Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
154/15.1GAPCR.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
ELEMENTO SUBJECTIVO
EXPRESSÕES INJURIOSAS
PEDIDO CÍVEL
ALÇADA TRIBUNAL RECORRIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O tipo legal previsto no art. 181º do C. Penal (crime de injúria), assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), sendo indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, de modo apreciar se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada, quer no valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer na própria reputação ou consideração exterior, no patamar mínimo exigível de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao estado de direito.

II - Tem sido jurisprudência desta Relação que «existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objectivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas». Ora, segundo a normalidade da vida e as regras da experiência, as imputações feitas pelo arguido à pessoa do assistente – «és um gatuno, ladrão, falsificaste os cheques …» –, no concreto circunstancialismo do relacionamento negocial mantido entre ambos, não podem deixar de ser tidas, como susceptíveis de ofender a honra e a consideração do visado, porque, acarretando a imputação de ilícitos criminais, visam nitidamente a esfera da sua dignidade pessoal.

III - É actualmente pacífico que nos crimes de difamação e injúria não é exigível um qualquer dolo específico ou elemento peculiar do tipo subjectivo que se traduzisse no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração, o designado animus injuriandi, admitindo os respectivos tipos legais qualquer das formas de dolo previstas no art. 14º do C. Penal, incluindo o dolo eventual, sendo suficiente que o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e actue conformando-se com ele (dolo eventual), preenchendo-se, pois, o elemento subjectivo do tipo com a vontade de praticar o acto com a consciência de com ele se atribuir um facto ou formular um juízo com significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias.

IV - O Tribunal da Relação não pode conhecer do recurso sobre a decisão quanto ao pedido cível, com autonomia relativamente ao recurso visando a decisão da matéria penal [art. 403º, nºs 1 e 2, als. a) e b), do CPP], se não se verificarem os pressupostos cumulativamente exigidos para tal pelo art. 400º (do mesmo código), ou seja, se o valor do pedido não for superior à alçada do tribunal de 1ª instância e a decisão impugnada não for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa mesma alçada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

No supra identificado processo, do Juízo de Competência Genérica de Valença, da Comarca de Viana do Castelo, o arguido Manuel foi julgado e condenado, por sentença depositada em 14-06-2017, como autor de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 10, e, ainda, a pagar ao demandante Joaquim a quantia de € 1.500, acrescida dos juros de mora à taxa de 4%, desde a notificação para contestar o pedido de indemnização civil até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos decorrentes da sua conduta.

Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs recurso cujo objecto delimitou com as seguintes conclusões:

«A. O Tribunal a quo conferiu dignidade penal às expressões proferidas pelo arguido, conclusão que se crê excessiva;
B. O recorrente foi exaustivo na explicitação do contexto donde advém o triste episódio do dia 23 de Julho de 2015, estando assente nos autos que a discussão em causa tem como pano de fundo um desentendimento relativo a um contrato de empreitada celebrado com o assistente;
C. O próprio assistente, em prestação de declarações, admitiu apenas que foi apodado de “trafulha”, mais afirmando que o recorrente lhe tinha dirigido a expressão “falsificaste-me os cheques com o pessoal da Caixa”, o que, embora não sendo deveras relevante para justificar a aplicação do artigo 358.º do Código de Processo Penal (porquanto na acusação está vertido o vocábulo gatuno), a verdade é que das palavras do assistente não evidenciaram um relato muito acalorado, pelo qual tivesse depois abandonado o local muito condoído, vexado ou humilhado;
D. O assistente não retorquiu as palavras do recorrente, tendo de imediato abandonado o local, e o recorrente não continuou a insinuar o que quer que seja, pelo que as expressões foram proferidas como que repentinamente, num contexto de discussão de uma reclamação de dívida, num espaço da propriedade do recorrente (logradouro, terreiro, defronte da sua casa);
E. A propensão para o insulto repentino terá de ser dissecada caso a caso, sendo indesmentível a falta de instrução do arguido, acompanhada da vivência num meio sociocultural (raia minhota) em que linguagem de calão mais assanhado assume a máxima expressão na loquacidade das pessoas;
F. Ao apodar o assistente de ladrão, o arguido pretendeu exprimir somente o seu desagrado pela forma como a empreitada foi conduzida, não pretendendo pagar-lhe a totalidade do preço da obra por se achar lesado no seu interesse enquanto credor;
G. O recorrente é uma pessoa com alguma idade, viveu e (vive ainda) grande parte da sua vida num país (EUA) ultra propício à crítica desenfreada, à quiçá demagogia mais fácil na utilização das palavras, à ofensa verbal gratuita e pungente, de modo que o mesmo não se coíba e verbalizar certas expressões de forma mais contundente;
H. De todo o modo, as expressões dadas como provadas não parecem configurar uma ofensa marcadamente inadmissível, sob todos os pontos de vista. Não é isso que avulta dos autos, pelo que assim de defende a não aplicação do artigo 181.º do Código Penal.
I. Mesmo que assim não se entenda, deverá sempre aplicar-se no caso vertente o disposto no artigo 17.º do Código Penal, pois o arguido, desculpavelmente, atenta a sua vivência num país onde a linguagem mais grosseira é notoriamente evidente, não poderia ter representado como altamente censurável a sua conduta, pois agiu no exercício, ainda que exacerbado, de crítica e reclamação à pretensão de recebimento do assistente, por simplesmente entender que a obra levada a cabo por este último apresentava defeitos;
J. Incorreu, pois, o recorrente, em erro não censurável, e não sendo o tipo aqui punível a título de negligência, terá necessariamente de ser excluída a culpa, com a necessária absolvição do mesmo;
K. Pelo exposto, devem dar-se como não provados os factos n.ºs 3 e 4 do capítulo dos factos provados na sentença recorrida, não propriamente por ausência de dolo, mas por ausência de culpa;
L. Sempre sem prescindir, subsidiariamente, em caso de manutenção da condenação, deverão os dias de multa a que foi condenado o recorrente ser alvo de uma redução, porquanto o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 71.º do Código Penal;
M. Em termos de desvalor da acção e de resultado, não se verifica que a actuação do arguido tenha revestido uma crueldade, cinismo, cólera, desiderato de vindicta, sentimento possessório e brutalidade tais que traduzam uma clamorosa ofensa à dignidade da pessoa do assistente;
N. De molde que a factualidade apurada não assume gravidade tal que justifique a fixação de 80 dias de multa;
O. Como consequência do acima exposto, deve de igual modo ser reduzida a indemnização arbitrada, em consonância com a redução dos dias de multa a operar-se eventualmente, numa determinação mais conforme com o disposto no artigo 71.º do Código Penal e em consonância com os artigos 494.º e 496.º do Código Civil.».

O recurso foi regularmente admitido pelo despacho proferido a fls. 277.

Em 1ª instância, o Ministério Público e o assistente responderam ao recurso, pugnando pela sua total improcedência, com argumentos que a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal, em geral, acolheu no seu douto parecer e reforçou com pertinentes considerações.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as questões de saber se: o arguido deve ser absolvido porque (i) as expressões que endereçou ao assistente, atendendo ao respectivo contexto fáctico, não configuram uma ofensa marcadamente inadmissível e enquadrável no art. 181.º do C. Penal, e (ii) porque os pontos 3 e 4 da factualidade tida por assente, atinentes à culpa ao mesmo assacada, não devem ser considerados como patenteados pelo conjunto dos demais factos provados; (iii) caso assim se não entenda, a gravidade da factualidade apurada não justifica a pena de 80 dias de multa e (iv) o montante da indemnização arbitrada.

Importa apreciar e decidir tais questões, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados na decisão recorrida e a respectiva motivação, que a seguir se transcrevem.

«1. No dia 23 de Julho de 2015, cerca das 18H30, o assistente Joaquim deslocou-se até à residência do arguido, sita no Lugar …, concelho de Paredes de Coura, a fim de obter o pagamento de uma quantia em dívida respeitante a um contrato de empreitada para execução de uma obra que ambos tinham celebrado entre si.
2. Quando aí chegou o assistente dirigiu-se ao arguido e perguntou-lhe quando é que ele tencionava pagar o que lhe devia, sendo que o arguido, de imediato, lhe disse, em voz alta, “não pago, és um gatuno, ladrão, falsificaste os cheques com ajuda do pessoal do Banco A”.
3. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de ofender a honra e consideração do assistente Joaquim, o que quis e conseguiu.
4. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
5. O assistente é pessoa séria, respeitadora e respeitada no seu meio social.
6. As expressões referidas em 2 foram proferidas pelo arguido na presença de colegas de trabalho do assistente, tendo provocado neste, como ainda provocam, tristeza, angústia, ansiedade e indignação
7. O assistente é pessoa conhecida em Paredes de Coura, de onde é natural, aí exercendo a sua actividade de construção civil.
8. Os factos descritos em 2 foram e são alvo de comentários em Paredes de Coura, designadamente por parte de pessoas que conhecem o assistente e a sua família.
9. O assistente nunca teve qualquer problema com os seus clientes, seja quanto à execução dos trabalhos, seja quanto ao pagamento dos serviços.
10. Não consta averbada qualquer condenação no registo criminal no que respeita ao arguido.
11. O arguido reside nos Estados Unidos da América, para onde emigrou há 36 anos.
12. Está actualmente aposentado e aufere uma pensão de reforma no montante mensal de 2.500,00 dólares.
13. A esposa é doméstica e recebe uma pensão mensal de 580,00 dólares.».

Motivação da decisão de facto:

«O Tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos dados como provados, com base em todo o acervo probatório produzido em audiência, analisado de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum.
Adiante-se desde já que o arguido reconheceu que no dia 23 de Julho de 2015, cerca das 18H30, junto ao portão da sua casa de habitação no lugar de …, Paredes de Coura, teve efectivamente um confronto com o assistente Joaquim, explicando que entre ambos está latente um conflito que diz respeito a um contrato de empreitada que celebraram entre ambos. Negou, porém, que lhe tenha dirigido as expressões descritas na acusação particular, referindo que se limitou a dizer ao assistente para se deixar de vigarices e que fosse para Tribunal resolver o problema – o assistente reclama dele e da esposa o pagamento de uma dívida que diz respeito ao supra mencionado contrato.
O arguido confirmou também a presença no local, aquando da refrega, de dois “empregados” do assistente, as testemunhas José e António, para além da sua esposa.
Assim sendo, o Tribunal convenceu-se que os factos aconteceram da forma descrita na acusação particular com base, desde logo, nas declarações prestadas pelo assistente, que foram conjugadas com os depoimentos prestados por José e António (sendo que ambos esclareceram que trabalham em parceria com o assistente e que não são seus “empregados”, como o arguido os classificou). Tais declarações e depoimentos foram, isoladamente considerados, prestados de forma credível, sendo que a sua conjugação permitiu perceber que houve coerência entre declarante e testemunhas no que respeita à forma como os acontecimentos se foram sucedendo, sendo que o próprio arguido referiu que os depoentes tiveram uma postura passiva e não intervieram em momento algum para tomar partido fosse de quem fosse.
Tais testemunhas confirmaram que o arguido dirigiu inequivocamente ao assistente as palavras vertidas no ponto 2 dos factos provados, e que o fez em voz alta, pondo inclusivamente as mãos à volta da boca como que simulando um megafone, e que o fez depois daquele ter interpelado educadamente a sua esposa a propósito da dívida resultante do contrato acima mencionado.
A testemunha Fernando declarou que reside no mesmo lugar de … – e que conhece todos os intervenientes por esse motivo, sublinhando-se que os sogros do assistente ali também residem – e quem em finais de Julho de 2015, encontrando-se a pastorear algumas cabras num terreno público que fica em frente à habitação do arguido – como faz habitualmente, esclareceu – ouviu este último a chamar o assistente de “gatuno” e a acusá-lo de ter falsificado uns cheques, expressões que repetiu várias vezes e em voz alta. É verdade que o assistente disse não ter visto a testemunha Fernando no local, mas também o é que o depoente António asseverou que o dito Fernando ali se encontrava, sendo certo nenhum dos depoimentos nos mereceu qualquer reparo em termos de credibilidade, sendo verosímil que um tenha visto o que o outro não viu, circunstância que até reforça a fiabilidade das declarações prestadas pelo assistente já que era mais fácil para si limitar-se a dizer que viu o depoente Fernando no local, ao contrário do que fez (sublinhe-se que o depoente Fernando, de forma espontânea, ao explicar a posição relativa das pessoas que se encontravam dentro e fora do portão da residência do arguido relativamente à sua própria posição disse que o assistente estava de costas para si).
No julgamento foi trazido à liça, pelo menos em certa medida, que as relações entre o depoente Fernando e o arguido não são as melhores por forma a impugnar a credibilidade do seu testemunho. Foi possível perceber que, de facto, não existe uma relação de grande proximidade entre ambos, mas também não se vislumbrou motivo palpável para descredibilizar o depoimento do referido Fernando, tanto mais que, na verdade, o mesmo foi coerente com a versão dos factos apresentadas pelo assistente e pelas testemunhas supra identificadas. De resto, como mais adiante veremos, a própria esposa do arguido acabou por reconhecer que o marido dirigiu de facto ao assistente as expressões – ou pelo menos algumas delas – descritas no libelo acusatório.
Mas o Tribunal não formou a convicção sobre a veracidade dos factos relatados na acusação particular apenas com base nos meios de prova acima mencionados. Na verdade, apesar de o arguido ter negado a prática dos factos, relatou outros que se encontram em flagrante contradição com o comportamento que adoptou após a refrega com o assistente ter terminado naquele dia. De feito, referiu o arguido que na data em questão o assistente, dirigindo-se a si e à sua esposa, os apodou de “filhos da puta de americanos”, pretendo referir-se à sua condição de emigrantes nos E.U.A. E, como já vimos, negou que tenha acusado o assistente de falsificar cheques alguns. Ora, a verdade é que o arguido, no dia seguinte aos factos – 24 de Julho de 2015, portanto –, deslocou-se ao posto da GNR de Paredes de Coura e apresentou uma queixa contra o assistente. Mas, pasme-se, no auto de fls. 3 que o arguido subscreveu não consta qualquer referência à grave injúria de que, conjuntamente com a esposa, asseverou ter sido alvo no dia anterior (recordemos: “filhos da puta de americanos”). Não se esqueceu, porém, de relatar que o assistente “efectuou dois levantamentos no Banco A sem sua autorização,… falsificando as assinaturas…”. Mais, o arguido denunciou ter sido ameaçado de morte pelo assistente e que este disse que deitava a garagem abaixo se não lhe pagasse a dívida, factualidade a que o arguido nem sequer aludiu nas declarações que prestou no julgamento. Interpelado para justificar por que motivo não fez menção a insulto tão ofensivo – “filhos da puta de americanos” –, não apresentou justificação digna de registo.
Para além das evidentes contradições que o relato dos factos apresentado pelo arguido, a elas soma-se o depoimento que a sua esposa prestou. A meio dele a testemunha, que até já tinha adiantado que a conversa começou entre si e o assistente e que só depois é que o marido apareceu e que até se enervou e falou alto, acabou por reconhecer que aquele se dirigiu ao ofendido e que o acusou de ter “traficado” os cheques (a expressão concreta foi: “traficaste-me os cheques”). A diferença semântica no caso não tem grande relevância – traficar/falsificar – já que o que se afigura relevante é que o arguido, ao contrário do que asseverou, sempre falou, duma forma ou de outra, na adulteração de cheques por banda do assistente.
O depoimento da esposa do arguido, com excepção daquele segmento concreto, foi no restante manifestamente tendencioso. Em momento algum referiu que o assistente ameaçou o marido de morte mas, quando foi confrontada com a queixa apresentada pelo arguido na GNR no dia seguinte aos factos, subitamente já se recordava de tudo e mais alguma coisa. Lembrou-se até de factos que o arguido não mencionou, como a alegada deslocação do irmão do assistente Joaquim à sua residência no dia 23 de Julho de 2015 e das ameaças de morte que o mesmo lhes dirigiu, factualidade que estranhamente – pela gravidade da mesma – também não consta da denúncia que deu início aos presentes autos.
O Tribunal não atribuiu qualquer credibilidade aos depoimentos prestados pelas testemunhas FA e DR, que são marido e mulher. Quiseram fazer crer que à data dos factos se encontravam numa paragem de autocarro que fica a cerca de 100 metros de distância da habitação do arguido e que, por esse motivo, presenciaram o decurso dos factos. Como já referimos, a esposa do arguido acabou por reconhecer que este se enervou e disse ao assistente que ele tinha “traficado cheques”. Ora, nenhuma das referidas testemunhas declarou ter ouvido da boca do arguido semelhante expressão e asseveraram ainda que não o ouviram também falar em “vigarices” ou “Tribunal”, como aquele disse ter feito.
Por outro lado, tanto o arguido como o assistente concordaram sobre a hora em que mantiveram a conversa em causa, que terá ocorrido pelas 18h30m: as testemunhas apontaram para as 17h30m, sendo que ficou para nós claro que não se tratou de desfasamento de memória normal atentendo a que já passaram quase dois anos sobre a data dos factos. Com efeito, o Tribunal ficou com muitas dúvidas sobre a presença dos depoentes no local que indicaram à data da ocorrência em apreço. É que para além das desconformidades relatadas o depoente FA referiu que ele e a esposa se ausentaram da paragem onde alegadamente se encontravam pelas 18h30m, 19 horas, enquanto aquela afirmou que não ficaram ali parados – para recuperar fôlego dado que tinham saído de casa pelas 16h30m e estavam a fazer uma caminhada, o que também se afigura muito estranho dado que já era Verão e que os depoentes são pessoas já de alguma idade, sendo que a depoente DR tem uma prótese abaixo de um dos joelhos, o que naturalmente lhe causa mais desconforto com o calor – mais do que 10 ou 15 minutos.
Ficou claro que as testemunhas em causa têm, como acabaram por dizer, uma relação de amizade muito próxima com o arguido e respectiva esposa, e que tal circunstância influenciou declaradamente os seus depoimentos.
Em suma, ficou claro da prova produzida que o arguido dirigiu ao assistente as expressões descritas no elenco de factos provados.
É verdade que nunca o depósito de cheques de que alguém é legítimo portador na conta bancária de outra pessoa constitui, per si, uma falsificação, pelo menos na perspectiva mais comum e mundana da expressão. E ao contrário do que, de forma esparsa, pretendeu fazer crer, não temos dúvidas de que o arguido bem sabia que a actuação do assistente não configura qualquer falsificação. A verdade é que as acções do arguido sob escrutínio foram levadas a efeito com o propósito de ofender a honra e consideração do assistente. Ficou claro, principalmente por via do depoimento da sua esposa – mas também das declarações prestadas pelo arguido – os cheques em causa foram preenchidos por uma única pessoa (como bem se percebe ao analisar a cópia do cheque junta a fls. 6, junta pelo arguido com a queixa que apresentou contra o assistente).
Fica assim claro que a divergência que opõe o arguido ao assistente no que respeita ao incumprimento do contrato de empreitada que celebraram entre ambos moveu o impetrado no sentido de praticar os factos dados como provados, aproveitando a circunstância de o ofendido ter depositado os cheques numa conta bancária distinta da sua para o aviltar, acusando-o de os falsificar.
A propósito do pedido de indemnização civil formulado pelo assistente Joaquim, o Tribunal apenas deu como provada a factualidade alegada quanto aos danos não patrimoniais, designadamente a humilhação, tristeza, indignação, revolta, etc. que aquele sentiu (e ainda sente) ao ouvir as palavras que o arguido lhe dirigiu, para o que relevou as declarações prestadas pelo próprio em conjugação com os depoimentos de José e de António (que asseveraram que aquele é uma pessoa séria e honesta, detentor de uma boa reputação profissional em Paredes de Coura), de Maria (referiu que o ofendido já lhe executou trabalhos de construção civil e que não teve quaisquer razões de queixa dos serviços prestados, bem pelo contrário, sendo que quando contactou com ele depois de ter tido conhecimento dos factos o achou triste e magoado, adiantando ainda que o sucedido foi alvo de comentários, como de resto é natural nos meios pequenos), de GA (sogro do assistente, confirmou o abalo emocional que aquele evidenciou após os factos), RB (esposa do assistente, explicou que no dia dos factos o marido nem jantou e que passou mal com uma crise de ansiedade que o acometeu, continuando no momento actual bastante tenso, principalmente quando é chamado para actos processuais relacionados com o evento em análise) e JJ (amigo e colaborador do assistente há muitos anos, confirmou que este goza de boa reputação e que por causa do sucedido andou e ainda anda muito nervoso, preocupando-se com a sua imagem profissional).
Quanto aos danos de natureza patrimonial não se fez prova alguma. Com efeito, a única pessoa que se pronunciou com alguma propriedade sobre o assunto foi JB. A testemunha referiu que trata dos assuntos do seu cunhado em Portugal – que reside nos E.U.A. – e que este último terá desistido duma obra que tinha adjudicado ao assistente. Todavia, a verdade é que o depoente acabou por referir que o cunhado em momento algum lhe transmitiu que desistira de adjudicar a obra ao assistente por força do que ouvira a propósito da alegada falsificação de cheques que o arguido imputa ao demandante. As restantes testemunhas que depuseram sobre a matéria não demonstraram conhecimento directo dos factos mas transmitiram o que ouviram da boca de terceiros sobre a questão, designadamente da do assistente, que sobre a matéria prestou declarações que não nos convenceram.
Quanto ao mais relevou-se o teor do certificado do registo criminal junto aos autos a fls. 154 e, sobre a situação económico-financeira do arguido, o Tribunal, na falta de outros elementos – que de resto seriam impossíveis de coligir uma vez que aquele reside e tem a sua vida estruturada nos E.U.A. –, relevou as declarações por ele prestadas quanto aos seus rendimentos. Quanto às suas despesas não foram tais declarações convincentes. Com efeito, quis o arguido fazer crer que tinha despesas (2307 dólares) mensais decorrentes de um empréstimo para aquisição de habitação que contraiu que praticamente igualavam o montante global dos rendimentos do seu agregado familiar (ele e a esposa), e que por isso viviam com a ajuda que os filhos lhes prestavam. Como é evidente, tais declarações, conjugadas com a globalidade das que prestou acerca dos factos (ou seja, dando uma versão dos factos manifestamente falsa), não nos permitiram conferir-lhes credibilidade, sendo aliás contrário às mais elementares regras da lógica e da experiência comum dar como verosímil que o arguido tenha contraído um empréstimo com prestações mensais tão avultadas quando, subtraído o montante daquela despesa, o seu rendimento disponível – somado ao da sua esposa – é pouco superior ao nosso salário mínimo nacional, colocando-o ao quase no patamar da indigência tendo em conta o nível de vida que existe nos E.U.A.
Sobre a restante factualidade descrita na acusação partícula e no pedido de indemnização civil não se fez qualquer prova, mormente a que suportava a imputação ao arguido de um crime de difamação. Com efeito, nenhuma das testemunhas inquiridas afirmou que o arguido, na presença das mesmas, tivesse dito que o assistente era um “gatuno” e um “ladrão” e que havia falsificado cheques com a conivência dos funcionários do Banco A. Na verdade, as testemunhas apenas mencionaram que ouviram falar sobre o caso pela voz de outras pessoas que não o arguido.».
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1. A ilicitude.

Sustenta o recorrente que as expressões que endereçou ao assistente, tendo sido proferidas num contexto de discussão, que teve como pano de fundo um desentendimento relativo a um contrato de empreitada com ele celebrado, não configuram uma ofensa marcadamente inadmissível à honra ou consideração do mesmo e, por isso, não integram o tipo de crime de injúria previsto no art. 181º do C. Penal, pelo qual foi condenado.
Como se provou, no circunstancialismo descrito, o arguido disse, em voz alta, ao assistente: «és um gatuno, ladrão, falsificaste os cheques …».
A questão suscitada no recurso está em saber se tais palavras ofendem, de modo penalmente relevante, a honra do assistente. O tipo legal em apreciação assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), devendo reconhecer-se, como em tese defende o recorrente, que a relevância penal das ofensas cometidas a tais bens jurídicos será aferida em função do contexto em que as mesmas ocorram: «Estando em causa crime de injúria (art. 181º, nº1, do CP) é indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, apreciando se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada num quadro merecedor de tutela penal. A honra e o bom nome são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade.» (sumário do Ac. da RE de 10-05-2016 (1)). «Nos crimes contra a honra, tal como acontece em muito outros, há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal» (sumário do Ac. desta Relação de 23-02-2015 (2).
No entanto, adianta-se já, não é de considerar incorrecta a integração jurídica dos factos a que se procedeu na sentença. Vejamos.
O tipo legal em apreciação adopta uma concepção do bem jurídico honra que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. Recorda-se no evocado Ac. de 10-05-2016 que «a “honra” é a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, rectidão, carácter. A “consideração” é o valor atribuído por alguém ao juízo do público, isto é, do apreço ou, pelo menos, da não desconsideração que os outros tenham por ele (Beleza dos Santos, RLJ 3152-142).».
É sabido que o direito penal tutela os valores essenciais da vida em sociedade, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao Estado de Direito, assumindo a natureza «de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revele digna de pena» (3). Nessa linha, prossegue o mesmo Ac. de 10-05-2016:
«Assim, e no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Na lição antiga, mas actual, de Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).
Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37).
A contextualização das expressões proferidas é indispensável ao juízo sobre a tipicidade. Impõe-se, assim, olhar a expressão em apreciação, não isoladamente, mas no contexto e circunstâncias em que foi proferida, e apreciar se, nesse contexto, atingiu a visada num quadro merecedor de tutela penal. Pois à semelhança do que acontece com a realização dos tipos penais em geral, mas particularmente com o tipo em presença, utilizando agora palavras de Cavaleiro de Ferreira, “os crimes contra o pudor, a honra, a honestidade, são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade”.».
Todavia, tem sido jurisprudência desta Relação de Guimarães, tal como se informa na fundamentação do citado Ac. de 23-02-2015, que «existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objectivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas». E, retira-se, ainda desse aresto:
«É certo que o atentado à honra não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria (…) é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra “pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”».
Ora, o certo é que, segundo a normalidade da vida e as regras da experiência, as imputações feitas à pessoa do assistente – «gatuno, ladrão» – e a expressão que o recorrente utilizou – «falsificaste os cheques» – não podem deixar de ser tidas, como susceptíveis de ofender a honra e a consideração do visado. É uma ilação lógica e absolutamente natural e plausível para «a sã opinião da generalidade das pessoas de bem» – na expressão do Ac. do STJ de 30-04-2008 (4) – que as sobreditas expressões, no concreto circunstancialismo, designadamente o da actuação do assistente no âmbito do relacionamento negocial que manteve com o arguido, sejam tidas como susceptíveis de ofender a honra e consideração daquele, porque, acarretando a imputação de ilícitos criminais, visam nitidamente a esfera da sua dignidade pessoal.

2. A culpa.

Também alega o recorrente que, ao proferir tais expressões, não agiu com o propósito deliberado de ofender a honra ou consideração do assistente, para além de desconhecer o carácter ilícito das mesmas, concluindo, pois, que os pontos 3 e 4 da factualidade tida por assente, atinentes à culpa assacada ao mesmo, não devem ser considerados como patenteados pelo conjunto dos demais factos provados.
Relativamente à anunciada discordância em relação a essa matéria, nas conclusões do recurso o arguido asseverou que «devem dar-se como não provados os factos n.ºs 3 e 4 do capítulo dos factos provados na sentença recorrida, não propriamente por ausência de dolo, mas por ausência de culpa». E, na respectiva motivação, apenas expendeu o seguinte:

«Sabendo aqui o recorrente de antemão que a livre convicção do Tribunal é inabalável, a verdade é que a tónica das declarações do assistente (cf. totalidade do registo de áudio) foi no sentido de circunstanciar devidamente a razão da presença na residência do arguido: a tentativa de cobrança do valor remanescente em dívida, como consequência de realização da empreitada por si levada a cabo, a pedido do ora recorrente.
Por seu turno, a testemunha José (cf. faixa do Cd n.º 20170530111028_1433313_2871869, min. 02:50 e ss.) veio referir que foram proferidas as seguintes expressões: “és um ladrão, és um gatuno, falsificaste o cheque com os funcionários do Banco!”, versão que foi corroborada pelo irmão António, aquando do respectivo depoimento (cf. faixa do Cd n.º 20170530113050_1433313_2871869, min. 03:23 a 04:06).
Em todo o caso, depois de auscultadas na íntegra as gravações do assistente e destes irmãos S., todos eles asseveraram que não ninguém ripostou as palavras do arguido, designadamente o assistente, aquele que, em teoria, porventura poderia estar mais interessado nisso.
Os próprios irmãos, dentro dos primeiros 3 minutos de inquirição de ambos, adiantaram ao Tribunal que acompanharam o assistente ao local dos acontecimentos porque este pretendia falar com o arguido, para deste tentar obter o restante valor da obra ainda em falta, sendo que todos afirmaram (assistente inclusive) que, frustrado esse intento, abandonaram o local após as expressões do arguido.».
No que respeita à sua discordância quanto a esses pontos da matéria de facto, é tudo o que se pode ler no recurso. Ora, ainda que o recorrente considere que não foi produzida prova de que estava ciente do significado ofensivo e ilícito das expressões utilizadas, o certo é que não impugna do modo legalmente exigido estes pontos concretos nomeadamente apontando a precisa prova que imporia outra decisão. Assim, não se vislumbra que esse segmento dos factos pudesse ser dado como não provado.
Ainda que não se prenda directamente com a decisão proferida sobre a matéria de facto, sempre se dirá, de todo o modo, que é actualmente pacífico que nos crimes de difamação e injúria não é exigível um qualquer dolo específico ou elemento peculiar do tipo subjectivo que se traduzisse no especial propósito de atingir o visado na sua honra e consideração. Os respectivos tipos legais admitem qualquer das formas de dolo previstas no art. 14º do C. Penal, incluindo o dolo eventual, sendo suficiente que o agente admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e actue conformando-se com ele (dolo eventual), para que se tenha por preenchido o elemento subjectivo do tipo, sem prejuízo de o agente poder praticar o facto com dolo directo ou necessário, ou seja, conhecendo e querendo o teor ofensivo da imputação ou juízo, ou mesmo com o intuito ou propósito de atingir o ofendido na sua honra e consideração indo para além da exigência típica.
Na posição assim expressa, resulta evidenciado que o tipo ilícito previsto no art. 181º C. Penal exige o dolo, por força, naturalmente, do art. 13º desse diploma, mas o tipo subjectivo do ilícito preenche-se com a vontade de praticar o acto com a consciência de com ele se atribuir um facto ou formular um juízo com significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias (5). Por conseguinte, está afastada a exigência do dolo específico que se traduziria no designado animus injuriandi como também o esclarece o Professor Faria Costa (6) e o reafirma, dum modo simples e claro, o já citado Ac. do STJ de 30-04-2008:
«O elemento subjectivo vem a traduzir-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas são idóneas a ofender a honra e consideração alheias e que tal acto é proibido por lei. Este é o chamado tipo subjectivo do ilícito. Doutrinária e jurisprudencialmente, defende-se hoje que o elemento subjectivo se basta com o chamado dolo genérico: a simples consciência de que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa, considerando o meio social e cultural e a ‘sã opinião da generalidade das pessoas de bem’.
Não é necessário que tais expressões atinjam efectivamente a honra e consideração da pessoa visada, produzindo um dano de resultado, bastando a susceptibilidade dessas expressões para ofender. É que o crime em causa é um crime de perigo, bastando a idoneidade da ofensa para produzir o dano».

Assim, na realidade, esse concreto ponto de facto sempre irrelevaria para ter como preenchido o elemento subjectivo do tipo de crime de injúria como se expôs supra e, por isso, acabaria por ser indiferente que se desse tal facto como provado ou não provado.
De todo o modo, relativamente ao elemento subjectivo da infracção, sempre lembramos que tem de se fazer uso das regras da experiência comum. Na verdade, tratando-se de um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, de factos do foro psicológico – do agente, por isso, impossíveis de apreender directamente, podem deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. Tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através de outros que com eles normalmente se ligam, designadamente, através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos objectivos integrantes do crime (7).
No caso, em face dos apurados condicionalismos pessoais da conduta do recorrente, os particulares contornos desta têm um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjectivo, a certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que é evidente a vontade da prática dos factos. É o próprio recorrente que admite ter proferido as expressões em causa, pelo que, à luz dos normais padrões de comportamento, é de concluir que não ocorre erro de julgamento quando o tribunal recorrido extraiu da prova produzida, valorada de acordo com juízos de normalidade, a ilação vertida nos questionados pontos. Portanto, da conjugação de tais elementos probatórios ressalta uma imagem lógica do que realmente aconteceu, sem que subsistam dúvidas de que o recorrente, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, cometeu os factos tidos por provados: não é concebível que o mesmo não se apercebesse ou não soubesse que o resultado normalmente adequado da sua conduta seria a ofensa do bom nome e consideração alheias e que o mesmo era proibido e punido por lei. Com efeito, estamos perante um tipo de conduta cuja ilicitude é por todos culturalmente adquirida desde há séculos, relativamente à qual contrário à experiência e à realidade da vida pôr em dúvida se o agente sabia que é proibido injuriar e/ou difamar.
Assim, falecendo o recurso na tentativa, frustrada, da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e considerando a argumentação jurídica já aduzida em tal conspecto, soçobra igualmente o arrazoado do recorrente quanto ao elemento subjectivo do ilícito, porquanto resulta dos factos assentes, quer a consciência da ilicitude da sua conduta, quer, ainda, que a esta esteve subjacente a intenção de ofender conhecendo e querendo o teor ofensivo das imputações pelo mesmo feitas.

3. A medida da pena.

O recorrente também se insurge contra a medida da pena única de multa (80 dias) que lhe foi aplicada, propondo que a mesma seja mitigada, ponderando o nível da gravidade da factualidade apurada, uma vez que não se verifica que a sua actuação «tenha revestido uma crueldade, cinismo, cólera, desiderato de vindicta, sentimento possessório e brutalidade tais que traduzam uma clamorosa ofensa à dignidade da pessoa do assistente».

Vejamos.

O crime de injúrias pelo qual o arguido foi condenado é abstractamente punível com pena de prisão de 1 a 3 meses ou com pena de multa 10 a 120 dias, nos termos dispostos nos arts. 41º, nº 1, 47º, nº 1, e 181º do C. Penal. O bem jurídico protegido por este último normativo é, precisamente, a honra, como se disse.
Para esse efeito, deverá atender-se ao disposto no artigo 40º do C. Penal, que estabelece que a aplicação de penas ou medidas de segurança tem como finalidade a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Este preceito indica-nos que o escopo que subjaz à aplicação da pena se reconduz, por um lado, a reforçar a confiança da comunidade na norma violada e, por outro lado, à ressocialização do delinquente.
Em consonância com o estipulado no nº 1, do art. 71º, do C. Penal, a medida da pena é determinada, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o art. 40º, nº 2, do mesmo Código.
Na determinação concreta da pena há, assim, que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, nº 2, do C. Penal).
Dito por outras palavras, na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção, quer de ordem geral – com o objectivo de confirmar os bens jurídicos violados –, quer de ordem especial – tendo em vista gerar condições para a readaptação do agente do crime, de modo a evitar que este volte a violar tais bens –, mas sem se perder de vista a culpa do agente – com atendimento das circunstâncias estranhas à tipicidade –, que a medida da pena tem como base e limite.
O Senhor Juiz considerou, e bem, que no caso se encontravam reunidos todos os pressupostos para que fosse aplicada ao arguido/recorrente a pena não privativa de liberdade, prevista em alternativa, por realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a qual fixou em oitenta dias, à taxa diária de € 10. Para tanto, entendeu, além do mais, dever atender-se a que o arguido era primodelinquente e, por outro lado, à «gravidade dos juízos formulados pelo arguido e, fundamentalmente, à gravidade da factualidade que imputou ao assistente – falsificação de documentos» e a que «os factos …denunciam uma atitude de contrariedade ou de indiferença perante a violação do bem jurídico protegido pela norma que sustenta a condenação».
Ora, uma vez concretizada a opção pela pena alternativa legalmente prevista, justifica-se, plenamente, que a medida concreta desta pena se situe, sensivelmente, entre a média (65 dias) e o limite máximo (120 dias) da respectiva moldura abstracta, perante as razões aduzidas na decisão recorrida e as já salientadas necessidade da pena e consequentes exigências de prevenção especial, sobretudo porque o arguido demonstrou não ter, ainda interiorizado, autocriticamente, o desvalor da sua conduta, como acima se ponderou, mas também por se quedar num patamar significativamente elevado a intensidade da sua culpa, sem que, a seu favor, deponham circunstâncias especialmente relevantes.
Assim sendo, salvo o devido respeito, temos por acertada a medida da pena estabelecida na decisão recorrida.

4. O pedido de indemnização civil.

O assistente demandara o arguido pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 16.000, a título de indemnização civil dos danos alegadamente sofridos em consequência da conduta deste. Na procedência parcial desse pedido, foi o demandado condenado a pagar àquele a quantia de € 1.500.
O arguido/recorrente pretendia agora no recurso a redução do montante de tal quantia.
Este Tribunal não pode tomar conhecimento de tal pretensão recursiva. Com efeito, prescreve o art. 400º, nº 2, do CPPenal, que «o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada». Ora, o artigo 44º, nº 1, da LOSJ (8), fixou a alçada dos tribunais de primeira instância em € 5.000, estatuindo o disposto no nº 3 da mesma norma legal que a admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção, neste caso, em que foi deduzido o pedido cível (7/12/2016).
Consequentemente, impõe-se concluir que, no caso vertente, não pode este Tribunal conhecer do recurso sobre a decisão quanto ao pedido cível, com autonomia relativamente ao recurso relativo à decisão da matéria penal (art. 403º, nºs 1 e 2, als. a) e b), do CPPenal), por não se verificarem preenchidos os pressupostos cumulativamente exigidos pelo citado art. 400º, porque a decisão impugnada não é desfavorável para a recorrente em valor superior a metade da alçada do Tribunal de 1ª instância.
*
Decisão:

Nos termos expostos, decide-se julgar improcedente o recurso na parte penal, mantendo integralmente a decisão recorrida, e não conhecer do recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC´s.
Guimarães, 22 /01/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1 P. 163/13.5GBELV.E1 - Ana Brito.
2 P. 218/12.3TAPRG.G1 - Fernando Monterroso.
3 Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43.
4 P. 07P4817 - Rodrigues da Costa.
5 Cfr. Prof Augusto S. Dias, in “Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e Injúrias”, AAFDL, 1989, pp 35-36.
6Comentário Conimbricense do Código Penal”, I, p. 612.
7 Cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 15ª ed,, em anotação ao art. 14º.
8 Lei de Organização do Sistema Judiciário aprovada Lei nº 62/2013, de 26/8, em vigor desde 1/09/2014.