Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
131/14.OGBAVV.G1
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: ERRO DE JULGAMENTO
ÓNUS DE ESPECIFICAÇÃO
REFERÊNCIA GENÉRICA A DEPOIMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) O ónus de impugnação das concretas provas que impõem decisão diversa, caso as mesmas tenham sido objecto de gravação, implica a indicação e concretização das passagens da gravação em que se funda a impugnação do facto (ou factos) posto(s) em crise pelo recorrente (cfr. nº 4 do artº 412º do CPP) para que, em conformidade com o nº 6 de tal artigo o tribunal de recurso proceda à audição das passagens indicadas; não cabendo ao tribunal ad quem nem a faculdade/direito nem o ónus/dever/obrigação de se substituir ao recorrente:
II) Fazer alusão a que o tribunal não valorou devidamente as declarações do arguido e das testemunhas, só por si não é susceptível de impor decisão diversa sobre os factos em relação aos quais tais depoimentos poderão ter versado.
II) É o que sucede no caso dos autos em que o recorrente ao discorrer sobre a prova gravada se limitou a fazer apelo a depoimentos que na sua óptica possam estar correctos e/ou incorrectos, dispensando-se de indicar/precisar as concretas passagens em que se funda a sua impugnação, assim como não as indicou por referência aos suportes técnicos de forma específica e individualizada.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO:
1. No âmbito dos presentes autos de Processo Comum (Singular), em que são arguidos António D. e Teresa F. (devidamente identificados nos autos), após a realização da audiência de discussão e julgamento, no dia 28.04.2015 foi proferida sentença, constante de fls. 258 a 279, onde se decidiu nos seguintes termos (transcrição parcial na parte relevante):
“Pelo exposto, e ao abrigo dos citados normativos, julgo a acusação procedente e, em consequência, decido:
Quanto à instância criminal:
A) Condenar a arguida Teresa F. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), o que perfaz o montante de 600 € (seiscentos euros), ao que corresponde 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.º, n.º 1 do Código Penal, caso a arguida não proceda ao pagamento da pena de multa ou esta não seja substituída por trabalho a favor da comunidade a pedido da arguida.
B) Condenar o arguido António D. pela prática, (…).
(…)
Quanto à instância cível conexa:
A) Julgo o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante Teresa F. contra o demandado António D. improcedente e, em consequência, absolvo o demando do pedido.
B) Julgo improcedente o pedido do arguido António D. (…).
(…)”

2. Inconformada, apenas a arguida Teresa F. (a fls. 288 a 293, fax – o original consta a fls. 294 a 304) interpôs recurso, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Na douta sentença, ora recorrida, o ora recorrente foi pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143., n.2 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), o que perfaz o montante de 600 € (seiscentos euros), ao que corresponde 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49º, n.º 1 do Código Penal, caso a arguida não proceda ao pagamento da pena de multa ou esta não seja substituída por trabalho a favor da com unidade a pedido da arguida, e julgou o pedido de indemnização civil deduzido pela ora Recorrente contra o demandado António D. improcedente.
2. O meritíssimo juiz a quo fez incorrecto julgamento da matéria de facto apreciação dos factos e aplicação do Direito aos mesmos.
3. A sentença recorrida enferma de erro de julgamento por erro notório na apreciação da prova.
4. A prova produzida relativamente aos pontos 1.3, 1.9 e 1.11l da matéria de facto dada como provada leva a que estes enfermam de erro de julgamento e face à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento deviam ter sido julgados como não provados.
5. Deveria face à prova testemunhal e documental realizada e junta aos autos ter o tribunal a quo dado como provado que como resulta à saciedade das declarações das testemunhas na parte assinaladas na sentença que o arguido António D. iniciou o confronto físico e que a Recorrente, temendo pela sua integridade física e via se defendeu mesmo após ter caído no chão.
6. O teor dos testemunhos transcritos na douta sentença recorrida apenas permitem esta conclusão sendo notório o erro de julgamento quando se diz que quem iniciou a contenda foi a recorrente.
7. Dos depoimentos transcritos e declarações do arguido resulta que este agrediu barbaramente e sem justificação a recorrente com um pau causando os ferimentos e lesões constantes do processo.
8. Assim o confirmou ao agente da GNR Sérgio B. que prestou depoimento como testemunha e viu o arguido ainda com uma pau na mão.
9. Estas declarações são compatíveis e confirmadas pelas lesões sofridas e pelos relatórios de perícia médica juntos aos autos.
10. Face às mesmas devia o Tribunal ter dado, como supra se defendeu, como provado que o arguido iniciou a contenda a recorrente apenas agiu legitima defesa ou sem conceder, em retrossão
11. Deve ser julgado provado que foi o arguido que em primeiro lugar agrediu a recorrente e em consequência condená-lo por esse facto e absolver-se o Recorrente portanto agiu em legítima defesa ou, sem conceder, em retorsão pela atuação do arguido pelo que deve ser absolvido o Recorrente- art 143ºnº 3. alínea a) do CP
12. Em face do exposto, do prova testemunhal e documental produzida, há, um evidente erro notório na apreciação da prova referente aos factos mencionados provados consignados na sentença do tribunal a quo, relativos ao arguido sendo que fez o tribunal a quo uma apreciação insuficiente e errónea da prova produzida na audiência de discussão e julgamento.
13. Estes factos, em nome da Justiça, devem ser julgados como não provados e em consequência ser o Recorrente absolvido do crime de que vinha acusado.
14. A douta sentença recorrida assentou na presunção de culpa da Recorrente, o que viola frontalmente o princípio da presunção de inocência do mesmo arguido.
15. Ocorreu legitima defesa pois para além da existência de uma agressão ilícita e actual a interesses juridicamente protegidos, a defesa se circunscreveu-se aos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor o que, sem conceder não ocorreu no caso do arguido que usou um pau causando gravíssimas lesões na Recorrente,
16. Não obstante e sem conceder sempre se deveria considerar existir retorsão pois uma ofensa se respondeu com outra ofensa semelhante e existe entre ambas uma continuidade temporal e sequencial existindo unindo-as um nexo causal, sendo a segunda resposta imediata e directa da primeira.
17. Pelo que implicava a absolvição da Recorrente.
18. E a condenação do arguido no pagamento do PIC peticionado.
19. A decisão recorrida violou o disposto no arts, 143.º, 127º do CP
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e a sentença recorrida substituída por outra conforme as conclusões, com o que se fará Justiça”
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3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 305.
4. O Ministério Público junto do tribunal recorrido (a fls. 308 a 314) respondeu ao recurso, concluindo que deve ser mantida a decisão recorrida e negado provimento ao recurso.
5. Nesta instância, a Exma Procuradora-Geral Adjunta, a fls. 323, sufragando a posição evidenciada pela magistrada do Ministério Público de 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que “o recurso não merece provimento”.
6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.
7. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso, seguindo uma ordem de precedência lógica, as questões a conhecer são as seguintes:
1ª. Saber se a sentença recorrida padece do erro notório na apreciação da prova (vício a que se reporta o artigo 410º nº 2 alínea c) do Código de Processo Penal).
3ª Erro de julgamento.
4ª Saber se foi violado o princípio do in dubio pro reo.
5ª Saber se ocorreu legítima defesa ou retorsão por parte da arguida.
6ª Saber se a arguida deveria ter sido absolvida do crime por que foi condenada e, nessa decorrência, se o arguido deveria ter sido condenado no pedido de indemnização civil.

Vejamos, desde já o que na sentença recorrida consta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto à fundamentação da matéria de facto (transcrição):
1. Factos provados
Discutida a causa provaram-se os seguintes factos com relevo para a decisão:
1.1. − No passado dia 10/04/2014, cerca das 11Hh00m, o arguido António D. encontrava-se no interior de um terreno de cultivo, paralelo à sua residência, sito no Lugar …,, a cortar lenha.
1.2. − Instantes depois, surgiu a arguida Teresa F. no terreno de cultivo paralelo àquele em que se encontrava o arguido António D..
1.3. − Nessa sequência, ambos os arguidos envolveram-se numa discussão motivada pela remoção, por parte da arguida Teresa F., de uma cancela existente entre ambos os referidos terrenos, no decurso da qual, após uma breve troca de palavras,
- a arguida Teresa F. atingiu o arguido António D., inicialmente, com a cana de um pulverizador que a mesma na ocasião detinha na sua posse, com o qual desferiu um número não concretamente determinados de golpes que atingiram o arguido António D. na zona da cabeça e, posteriormente, com o cabo de uma vassoura, que se encontrava junto deste último, com a qual desferiu, igualmente, desferiu um número não concretamente determinados de golpes que atingiram o arguido António D. em ambos os seus braços;
- o arguido António D. atingiu a arguida Teresa F. com um pau de madeira, com cerca de 50 cm de comprimento e cinco centímetros de diâmetro, com o qual desferiu um número não concretamente determinados de golpes que atingiram esta última no seu rosto, no seu braço esquerdo e em ambas as suas pernas, levando-a mesmo a cair, prostrada, no solo;
1.4. − Por estes factos teve a arguida Teresa F. necessidade de receber assistência médica, inicialmente, no próprio local, por parte de uma equipa do INEM dos Bombeiros Voluntários de Arcos de Valdevez e, posteriormente, no Centro Hospitalar do Alto Minho, em Viana do Castelo.
1.5. – Como consequência directa e necessária da actuação da arguida Teresa F. sofreu o arguido António D., duas escoriações arredondadas com 2x1cm, na região parietal direita e na região frontal central, bem como, equimose arredondada de tom castanho, com 2x5cm de comprimento na face posterior do terço inferior do antebraço direito e uma outra equimose arredondada de tom castanho, com 2x5cm de comprimento na face posterior do terço inferior do antebraço esquerdo.
1.6. − Lesões essas, que determinaram 5 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
1.7. − Como consequência directa e necessária da actuação do arguido António D. sofreu a arguida Teresa F., equimose periorbitária esquerda de tom castanho, equimose na face posterior do cotovelo esquerdo, com 2cm de comprimento, de cor castanha, duas equimoses arredondadas com 2cm de diâmetro na face externa do terço médio da coxa direita de cor castanha e três equimoses arredondadas com 2cm de diâmetro na face anterior do terço médio da perna esquerda.
1.8. – Lesões essas, que determinaram 6 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
1.9. − Ao actuar da forma supra descrita, atingindo o arguido António D. com a cana de um pulverizador e com uma vassoura, agiu a arguida Teresa F., de modo livre, deliberado e com a perfeita consciência de estar a provocar neste último as lesões que efectivamente provocou, como era aliás sua intenção.
1.10. − Ao actuar da forma supra descrita, atingindo a arguida Teresa F. com um pau de madeira, com cerca de 50 cm de comprimento e cinco centímetros de diâmetro, agiu o arguido António D., de modo livre, deliberado e com a perfeita consciência de estar a provocar nesta última as lesões que efectivamente provocou, como era aliás sua intenção.
1.11. – Agiram ainda a arguida Teresa F. e o arguido António D., bem sabendo que as suas condutas eram contrárias ao direito e criminalmente puníveis.
1.12. – A demandante exerce a atividade profissional e agricultura, estando colectada e inscrita nas finanças como agricultora.
1.13. – As lesões provocaram dor física na assistente.
1.14. – A Demandante reside em …, a cerca de 50 km da cidade de ….
1.15. − A arguida deslocou-se à GNR de … para prestar declarações.
1.16. − A arguida deslocou-se ao Tribunal em …e prestou o seu depoimento em sede de audiência de julgamento.

Mais se provou que:
1.17. − A arguida Teresa F. consta na base de dados de bens móveis, na Repartição de Finanças e na Conservatória do Registo Predial como titular inscrito dos bens imóveis descritos a fls. 147, 157-167, 178-214, cujo teor que considera aqui integralmente reproduzido.
1.18. − A arguida Teresa F. tem uma vaca e várias ovelhas; em 2014 recebeu 1.500 euros de subsídios para a agricultura; vive em casa própria; tem 63 anos de idade e o 9.º ano de escolaridade.
1.19. − O arguido António D. consta na Repartição de Finanças e na Conservatória do Registo Predial como titular inscrito dos bens imóveis descritos a fls. 168-175, 215, cujo teor que considera aqui integralmente reproduzido.
1.20. − O arguido António D. aufere duas reformas mensais, uma do serviço florestal de 250 euros e outra de França de 500 euros; tem 83 anos de idade e é analfabeto.
1.21. – Os arguidos não têm averbados antecedentes criminais no seu registo criminal.

2. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão (note-se que o Tribunal não se pronuncia quanto a juízos conclusivos e/ou de direito e/ou repetidos), designadamente:
2.1. − Retira dessa sua actividade os proventos necessários ao seu sustento, numa média mensal nunca inferior a 350 euros.
2.2. − Em resultado da actuação do demandado a Demandante ficou incapaz de exercer durante um período nunca inferir a 30 dias a sua actividade profissional.
2.3. − Das lesões resultaram sequelas que determinam, a impossibilidade da Demandante de exercer cabalmente a sua profissão, cortar ervas e manusear alfaias e instrumentos agrícolas como sacholas e outros.
2.4. − A Demandante vê os seus movimentos limitados pelas lesões sofridas e pelas dores que sente.
2.5. − Da conduta do Arguido resultou uma incapacidade permanente para o trabalho como agricultora para a Demandante que se mantém.
2.6. – A Demandante necessitou de trinta dias para a sua cura parcial, mantendo-se as suas sequelas pelas lesões causadas pelo Demandado.
2.7. − Ora, por este período de incapacidade de trabalho, bem como pelas lesão sofridas e das quais não se encontra curada, o que lhe causa dor e muito desgosto impossibilitando-a de trabalhar e mesmo fazer os trabalhos domésticos e profissionais na agricultura, deve a assistente ser ressarcida com uma quantia nunca inferior a 20.000 euros.
2.8. − A Demandante teve que se deslocar a … para consultar os seus advogados e participar criminalmente.
2.9. − Nestas deslocações a Demandante percorreu 200 km.
2.10. − Pelo que em deslocações despendeu a demandante e despenderá quantia não rigorosamente contabilizada, mas que se estima ser de valor não inferior a 100 euros.
2.11. − A Demandante despendeu ainda quantia nunca inferior a € 100 em medicamentos para tratar as lesões.
2.12. – O arguido é uma pessoa de normal sensibilidade, reputada e respeitada naquele meio onde reside.

3. Motivação da convicção do Tribunal
Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
A convicção do Tribunal fundou-se em todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento, nomeadamente, nas declarações dos arguidos Teresa F. e António D. e das testemunhas Emília D., Carlos C. e Sérgio M..
Não foi feita prova bastante que afaste a genuinidade dos documentos juntos aos autos, pelo que relativamente aos documentos não autênticos (cfr. artigo 169.º do Código de Processo Penal, o qual refere que “consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”), o seu teor pode ser valorado livremente pelo Tribunal, conjugando os mesmos com a demais prova produzida e as regras de experiência. Assim sendo, o Tribunal teve em consideração os documentos juntos aos autos (designadamente, os Relatórios de Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Penal, do Instituto Nacional de Medicina Legal, Gabinete Médico-Legal de Viana do Castelo, de fls. 8 a 11 e 16 a 19; os Elementos Clínicos do Centro Hospitalar do Alto Minho, em Viana do Castelo de fls. 27, 60 a 63, 66; os Registos Fotográficos de fls. 58 e 59; as informações da Repartição de Finanças, da base de dados de Bens Móveis, da Conservatória do Registo Predial e da Segurança Social de fls. 147, 157-167, 178-214 e 168-175, 215; os documentos juntos na audiência de julgamento pela demandante; e o certificado do registo criminal junto aos autos a fls. 223-224).
Valorizou-se positivamente o teor do Relatórios de Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Penal, do Instituto Nacional de Medicina Legal, Gabinete Médico-Legal de Viana do Castelo, em detrimento do “certificado de incapacidade para o trabalho”, considerando a fundamentação pormenorizada daquele e respectivas conclusões (quanto à duração da recuperação, sem incapacidade para o trabalho e sem sequelas definitivas).
Note-se que a prova produzida deve ser analisada atenta a segurança oferecida por cada elemento probatório (considerado individualmente, nomeadamente, quanto à sua credibilidade, isenção e fundamentação da razão de ciência), e bem assim ponderada de acordo com o seu confronto com os demais elementos de prova existentes nos autos (v.g., prova documental e testemunhal), por forma a que o resultado final não produza uma decisão injusta, insuficientemente segura em termos de corroboração factual, ou incoerente com a realidade e o normal acontecer dos factos.
Assim sendo, compreende-se que uma testemunha contribua activamente para alicerçar o Tribunal na formação da convicção da realidade de um facto pela mesma relatado, atenta a sua isenção e fundamentação da razão de ciência quanto a esse mesmo facto, mas também pode acontecer que essa mesma testemunha transmita ao Tribunal outros factos que, quando confrontados com os demais elementos de prova produzida (e legalmente admissíveis), não sejam bastantes para fundamentar a resposta em determinado sentido dada pelo Tribunal à matéria factual em análise nos autos.
Cumpre salientar que tendo a prova sido gravada, de modo algum se deve aqui reproduzir o teor da mesma, por tal não corresponder à letra e ao espírito da lei e ser impraticável na prática, mas sim frisar os pontos essenciais (nomeadamente no que respeita à fundamentação da razão de ciência, isenção, coerência, segurança e emotividade que pautaram em concreto cada depoimento) que determinaram que a convicção do julgador (relativamente ao qual a prova se produziu presencialmente) se formasse no sentido em que consta do elenco dos factos provados.
Concretizando, quanto às declarações dos arguidos Teresa F. e António D., cumpre referir que os mesmos não admitiram a prática dos factos imputados pelo Ministério Público (exceto quanto à data, hora e local) e verbalizaram ambos de forma caótica e autovitimizadora uma versão díspar dos factos.
Os arguidos não foram minimamente convincentes nas suas declarações (eivadas pela emotividade própria de más relações pessoais entre os arguidos) quanto aos factos imputados pelo Ministério Público, as quais demonstram uma débil tentativa desresponsabilizadora das respectivas condutas. Com efeito, para além de não se afigurar credível a versão dos arguidos (cada um diz que nada fez de mal e que por isso não compreendem porque o outro tinha lesões físicas), a verdade é que do teor dos Relatórios de Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Penal, do Instituto Nacional de Medicina Legal, Gabinete Médico-Legal de Viana do Castelo e do depoimento prestado em julgamento pela testemunha Sérgio M. que o Tribunal julgou plenamente credível (nos termos infra exarados) resulta, sem margem para dúvidas, que os factos imputados a ambos os arguidos na acusação realmente aconteceram.
Atente-se nas seguintes declarações: a arguida referiu que “não sei se lhe bati com a vassoura ou se com uma cana de sulfatar”, “mas ele deu-me pela cabeça a baixo”, “eu botei a cancela abaixo”, “ele queria fazer pressão para comprar o campo que é do meu irmão”, “a cana partiu porque eu cai sobre ela”, “ele tinha um pau de giesta, não era de vassoura”, “eu desviei-o da minha beira e fui-me embora”, “eu retirei-o para o lado, eu retirei-o de mim”, “é provável que ele tenha caído”, “não me lembra se ele caiu ou não”, “não peguei em pau nenhum, nem em cana”, “tirei a cancela para entrar, ele estava atrás de mim e deu-me com o pau pela cabeça abaixo, ele não me disse nada”, “ele deu-me por detrás, eu caí e ele continuou dar-me”, “sou de choro fácil”.
O arguido referiu que “ela é que me bateu com a cana de sulfatar, que partiu em três partes”, “eu tinha estado a cortar lenha, e estava a varrer o sarrim”, “eu estava no que é meu”, “eu deixei-a bater, mas eu não lhe pus a mão”, “ela fez-me lanhos na cabeça”, “a GNR foi lá no mesmo dia”, “eu para lhe tirar a vassoura é que ela caiu para cima das silvas”, “quando ela me bateu só estávamos eu e ela”.
O Tribunal valorou positivamente as declarações de Emília D. (divorciada, doméstica, residente no lugar de …,; disse conhecer os arguidos), pois apresentou um raciocínio coerente, nunca deixando transparecer qualquer contradição dos factos pela mesma relatados e atenta a circunstância dos factos terem sido corroborados pela testemunha Carlos C..
Referiu, no que se destaca, que “o dia ao certo não sei… andava no campo e a dona Teresa vinha no carro e ela parou e estava a contar ao Celestino que lhe tinham batido”, “eu não vi bater”, “à noite vi hematomas, negras a cabeça nos olhos na testa”, “ela disse-me que o António lhe malhou com um pau”, “eles sempre tiveram conflitos”, “primeiro chegou o INEM e 30 minutos depois chegou a GNR”; depois de ver as fotos disse que viu a arguida assim e que ela se queixava de dores.
Quanto a Carlos C. (solteiro, agricultor, residente no lugar de …; disse conhecer os arguidos; não fala com o arguido António D.), o mesmo logrou auxiliar o Tribunal a captar a realidade dos factos, uma vez que prestou o seu depoimento de forma credível, porque objetivo, pormenorizado e baseado no conhecimento direto dos mesmos e foi congruente com a demais prova produzida e as regras de experiência e do normal acontecer dos factos.
Referiu, no que releva, que “a dona Teresa foi à minha casa pedir um sulfatador e eu emprestei-lhe… no mesmo dia apareceu com o sulfatador partido [a cana de sulfatar partida]”, “ela disse que foi o António que lhe bateu”, “ela estava com nódoas negras, na cabeça, nos olhos e na face”, “ela tinha uns papos na cabeça”, “ela vinha no carro e eu disse-lhe não vá no seu carro pode causar um acidente”, “a dona Emília depois apareceu, andava na horta/leira”, “foi chamado o INEM… a GNR foi chamada pelo INEM”, “a cana de sulfatar estava partida em três pedaços”, “eles problemas têm tido há anos”, “ela estava nervosa e assustada”, “estava muito enervada”; depois de ver as fotos disse que viu a arguida assim e que ela se queixava de dores na cabeça.
Quanto à testemunha Sérgio M. (casado, militar da GNR, a prestar serviço no posto da GNR de …; disse conhecer os arguidos apenas do exercício das suas funções), a mesma logrou auxiliar o Tribunal a captar a realidade dos factos, uma vez que prestou as suas declarações de forma credível, porque segura, circunstanciada e baseada no conhecimento direto dos mesmos e foi congruente com a demais prova produzida e as regras de experiência e do normal acontecer dos factos.
Referiu, no essencial, que estava de patrulha às ocorrências e que, em virtude de uma chamada da central, foi à freguesia de … por causa de desacatos entre vizinhos; confirmou o teor do auto de notícia junto aos autos a fls. 3-4. Asseverou que chegado ao local viu o ora arguido António D. com escoriações/arranhões na face e um hematoma na cabeça (próprio “de ter levado com um objeto na cabeça”) e perguntou-lhe se queria receber assistência médica e ele disse que não. Mais referiu que o arguido mostrou-lhe um pequeno pau de madeira. Viu a máquina de sulfatar.
A convicção do Tribunal atingiu o patamar da certeza (i.e., para além de qualquer dúvida) quanto à efetiva realidade dos factos relatados pelo Ministério Público na acusação pública e documentada pelos elementos clínicos.
No que concerne ao elemento subjetivo, a comprovação do mesmo em qualquer ilícito faz-se, ou pela confissão do agente, ou pela existência de elementos fácticos objetivos dos quais aquele elemento se extrai por aplicação das regras da experiência e do normal acontecer dos factos.
No caso concreto em análise a comprovação do elemento subjetivo resultou, sobretudo, da conjugação da declarações dos arguidos, do depoimentos das testemunhas, dos demais elementos documentais constantes nos autos (em especial do teor dos Relatórios de Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Penal, do Instituto Nacional de Medicina Legal, Gabinete Médico-Legal de Viana do Castelo, de fls. 8 a 11 e 16 a 19; dos Elementos Clínicos do Centro Hospitalar do Alto Minho, em Viana do Castelo de fls. 27, 60 a 63, 66; e dos Registos Fotográficos de fls. 58 e 59), e das regras de experiência e do normal acontecer dos factos, uma vez que se afigura sobejamente conhecida que a ação dos arguidos ao se agredirem mutuamente no corpo implica o preenchimento do crime em questão.
A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional dos arguidos decorreu das informações da Repartição de Finanças, da base de dados de Bens Móveis, da Conservatória do Registo Predial e da Segurança Social de fls. 147, 157-167, 178-214 e 168-175, 215; dos documentos juntos na audiência de julgamento pela demandante; e das declarações dos arguidos, sendo certo que inexistem nos autos elementos que as contrariem.
A respeito da ausência de antecedentes criminais registados dos arguidos foi determinante o teor dos certificados do registo criminal junto aos autos.
Finalmente, na parte em que os factos não resultaram provados, tal circunstância deve-se quer à inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer à circunstância de se terem provado factos contrários, quer ainda por aplicação do princípio in dubio pro reo (segundo o qual quando persista a dúvida se o arguido praticou ou não os factos imputados na acusação, sempre tem que ser resolvida a favor do arguido; é certo que a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo, e efectivamente o processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim, mas sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece a dúvida final, malgrado todo o esforço para a superar, pelo que em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá sempre a absolvição do arguido quanto à matéria sobre que incide a dúvida).”

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1ª Questão.
Embora de forma algo confusa (sim confusa, porque se nos afigura que estará a fazer confusão entre vícios da sentença e erro na valoração/apreciação da prova produzida em julgamento, ou seja erro de julgamento), invoca a recorrente que a sentença padece do vício do erro notório na apreciação da prova (vício a que se reporta o artigo 410º nº 2 alínea c) do Código de Processo Penal).
Apreciemos tal questão.
Ao invocado vício, que é de conhecimento oficioso (tal como o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mencionados mas alienas a) e b) do artigo 410º nº 2 do CPP), alude a alínea c) do nº 2 do artigo 410º Código de Processo Penal Diploma a que se reportarão as demais disposições citadas sem menção de origem ou apenas com a sigla CPP.
, o qual, conforme decorre do corpo do nº 2 de tal artigo, tem de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.” Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
O erro notório na apreciação da prova é um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
O “erro notório na apreciação da prova” verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada e/ou das legis artis (sobre os vícios de conhecimento oficioso, como é o caso do erro notório da apreciação da prova, ver Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pags 61 e seguintes).
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Como assim que, ao erro notório, vem sendo, de igual modo, entendimento das Doutrina e Jurisprudência que apenas se terá como verificado em apertadas circunstâncias. Tal vício nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida, ele só pode ter-se como verificado quando o conteúdo da respectiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida – cfr., entre outros, os Acórdãos do S.T.J., de 09/07/1997 (proc. 562/97) e de 20/03/1999 (Proc. 176/99).
E importa ter também presente que através do erro notório da apreciação da prova se visa atacar a factualidade que o tribunal deu como provada ou não provada (pois o erro notório constitui um dos vícios intrínsecos da sentença), mas não propriamente a credibilidade que foi dada a um meio de prova (aqui estaríamos em algo extrínseco à sentença que estará por detrás da valoração da prova feita pelo tribunal).
Invoca a recorrente que “a sentença recorrida enferma de erro de julgamento por erro notório na apreciação da prova”
Não assiste qualquer razão à recorrente, sendo, por demais patente que a mesma confunde os dois conceitos. Enquanto, como referimos atrás, o erro notório na apreciação da prova reporta-se ao vício intrínseco à própria sentença, já o erro de julgamento (a que adiante nos referiremos) reporta-se à prova produzida (e por isso reportado a algo que é externo à própria sentença) e que existe quando se dá como provado um facto sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado
In casu, lendo e relendo a decisão recorrida, e analisando os fundamentos expressos pelo tribunal a quo no cotejo das provas produzidas em audiência, designadamente tendo em conta as referências às declarações de ambos os arguidos/ofendidos (cada um deles negando os, a si, imputados comportamentos agressivos, mas cada um deles atribuindo que as próprias lesões advieram do comportamento agressivo do outro) e à prova testemunhal e documental/pericial que o tribunal considerou credível (sem que da mesma motivação da matéria de facto, ao contrário do que parecer fazer crer o recorrente, decorra que alguma testemunha tivesse afirmado ter visto qualquer dos arguidos a agredir o outro e, muito menos, a iniciar as agressões), e mencionados na fundamentação da matéria de facto conjugadas com as regras da experiência ali mencionadas e com as estruturadas razões em que se fundamentou o tribunal para dar como provados e não provados os factos da forma como o fez, não vislumbramos qual ou quais factos provados e não provados notoriamente estivessem errados. Quer isto dizer que não vislumbramos que regras da experiência comum (nem a recorrente as concretiza) tivessem sido postergadas perante o que da prova produzida e mencionada na matéria de facto veio a ser dado como provado e não provado.
O que a recorrente discorda sobretudo é do facto do tribunal a quo não ter dado total credibilidade às declarações da arguida/recorrente e não ter considerado o depoimento das testemunhas no sentido de que foi o arguido a iniciar o confronto físico.
Mas essa parte não se encaixa no vício da sentença, mas sim no âmbito da valoração da prova feita pelo tribunal a quo para dar como provados determinados factos e não provados outros, valoração essa em relação à qual a recorrente discorda.
Assim, para além de não descortinarmos que o tribunal a quo se tivesse alicerçado em provas proibidas, consideramos que face às provas produzidas e mencionadas na fundamentação da matéria de facto e aos fundamentos/argumentos utilizados para através delas espelhar os factos provados e não provados, não se verifica uma violação das regras da experiência, pelo que a sentença recorrida, não enferma do apontado vício a que alude a alínea c) nº 2 do artigo 410º.
E quanto aos demais vícios a que aludem as alienas a) e c) do nº 2 do artigo 410º o tribunal não os detecta nem sequer foram invocados pela recorrente.
Improcede, pois, a primeira pretensão da recorrente.

2 Questão. Erro de julgamento
No âmbito da impugnação ampla (e já não restrita ao texto da decisão recorrida como acontece com a indagação dos vícios do artigo 410º nº 2), a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º, nos quais é expressamente estabelecido:
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
São estes os passos a cumprir em caso de impugnação da decisão sobre matéria de facto. Na especificação dos factos o recorrente deverá indicar o(s) concreto(s) facto(s) que consta(m) da sentença recorrida e que considere incorrectamente julgado(s). Quanto às provas, terá que especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ex: quando o recorrente se socorra da prova documental tem que concretizar o documento que demonstra o erro da decisão; quando se socorra de prova gravada tem que indicar o depoimento (ou depoimentos) em questão (por identificação da pessoa ou pessoas em causa), tem de mencionar a passagem ou passagens desse depoimento que demonstra erro em que incorreu a decisão e tem, conforme decorre no nº 4 atrás transcrito, que localizar esse excerto de depoimento no suporte que contém a gravação da prova, por referência ao tempo da gravação.
A exigência da lei ao estabelecer os requisitos da impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido deve-se à circunstância de o recurso sobre matéria de facto, apesar de incidir sobre a prova produzida e o seu reflexo na matéria assente, não configurar um novo julgamento. Se estivéssemos perante um novo julgamento as especificações/requisitos seriam, obviamente, destituídos de fundamento. Mas, sendo o recurso um remédio, então o que se pretende é corrigir concretos erros de julgamento respeitantes à matéria de facto. Por isso a lei impõe que os erros que o recorrente entende existirem estejam especificados e que as provas que demonstrem tais erros estejam também elas concretizadas e localizadas, tanto mais que, segundo estabelece ainda o nº 6 de tal artigo 412º, “No caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Mas de todo o modo, sempre há que ter em atenção que numa concreta reapreciação da prova produzida em audiência de julgamento, como assinala o ac. do STJ de 12/06/2008, no proc. nº 07P4375, Relator Juiz Conselheiro Raul Borges (e acessível pelo site www.dgsi.pt) “sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:
- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.” (negrito e sublinhado nosso)
Acrescenta-se, em consonância com o atrás descrito, que a reapreciação da prova na 2ª instância limita-se a controlar o processo de formação da convicção expressa da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/fundamentação da decisão, sendo que no recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal ad quem não vai à procura de nova convicção – a sua – mas procura inteirar-se sobre se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado da prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugada com as regras da experiência e demais prova existente nos autos (pericial, documental, etc). Neste enquadramento, podendo o controlo da matéria de facto ter por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados ou analisados em audiência de julgamento, importa ter sempre presente que não se pode, a qualquer preço, subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade, nunca esquecendo as palavras do Prof. Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, 1º Vol, Coimbra Editora, pags 233 e 234) que só os princípios da imediação e da oralidade “… permitem … avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.

Ora, tecidas todas estas considerações sobre as exigências que incumbem a um qualquer recorrente quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, exigências essas assinaladas no já mencionado artigo 412º nºs 3 e 4, no caso sub júdice, constata-se que a recorrente não deu cumprimento a tais exigências para que este tribunal ad quem pudesse sindicar a matéria de facto fixada na primeira instância.
Apesar de não surgirem grandes dúvidas que a recorrente impugna os factos dados como provados nos pontos 1.3, 1.9 e 1.11 (cfr. conclusão 4), constata-se que a recorrente não deu cumprimento do ónus de especificação a que alude a alínea b) do mesmo nº 3 do artigo 412º, sendo que por ter existido prova gravada, aquele ónus tem estrita ligação com o que exige o nº 4 do mesmo artigo 412º.
Com efeito, apesar de opinar que as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas deveriam conduzir a que o tribunal recorrido devia ter dado como provado que foi o arguido a iniciar a contenda e por isso deve ser julgado provado que foi o arguido que em primeiro lugar agrediu a recorrente (cfr. conclusões 9 e 11), o certo é que a arguida/recorrente não assinalou as concretas passagens da gravação das declarações do arguido ou das suas próprias declarações e dos depoimentos das testemunhas que pudessem impôr decisão diversa daquela a que chegou o tribunal a quo.
Ora, salvo o muito devido respeito por opinião contrária, fazer alusão a que o tribunal não valorou devidamente as declarações do arguido e das testemunhas, só por si não é susceptível de impor decisão diversa sobre os factos em relação aos quais tais depoimentos poderão ter versado.
O ónus de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa, caso as mesmas tenham sido objecto de gravação (o que foi o caso – cfr. acta da audiência de julgamento de fls. 254 a 257) implica a indicação e concretização das passagens da gravação em que se funda a impugnação do facto (ou factos) posto(s) em crise pela recorrente (cfr. nº 4 do artigo 412º) para que, em conformidade com o nº 6 de tal artigo o tribunal de recurso proceda à audição das passagens indicadas; não cabendo ao tribunal ad quem nem a faculdade/direito nem o ónus/dever/obrigação de se substituir ao recorrente.
Ao discorrer sobre a prova gravada, fazendo apelo a depoimentos que na sua óptica possam estar correctos e/ou incorrectos, a recorrente dispensou-se de indicar/precisar as concretas passagens em que se funda a sua impugnação, assim como não os indica por referência aos suportes técnicos de forma específica e individualizada.
E essa especificação não se confunde com a referência genérica aos depoimentos de algumas das pessoas que indica, sem qualquer alusão/referência para os concretos tempos de gravação e passagens da gravação em que tais depoimentos foram prestados e que deveriam suportar a tese da recorrente.
Como se afirma em Acórdão desta Relação de Coimbra de 21/07/2009, Proc. 407/07.2GBOBR.C1 “...ao determinar o n.º 6, do art.º 412º que "no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas (...)", se terá que concluir que as concretas provas terão de corresponder a segmentos das declarações ou do depoimento e não a toda a extensão dos mesmos”.
A indicação exigida pela alínea b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos, é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus meramente formal.
O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10/3, disponível em www.tribunalconstitucional.pt)
Como se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Julho de 2006 (Proc. nº 06P120, disponível in www.dgsi.pt) “visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Terá, pois, de se ir para uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos
Daí que, neste parte a que agora vimos fazendo referência, a recorrente não cumpriu, portanto, o ónus de impugnação especificada, apesar de o programa de reprodução da gravação da prova oralmente produzida em audiência de julgamento, auto-executável a partir de suporte informático (CD), no qual foram gravadas as declarações do arguido, da arguida/recorrente e das testemunhas, apresentar todos os elementos necessários à indicação com a maior precisão dos segmentos de prova seleccionados, a saber: número e tipo de processo; data; identificação da diligência, do magistrado que preside, do funcionário que auxilia, nome do declarante, data e hora do início das declarações, econometria integral do andamento das mesmas, ao segundo.
Perante tal suporte informático (CD), cada parte seleccionada da gravação pode ser facilmente identificada com indicação da hora, minuto e segundo de início e da hora, minuto e segundo do termo do depoimento da pessoa cujo depoimento reveste interesse para o recorrente no sentido de impor decisão diversa quanto ao concreto ponto de facto que é (ou devia ser) posto em causa.
A referência aos suportes magnéticos torna-se necessária à praticabilidade do confronto da gravação com as indicadas passagens da prova gravada em que se funda a impugnação e com os pontos controversos da matéria de facto que se pretende ver alterada.
Por isso que o artigo 412.º, n.º 4 refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens [das gravações]) em que se funda a impugnação”, acrescentando o n.º 6 do mesmo preceito que [no caso previsto no n.º4] o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
A recorrente manifestou discordância sobre a decisão de facto proferida na 1ª instância e teve a intenção de a impugnar mas, para esse efeito, deveria ter dado cumprimento ao ónus de impugnação especificada nos termos do artigo 412.º, nºs 3 b) e 4, o que manifestamente não fez, não sendo de esquecer o recurso não é um novo julgamento mas um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada.
Conforme tem sido repetidamente afirmado, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância.
A apreciação da prova no julgamento realizado em primeira instância beneficiou de claras vantagens de que o tribunal de recurso não dispõe: a imediação e a oralidade. E constitui uma manifesta impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro, ao tribunal recorrido, através de um novo julgamento.
Daí, também aqui a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum imporem diversa decisão.
Assim, sendo por demais evidente que a recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada a que estava vinculada (na vertente da inobservância do prescrito na alínea b) do mesmo nº 3 do artigo 412º, conjugado com o nº 4 do mesmo preceito legal), importa referir que tal omissão/inobservância não dá lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso já que as deficiências afectam o próprio corpo da motivação, ou seja, não estamos perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões, mas perante deficiências substanciais da própria motivação.
Se ao menos na motivação tivesse devidamente observado o estabelecido no artigo 412º nºs 3 b) e 4, poder-se-ia fazer operar o convite ao aperfeiçoamento a que alude o nº 3 do artigo 417º. Todavia, sendo inalterável a motivação e não podendo as conclusões exceder os limites definidos pela motivação (cfr. nº 4 do artigo 417º), o convite para a correcção traduzir-se-ia num acto inútil, o que a lei proíbe.
A recorrente não cumpriu, portanto, o ónus de impugnação especificada.
A situação em presença é inteiramente similar àquela que levou o Supremo Tribunal de Justiça a referir que o «convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente no corpo da motivação do recurso se absteve do cumprimento daquele ónus, que não é meramente formal, antes com implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciou as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, ao fim e ao cabo, contas direitas, inscreveria um novo recurso, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do direito ao recurso» ( - Acórdão do STJ de 31/10/2007, disponível em www.dgsi.pt/jstj.).
Neste sentido se pronunciou também o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 259/2002, ao referir quando a deficiência de não se ter concretizado as especificações previstas nas alíneas a), b) e c), do n.º 3 do art. 412º, do CPP, reside tanto na motivação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, quando na primeira não indicou os fundamentos do recurso ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.”(Acórdão de 18/6/2002, publicado no D.R., II Série, de 13/12/2002.).
A haver despacho de aperfeiçoamento, quando o vício seja da própria motivação equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso.
E segundo as orientações do atrás mencionado Acórdão do TC nº 259/2002 (acórdão esse em que recorrente era um assistente), já perante uma situação em que o recorrente é o arguido, o mesmo Tribunal Constitucional (reportando-se concretamente à alínea b) do nº 3 do artigo 412º), no seu Acórdão nº 140/2004, de 10 de Março (publicado no Diário da República II Série, de 17 de Abril de 2004, o mesmo TC foi bem claro ao decidir “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências
E a jurisprudência deste acórdão veio a ser perfilhada nos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 488/2004 e 342/2006 e nas decisões sumárias nºs 58/2005, 274/2006 e 88/2008 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Saliente-se que de acordo com o disposto no artigo 431.º, b), havendo documentação da prova, a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto só pode ser modificada se esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, o que, como vimos, não ocorre no caso em apreço.
Na circunstância do não acatamento do ónus de impugnação especificada, tem-se entendido, como decorrência da sua própria noção (um ónus consiste na necessidade de observância de determinado comportamento como pressuposto de obtenção de determinada vantagem, que até pode cifrar-se em evitar a perda de um benefício ou faculdade, no caso, a de viabilizar o recurso sobre a matéria de facto), não ocorrer o condicionalismo referido na alínea b) do artigo 431.º, tornando-se inviável a alterabilidade da decisão em relação à matéria de facto.
Em suma, por tudo o que acaba de ser dito, perante a falta de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa com a especificação das concretas passagens em que se funda a impugnação dos factos que a recorrente considera como não provados ou daqueles que considera que deveria ser dados como provados, coarctada ficou a possibilidade deste tribunal ad quem sindicar a matéria de facto que havia sido fixada pelo tribunal a quo, matéria essa que, assim, se tem por assente e inalterável.
Improcede, pois, também a pretensão da recorrente quanto à impugnação/alterabilidade da matéria de facto.
*
3ª Questão
Invoca também a recorrente que ocorreu violação do princípio do in dubio pro reo.
Como corolário do princípio da presunção de inocência que decorre do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, apresenta-se o princípio do in dubio pro reo que obriga a que, instalando-se e permanecendo a dúvida acerca de factos referentes ao objecto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática), essa dúvida deve ser sempre desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à absolvição (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, pags 50 e 51).
Como salienta Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I vol, pag 213) “Um non liquet na questão da prova – não permitindo ao juiz – que omita decisão … - tem que ser sempre valorado a favor do arguido”, sendo que “com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dúbio pró reo”.
Tal princípio incute uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
No caso vertente, o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, à forma do cometimento dos mesmos, bem como às finalidades pretendidas com cometimento dos mesmos, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida.
Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos imputados quer ao arguido quer à arguida/recorrente, indicando exaustivamente as razões que fundaram a convicção do tribunal para o assentamento, pela positiva, da materialidade que deu como provada.
Perante esta decisão, tomada com toda a segurança, não tem sentido invocar a violação do princípio in dubio pro reo, que só opera quando, produzida toda a prova, o tribunal mantiver dúvidas sobre a prática, pelo arguido, de factos que lhe sejam desfavoráveis. Esta dúvida impõe ao juiz que decida de modo a favorecer o arguido.
Não havendo dúvida sobre a prática dos tais factos desfavoráveis à arguida/recorrente não há lugar à aplicação de um tal princípio.
Por isso, também aqui naufraga a pretensão da recorrente.
*
5ª Saber se ocorreu legítima defesa ou retorsão por parte da arguida.
Diz-nos o art. 32.º do Código Penal:
«Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro».
São por demais conhecidos os requisitos cumulativos da mencionada figura, que assim se podem consubstanciar:
a) Uma agressão actual ou iminente;
b) Que a agressão seja ilícita, não motivada por provocação do defendente;
c) A existência do animus defendendi;
d) Impossibilidade de recurso à força pública; e
e) A necessidade racional do meio empregado.
Em face da matéria de facto provada, de imediato se intui que os requisitos enunciados supra não se mostram preenchidos, já que tão pouco está demonstrada a existência do animus defendendi por parte da arguida/recorrente.
E quanto à retorsão?
O art.143.º, n.º 3, do Código Penal estatui que «O tribunal pode dispensar da pena quando:
a) (…)
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.».
Esta alínea b), respeita a casos de retorsão, «… ou seja, situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido ( e ao mesmo tempo agressor) empregando a força física.».- cfr. Prof. F. Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 220.
A dispensa da pena, em caso de retorsão numa situação de ofensas corporais, tem carácter facultativo, como resulta do emprego do verbo poder no tipo legal.
O art.74.º, n.º 3 do Código Penal estatui que « Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do número 1.».
Os requisitos contidos nas alíneas do n.º 1 do art.74.º, do Código Penal são:
« a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;
b) O dano tiver sido reparado; e
c) À dispensa da pena se não opuserem razões de prevenção.».
No caso em apreciação, e no que à arguida/recorrente respeita está dado como provado que “ambos os arguidos envolveram-se numa discussão motivada pela remoção, por parte da arguida Teresa F., de uma cancela existente entre ambos os referidos terrenos, no decurso da qual, após uma breve troca de palavras,
- a arguida Teresa F. atingiu o arguido António D., inicialmente, com a cana de um pulverizador que a mesma na ocasião detinha na sua posse, com o qual desferiu um número não concretamente determinados de golpes que atingiram o arguido António D. na zona da cabeça e, posteriormente, com o cabo de uma vassoura, que se encontrava junto deste último, com a qual desferiu, igualmente, desferiu um número não concretamente determinados de golpes que atingiram o arguido António D. em ambos os seus braços;
(…)
1.5. – Como consequência directa e necessária da actuação da arguida Teresa F. sofreu o arguido António D., duas escoriações arredondadas com 2x1cm, na região parietal direita e na região frontal central, bem como, equimose arredondada de tom castanho, com 2x5cm de comprimento na face posterior do terço inferior do antebraço direito e uma outra equimose arredondada de tom castanho, com 2x5cm de comprimento na face posterior do terço inferior do antebraço esquerdo.
1.6. − Lesões essas, que determinaram 5 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
(…)
1.9. − Ao actuar da forma supra descrita, atingindo o arguido António D. com a cana de um pulverizador e com uma vassoura, agiu a arguida Teresa F., de modo livre, deliberado e com a perfeita consciência de estar a provocar neste último as lesões que efectivamente provocou, como era aliás sua intenção.
(…)
1.11. – Agiram ainda a arguida Teresa F. e o arguido António D., bem sabendo que as suas condutas eram contrárias ao direito e criminalmente puníveis.”
Ora, perante esta factualidade jamais se pode considerar que, embora empregando a força física, a arguida se tivesse limitado a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor). Antes, e pelo contrário, também ela quis agredir aquele que a estava a agredir (repare-se que da matéria de facto apurada não resulta qual deles iniciou a agressão ao outro, nem que a arguida tivesse agido apenas com intenção de se defender ou de apenas responder à agressão).
Improcede, assim, também esta pretensão da recorrente.

5ª Questão.
Quanto a esta questão - saber se a recorrente deveria ter sido absolvida do crime e, nessa decorrência, se o arguido deveria ter sido condenado no pedido de indemnização civil - cumpre muito sucintamente dizer que, e até na sequência da análise da questão anterior, a mesma terá que improceder, por três ordens de razões:
a) Por um lado, verificamos que a suscitação desta questão tinha por base o êxito da pretendida alteração da matéria de facto, alteração essa que, como supra exposto, não veio a ter acolhimento por este tribunal ad quem.
b) Por outro lado, adianta-se ainda que, face à inalterabilidade da matéria de facto e perante os factos provados, a qualificação jurídica dos factos provados encontra-se correcta e detalhadamente fundamentada na sentença recorrida, da qual decorre que a apurada conduta da arguida/recorrente preenche os elementos constitutivos (a nível objectivo e subjectivo) do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º nº 1 do Código Penal, sem que se tenham verificado quaisquer causas de exclusão quer da ilicitude (mormente da aventada legítima defesa que não ocorre face à materialidade fáctica dada como assente) quer da culpa, sendo que da mesma apurada factualidade também não se mostra preenchida uma situação que pudesse ser enquadrável na figura da “retorsão” que, a ocorrer, apenas poderia conduzir a uma dispensa de pena, face ao consignado no nº 3 b) do artigo 143º (e não, propriamente, a uma absolvição – cfr. artigo 375º nº 3).
c) Por último, tendo sempre presente que se manteve inalterada a matéria de facto que conduz à confirmação da condenação da arguida/recorrente pelo crime de ofensa à integridade física simples por que tinha sido acusada, concordamos também com o que a dado passo da sentença foi mencionado a propósito da exclusão de indemnização por parte de qualquer dos arguidos dada a reciprocidade de ofensas e de danos.
No final da abordagem à questão cível e antes do dispositivo, diz o tribunal a quo:
De salientar ainda que estabelece o artigo 570.º (Culpa do lesado), n.º 1 do Código Civil, que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
Ora, analisada a matéria de facto provada resulta ter existido uma mútua vontade dos arguidos de se agredirem, sem se saber quem começou, ou se alguém apenas quis retorquir, sendo certo que para tais condutas não havia necessidade ou justificação.
O desvalor do resultado de tal conduta imprópria está exarado, nomeadamente, nos Relatórios de Perícia de Avaliação de Dano Corporal em Direito Penal, do Instituto Nacional de Medicina Legal, Gabinete Médico-Legal de Viana do Castelo, de fls. 8 a 11 e 16 a 19, donde se depreende que as respectivas consequências são próximas em termos de gravidade e que determinaram, respetivamente, 5 e 6 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
Nesta conformidade, perante a natureza, o modo de ocorrência, o grau de culpa na produção do resultado e a gravidade concreta das lesões sofridas pelos intervenientes, justifica-se plenamente que os reais danos por aqueles sofridos não mereçam qualquer tipo de tutela cível, devendo, por isso, ser excluída a obrigação de qualquer um dos arguidos indemnizar.
Concordando com esta argumentação, e nada mais havendo a acrescentar, inevitavelmente falece também a pretendida condenação do arguido no pedido de indemnização civil da recorrente.
Consequentemente, e sem necessidade de mais considerandos, improcedem também estas pretensões da recorrente.
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Assim, e em síntese conclusiva, naufragando todas as pretensões da recorrente - e não se mostrando violados (na decisão recorrida, ou seja, por parte do tribunal a quo) quaisquer princípios ou qualquer preceitos legais ordinários, designadamente os invocados no recurso - terá o recurso que improceder, sendo de confirmar a decisão recorrida.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s, sem prejuízo do apoio judiciário que já lhe foi concedido.
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(Elaborado em computador e revisto pelo relator, 1º signatário - art. 94º nº 2 do Código de Processo Penal)
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Guimarães, 17 de Dezembro de 2015