho e a sobrecarga de tarefas impostas ao agente/cuidador, bem como as possibilidades, ao alcance deste, de atuar sobre as mesmas.
III) É ainda imprescindível que o resultado seja imputado, mediante um nexo causal de adequação, à conduta do agente.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. Em processo comum (Tribunal singular) com o nº 984/16.7T9BRG a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz 2, após ter sido determinado o reenvio do processo para novo julgamento, foi proferida sentença, datada de 10/12/2020, com a seguinte decisão (transcrição):
Decisão
Pelo exposto, julgando-se improcedente a acusação pública, absolvem-se as arguidas L. F. e M. D. da prática, como autoras materiais, dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1 e 3, do Código Penal, que lhes estavam imputados.
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Notifique e deposite.”
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2 – Não se conformando com a decisão, a assistente S. P. interpôs recurso, oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):

1. ª - A Assistente, aqui recorrente, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discorda da douta sentença recorrida, pelo que vem, pelo presente, interpor recurso da mesma, que decidiu absolver as arguidas, L. F. e M. D. da prática, como autoras materiais, dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal que lhe eram imputados.
2. ª - Numa primeira fase, existiu uma sentença primitiva, que absolveu as arguidas, L. F. e M. D. da prática, como autoras materiais, dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, que lhe eram imputados.
3. ª - Os assistentes, R. F. e S. P., interpuseram recurso dessa decisão, invocando a nulidade da sentença por falta de enumeração na factualidade provada e não provada de todos os factos constantes da acusação, impugnando a matéria de facto dada por provada e não provada e sustentando que as condutas das arguidas preenchiam todos os pressupostos legais do crime imputado, pelo que deviam ser condenadas.
4. ª - Na instância de recurso, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, no qual invocou o vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, por insuficiência da matéria de facto para a decisão, pugnando pela procedência dos recursos.
5. ª - O Recurso foi apreciado, do qual resultou acórdão, que concluiu que do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, decorria o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP e não sendo possível ao tribunal de recurso suprir o aludido vício, determinou o reenvio do processo para novo julgamento para resposta a algumas questões, ficando as demais questões prejudicadas por esta decisão, concedendo, assim, o Tribunal de Recurso provimento aos recursos interpostos pelos assistentes, R. F. e S. P..
6. ª - Como resultado desse novo julgamento, foi proferida nova decisão, que julgou improcedente a acusação pública e absolveu, novamente, as arguidas, L. F. e M. D., como autoras materiais dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, p. e p., pelo artigo 148.º, n.º 1 e 3 do Código Penal que lhe estavam imputados, sendo desta nova decisão que se interpõe o presente recurso.
7. ª - Salvo o devido respeito pela posição vertida na douta sentença primitiva e agora na nova sentença proferida nos autos e ora posta em crise, entende-se que ambas padecem de vícios, pois, para além de procederem a um incorrecto julgamento da matéria de facto, não extraem de forma correcta as consequências jurídicas da matéria de facto apurada no decurso da audiência de julgamento.
8. ª - O tribunal a quo, na sentença primitiva, e na actual sentença, desconsiderou, em absoluto, o depoimento dos assistentes e demais testemunhas inquiridas em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo tirado conclusões sem qualquer fundamentação e até contraditórias em relação ao que cada um referiu em concreto, até mesmo e com referência ao depoimento das próprias arguidas.
9. ª - Pretende, assim, a aqui recorrente, recorrer da matéria de facto dada como provada e não provada, por entender que outra decisão deveria ter sido tomada quanto a este aspecto, pois que perscrutando-se a matéria de facto e bem assim a matéria de direito excelsiamente vertida na sentença em crise, julga-se, respeitosamente, não se poder concordar com o elenco dos factos provados/não provados e que influirá na decisão tomada e na aplicação do direito ao caso.
10. ª - No mais, contra a matéria de facto dada como provada e não provada, insurge-se a assistente, S. P., aqui recorrente, pois que perscrutando-se a matéria de facto e bem assim a matéria de direito excelsiamente vertida na sentença em crise, julga-se, respeitosamente, não se poder concordar com o elenco dos factos provados/não provados e que influirá na decisão tomada e na aplicação do direito ao caso.
11. ª - Assim, salvo o devido e merecido respeito pela decisão ora em crise, entende a aqui recorrente, contrariamente ao defendido pelo tribunal a quo na decisão primitiva e reproduzida nesta nova decisão proferida pelo tribunal a quo, que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não resultaram provados os factos constantes dos pontos 22 e 23 da matéria de facto dada como provada com referência às contestações, devendo antes estes factos ser considerados como não provados.
12. ª - Por outro lado, resultou provado, sendo que o tribunal a quo deu este facto como não provado, o facto constante da alínea d) dos factos não provados, nomeadamente que as arguidas conseguissem vigiar todas as crianças que lhes tinham sido entregues na valência da creche, ao mesmo tempo que preparavam a comida e lhes davam a refeição.
13. ª - Foram, por outro lado, considerados como provados pelo tribunal a quo, no novo julgamento realizado, os factos constantes das alíneas k), j) (incorrectamente designado por alínea j), pois deveria ser a alínea l), m) e n), devendo antes estes ser considerados como não provados, tendo o tribunal a quo, em ambas as audiências de discussão e julgamento realizadas, desvalorado parte significativa da prova testemunhal, nomeadamente o depoimentos dos assistentes e demais testemunhas inquiridas, fazendo uma valoração errada dos seus depoimentos.
14. ª - Deste modo, cumprindo o ónus da impugnação da matéria de facto, como lhe compete, a aqui recorrente procedeu, nestes concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e que referiu, à demonstração dos concretos meios probatórios, constantes do processo e registo em gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre estes pontos de facto aqui impugnados.
15. ª - Assim, encontram-se as arguidas acusadas de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, P. e P. pelo artigo 148.º do Código Penal que refere que comete este ilícito penal “quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”.
16. ª - Este crime tipifica, assim, como criminalmente puníveis, aqueles comportamentos imprudentes ou inadvertidos, negligentes portanto, que têm como consequência lesões na integridade físico-psíquica de outros, tratando-se dum crime de resultado que pode ser cometido tanto por ação como por omissão, segundo o previsto no artigo 10.º do Código Penal.
17. ª - Por outro lado, de acordo com o artigo 15.º deste mesmo Código, age com negligência “...quem não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado, e de que é capaz”, sendo, assim, necessário que esteja preenchido o seu elemento específico, que é a violação de um dever objetivo de cuidado.
18. ª - Assim, o conteúdo do dever objetivo de cuidado é uma consequência da previsibilidade ou da justa previsão da lesão de um bem jurídico, tendo-se para o efeito em conta o momento em que essa diligência devia efetuar-se, ocorrendo a violação desse dever de cuidado ou de diligência desde que tais regras jurídicas não sejam tomadas em conta, e, portanto, da omissão dum dever de previsão.
19. ª - Deste modo, em sede de tipo de ilícito negligente para que exista crime é necessário que se verifique: a violação de um dever objetivo de cuidado que pode ter origem legal autónoma, se derivar de certas normas que visem prevenir perigos ou tão- somente derivar de certos usos e costumes ou da experiência comum; a produção de um resultado típico; a imputação objetiva do resultado à ação; a violação do dever de cuidado tem que ser causa adequada do resultado, sendo-o quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, segundo a experiência normal, for idóneo a produzir aquele resultado que é uma consequência normal e típica daquela ação e a imputação subjetiva ou previsibilidade e evitabilidade do resultado.
20. ª - Assim, quando o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, podia ou devia, segundo as regras da experiência comum e as suas qualidades e capacidades pessoais, ter representado como possíveis as consequências da sua conduta, poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se o agente que, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o cuidado necessário para evitar o resultado cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto.
21. ª- Confrontando-nos perante um crime negligente de resultado há que atender que, para o preenchimento do tipo de ilícito, não basta que se verifique o resultado e que se verifique a violação do dever objetivo de cuidado, pois que não se pode prescindir da imputação objetiva do resultado.
22. ª - Deste modo, mesmo que se verifique a violação de um dever objetivo de cuidado, não se pode imputar a responsabilidade ao agente se a norma de onde esse dever de cuidado emanava não tinha por finalidade evitar resultados como o produzido.
23. ª - Como já o dissemos, este crime também pode ser cometido por omissão - crime omissivo impróprio ou impuro -, sendo que para a sua verificação se exige a ausência de ação, como ato voluntário, a capacidade fáctica de ação (excluindo as situações em que inexistam, por parte do agente, as características físicas ou intelectuais, os conhecimentos ou instrumentos que lhe permitam evitar a concretização do perigo), o nexo de causalidade adequada (possibilidade do agente desencadear um processo causal idóneo a evitar a concretização do perigo, sendo essa possibilidade conhecida ou cognoscível do agente), e, finalmente, o conhecimento da posição de garante.
24. ª - Inegável, portanto, que o ilícito em análise tanto pode ser cometido por ação, ao desencadear um processo causal que cria ou aumenta o perigo de verificação de uma lesão, como por omissão, consubstanciada na circunstância de não desencadear ou interromper um processo causal que evite ou diminua a concretização de um perigo preexistente de lesão.
25. ª - Deste modo, para que o agente possa ser punido temos que averiguar se se verifica: a violação do dever de cuidado (imprudência ou criação de um risco não permitido) que é aquele que é apto a causar a lesão e for exigível e possível ao agente a sua evitação, cuja evitabilidade do resultado nefasto seja, precisamente, a finalidade (...) da norma infringida pelo agente, nisto se traduzindo a doutrina do âmbito de tutela da norma.
26. ª - O agente será responsável penalmente se, através de uma ação ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função, provocar um resultado, in casu, uma ofensa à integridade física que era objetivamente previsível e passível de ser evitada”.
27. ª - Reportando-nos agora ao caso dos autos, cumpre apreciar se as arguidas com as condutas que lhes eram imputadas incorreram, efetivamente, na prática dos crimes pelos quais se encontram acusadas.
28. ª - Dos factos apurados resulta que as arguidas eram auxiliares da ação educativa, incumbindo-lhes, ademais vigiar os menores que tinham ao seu cuidado, sendo que as arguidas ao deixarem de vigiar os menores, B. L. e R. S., permitindo que os mesmos ingressassem na cozinha e onde se encontrava um tacho com arroz e água a ferver, violaram o dever objetivo de cuidado consistente precisamente no dever de vigilância a que estavam obrigadas.
29. ª - As arguidas detinham a guarda, educação, ocupação e vigilância destes menores, agindo com total falta de vigilância.
30. ª - Atentas as circunstâncias em que o acidente se deu, nomeadamente o esquecimento da porta da cozinha aberta, sendo que outra conclusão não pode ser retirada, e sem barreiras de proteção que podiam, no mínimo, ser lá colocadas, permitiram o acesso facilitado à cozinha por crianças de tenra idade que não conseguiam discernir o perigo, facilmente se constatando que as arguidas não procederam com o cuidado a que nas circunstâncias da referida actividade estavam obrigadas.
31. ª - As arguidas actuaram de forma desatenta e descuidada, nomeadamente não cumprindo as obrigações que lhes estavam atribuídas de vigilância das referidas crianças, nem as devidas cautelas adequadas e necessárias a assegurar a segurança das crianças, desta forma impedindo que estas se aproximassem e alcançassem objectos e utensílios perigosos que colocassem em perigo o seu corpo ou a sua saúde.
32. ª - À data dos factos eram as arguidas que exerciam a função de auxiliares de ação educativa e que tinham o dever de cuidar destas duas crianças, de zelar pela sua segurança, de vigiar as suas condutas, e controlar os seus movimentos, de modo a impedir que pudessem alcançar e fossem atingidos por elementos em estado de ebulição.
33. ª - As arguidas conheciam as suas obrigações de cuidar e vigiar as duas crianças e de impedir que estas pudessem alcançar objectos com elementos em estado líquido ou estado de ebulição e estavam em condições de cumprir tais obrigações, não obstante agiram com falta de cuidado a que estavam obrigadas, não vigiaram os movimentos dos ofendidos e não impediram que estes alcançassem objectos/utensílios com líquidos/alimentos em estado de ebulição nem impediram que estes fossem molestados no corpo e na saúde, como sucedeu.
34. ª - Ao agir sem o cuidado a que estavam obrigadas e em condições de cumprir, as arguidas violaram o dever de vigilância que sobre as mesmas impendia, permitindo que estas duas crianças alcançassem e fossem atingidas por elementos em estado de ebulição, apesar de estarem cientes do dever que tinham de cuidar e vigiar as duas crianças de modo a evitar que as mesmas vissem a sua saúde afectada como aconteceu.
35. ª - Como se sabe, a cozinha é um local onde existem perigos vários para as crianças, desde fontes de calor, produtos abrasivos e venenosos e até objectos cortantes, pelo que se impunha uma especial vigilância das crianças naquele local, sendo que o fogão existente no local não possuía sequer proteção.
36. ª - As arguidas agiram com o desrespeito pelas mais elementares regras da prudência, criando um risco relevante que determinou as lesões corporais que os meninos hoje apresentam, nomeadamente sequelas permanentes, cicatrizes, que os desfiguram de forma grave e permanente, não sendo de excluir a necessidade de novos tratamentos.
37. ª - Efectivamente, para que se mostre preenchido o tipo de ilícito negligente, tem de existir entre a ação e o resultado uma relação de adequação, ou seja, é necessário que o resultado possa ser objectivamente imputado à acção descuidadamente praticada.
38. ª - E, sem qualquer dúvida, que o facto verificado deveu-se apenas à violação do dever de cuidado que impendia sobre as arguidas as quais, como auxiliares de acção educativa, deviam vigiar os menores, a fim de evitar o resultado que veio a ocorrer, mesmo que elas não o tivessem previsto e querido, como é manifestamente o caso.
39. ª - Impunha-se, igualmente, que existissem barreiras físicas para impedir o acesso das crianças à cozinha, o que não sucedeu no caso dos autos, sendo que a cozinha ou tinha a possibilidade de ser colocada uma grade amovível que podia ser retirada de outras salas não em uso na altura dos factos ou de ser fechada à chave.
40. ª - E neste caso era exigível o concreto dever de vigilância que se exigia a cada uma das arguidas, quando as mesmas tinham somente a seu cargo, à data da prática dos factos, tirando os dois menores ofendidos, mais nove crianças, sendo que as duas arguidas conseguiam na hora da prática dos factos vigiar todas as crianças que lhe tinham sido entregues na creche.
41. ª - Com a conduta das arguidas, consubstanciada na deficiente vigilância das crianças, nomeadamente os ofendidos, B. L. e R. S., viram a sua integridade física violada.
42. ª - As próprias arguidas referiram que nem se aperceberam da saída das crianças do refeitório, passaram cinco/dez minutos até darem pela falta das crianças no refeitório e só se aperceberam da sua falta quando ouviram o choro vindo da cozinha.
43. ª - As arguidas tinham consciência que as portas não fechavam e que as crianças podiam alcançar alimentos quentes no fogão, que, inclusive e aliás não tinha qualquer proteção.
44. ª - No novo julgamento realizado, em que se apurou que a porta da cozinha tinha fechadura e uma chave e que esta porta estava em pleno funcionamento, estes factos que deveriam ter sido considerados como provados, deveriam ter sido preponderantes para ser alterada a decisão de absolvição das arguidas, considerando-se, mais uma vez, que as arguidas, na data e hora em que aconteceu o acidente, conseguiam vigiar todas as crianças que lhe tinha sido entregues na valência da creche.
45. ª - Isto trata-se, de facto, da negligência que o legislador quis punir, encontrando-se preenchidos, todos os pressupostos legais deste crime de ofensa à integridade física por negligência.
46. ª - Efectivamente, para que se mostre preenchido o tipo de ilícito negligente, tem de existir entre a ação e o resultado uma relação de adequação, ou seja, é necessário que o resultado possa ser objectivamente imputado à acção descuidadamente praticada.
47. ª - E, sem qualquer dúvida, que o facto verificado deveu-se apenas à violação do dever de cuidado que impendia sobre as arguidas as quais, como auxiliares de acção educativa, deviam vigiar os menores, a fim de evitar o resultado que veio a ocorrer, mesmo que elas não o tivessem previsto e querido, como é manifestamente o caso.
48. ª - No momento em que ocorreu o acidente com as crianças, as arguidas estavam no refeitório com todas as crianças e apenas tinham que as alimentar e vigiar.
49. ª - As arguidas eram capazes de realizar estas tarefas e podiam ou deviam prever, segundo as regras da experiência e capacidades pessoais, que deixar 5 ou 6 crianças de tenra idade a deambular livremente pela creche (designadamente pela cozinha), poderia ter como consequência a sua lesão física.
50. ª - Mesmo se atendermos às regras da Portaria n.º 262/2011, que estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches, verificamos que é permitida a constituição de um grupo heterogéneo com 16 crianças e que esse grupo seria vigiado por duas pessoas.

Artigo 7.º
Capacidade e organização
1 - A creche está organizada em unidades autónomas de grupos de crianças cuja distinção assenta nas características específicas das diferentes faixas etárias.
2 - O número máximo de crianças por grupo é de:
a) 10 crianças até à aquisição da marcha;
b) 14 crianças entre a aquisição da marcha e os 24 meses;
c) 18 crianças entre os 24 e os 36 meses.
3 - A distribuição pelos grupos pode ser flexível, tendo em conta que deve atender à fase de desenvolvimento da criança e ao respectivo plano de actividades sociopedagógicas.
4 - Nas situações em que o número de crianças não permita a formação de grupos em conformidade com o disposto no n.º 2, pode verificar-se a constituição de grupos heterogéneos a partir da aquisição da marcha, sendo, neste caso, o máximo de 16 crianças por sala.

Artigo 10.º Pessoal
1 - A intervenção é assegurada por uma equipa técnica dimensionada em função da capacidade da creche e dos grupos de crianças, devendo ser constituída por:
a) Duas unidades de pessoal, técnicos na área do desenvolvimento infantil ou ajudantes de acção educativa, por cada grupo até à aquisição de marcha que garantam o acompanhamento e vigilância das crianças;
b) Um educador de infância e um ajudante de acção educativa por cada grupo, a partir da aquisição da marcha;
c) Um ajudante de acção educativa para assegurar o pleno funcionamento do período de abertura e de encerramento da creche.
2 - Nos casos em que a confecção de refeições e a higiene do ambiente não sejam objecto de contratualização externa, deve, ainda, ser previsto pessoal que assegure a prestação dos respectivos serviços.
3 - A creche pode contar com a colaboração de voluntários, devidamente enquadrados, não podendo estes ser considerados para efeitos do disposto nos números anteriores.
51. ª - O caso dos presentes autos trata-se, de facto, da negligência que o legislador quis punir, encontrando-se preenchidos todos os pressupostos legais deste crime de ofensa à integridade física por negligência.
52. ª - Assim, encontram-se preenchidos, todos os pressupostos legais deste crime de ofensa à integridade física por negligência, pelo que devem as arguidas, ser condenadas na prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1 e 3, com referência ao artigo 144.º, alínea a) do Código Penal.
53. ª - Assim, no presente caso, impunha-se, pois, uma decisão diferente, isto é, que condenasse as arguidas pelos crimes que vinham acusadas.
54. ª - A Sentença ora recorrida violou o disposto no Artigo 410.º do Código de Processo Penal.
55. ª - NESTES TERMOS, que este douto e superior tribunal sindicará deverá ser dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e substituída por outra que condene as arguidas na prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1 e 3, com referência ao artigo 144.º, alínea a) do Código Penal, por ser de inteira e merecida Justiça.”
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3 – Também o assistente R. F., por não se conformar com a decisão, interpôs recurso, oferecendo as seguintes conclusões – que persiste em deduzir por letras e não por artigos, como constitui imposição legal - (transcrição):

“A.- Consta dos factos não provados:
d) As arguidas conseguissem vigiar as crianças que lhes tinham sido entregues na valência da creche, ao mesmo tempo que preparavam a comida e lhes davam a refeição.” O recorrente pretende impugnar esta decisão.
B.- De acordo com os depoimentos das Arguidas (pontos 10 e 11) e da testemunha A. B. (ponto 12) supra referidos no corpo da motivação, está PROVADO que as arguidas estavam em condições de cumprir as obrigações de cuidar e vigiar as crianças:
- Estavam em condições de as cumprir tais obrigações, não obstante, agiram com a falta de cuidado a que estavam obrigadas, não vigiaram os movimentos dos ofendidos e não impediram que estes alcançassem objectos/utensílios com líquidos/alimentos em estado de ebulição nem impediram que estes fossem atingidos e molestados no corpo e na saúde, como aconteceu.
- Ao agir sem o cuidado a que estavam obrigadas e em condições de cumprir, as arguidas violaram o dever de vigilância que sobre as mesmas impendia, permitindo que as duas crianças alcançassem e fossem atingidas por elementos em estado de ebulição, apesar de estarem cientes dos deveres que tinham de cuidar e vigiar as duas crianças de modo a evitar que as mesmas vissem o seu corpo e a saúde afectados, como aconteceu. ou (tal como consta na sentença) que as arguidas conseguiam vigiar todas as crianças que lhes tinham sido entregues na valência da creche, enquanto lhes davam a refeição.
C - Apesar do douto julgador a quo não o ter referido, está também PROVADO que “As arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.” De acordo com o depoimento da arguida M. D. supra referido nos pontos 20 e 29 no corpo da motivação.
D - Consta dos factos provados:
J) A chave da porta da cozinha da creche tinha desaparecido em momento anterior ao da ocorrência do incidente, não existindo nessa altura”
“N) Quando as arguidas estavam no refeitório a dar alimentos às crianças apenas a arguida M. D. sabia que na cozinha estava um tacho com água a ferver com arroz”.
O recorrente pretende impugnar esta decisão.
E.- De acordo com as declarações da Arguida M. D. (ponto 29) e os depoimentos das testemunhas A. C. (ponto23) A. B. (pontos 12e 24) supra referidos no corpo da motivação, está PROVADO que
- que a porta da cozinha tinha chave e podia ser fechada.
- que ambas as arguidas sabiam que tinha sido confecionada uma refeição quente na cozinha.
F.- As declarações das arguidas não explicam como ocorreu o acidente: aproveitam-se da tenra idade das crianças para não terem de dar explicações sobre o que sucedeu. A título de exemplo refira-se que as arguidas pretendem que se acredite que uma criança de 2 anos conseguia pegar num tacho quente com a mão quando a própria arguida M. D. confessou que só conseguia pegar no tacho quente com uma pega (cfr. as declarações da arguida transcritas no ponto 29).
G.- As arguidas tinham possibilidades de cumprir todas as tarefas de que estavam incumbidas. Mesmo se atendermos às regras da Portaria n.º 262/2011 - Estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches - verificamos que é permitida a constituição de um grupo heterogéneo com 16 crianças e que esse grupo seria vigiado por duas pessoas.
H.- No momento em que ocorreu o acidente com as crianças, as arguidas estavam no refeitório com todas as crianças (11 crianças, das quais 5 ou 6 não sabiam andar) e apenas tinham que as alimentar e vigiar.
I.- As arguidas eram capazes de realizar estas tarefas e podiam ou deviam prever, segundo as regras da experiência e capacidades pessoais, que deixar 5 ou 6 crianças de tenra idade deambular livremente pela creche (designadamente pela cozinha), poderia ter como consequência a sua lesão física.
J.- O art.º 148º n.º1 do Código Penal que “quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. E o nº 3 estipula que “se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”.
L.- Cada uma das arguidas deve ser condenada pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física p. e p. no art. 148´º/1 e 3 do Código Penal.

NESTES termos deverá ser revogada a sentença em apreço.”
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4- A Digna Procuradora da República junto da primeira instância respondeu aos recursos, pugnando pela improcedência dos mesmos e pela manutenção da sentença recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):

“I - Os assistentes interpuseram recurso da sentença proferida nos autos por via da qual o Tribunal absolveu as arguidas da prática de dois crimes de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, nº1 e 2 do Código Penal.
II - Os aspectos evidenciados pelos recorrentes, ao contrário do que defendem, não tem a virtualidade de impor decisão diversa da decisão recorrida, nos termos do disposto no artigo 412.º, nº3, al. b) do Código de Processo Penal.
III - Os novos factos - que resultaram apurados na audiência de discussão - não são adequados ou não são susceptíveis de colocar em crise o facto dado como provado na primitiva sentença.
IV – O tribunal entendeu não humanamente possível cumprir todas as tarefas, de que as arguidas estavam incumbidas e desse modo, conclui que a conduta das arguidas não merecia censura penal.
V - Os factos apurados na audiência realizada não são adequados a colocar em crise tal facto ou circunstância.
Nestes termos, deverá ser negado provimento aos recursos, confirmando-se a decisão recorrida.
Vossas Excelências, porém, farão a costumada JUSTIÇA.”
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5 – Também as arguidas/recorridas, M. D. e L. F., apresentaram respostas aos recursos interpostos pelos assistentes, pugnando pela improcedência de ambos e pela integral manutenção da sentença recorrida, tendo a primeira formulado as seguintes conclusões (transcrição):

“1.- A factualidade dada como provada e não provada na Douta Sentença, encontra- se devidamente fundamentada na prova produzida em sede de audiência de Julgamento, a qual foi corretamente apreciada pela M.ma Juiz, fazendo uso do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Cód. Processo Penal, conjugada com as regras da experiência
2.- Pelo que não existe qualquer erro de julgamento como pretendem os recorrentes, existe sim, uma valoração da prova efetuada pelo Tribunal “a quo” diferente da pretendida e defendida pelos Assistentes/Recorrentes, quer quanto aos depoimentos prestados em audiência, quer quanto às declarações das arguidas e demais prova existente nos autos.
3.- Face à prova produzida em julgamento, ficou amplamente provado que a creche não tinha as mínimas condições necessárias e obrigatórias de segurança do espaço, nem o número de pessoal efetivo e com formação específica para funcionar, em clara violação da lei, nomeadamente da portaria 262/2011, de 31 de Agosto que estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento da creche, assim como do dec-lei n.º 64/2007 de 14 de março (na versão que lhe é dada pelo Dec-Lei n.º 33/2014, de 04 de março), que estabelece o regime de licenciamento e de fiscalização da prestação de serviços de creche, diplomas vigentes à data dos factos.
4.- O acidente ocorreu quando as arguidas se encontravam a alimentar os bebés no colo (introdução de alimentação solida), por falta de cadeiras de retenção e no mesmo espaço (refeitório) onde se encontravam todas as outras crianças, quer as que já andavam, quer os restantes bebés.
5.- As arguidas eram as únicas funcionárias da creche, a quem nunca foi dada qualquer formação de auxiliares de educação, não existindo qualquer educadora de Infância ou técnica na área do desenvolvimento infantil, auxiliar de educação, cozinheira, faxineira.
6.-Não existia nas instalações da creche barreiras de proteção nas portas do refeitório, casas de banho (com degraus), nem na cozinha, assim como não existia nessas portas qualquer chave ou mecanismo que impedisse a abertura das mesmas.
7.- Bem andou o tribunal ao absolver as arguidas em virtude da prova da impossibilidade de estas cumprirem todas as obrigações e tarefas que se encontravam obrigadas, entre estas a de vigilância das crianças por humanamente ser impossível a qualquer homem médio colocado naquela posição.
6.- Nestes termos, a atual Sentença deve ser mantida, negando-se, consequentemente, provimento aos recursos interpostos.

Neste termos:
E contando com o sábio suprimento de Vªs Exªs, deverá ser negado provimento aos recursos, confirmando-se in totum a douta sentença recorrida.
Se assim for decidido, far-se-á inteira
JUSTIÇA!”
*
6 - Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e circunstanciado parecer em que concluiu (transcrição):
“1. Os recursos dos assistentes deverão ser julgados parcialmente procedentes;
2. A procedência será limitada a concreta matéria de facto que foi amplamente impugnada, todavia circunscrita à seguinte: 1. A factualidade constante da alínea k) – “Quando abandonou a cozinha deixando o tacho no referido local, a arguida M. D. fechou a porta de acesso à cozinha”, - deverá ser modificada para “Quando abandonou a cozinha deixando o tacho no referido local, a arguida M. D. encostou a porta de acesso à cozinha” por existência de prova impositiva desta alteração, nos termos previstos na ai. b) do n.°3 do art.° 412 do CPPenal; 2. A factualidade constante da alínea d) da não provada – ”As arguidas conseguissem vigiar as crianças que lhes tinham sido entregues na valência da creche, ao mesmo tempo que preparavam a comida e lhes davam a refeição”, - deverá simplesmente ser eliminada por ser conclusiva; 3. A factualidade constante da acusação “As arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal” deve integrar a factualidade não provada; e os demais factos contestados deverão manter-se imodifïcados por inexistência de provas que se acobertem na previsão da sobredita alínea b);
3. A improcedência será resultado de os factos consolidados não preencherem, ao invés do que asseveram os recorrentes, os elementos típicos do crime que às arguidas é imputado pois que, apesar da provada violação por aquelas de um dever in vigilando o que poderia fundamentar uma responsabilidade civil tendo em vista o previsto no art.° 491 do Código Civil, a violação de tal dever, por si só, não é causal do verificado resultado lesivo da integridade física dos menores porque se deu como provado que “A queda do referido tacho de arroz ocorreu em circunstâncias que, em concreto, não foi possível apurar”, o mesmo é dizer que se torna impossível concretizar uma efectiva imputação daquele resultado às arguidas quando se desconhece porque é que o tacho caiu atingindo os menores, se por imprudência da arguida M. D., se por acção voluntária ,ou ocasional daqueles.”.
*
7 - No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foram apresentadas respostas.
8 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por os recursos aí deverem ser julgados de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, al. c), do Código de Processo Penal.
* * *
II - Fundamentação

1 - O objeto dos recursos define-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram das respectivas motivações (artº 412º, nº 1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas (artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) – cf. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48.
2 - As questões invocadas pelos recorrentes são, em síntese, as seguintes:
- Impugnação da matéria de facto: deve ser tido como provado o teor da alínea d) dos factos não provados; deve acrescentar-se à matéria provada o seguinte facto “As arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal”; a matéria constante dos pontos 22 e 23 e das alíneas k) e j) - esta designada indevidamente, pois constitui a alínea l) - dos factos provados deve ser considerada não provada; também as alíneas m) e n) dos factos provados deve ser alterada no sentido de que “ambas as arguidas sabiam que tinha sido confeccionada uma refeição quente na cozinha”;
- Qualificação jurídica: a conduta das arguidas preenche todos os pressupostos do ilícito imputado, pelo que devem ser condenadas.
*
3 – Fundamentação constante da sentença recorrida (transcrição):
“1. De facto.
1.1. Factos provados (com relevância para a discussão da causa)

(Acusação)
1. No dia 10 de Dezembro de 2015, as arguidas exerciam funções de auxiliar de acção educativa na creche da Associação de Pais e Encarregados de Educação do Jardim de Infância da Escola ..., em ..., Barcelos, que pertencia a esta instituição e era pela mesma dirigido.
2. A referida creche era frequentada, nesta valência, por 12 crianças com idades compreendias entre os quatro meses e os três anos.
3. As instalações onde funcionava a referida creche eram compostas por uma sala de recepção às crianças, uma sala de brinquedos, um dormitório, uma sala de televisão, um refeitório, casas de banho, um corredor e uma cozinha.
4. Nesta cozinha eram, de segunda a sexta- feira, confeccionados os lanches e almoços destinados às crianças que frequentavam a creche.
5. Todas as divisões, com excepção das casas de banho, davam para o corredor.
6. As portas das referidas divisões, com excepção das do refeitório, cozinha e casas de banho, eram dotadas de grades amovíveis, de modo a impedir a saídas das crianças de cada um dos compartimentos.
7. A B. L. nasceu no dia - de Março de 2013.
8. O R. S. nasceu no dia - de Julho de 2014.
9. As referidas crianças frequentavam, no ano lectivo 2015/2016, no período compreendido entre as 08h30 e as 17h00, de segunda a sexta-feira, a mencionada creche.
10. Diariamente, as arguidas cuidavam das crianças que frequentavam a creche, incluindo da B. L. e do R. S., dando-lhes de comer (lanches e almoço) e providenciando pela sua higiene e descanso.
11. Por aquele serviço os progenitores pagavam mensalmente uma quantia à Associação de Pais e Encarregados do Jardim de Infância da Escola ..., para quem, sob a direcção e autoridade, as arguidas prestavam o referido trabalho.
12. Depois das 8h30 horas do dia 10 de Dezembro de 2015, a B. L. e o R. S. foram entregues nas instalações da creche, para aí passarem, como habitualmente, o dia aos cuidados das arguidas.
13. Nesse dia, a arguida M. D. confeccionou o almoço destinado às crianças.
14. Entre as 11h15 horas e as 11h30 horas do referido dia 10/12/2015, no interior das instalações da creche, de modo não concretamente apurado, as B. L. e o R. S. saíram do refeitório, onde se encontravam com as demais crianças, ingressaram na cozinha e um tacho, que tinha arroz com água a ferver, a refugar, fazendo-o cair sobre os seus corpos.
15. A B. L. e o R. S. saíram do interior do refeitório e ingressaram na cozinha sem que qualquer das duas arguidas se tivesse apercebido disso mesmo.
16. Ao ser atingida pelo tacho de arroz com a água a ferver, a B. L. sofreu traumatismo na face, pescoço e membros, queimaduras com flictenas na face (pálpebras e lábios), na região cervical anterior, no membro e face anterior do braço antebraço direitos, na face dorsal da mão direita, na face dorsal da mão esquerda, na face anterior da coxa e perna direita, na face dorsal do pé direito e na face anterior da coxa e perna direita, na face dorsal do pé direito e na face medial do tornozelo esquerdo, o que obrigou internamento hospitalar até 8 de Janeiro de 2016, foi submetida a desbridamento cirúrgico e enxerto da pele parcial em todas as áreas queimadas, à excepção da cabeça, cicatriz com quelóide de cinco por um centímetro na hemiface direita na região submandibular, cicatriz com quelóide de três por um centímetro na hemiface direita na região submandibullar, cicatriz com quelóide de dois por um centímetro na hemiface esquerda na região submandibular, duas cicatrizes com quelóide de um por meio centímetro na região submandibular; no tórax cicatriz de três por um centímetro no terço superior do hemitórax esquerdo, no braço esquerdo cicatriz não recente, com quelóide, de quinze por seis centímetros no terço superior e lateral do braço, cicatriz não recente, com recente com quelóide, de quatro por quatro centímetros no terço superior e lateral do antebraço; no braço esquerdo cicatriz não recente, com quelóide, de sete por seis centímetros; na perna direita cicatriz de dez por quatro centímetros no terço inferior e anterior da coxa, cicatriz não recente, com quelóide de três por um centímetros na face anterior e lateral do joelho, cicatriz de dois por meio centímetro na face anterior e lateral do joelho, cicatriz não recente com quelóide de quatro por dois centímetros no terço superior e anterior da perna, cicatriz de quatro por três centímetros no terço médio e anterior da perna, cicatriz de três por dois centímetros no terço inferior e anterior da perna, cicatriz não recente, com quelóide, de onze por nove centímetros no dorso do pé; na perna esquerda cicatriz de doze por doze centímetros no terço médio e posterior da coxa, cicatriz de dois por um centímetro na face anterior do joelho, cicatriz de tres por dois centímetros no terço superior e anterior da perna, cicatriz não recente, com quelóide, de sete por quatro centímetros no terço inferior e lateral da perna, cicatriz não recente, com quelóide, de sete por quatro centímetros no maléolo medial, que foram causa directa e necessária de 1239 dias de doença com afectação a capacidade de trabalho por 60 dias e sem afectação da capacidade de trabalho profissional e as sequelas permanentes descritas (cicatrizes) que desfiguram de forma grave e permanente, não sendo de excluir a necessidade de novos tratamentos.
17. Também ao ser atingido pelo tacho de arroz com a água a ferver, o R. S. sofreu traumatismo da face e membros superiores e inferiores esquerdos, queimaduras de espessura parcial com flictenas na face, pavilhão auricular esquerdo, antebraço esquerdo e perna esquerda, internamento hospitalar por vinte dias, desbridamento cirúrgico das queimaduras e enxerto de pele parcial no antebraço esquerdo, queimaduras múltiplas ao nível da hemiface esquerda, couro cabeludo, membro superior esquerdo e membros inferior, na face cicatriz de um por um centímetro, com quelóide na hemiface esquerda, cicatriz de um por um centímetro na região retroauricular esquerda, no braço esquerdo cicatriz de quatro por três centímetros no terço médio e anterior do antebraço esquerdo, cicatriz de três por dois centímetros no terço inferior e superior do antebraço; na perna direita cicatriz de quatro por três centímetros no terço médio e medial da coxa; na perna esquerda cicatriz em forma de U de base dois centímetros e um e meio centímetros de ramos na face dorsal de DII e DIII do pé esquerdo, que foram causa directa e necessária de 1239 dias de doença com afectação a capacidade de trabalho geral por 30 dias e sem afectação da capacidade de trabalho profissional e as sequelas permanentes descritas (cicatrizes) que desfiguram de forma grave e permanente, não sendo de excluir a necessidade de novos tratamentos.
18. As arguidas que à data exerciam funções como auxiliar de acção educativa tinham o dever de cuidar da B. L. e do R. S., de zelar pela sua segurança, de vigiar as suas condutas e controlar os seus movimentos, de modo a impedir que pudessem alcançar e fossem atingidos, entre o mais, pelo dito tacho de arroz com a água a ferver.
19. As arguidas conheciam as suas obrigações de cuidar e vigiar as duas crianças e de impedir que estas pudessem alcançar objectos com elementos em estado líquido e/ou sólido em estado de ebulição. 20. Foi porque as arguidas não viram a B. L. e o R. S. saírem do refeitório e entrarem na cozinha que aconteceu o descrito em 15. a 17.

(Contestações)
21. As arguidas sempre exerceram as suas funções com diligência, pontualidade e assiduidade, sendo este o único caso conhecido em que se viram envolvidas numa situação em que crianças se viram lesionadas.
22. As arguidas chamaram a atenção, quer dos pais crianças, quer dos responsáveis da aludida Associação de Pais, para a necessidade de contratação de outras funcionárias para a creche.
23. A direcção da Associação de Pais não contratou outra funcionária por entender que eram suficientes as duas arguidas para tomar conta das crianças e para não aumentar o valor das prestações mensais pagas pelos pais pelos serviços de creche e ATL (pagavam € 60,00 por cada criança na creche e cerca de € 25,00 pelo «prolongamento/ATL»).
24. Para além de tomarem conta das 12 crianças que frequentavam a creche, às arguidas foi incumbido pela Associação de Pais que tomassem conta de cerca de, pelo menos, mais 10 crianças, sendo:
- a partir das 16h20 horas, as cerca de 5 crianças com idades compreendidas entre os 4 e os 6 anos de idade, que aí frequentavam o ATL na valência de prolongamento de horário do infantário;
- a partir das 18h20, as cerca de 5 crianças da escola primária (1º ciclo) de …, que aí esperavam ser recolhidas pelos seus pais.
25. As crianças que frequentavam a creche necessitavam de assistência para comer, para se lavarem (muitas andavam de fraldas) e para se deitarem.
26. A arguida L. F., além de auxiliar na guarda e cuidados das crianças, tinha a incumbência de assegurar o transporte das crianças (das freguesias de ... e de ...) que frequentavam o Jardim de Infância e a Escola Primária (1º ciclo) de ....
27. À arguida M. D. cabia-lhe, além de auxiliar na guarda e cuidados das crianças, assegurar a limpeza das instalações e a preparação das refeições (cozinhar).
28. O horário de trabalho da arguida L. F. era das 8h20 até às 13h00 e das 14h00 até às 18h30, sendo que frequentemente acabava por abandonar as instalações da creche apenas às 19h00, uma vez que os pais se atrasavam na recolha das crianças.
29. A arguida M. D. começava a trabalhar por volta das 7h30, fazia um intervalo das 14h00 às 15h30 e saía à mesma hora da arguida L. F..
30. Dentro das funções que lhe estavam atribuídas, a arguida L. F. tinha:
- entre as 8h20 e as 9h15, de assegurar o transporte das crianças das freguesias de ... e de ..., para o Jardim de Infância e para a Escola de 1º Ciclo de ...;
- da parte da tarde, a partir das 15h30, tinha de assegurar o transporte das crianças do infantário de ... para ... e ... ou, no caso das que frequentavam o «A.T.L. - prolongamento de horário», para as instalações da creche, onde aí ficavam até às 18h30/19h00;
- pelas 17h30, ia buscar as crianças que frequentavam a escola primária (1º ciclo) de ... e deixá-las em ... e ..., sendo que umas 5/6 dessas crianças eram levadas para as instalações da creche e aí aguardavam que os pais os viessem buscar.
31. Tais transportes eram efetuados num miniautocarro da Junta de Freguesia, que se encontrava ao serviço da Associação de Pais e que era conduzido pela arguida, que dispunha de carta de condução para o efeito.
32. Em período de férias escolares, algumas das crianças que frequentavam o ATL – prolongamento, ficavam nas instalações da creche durante todo o período de funcionamento da creche.
33. No transporte das crianças, a arguida L. F. tinha a colaboração de uma outra senhora (voluntária), para assegurar a vigilância das crianças durante a duração do transporte.
34. A creche não se encontrava licenciada junto do Instituto da Segurança Social, o que era do conhecimento da Associação de Pais, que aliás foi condenada no âmbito de processo contraordenacional na decorrência de uma acção inspectiva levada a efeito pela Segurança Social.
35. O local onde funcionava a creche não dispunha de qualquer licenciamento municipal para o efeito.
36. No dia 10 de dezembro de 2015, pelas 11h15, as arguidas encontravam-se, as duas, a dar o almoço aos bebés.
37. No refeitório não existiam cadeiras de alimentação e retenção das crianças, existindo apenas cadeiras pequenas onde as crianças mais velhas se sentavam, como acontecia com o R. S. e a B. L., e os mais pequeninos eram alimentados no colo das arguidas ou nos carrinhos de bebé.
38. Quando se aperceberam do ocorrido, após ouvirem o choro e gritos das crianças, as arguidas logo se deslocaram à cozinha, despiram a B. L. e o R. S. e cobriram-nos com água fria.
39. Entrementes, e porque a mãe de uma criança tinha acabado de chegar à escola para entregar a filha, pediram-lhe para ligar para chamaram de imediato a emergência médica, o que esta fez prontamente.
40. Às arguidas não foi ministrada qualquer formação especifica de primeiros socorros ou outra.
41. A arguida L. F., após o encerramento da creche em ..., continuou a exercer funções como auxiliar de ação educativa, na Casa do Povo de ....
42. A arguida M. D., depois do encerramento da creche de ..., foi contratada pelo Centro Social, Cultural e Recreativo ..., para as funções de Auxiliar de Ação Educativa, tendo em 2016 ficado a auxiliar a Educadora N. G., na sala frequentada pela menor B. L..

Mais se provou que:
43. A arguida L. F. trabalha presentemente num lar, onde aufere o valor correspondente ao salário mínimo; é casada, sendo o seu marido talhante; tem 2 filhos a seu cargo, de 13 e 9 anos de idade; mora em casa dos pais; tem o 12.º ano de escolaridade.
44. A arguida M. D. trabalha ainda no Centro Social, Cultural e Recreativo ..., onde aufere o valor correspondente ao do salário mínimo; o marido é carpinteiro; mora em casa dos pais; tem o 5.º ano de escolaridade.
45. Nenhuma das arguidas tem antecedentes criminais.

1.2. Factos não provados
Não se provou que:
a) A arguida M. D. tivesse fechado a porta da cozinha com o trinco, quando dali saiu e foi para o refeitório dar de comer às crianças.
b) As arguidas tivessem alertado a Associação de Pais da necessidade de aquisição de novas barreiras de proteção, uma vez que algumas se encontravam inutilizadas.
c) A arguida M. D. tivesse deixado a panela do arroz em local inacessível às crianças.
d) As arguidas conseguissem vigiar todas as crianças que lhes tinham sido entregues na valência da creche, ao mesmo tempo que preparavam a comida e lhes davam a refeição.

(matéria de facto complementarmente dada como provada):
a) No dia 10 de Dezembro de 2015 o almoço destinado às crianças foi confecionado exclusivamente pela arguida M. D., sem qualquer participação ou intervenção da arguida L. F..
b) Nesse dia o almoço consistia num arroz solto, com pedaços de carne.
c) Para confecionar esse almoço a arguida utilizou um tacho com água e o fogão a gás existente na cozinha da creche.
d) Enquanto decorria a confecção da dita refeição, a arguida L. F. estava com as crianças no refeitório.
e) Entre as 11h10m e as 11h15m a arguida M. D. desligou o chama da boca de gás em que havia colocado o tacho com água a ferver e arroz, deslocando-se para o refeitório, onde foi ajudar a arguida L. F. a dar o almoço aos bebés.
f) A preparação dos pratos de comida para dar às crianças competia à arguida M. D., tarefa que no dia 10 de Dezembro de 2015 também iria realizar relativamente à refeição que tinha sido por si confecionada.
g) O tacho que caiu sobre as crianças foi aquele que havia sido utilizado pela arguida M. D. para confecionar o almoço e encontrava-se colocado em cima do fogão, a cerca de 80/90 centímetros do chão.
h) Na altura em que o tacho caiu, não existia nenhuma chama acesa no fogão ou qualquer outra fonte de produção de calor activa.
i) Foi a arguida M. D. que tinha deixado o tacho no lugar onde ele se encontrava antes de tombar sobre as crianças.
j) A cozinha da creche tinha porta para vedar o acesso à mesma.
k) Quando abandonou a cozinha deixando o tacho no referido local, a arguida M. D. fechou a porta de acesso à cozinha.
j) A chave da porta da cozinha da creche tinha desparecido em momento anterior ao da ocorrência do incidente, não existindo nessa altura.
m) A arguida L. F. não esteve na cozinha durante o período de tempo em que a arguida M. D. esteve a confecionar o almoço e desconhecia a existência do tacho com arroz, no local onde tinha sido colocado.
n) Quando as arguidas estavam no refeitório a dar alimentos às crianças apenas a arguida M. D. sabia que na cozinha estava um tacho com água a ferver com arroz.
o) A queda do referido tacho de arroz ocorreu em circunstâncias que, em concreto, não foi possível apurar.
*
X
Motivação

A factualidade dada como assente resulta, fundamentalmente, da valoração conjugada das declarações prestadas pelas duas arguidas, que foram absolutamente uniformes e coincidentes, descrevendo a intervenção que cada uma teve nos factos, de acordo com as tarefas que desempenhavam na creche.
Repare-se que, relativamente aos factos em discussão, delimitados pelas questões formuladas no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nos autos, só as arguidas é que dispunham de conhecimento directo dos mesmos e, nessa medida, sempre seria a partir dos respectivos relatos que se teria de formar a convicção do tribunal quanto à dinâmica do sucedido.
Por conseguinte, as declarações prestadas pelos assistentes N. A., S. P., A. S. e R. F., progenitores das duas crianças atingidas pelo tacho com arroz, não interferiram na formação da convicção do tribunal, por não se encontrarem presentes na altura em que ocorreram os factos, sabendo apenas descrever as concretas configurações da creche, com especial enfoque para a porta da cozinha, ainda assim de forma limitada e pouco assertiva, mas também sem colocar em causa aquilo que havia sido referido pelas arguidas a este respeito.
No mesmo sentido foram os depoimentos das testemunhas A. C. e A. B., que exerceram cargos de direcção na Associação de Pais e Encarregados de Educação do Jardim de Infância da Escola ..., que também nada sabiam quanto ao incidente, mas, contudo, vieram asseverar que a porta da cozinha da creche tinha chave e era frequente encontraram-na fechada, quando tinham reuniões nas instalações da instituição.
No entanto, nesta parte, o relato destas testemunhas não era incompatível com as declarações das arguidas, que também admitiam que, originalmente, a porta da cozinha dispunha de chave, apenas referindo que a determina altura essa chave se perdeu, já não existindo à data em que ocorreu o incidente, realidade que o depoimento das aludidas testemunhas não colocava em crise.
O depoimento de C. F. foi absolutamente inócuo para a formação da convicção do tribunal, por não dispor de qualquer conhecimento relevante quanto aos factos em discussão.
Resta dizer que a resposta fornecida à matéria constante da alínea o) explica-se em decorrência do incidente de que foram vítimas as duas crianças não ter sido presenciado por ninguém, ficando assim por esclarecer as concretas circunstâncias em que se deu a queda do tacho de arroz.
*
XI
Importa agora, apurados que estão os novos factos, apreciá-los conjugadamente com aqueles que já tinham sido fixados na primitiva sentença, decidindo em conformidade, assim se dando cumprimento ao determinado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nos autos.
Vejamos, então.
De acordo com o disposto no artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime imputado às arguidas quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.
Para se reputar uma conduta como negligente, necessário se torna confirmar, nos termos da parte inicial do artigo 15.º do Código Penal, que o agente não procedeu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz.
Ressalta desta formulação legal que a estrutura dogmática do crime negligente se divide em dois elementos: i) o tipo de ilícito; ii) o tipo de culpa.
O primeiro considera-se preenchido quando o agente violou um dever objectivo de cuidado que lhe era imposto (o cuidado “a que, segundo as circunstâncias, está obrigado”).
Comprovada essa violação, bem como o nexo de causalidade entre a violação daquele dever e o resultado – neste caso, a ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa –, deve ainda indagar-se se aquele agente concreto podia cumprir esse dever, situando-se esta análise já ao nível daquele segundo elemento (o cuidado “de que era capaz”).
A construção acima descrita é geralmente denominada de “doutrina do duplo escalão”: reconhecendo no facto negligente a existência de um tipo de ilícito e de um tipo de culpa específicos, resulta, por um lado, uma maior clareza quanto aos requisitos que a lei exige para se afirmar a prática pelo agente de um facto ilícito típico negligente e, por outro, contraria-se a tendência para aproximar a responsabilidade por negligência de uma responsabilidade pelo resultado (no sentido, precisamente, de responsabilização objectiva), cometendo, desta forma, uma violação do princípio da culpa - cfr., neste sentido, acompanhando JESCHECK, FIGUEIREDO DIAS, in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 635.
Na sentença proferida nos autos o tribunal começou por afirmar a violação de um dever objectivo de cuidado por parte das arguidas, consubstanciado no incumprimento do dever de vigilância a que estavam obrigadas enquanto auxiliares de acção educativa, no que respeita aos menores que lhes estavam confiados, o que permitiu que os menores B. L. e R. S. ingressassem na cozinha, onde se encontrava um tacho com arroz e água a ferver, não evitando assim o resultado que, efectivamente, veio a ocorrer.
Contudo questionando-se sobre a exigibilidade do cumprimento desse dever de vigilância, entendeu o tribunal que, “…mercê do “ritmo” a que estavam permanentemente sujeitas, das (débeis) condições de segurança em que trabalhavam e da acumulação de funções de que se mostravam sobrecarregadas…”, não era possível às arguidas “…cumprir todas as tarefas de que estavam incumbidas de forma isenta de risco de se vir a descurar uma das várias obrigações a que se mostravam sujeitadas…”.
Nessa medida, concluiu-se que, “…por se não mostrar humanamente possível cumprir todas as tarefas de que estavam incumbidas e porque nem sequer lhes pode ser assacada a responsabilização pela organização funcional da creche…”, o comportamento das arguidas não era susceptível de censura penal.
E em decorrência do raciocínio assim seguido, foram as arguidas L. F. e M. D. absolvidas da prática dos dois crimes de ofensa à integridade física por negligência que lhes estavam imputados.
Contudo, no acórdão proferido nos autos, o Tribunal da Relação de Guimarães considerou que a sentença padecia do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não se debruçar sobre a forma como as ofensas corporais sofridas pelos menores ocorreram, “…colocando notoriamente as arguidas ao mesmo nível de responsabilidade na sua verificação, o que os factos provados dados como assentes não revelam…”.
Ou seja, nos termos daquilo que foi decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, os factos a apurar no novo julgamento destinavam-se a clarificar o grau de intervenção das arguidas no resultado que se veio a produzir, por se considerar que sentença recorrida não fazia essa distinção, “…irmanando as arguidas apenas no juízo global de violação do seu dever de cuidado por não terem visto, como deveriam, que as crianças tinham abandonado o refeitório…”
Apurados que foram os novos factos, dentro dos parâmetros definidos pelo supra mencionado acórdão do Tribunal da Relação e de acordo com a prova produzida na audiência de julgamento, importa então saber se dos mesmos resulta alguma circunstância susceptível de colocar em crise a argumentação utilizada na primitiva sentença para concluir pela insusceptibilidade de ser assacado qualquer juízo de culpa às duas arguidas, fundamentalmente por impossibilidade fáctica do cumprimento do dever de vigilância a que estavam adstritas.
Pois bem, desde já se adianta que, na nossa opinião, o raciocínio que esteve subjacente à decisão inicial de absolvição das arguidas em nada foi beliscado pelos novos factos agora apurados.
Com efeito, para além de reiterar a circunstância já evidenciada no acervo probatório da primitiva sentença, de que foi a arguida M. D. que no dia 10 de dezembro de 2015 confeccionou o almoço destinado às crianças, os factos agora coligidos reforçam também a ideia, que também já se extraía da aludida sentença, que na altura em que os menores B. L. e R. S. saíram do refeitório onde se encontravam com as demais crianças e se dirigiram à cozinha, as arguidas encontravam-se colocadas na mesma situação fáctica, irmanadas na realização de tarefas em tudo similares.
Na verdade, os factos agora provados permitem concluir que entre as 11h10m e as 11h15m a arguida M. D. desligou o chama da boca de gás em que havia colocado o tacho com água a ferver e arroz, deslocando-se da cozinha para o refeitório, onde foi ajudar a arguida L. F. a dar o almoço aos bebés, local em que se encontravam ambas, no desempenho dessas tarefas, quando a B. L. e o R. S. saíram do interior do refeitório e ingressaram na cozinha sem que qualquer das duas arguidas se tivesse apercebido disso mesmo.
Por outro lado, nenhuma circunstância resultou evidenciada, nos novos factos agora apurados, que seja susceptível de colocar em crise aquilo que, na anterior sentença proferida nos autos se fez constar na alínea d) dos factos não provados, aí se dando por inverificado que as arguidas conseguissem vigiar todas as crianças que lhes tinham sido entregues na valência da creche, ao mesmo tempo que preparavam a comida e lhes davam a refeição.
Consequentemente, na ausência de novos factos susceptíveis de alterar o raciocínio que esteve subjacente a sentença inicialmente proferida, importa concluir pela absolvição das arguidas da prática dos crimes que lhe estão imputados.”

(na primitiva sentença a motivação exarada foi a seguinte):
“1.3. Motivação.
O tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, tendo por base, em conjugação com as declarações das arguidas, assistentes e depoentes, o acervo documental junto aos autos.
No que tange às declarações das arguidas, em tudo similares, confirmaram que nas circunstâncias espácio-temporais mencionadas na acusação se não aperceberam da saída da B. L. e do R. S. do refeitório (que fica ao fundo do único corredor das instalações onde funcionavam a creche em ...), só se tendo apercebido que os mesmos estavam na cozinha quando os ouviram chorar. Logo largaram as crianças que tinham ao colo e que estavam a alimentar, deslocando-se junto da B. L. e do R. S. para ver o que tinha acontecido. Ali, viram que ambos se queimaram com o tacho onde se encontrava a “refugar” o arroz (ainda com água, cfr. expressivamente declarações da arguida L. F.) para alimentar as crianças mais velhas, o qual caiu por cima deles. Entretanto, porque estava a chegar a mãe da I. (a C. F.), pediram-lhe que ligasse para o 112, o que esta prontamente fez. Entretanto, despiram as crianças queimadas e puseram-lhe água fria. Confrontadas com o sucedido, as arguidas referiram que a porta do refeitório não fecha, razão pela qual se mostrava franqueado o acesso das crianças ao corredor, sendo que a da cozinha apenas a M. D. garantiu tê-la fechado quando acabou de cozinhar a refeição. Certo é que as portas do refeitório e cozinha não estavam munidas de cancela (pois que as que deveriam proteger o acesso/saída destes compartimentos estavam partidas e nunca foram substituídas), sendo que as instalações onde trabalhavam e funcionava a creche eram já antigas e resultavam da adaptação do Salão Paroquial (onde, ainda, aos fins-de-semana eram usadas, mesmo os espaços da creche, como salas de catequese). No mais, cada uma das arguidas deu conta das concretas funções e horários de trabalho, referindo-se ainda ao número de utentes da creche/ATL, horários de entrada e saída de cada um e idades, esclarecendo ter existido um aumento de crianças que no último ano passaram a frequentar a cresce sem que tivesse sido contratada qualquer outra funcionária, a despeito das insistências que haviam feito junto da direcção da Associação de Pais.
Os assistentes, pais dos menores B. L. e R. S., deram conta das lesões sofridas pelos respectivos filhos, esclarecendo, ainda, os pais da B. L. que a mesma (de forma nem sempre constante no que aos pormenores concerne) relata ter ido à cozinha e derrubado o tacho do arroz que ali se encontrava. No mais, quer os assistentes, quer as testemunhas (por exemplo, a testemunha A. C., presidente da mesa da assembleia da Associação de Pais) que mostraram ter conhecimento e recordar-se com o mínimo de rigor das instalações, confirmaram o facto de as portas do refeitório e da cozinha não se mostrarem munidas de grades, sendo que todos foram peremptórios em referir as queixas das arguidas no sentido em que seria preciso mais funcionários para garantir o bom funcionamento da creche.
A testemunha A. C., além disso, indicou o número de crianças que frequentavam, então, a instituição, esclarecendo os horários de funcionamento da mesma, as funções de cada uma das arguidas e os constrangimentos de funcionamento mencionados nos factos provados.
A testemunha C. F. confirmou ter chegado ao local na ocasião em que as crianças se queimaram, tendo então chamado o INEM, dando conta das diligencias que se mostravam a ser efectuadas pelas arguidas.
As testemunhas V. C., R. M. e M. S., confirmando os horários, funções, bem assim como o zelo e competência das arguidas, deram conta dos constrangimentos, mencionados pelas acusadas, com que funcionava a creche, confirmando as declarações das mesmas), referindo-se a primeira, ainda, ao aproveitamento do espaço (para a catequese) que era feito ao fim-de-semana, a segunda à necessidade de se contratar mais funcionários e a última ao espaço e falta de protecções de que se apercebeu.
Ainda, a testemunha N. G. deu conta da actual situação profissional da arguida M. D. e do facto de a mesma ter tratado a B. L., já depois de ter mudado de infantário.
Finalmente, a testemunha A. B., explicando de forma sucinta as valências que funcionavam nas instalações da creche e ATL, deu conta de que o espaço efectivamente correspondia ao aproveitamento do antigo Salão Paroquial, que ao fim-de-semana o local funcionava como salas de catequese e dos constrangimentos relacionados com a contratação de uma nova funcionária, porque tal implicava um aumento do valor das prestações, além de que o próprio achava que as duas funcionárias eram suficientes para tomarem conta de todas as crianças. Indicou o número de crianças inscritas e o valor das prestações a cargo dos progenitores. Finalmente, confirmou a falta de licenciamento da creche, quer junto da Segurança Social, quer junto da Câmara Municipal, mais reconhecendo que nenhuma formação havia sido ministrada às arguidas para tomarem conta das crianças e para lhes prestarem primeiros socorros.
Ainda no que às lesões provocadas às crianças concerne, além do depoimento da testemunha L. S., bombeiro que foi ao local e explicou o que ali viu quando chegou, designadamente no que tange às queimaduras sofridas, factualidade que se mostra corroborada com o teor dos elementos clínicos de fls. 84/85, 102/122, 157/235, 454/455, 467/469, 490, 491, 492/496 dos autos principais e 10/17 e 21/24 do apenso “A” e relatórios médico-legais de fls. 289/291, 294/296, 441/442, 445/446, 509/511v.º e 514/516, prova documental e pericial que não deixa consentir dúvida.
Também não oferecem dúvidas os factos que decorrem directamente da análise das certidões dos assentos de nascimento (fls. 35/36, 38/39), informação/registo da cronologia fornecido pelo INEM (fls. 77/82), informação extraída do processo contra de averiguações instaurado pela Segurança Social (fls. 96/100 e 385/396), estatutos da Associação de Pais (fls. 338/340), processo de alteração das instalações (fls. 354 e 355), resposta ao processo contra-ordenacional instaurado pela Segurança Social (fls. 358/361 e 362),
Relativamente às condições pessoais das arguidas, atendeu-se às suas declarações pelas mesmas complementarmente prestadas, relevando-se ainda os C.R.C. junto aos autos a fls.761 e 762.
No tocante aos factos não provados, tal deveu-se quer à circunstância de ter resultado apenas o que consta da matéria de facto provado, pelas razões atrás aduzidas, quer à circunstância de não se ter feito qualquer prova sobre os mesmos, sendo que, além de que os factos vertidos nas als. a) e c) da do ponto 1.2 não tivessem sido confirmados pelas próprias arguidas, certo é que nenhuma das testemunhas (designadamente os responsáveis da Associação de Pais) confirmou a indicação da falta das barreiras (a despeito de tal se mostrar inócuo), sendo ainda que pelas acusadas e pelas testemunhas indicadas foi feito precisar a necessidade de se contratar mais funcionárias e a incapacidade das arguidas para conseguirem vigiar a todo o tempo todas as crianças que tinham a sue cargo.”
***
III - Apreciação do recurso

Como é amplamente conhecido, o âmbito de cada recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

Assim, o tribunal de recurso somente tem que apreciar as questões suscitadas pelos recorrentes e constantes das respectivas conclusões, isto sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
*
Constituem questões de conhecimento oficioso: a nulidade da sentença, os vícios da decisão e as nulidades não sanadas.

Preceitua o artigo 410º do Código de Processo Penal:

1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 – O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
*
Ora os recorrentes não invocam qualquer nulidade ou algum dos elencados vícios decisórios, nem eles se vislumbram da decisão recorrida, pelo que nada há que apreciar neste âmbito.
*
Efetivamente, ambos os recorrentes restringem a sua discordância à impugnação ampla da matéria de facto (quer provada, quer não provada), bem como à decidida absolvição das arguidas.

No que concerne à matéria de facto - e sintetizando a discordância (em parte significativa, concêntrica) dos recorrentes -, estes entendem que:
- a alínea d) da matéria de facto não provada, nomeadamente que “as arguidas conseguissem vigiar todas as crianças (…), ao mesmo tempo que preparavam a comida e lhes davam a refeição”, deve ser tida por provada;
- a expressão, constante da acusação mas omissa na decisão factual, “As arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal” deve ser tida como provada;
- a factualidade complementar provada constante da segunda alínea j) – que deve ser tida como alínea l) – e das alíneas k), m) e n) da mesma factualidade deve ser alterada, já que “a porta da cozinha tinha chave e podia ser fechada” e “ambas as arguidas sabiam que tinha sido confeccionada uma refeição quente na cozinha”;
- os pontos 22 e 23 dos factos provados devem ser considerados como não provados.
Para o pretendido efeito – e também em síntese – os recorrentes invocam a desconsideração dos depoimentos dos assistentes e demais testemunhas pelo tribunal, que procedeu à extracção de conclusões sem qualquer fundamentação e até contraditórias.
*
Começando a apreciação pela aludida repetição da alínea j) dos factos provados, constata-se que constitui um evidente lapso de escrita, que pode e deve ser reparado ao abrigo do disposto no artigo 380º, nºs 1, al. b) e 2, do CPP.
Efectivamente, da própria sequenciação das alíneas da factualidade provada complementar, se verifica que após enunciar a alínea k) a decisão, em lugar de conter a alínea l) – que foi omitida do elenco -, repete a alínea j) – com factualidade própria – à qual se segue a alínea m).
Importa, portanto, efectuar a devida correcção.
*
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: num âmbito, mais restrito, dos vícios descritos no artº 410º, nº 2, do CPP, a chamada “revista alargada” (que já se referiu) ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o artº 412º, nº 3, 4 e 6 do mesmo código.
Na impugnação ampla da matéria de facto, a apreciação não se cinge ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova, toda ela documentada, produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelos recorrentes no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP.
É consabido que, havendo impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, sendo antes um remédio, remédio jurídico, para evitar erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como foi apreciada e ponderada a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto indicados pelo recorrente.
“O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total dos acervos dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados (negrito nosso).
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa”
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, do C.P. Penal:

“Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida (o sublinhado é nosso).
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente de especificar quais os pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, quais os segmentos dos depoimentos que impõem decisão diversa da recorrida e quais os suportes técnicos em que eles se encontram, com referência às concretas passagens gravadas.
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, in www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º.
Passando à apreciação dos pontos individualizados de discordância.
No que diz respeito à alegada desvalorização das declarações dos assistentes e dos depoimentos de algumas testemunhas por parte do tribunal, extraindo conclusões sem qualquer fundamentação e até contraditórias, importa dizer que basta ler a motivação da decisão de facto exarada na decisão, para concluir que tal não se verificou.
Na verdade, o tribunal explicitou as razões por que valorizou as declarações das arguidas (únicas “que dispunham de conhecimento direto” dos factos), bem como os motivos por que não atribuiu especial relevância às declarações dos assistentes e aos depoimentos das testemunhas A. C. e A. B. (não estavam presentes na data da ocorrência e reportaram-se ao que sabiam de observações anteriores, ainda assim de forma limitada e pouco assertiva, insusceptíveis de pôr em causa o declarado pelas arguidas).
Efetivamente, a desvalorização de alguns dos meios de prova, que os recorrentes apontam à decisão recorrida, é correspectiva da que os recorrentes fazem das declarações prestadas pelas arguidas, ao mesmo tempo que atribuem uma grande importância a outras provas, que entendem favoráveis às suas teses (às suas próprias leituras da prova)..
Analisemos alguns dos aspectos da dissidência, com mais pormenor.
Os recorrentes impetram que seja dado como provado que “a porta da cozinha tinha chave e podia ser fechada”.
É verdade que a arguida M. D. afirmou ter fechado tal porta (a que dava para o corredor).
Mas também é do conhecimento comum a “equivocidade” de uma afirmação deste género!
De facto, na linguagem comum o termo “fechar” é usado para designar, indistintamente, o fecho com chave, o fecho com o trinco e até o simples “encostar” da porta (por oposição a que ela permaneça completamente aberta). O mesmo se aplica à designação “aberta”, utilizada para indicar uma porta completamente aberta, apenas encostada ou até fechada apenas com o trinco, sem chave.
Mas o tribunal esclareceu o possível equívoco de linguagem, obtendo o esclarecimento das arguidas de que a porta em causa dispunha de fechadura, mas que a chave havia desaparecido há algum tempo e que o respetivo trinco não fechava devidamente (“ela batia mas não trincava, não fechava de vez”, declaração da arguida L. F., corroborado pela arguida M. D., que declarou “fechei-a, encostei a porta toda para cá o mais que pude, (…) mas ela não trincava mesmo, era capaz de não ficar mesmo trancada, não sei”), abrindo com qualquer pequeno toque no respectivo manípulo. Ora, os depoimentos das testemunhas A. C. e A. B. – os assistentes, praticamente, nada sabem acerca da fechadura e da chave – não são susceptíveis de colocar em causa tais declarações, porque se reportam a momentos anteriores (não especificados), quando tinham reuniões no local e viam a porta da cozinha fechada ao transitarem no corredor.
Mas viam-na fechada com chave? Com o trinco? Ignora-se porque não tinham necessidade de utilizar tal divisão. Assim e neste concreto ponto, a conclusão a extrair é a inexistência de imposição da alteração factual pretendida pelos recorrentes, no sentido de que a porta possuía chave e podia ser fechada com esta.
De modo diverso e em conformidade com a prova produzida em audiência, o que se impõe alterar na factualidade constante da alínea k) dos factos provados é substituir a palavra “fechou” por “encostou” (a porta de acesso à cozinha). E isto com fundamento nas declarações prestadas pelas arguidas (e sem necessidade de recurso ao princípio “in dubio pro reo”).
Neste ponto, o recurso procede.
*
Os recorrentes também questionam que só a arguida M. D. tivesse conhecimento da existência de um tacho com arroz a ferver na cozinha.
Da prova produzida em audiência - mais concretamente das declarações das arguidas,(únicas que sobre tal se pronunciaram) – resulta que foi a arguida M. D., a exemplo do que sucedia quotidianamente, que confeccionou o almoço destinado às crianças da creche. Também ficou demonstrado que a arguida L. F., enquanto tal sucedia, se encarregou do entretenimento e da vigilância das utentes que permaneciam na creche, nunca se tendo deslocado à cozinha. Terminada a confecção do almoço, a arguida M. D. deslocou-se para o refeitório, a fim de auxiliar a L. F. a dar a refeição às crianças de colo (que não se deslocavam autonomamente).
Assim e uma vez que a arguida L. F. não se deslocou à cozinha e que foi a arguida M. D. quem confeccionou a refeição, aquela só podia saber em que consistia o almoço e da situação em que os alimentos estavam se esta lhos transmitisse. Prova que não se efectuou, bem ao invés.
Neste segmento, o recurso improcede por inexistência de qualquer prova, muito menos impositiva, do conhecimento, por parte da arguida L. F., do conteúdo do almoço e do seu estado fervente (apenas sabia que havia sido cozinhado, ignorando em que consistia, se era frio ou quente e a temperatura do mesmo, no momento). .
*
Também está impugnado o teor dos pontos 22 e 23 dos factos provados (em resumo, que as arguidas alertaram os pais das crianças e os responsáveis da Associação para a necessidade de serem contratadas mais funcionárias e que a Associação só não o fez por o entender desnecessário e para não ter que aumentar o valor das mensalidades).
No que respeita ao alerta, além das arguidas o terem referido, a própria assistente/recorrente S. P. admitiu ter falado com a arguida M. D. sobre essa necessidade, bem como com o responsável da Associação de pais e encarregados de educação, Sr. A. B..
Esta matéria está umbilicalmente ligada à, também questionada, alínea d) dos factos não provados, isto é que as arguidas “não conseguissem vigiar todas as crianças, ao mesmo tempo que preparavam a comida e lhes davam a refeição”.
A assistente S. P., para sustentar a sua versão, invoca o artigo 7º da Portaria nº 262/2011 (que transcreve), em que se regula a organização dos grupos de crianças, bem como o respectivo número máximo, em unidades autónomas, por faixas etárias: até à aquisição da marcha; entre esta e os 24 meses; e entre os 24 e os 36 meses. Em especial, atribui relevância ao nº 4, que, na inviabilidade de formação de grupos homogéneos em cada escalão etário, permite a formação de grupos heterogéneos, com o máximo de 16 crianças, a partir da aquisição da marcha (o sublinhado é nosso).
A recorrente porém – apesar de também o ter transcrito -, parece ignorar o teor do art. 10º da mesma Portaria, que exige a existência de um educador de infância e um ajudante de acção educativa a partir da aquisição da marcha – nº 1, al. b) – esclarecendo ainda que – nº 2 – quando a confecção de refeições e a higiene do ambiente não sejam contratualizados externamente, deve ser previsto pessoal que assegure a prestação destes serviços.
Ora, apurou-se que a creche era “frequentada por 12 crianças, com idades entre os 4 meses e os 3 anos” (ponto 2), que a “arguida M. D. confeccionou o almoço destinado às crianças” (ponto 13 e al. a)), que as arguidas ainda tinham que tomar conta de mais 10 crianças que frequentavam o ATL (a partir das 16h20m) e o 1º ciclo da escola primária (a partir das 18h20m) (ponto 24), cujo transporte era realizado pela arguida L. F., logo pela manhã e em dois períodos da tarde (pontos 26 e 30) e que a arguida M. D. (por lapso evidente, designada por M. D.) assegurava a limpeza das instalações e a confecção das refeições (ponto 27).
Esta factualidade provada – e não questionada pelo recorrentes – é mais do que suficiente para demonstrar que a creche não detinha o pessoal exigido legalmente, quer qualitativa, quer quantitativamente, para o desempenho das funções desenvolvidas.
Também argumentam os recorrentes que “as arguidas, no momento, só tinham que tomar conta de 5 ou 6 crianças, porque as outras 6 ou 5 eram de colo” (faltava uma delas).
Tal afirmação é verdadeira, mas a análise do “quadro” de pessoal não pode ficar circunscrito àquele preciso momento. É que a falta de elementos humanos nalguns (e não eram assim tão poucos) dos períodos (com transporte de crianças, confecção de refeições, limpeza de instalações), assim como os excessivos horários de trabalho praticados, originam necessariamente uma sobrecarga de trabalho, um cansaço/desgaste, que tem repercussão nos demais períodos em que não existe carência de meios humanos.
Por outro lado, se é certo que as crianças de colo não se moviam de forma autónoma, também o é que as arguidas, nesse momento, estavam a alimentar os bebés, tendo que o fazer “ao colo ou nos carrinhos de bebé” (ponto 37). E a plena concentração exigida nessa tarefa pode justificar uma menor atenção às demais.
Mas, no fundo, o que os recorrentes pretendem é questionar o facto dado como não provado constante da al. d).
Porém, como bem refere o Exmo. PGA, o teor da citada alínea constitui matéria conclusiva.
E assim sendo a sua inclusão só é admissível “(…) quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum.” – Acórdão do TRP de 13/03/2013 (proc. 400/09.0PAOVR.C1.P1), citado no parecer.
A verdade é que tais premissas - os factos simples e apreensíveis que sustentam a conclusão, ou seja porque é que as arguidas não conseguiam vigiar as crianças a seu cargo - não constam da demais factualidade (ainda que os argumentos supra referidos o indiciem, não são suficientemente seguros para obter essa conclusão)..
Nestes termos, também nesta parte o recurso improcede.
No que concerne à pretensão de que a matéria de facto não provada constante da alínea d) seja tida como provada, o que se impõe é a eliminação dessa alínea, por ser conclusiva.
*
Os recorrentes suscitam, ainda, a omissão na decisão factual da expressão “As arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal”, constante do libelo acusatório, pugnando por que seja acrescentada à factualidade provada.
A referida expressão consta efectivamente da parte final da acusação pública deduzida (fls. 524), não constando da factualidade provada ou não provada (como, aliás, já sucedia na primitiva sentença).
Impõe-se suprir a omissão verificada, sendo que os autos fornecem todos os elementos indispensáveis a tal.
Tratando-se de um dos componentes do elemento subjectivo do ilícito, não directamente apreensível, porque integrado no íntimo do ser humano, o mesmo – salvo em caso de confissão dos factos – só pode extrair-se, face às regras da experiência e da normalidade, da factualidade objectiva apurada.
Ora, do conjunto da factualidade objectiva assente não pode extrair-se outra conclusão que não seja a de que não se fez prova da matéria omitida na decisão.
Portanto, impõe-se aditar tal factualidade à não provada (e não, como pretendido, à matéria provada).
*
Em conclusão da apreciação da impugnação da matéria de facto feita pelos recorrentes, a ilação a extrair é que estes – com as ressalvas indicadas - se limitam a afirmar a sua própria convicção, que confrontam com a formada pelo tribunal ou, dito de outra forma, substituir a convicção de quem tem de julgar pela de quem espera a decisão.
Na verdade, ouvida a prova produzida e apreciada em conjunto com a demais existente, conclui-se que a decisão acerca da matéria de facto – com as ligeiras ressalvas feitas - foi a acertada.
De facto, impõe-se não olvidar a correta interpretação do preceituado no artº 127º do CPP, nos termos do qual cabe ao julgador apreciar da credibilidade dos veículos transmissores dos factos, a ele cabendo a missão de apreciar, em obediência a tal normativo, quais os meios de prova que lhe merecem credibilidade.
Acresce que, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do CPP, este tribunal só pode alterar o decidido pelo tribunal a quo se as provas indicadas pelo recorrente impuserem – e não quando apenas admitam - decisão diversa da recorrida, ou seja, quando se esteja perante uma clamorosa e manifesta desconformidade dos factos fixados com os meios de prova produzidos e examinados.
É claro, com tem vindo uniformemente a ser expendido pela doutrina e pela jurisprudência, que “a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com a apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova”, pois que “a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.”
Reitera-se que a factualidade provada tem plena sustentabilidade na prova indicada na motivação da sentença, não se descortinando qualquer razão para divergir do juízo efectuado pelo tribunal recorrido, que não violou as regras da experiência, não foi arbitrária, nem discricionária e não revela qualquer dúvida.
*
Preenchimento dos pressupostos legais do ilícito

Ambos os recorrentes entendem estarem preenchidos os pressupostos do crime de ofensa à integridade física por negligência, na previsão do art. 148º, nºs 1 e 3, do Cód. Penal, pelo que as arguidas deviam ser condenadas e não absolvidas do ilícito.
Contudo, como se alcança de imediato, o sucesso da pretensão estava, em muito, dependente das pugnadas alterações na matéria de facto.
Alterações que, salvo pequenos “acertos”, soçobrou, comprometendo o sucesso da pretensão recursória.
Não deixaremos, no entanto, de fazer uma, ainda que sucinta, apreciação, fazendo apelo ao douto parecer emitido.
A sentença recorrida deu como provado que os menores se deslocaram do refeitório para a cozinha, sem que as arguidas disso se apercebessem, apesar de estarem incumbidas da sua vigilância, assim violando o dever que sobre elas pendia (“in vigilando”).
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se o resultado lesivo pode ser imputado às arguidas.
O ilícito imputado é de resultado, podendo ser cometido por acção ou por omissão – art. 10º do Cód. Penal – neste caso, desde que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
Segundo o acórdão do TRE, de 07/01/2020 (proc. 89/17.3PAENT.E1, relatado pelo desembargador BERGUETE COELHO), o citado dever de cuidado revela-se interna e externamente. A vertente interna determinará o dever de representar ou prever o perigo para o bem tutelado pela norma jurídica e de valorar esse perigo. Já a vertente externa comporta três exigências: (i) o dever de omitir acções perigosas que se mostrem propícias à realização do facto típico, em que cabem as acções empreendidas pelo agente que tenha falta de preparação ou capacidade para as levar a cabo; (ii) o dever de actuar prudentemente em situações perigosas, por comportarem, em si, um perigo inato, mas que são valiosas e indispensáveis do ponto de vista social e no actual contexto da vida em sociedade, em que entronca a margem de risco permitido; (iii) o dever de preparação e informação prévia relativamente à exigência de cada indivíduo se munir, anteriormente à acção que envolve um risco, dos conhecimentos que lhe permita empreendê-la com segurança.
Por sua vez, quanto à ideia de causalidade, por apelo à teoria da adequação, é de limitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado, pelo que deve ser complementada pela análise da conexão do risco, no sentido de determinar os riscos a cuja produção pode ser razoavelmente referido o tipo objectivo do crime e concluir que o resultado só deve ser imputável à conduta quando esta tenha criado ou aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico.
Como muito bem expressa o Exmo. PGA: «resulta evidente que apesar da violação do dever de vigilância por parte da arguida L. F., nunca a esta se poderia imputar o resultado lesivo porque ela não criou, em momento algum, o risco da sua produção. A porta da cozinha podia estar aberta e as crianças poderiam ter saído do refeitório e dirigirem-se para a cozinha sem que as arguidas disso tivessem conhecimento e, não obstante isso, o resultado dessa omissão não conduziria à verificação de uma qualquer lesão corporal naquelas.
Ou seja, quem criou o risco ao confeccionar os alimentos e ao deixá-los quentes no fogão, quem o deveria representar e o deveria evitar, quem, afinal, sobre ele tinha domínio, foi, exclusivamente, a arguida M. D.. Esta ao abandonar a cozinha deveria certificar-se de que não havia possibilidade de verificação de uma qualquer queda de um tacho que conduzisse a uma qualquer lesão corporal. O dever de cuidado, exteriormente, recaía exclusivamente nela pois que foi ela quem criou o risco e potenciou o resultado.
Todavia, (…), importa verificar-se, ainda, um outro requisito, o nexo causal de adequação.
E aqui chegados, necessariamente que somos confrontados com um dado factual que recolheu o qualificativo de provado, o seguinte: “o) A queda do referido tacho de arroz ocorreu em circunstâncias que, em concreto, não foi possível apurar”.
Ou seja, não é conhecida a dinâmica que levou à queda do referido tacho e cujo conteúdo atingiu o corpo das crianças. Tal desconhecimento obsta à formulação de um juízo de censura pleno à arguida M. D. tendo em vista a causalidade e a adequação.
E porque assim ocorre, então a decisão recorrida apresenta-se fora de qualquer censura. Recordando, uma vez mais, o acórdão do TRE acima indicado, é que “Objectivamente, a negligência não prescinde da imputação do resultado à conduta do agente, dentro da problemática da causalidade, conquanto com as especificidades de assentar em facto meramente culposo e, assim, não decorrente de uma vontade de produção do resultado, mas fundado nessa violação do dever de cuidado a que, segundo as circunstâncias, aquele estava obrigado” – citado acórdão do TRE».
Importa acrescentar que, como se refere na primitiva sentença recorrida, não ficam dúvidas de que “(…) as arguidas, ao deixarem de vigiar os menores B. L. e R. S., permitindo que os mesmos ingressassem na cozinha (…), violaram o dever objectivo de cuidado consistente precisamente no dever de vigilância a que estavam obrigadas.” E mais adiante “(…) sem qualquer dúvida, que o facto verificado deveu-se apenas à violação do dever de cuidado que impendia sobre as arguidas as quais, como auxiliares de acção educativa, deviam vigiar os menores, a fim de evitar o resultado que veio a ocorrer, mesmo que elas não o tivessem previsto e querido, como é manifestamente o caso.”
Ainda mais à frente ““os critérios de subsunção da conduta negligente passam, além da verificação dos elementos da ilicitude, pelo escrutínio dos elementos do “tipo-de.culpa”.
Só age negligentemente quem estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de cuidado (…)””
Concluindo que “se não mostra sustentável, (…) que as arguidas pudessem, mercê do “ritmo” a que estavam permanentemente sujeitas, das (débeis) condições de segurança em que trabalhavam e da acumulação de funções de que se mostravam sobrecarregadas, que as mesmas tivessem possibilidade de cumprir todas as tarefas de que estavam incumbidas de forma isenta de risco de se vir a descurar uma das várias obrigações a que se mostravam sujeitadas. Tal como, aliás, veio a acontecer.”

Ainda que tais premissas – como já supra se referiu – não permitam a inclusão do respectivo conteúdo na alínea d) dos factos não provados, a verdade é que vários indícios para tal apontam:
- desde logo, a falta de grade amovível que limitasse/impedisse o acesso do refeitório ao corredor que possibilitava o acesso a todas as divisões da creche (exceto casa de banho)
- a insuficiência de funcionários para o cabal desenvolvimento das tarefas, facto para que, quer os pais das crianças quer os responsáveis da Associação, haviam sido alertados pelas arguidas. Importa relembrar que, durante vários períodos do dia – enquanto a arguida M. D. cozinhava, preparava os pratos ou tratava da higienização das instalações, bem como enquanto a arguida L. F., em 3 períodos diários separados, tratava da recolha ou da entrega de crianças noutros locais -, os utentes da creche, estavam a cargo de uma única funcionária/arguida. Isto equivale a dizer que, estando a M. D. a cozinhar ou a L. F. a fazer o transporte de crianças, se a outra arguida tivesse que mudar a fralda a um bebé (e eram sempre 5 ou 6), dada a concentração exigida por esta tarefa, a vigilância dos demais utentes ficava necessariamente descurada;
- o alargamento do quadro de recursos humanos só não ocorreu por a Associação de Pais o considerar suficiente e para não aumentar o valor das mensalidades suportadas pelos pais;
- a creche não dispunha de cadeiras de retenção/alimentação das crianças mais pequenas;
- a porta da cozinha não dispunha de chave, que havia desaparecido, sendo que o respectivo trinco não funcionava devidamente;
- os horários de trabalho excessivos: de 9 horas ou de 9 horas e 30 minutos que, frequentemente, eram prolongados;
- a creche não estava licenciada, quer pela Segurança Social quer pelo município (tendo encerrado na sequência do acidente).
Todas estas circunstâncias impõem uma forte atenuação do grau de exigibilidade das arguidas.
No mínimo, a responsabilidade destas está consideravelmente mitigada pela daqueles que, tendo o conhecimento das condições efectivas existentes e tendo o dever de atuar, nada fizeram para “prevenir a tragédia anunciada”.
As arguidas cumpriram o seu dever de transmitir aos responsáveis pela Associação e aos pais das crianças as precárias condições de trabalho na creche e a insuficiência de meios existentes na mesma, nada mais lhes podendo ser exigido, atenta a sua falta de capacidade para suprir as omissões e deficiências existentes.
Por todo o exposto, impõe-se concluir que existem pessoas e/ou entidades com um grau de responsabilidade na ocorrência do acidente bem mais elevado do que o das arguidas. Pessoas/entidades que sabiam estar os bebés e crianças entregues a pessoas sem formação adequada para o efeito, em número insuficiente, sobrecarregadas com horários de trabalho excessivos e sem tempo para cuidar devidamente dos utentes.
A sentença recorrida, neste segmento, não merece qualquer censura, antes deve ser confirmada, pelo que os recursos improcedem nesta parte.
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IV – DISPOSITIVO

Por todo o exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- conceder parcial provimento aos recursos interpostos pelos assistentes R. F. e S. P. e, em consequência:
- determinar a substituição do termo “fechou” por “encostou” na alínea k) dos factos provados, cuja redacção passa a ser a seguinte: “Quando abandonou a cozinha deixando o tacho no referido local, a arguida M. D. encostou a porta de acesso à cozinha”;
- alterar a designação da segunda alínea j) dos factos provados - subsequente à alínea k) – que passa a constituir a alínea l);
- eliminar do elenco dos factos não provados a alínea d);
- aditar à matéria de facto não provada, a seguinte: “As arguidas sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal”;
- no demais, julgar improcedentes os recursos interpostos, confirmando a sentença recorrida.
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Sem custas.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Guimarães, 07 de Junho de 2021

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)