Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3888/24.6T8BRG.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
RENÚNCIA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
OBRIGAÇÃO DE MEIOS
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Uma procuração para alienar não confere poderes para renunciar ao uso e habitação. É necessário que o poder de renunciar ao direito de uso e habitação seja concedido de forma expressa para que o procurador o possa exercer.
II - Se a parte subscreveu um documento em que se compromete a obter dos seus pais uma declaração que permita proceder ao registo da renúncia do direito de uso e habitação, tal significa que se vinculou a obter essa declaração para extinguir o direito de uso e habitação.
III - A nossa lei consagra o critério objetivo de interpretação quanto ao sentido normal da declaração negocial, baseado na impressão do declaratário.
IV - A parte que se havia vinculado a obter a declaração, para extinguir o direito de uso e habitação, não encetou qualquer conduta com essa finalidade.
V - Tratando-se de uma obrigação de meios, a prova de que não foi praticado um ato manifestamente indispensável ao preenchimento dos objetivos contratualmente definidos implica que se conclua pelo não cumprimento daquela obrigação.
VI - Na responsabilidade contratual, provado o incumprimento, presume-se a culpa, cabendo ao devedor o ónus de provar que usou da diligência exigível a uma pessoa medianamente cuidadosa para evitar a não realização da prestação a que estava adstrito.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

AA, intentou a presente ação contra BB, pedindo a condenação da ré:
A- A ver resolvido o contrato de arrendamento relativo à fração autónoma designada pelas letras ..., ... andar, ângulo Nascente/Sul do edifício, correspondente a um apartamento do tipo t três, designado pelo número vinte e dois, para habitação, descrita na conservatória sob o número ...-.../... (...), inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...63....
B- Ao pagamento da quantia de € 700 de rendas, a que acrescerão as vincendas
C- A que acrescerão os juros vencidos após a citação.
D- A entregar ao Autor as frações referidas livres e desocupadas.
E- A reconhecer que a declaração anexa é suficiente para fazer cessar o direito de uso e habitação sobre a fração referida em A e, em consequência, ser cancelado o registo do mesmo.

SUBSIDIARIAMENTE
F- A pagar ao Autor o montante de 700 € por cada mês que passar até à entrega do documento que permita a extinção do direito de uso.

A ré apresentou contestação, pedindo a sua absolvição dos pedidos.
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Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou improcedentes, por não provados os pedidos principais formulados pelo autor [pedidos A), B), C), D) e E)] e julgou parcialmente procedente o pedido subsidiário formulado pelo autor [pedido F)] e, em consequência, condenou a ré a pagar ao autor o montante mensal de € 350,00, por cada mês que passar, desde a citação, até que seja entregue, por esta, o documento que permita que se proceda à extinção (com respetivo registo) do direito de uso e habitação registado a favor dos seus pais.
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Inconformada, a ré interpôs recurso desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. O presente recurso, que incide sobre matéria de direito, tem por objeto a douta sentença proferida pela 1ª instância em 05/05/2025, na parte em que julgou procedente o pedido subsidiário F formulado pelo Autor e condenou a Recorrente a pagar àquele o montante mensal de 350,00 € até lhe entregar o documento que permita extinguir o direito de uso e habitação registado a favor dos seus pais sobre a fração em causa, decisão com a qual a Recorrente não se conforma.
II. Da redação do documento “ADITAMENTO A ESCRITURA PÚBLICA” não resulta, ao contrário do decidido, que “a intenção das partes era que a ré obtivesse uma declaração que permita que seja efetuada e registada a renúncia ao direito de uso e habitação”, mas antes. que as partes estavam convencidas de que a procuração outorgada a favor da Recorrente pelos seus pais lhe dava poderes para renunciar em seu nome ao direito de uso e habitação existente, não sendo, apenas, suficiente para efeitos de registo.
III. Apesar de tal entendimento não ser juridicamente possível, daí é possível perceber que, no entendimento da Recorrente, os seus pais já a haviam autorizado a proceder à referida renúncia, pelo que se estaria apenas a obrigar a obter dos mesmos um documento que lhe permitisse registara renúncia que, no seu entender, era consentida por eles.
IV. Face à leitura que a Recorrente – leiga – fez da situação, a obrigação que resulta da redação do documento e a que resulta da interpretação do douto Tribunal a quo são completamente distintas, uma vez que a primeira é a de obter um documento meramente confirmatório daquela que ela julgava ser a vontade dos seus pais, ao passo que a segunda implica convencer os seus pais a conferir-lhe poderes novos e a renunciar a um direito a que não haviam – afinal – consentido renunciar.
V. A interpretação feita pela douta decisão recorrida não corresponde àquela que um declaratário normal poderia deduzir do comportamento da Recorrente, nos termos do n.º 1 art.º 236.º do CC, sendo certo que, nos termos do n.º 2, o Recorrido conhecia a vontade real da declarante.
VI. Assim, a obrigação a que a Recorrente efetivamente se vinculou foi a de obter um documento que lhe permitisse registar a renúncia que a mesma fez de modo inválido, documento esse que não existe, pelo que se está perante impossibilidade originária da prestação, nos termos do art.º 401.º, n.º 1, do CC, sendo o negócio jurídico inválido e não produzindo quaisquer efeitos.
VII. Ainda que assim não se entenda, sempre existiria impossibilidade originária da prestação, uma vez que a Recorrente se vinculou no pressuposto de que a renúncia havia sido autorizada pelos seus pais através da procuração existente, sendo que afinal a mesma não correspondia à sua vontade, pelo que é absolutamente impossível – e sempre foi – que esta (ou qualquer outra pessoa) obtenha daqueles m documento que permita a referida renúncia.
VIII. A nulidade decorrente da impossibilidade originária da prestação configura uma exceção perentória de conhecimento oficioso, nos termos dos arts. 286.º do CC e 579.º do CPC, que deveria ter conduzido à absolvição da Ré, ora Recorrente, do pedido efetuado, nos termos do art. 576.º, n.º 3, do CPC.
IX. Ainda que assim não se entenda, caso se considere correto o entendimento adotado pela douta sentença recorrida quanto à obrigação assumida pela Recorrente, sempre será se considerar que, face à natureza da obrigação, a mesma sempre corresponderia a uma obrigação de meios e não de resultado, uma vez que lhe era impossível afirmar, com certeza, que iria obter o referido documento dos seus pais, pois o mesmo está sujeito, apenas e só, à vontade daqueles, estando, por isso, a prestação dependente de facto de terceiro, posição que é jurisprudencialmente assumida.
X. Face a uma obrigação de meios, nos termos do art.º 799.º, n.º1, do CC, cabia ao Recorrido provar a diligência que deveria ter sido usada e quais os atos que deveriam ter sido praticados pela Recorrente, nada tendo sido alegado a esse respeito pelo Recorrido, nem constando dos factos provados da douta sentença recorrida, pelo que deveria o douto Tribunal a quo ter decidido pela absolvição da Recorrente do pedido, julgando totalmente improcedente a ação, por não provada.
XI. A douta decisão recorrida viola, desse modo, o preceituado nos art.ºs 236.º, 286.º e 799.º, n.º 1, todos do CC, bem como os art.ºs 576.º, n.º 3 e 579.º, ambos do CPC, devendo ser revogada e substituída por outra que absolva a Recorrente de todos os pedidos formulados pelo Recorrido.
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O Recorrido interpôs recurso subordinado, que finaliza com as seguintes conclusões:
A. A procuração é suficiente para extinguir o direito de uso e habitação.
B. A procuração ao conferir à Ré poderes para alienar quaisquer bens ou direitos móveis e imóveis, pelo preço e condições que entender por conveniente, tem de se interpretar como concedendo poderes suficientes para extinguir o direito de uso e habitação…. O que é reafirmado quando refere: tudo o que torne necessário aos indicados fins, incluindo, retificações, aditamentos  ou ratificações, pratica todos os atos necessários ao bom e fiel desempenho deste mandato.
C. Procuração é o negócio jurídico unilateral, por meio do qual alguém - o dominus - atribui a outrem - o procurador - poderes para que este celebre negócios ou pratique outros atos jurídicos em sua representação e o substitua, assim, na prática desses atos ou negócios.
D. Da análise da procuração outorgada entendemos que a ré tem poderes para renunciar, em nome dos seus pais, ao direito de uso e habitação registado a seu favor.
E. Se assim não se entender, sempre a Ré terá de indemnizar o ora recorrente, pois o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação, torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor (artigo 798º do Código Civil)
F. Como bem entendeu a Ré ao assinar o documento denominado “aditamento a escritura pública”, datado 25/10/2023, declarando que: “Os pais da outorgante [ré] são titulares do direito de uso e habitação da fração ... que corresponde ao ... andar esse a que a outorgante declara renunciar em nome dos seus pais, comprometendo-se a obter destes um documento que permita proceder ao registo dessa renúncia, pois não foi possível renunciar a esse mesmo direito no contrato de compra e venda. (cfr. doc. de fls. 12v. que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Pugna pela revogação da sentença que deverá ser substituída por uma decisão que valide a renúncia ao direito se uso e habitação, ou se assim, não se entender que seja validada a decisão em crise.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões do recurso independente e subordinado são as seguintes:
- Se a procuração conferida à ré lhe concede poderes para extinguir o direito de uso e habitação;
- Como interpretar a declaração “aditamento a escritura pública”, em análise nos autos.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.1.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1.º Estão registadas a favor do autor as seguintes frações:
UM — Fração autónoma designada pelas letras ..., garagem na cave, designada pelo número dezoito, descrita na conservatória sob o número ...-.../... (...), inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...63...,
DOIS — Fração autónoma designada pelas letras ..., ... andar, ângulo Nascente/Sul do edifício, correspondente a um apartamento do tipo t três, designado pelo número vinte e dois, para habitação, descrita na conservatória sob o número ...-.../... (...), inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...63....
2.º As quais foram adquiridas à Ré e aos seus irmãos, por escritura pública realizada no dia 25 de outubro de 2023 (cfr. doc. de fls. 6 e ss., que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
3.º Sobre a fração ..., pela inscrição AP dois mil quinhentos e setenta e dois, de 12/08/2013, foi registado um direito de uso e habitação a favor de CC e DD, pais da Ré.
4.º Em 04/08/2023, foi subscrita uma procuração, outorgada pelos pais da Ré, a favor desta, através da qual aqueles lhe conferem poderes para: “permutar, comprar ou prometer comprar, vender ou prometer vender, ou de qualquer forma alienar quaisquer bens ou direitos móveis e imóveis, pelo preço e condições que entender por conveniente, fazer partilhas judiciais ou extrajudiciais, fazendo e aceitando quinhões, dando quitação, dando ou recebendo tornas, aceitando doações, tudo como melhor entender, podendo outorgar todas as escrituras necessárias, documentos particulares autenticados ou procedimento simplificado, e tudo o que torne necessário aos indicados fins, incluindo, retificações, aditamentos ou ratificações, praticar todos os atos necessários ao bom e fiel desempenho deste mandato” (cfr. doc. de fls. 10 e 10v, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
5.º Pelo documento denominado “aditamento a escritura pública”, de 25/10/2023, em que são outorgantes autor e ré, a ré declarou o seguinte: “Os pais da outorgante [ré] são titulares do direito de uso e habitação da fração ... que corresponde ao ... andar esse a que a outorgante declara renunciar em nome dos seus pais, comprometendo-se a obter destes um documento que permita proceder ao registo dessa renúncia, pois não foi possível renunciar a esse mesmo direito no contrato de compra e venda, pois a procuração anexa não é explícita” (cfr. doc. de fls. 12v. que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
6.º Em 31/10/2023, o autor e ré assinaram acordo escrito de arrendamento relativo às frações referidas em 1º, que se encontram mobiladas (cfr. doc. de fls. 11-11v, que aqui se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais).
7.º Consta do referido acordo que o mesmo foi celebrado nos termos do art.º 1110º do Código Civil,
8.º Que teve início no dia 1 de novembro de 2023
9.º e a sua duração é limitada ao período de 12 meses.
10.º Foi estabelecida uma renda no valor anual de € 4.200,00 a ser paga, em duodécimos, no valor de € 350,00 mensais, até ao dia oito do mês anterior ao que a renda disser respeito.
11.º Na data da celebração do referido acordo foram pagas as duas rendas de novembro e dezembro, equivalente a dois meses, num total de 700 €.
12.º A Ré não pagou as rendas referentes aos meses de Abril e Maio de 2024, no montante de 700 €.
13.º A ré não renunciou ao direito de uso e habitação referido em 3º.
14.º O apartamento tem um valor locativo de, pelo menos, € 350,00 mensais.
15.º A Ré já habitava a referida fração por permissão dos seus pais.
16.º Os pais da Ré não habitam a fração referida em 1º, de forma exclusiva, pois vivem nos ....
17.º A ré é solteira.
18.º Foram registadas duas penhoras sobre a fração ..., a favor da EMP01... e da Banco 1..., registadas, respetivamente, em 04/06/2018 e 22/11/2018, ambas canceladas em 14/11/2023.
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3.1.2. Factos Não Provados

a) A fração ... tem um valor locativo de € 700,00.
b) A fração ... tinha sido penhorada pelos credores hipotecários, pois os pais da ré tinham cessado os pagamentos dos empréstimos obtido para a sua aquisição.
c) Os pagamentos feitos pelo Autor destinaram-se, somente a solver as dívidas que os pais da Autora tinham e estavam garantidas pelas hipotecas.
d) Isto para que a Ré não fosse “despejada” da casa que habitava, por simples amizade.
e) O Autor, além do valor de compra, teve ainda de pagar aos credores hipotecários, na pessoa do agente de execução, o montante de 90.000 € e ainda 13.662,84 €.
f) E ainda teve de liquidar outros valores ao condomínio, no montante de 6.374, 86 €.
g) E o valor de 18.000 € para que a Ré pudesse efetuar o pagamento do IMI à Autoridade Tributária, que também estava por pagar.
h) O Autor aceitou que a Ré, ou quem ela indicasse, pudesse devolver os valores pagos pelo Autor necessários para realizar a escritura que atingem o montante de € 142.283,80 €
i) Ficando a Autora com a possibilidade de continuar a habitar a fração comprada pelo Autor, comprometendo-se a Ré a pagar o valor mensal de 350 €.
j) Tudo foi feito pelo Autor com intenção de auxiliar a Ré e a sua família que iriam perder a habitação usada exclusivamente pela Ré.
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3.2. O Direito
As partes não questionam a existência de um direito de uso e habitação a favor dos pais da ré.
No que não estão de acordo é quanto à interpretação a dar à procuração outorgada a favor da ré e à declaração intitulada “aditamento a escritura pública”.
Considerou o tribunal a quo que não resulta da procuração outorgada nem do aditamento à escritura pública que à ré tenham sido conferidos poderes para renunciar, em nome dos seus pais, ao direito de uso e habitação que se encontra registado a seu favor. E, por isso, o direito de uso e habitação mantém-se válido e eficaz.
Como a ré não obteve a declaração para cancelar o direito registado, como se havia obrigado, terá de indemnizar o autor pelo incumprimento.
A ré discorda deste entendimento, sustentando que se vinculou a obter um documento que lhe permitisse registar a renúncia que a mesma fez de modo inválido, documento esse que não existe, pelo que se está perante impossibilidade originária da prestação, sendo o negócio jurídico inválido e não produzindo quaisquer efeitos.
Acrescenta que, caso assim não se entenda, face à natureza da obrigação, a mesma corresponderia a uma obrigação de meios cabendo à contraparte provar a diligência que deveria ter sido usada e quais os atos que deveriam ter sido praticados, o que não sucedeu.
Por sua vez, o autor defende que a procuração que foi outorgada à ré é suficiente para extinguir o direito de uso e habitação.
Apreciemos.
Sobre a fração adquirida pelo autor à ré e seus irmãos encontra-se registado um direito de uso e habitação a favor dos pais da ré.
Os pais da ré outorgaram uma procuração a favor da ré, através da qual lhe conferem poderes para: “permutar, comprar ou prometer comprar, vender ou prometer vender, ou de qualquer forma alienar quaisquer bens ou direitos móveis e imóveis, pelo preço e condições que entender por conveniente, fazer partilhas judiciais ou extrajudiciais, fazendo e aceitando quinhões, dando quitação, dando ou recebendo tornas, aceitando doações, tudo como melhor entender, podendo outorgar todas as escrituras necessárias, documentos particulares autenticados ou procedimento simplificado, e tudo o que torne necessário aos indicados fins, incluindo, retificações, aditamentos ou ratificações, praticar todos os atos necessários ao bom e fiel desempenho deste mandato”.
Pelo documento denominado “aditamento a escritura pública”, em que são outorgantes autor e ré, a ré declarou o seguinte: “Os pais da outorgante [ré] são titulares do direito de uso e habitação da fração ... que corresponde ao ... andar esse a que a outorgante declara renunciar em nome dos seus pais, comprometendo-se a obter destes um documento que permita proceder ao registo dessa renúncia, pois não foi possível renunciar a esse mesmo direito no contrato de compra e venda, pois a procuração anexa não é explícita”.
São estes os elementos factuais a ter em conta.
De acordo com a lei, o direito de uso e habitação extingue-se pela renúncia (art. 1476.º, nº1, al. e), do CC).
A questão é a de saber se a ré podia renunciar, em nome dos seus pais, ao direito de uso e habitação.
A renúncia é um ato pessoal e unilateral do titular do direito. Consiste numa declaração de vontade do próprio titular para extinguir o seu direito, não podendo ser feita por outrem.
É legalmente admissível que a renúncia seja realizada por um procurador desde que a procuração contenha poderes específicos para o efeito.
Procuração é o negócio jurídico unilateral, por meio do qual alguém - o dominus - atribui a outrem - o procurador - poderes para que este celebre negócios ou pratique outros atos jurídicos em sua representação e o substitua, assim, na prática desses atos ou negócios.
A procuração provoca a constituição na esfera jurídica do procurador de um poder de representação, ou seja, de um poder de agir em nome e representação do dono do negócio. A sua atuação é representativa, agindo em nome do dominus, sendo os efeitos dirigidos à esfera deste como se fosse ele a agir. É este direcionamento dos efeitos à esfera de um terceiro, como se fosse o terceiro a praticar o ato, que caracteriza especificamente o poder de representação. Celebrado um contrato em representação, é o representado que é parte no mesmo, e não o representante[1].
Analisado o seu conteúdo, não resulta da procuração outorgada que à ré tenham sido conferidos poderes para renunciar, em nome dos seus pais, ao direito de uso e habitação a seu favor registado.
Não podemos aceitar o entendimento do autor de que a procuração ao conferir à ré poderes para alienar quaisquer bens ou direitos móveis e imóveis, pelo preço e condições que entender por conveniente, tem de se interpretar como concedendo poderes suficientes para extinguir o direito de uso e habitação…. O que é reafirmado quando refere: tudo o que torne necessário aos indicados fins, incluindo, retificações, aditamentos  ou ratificações, pratica todos os atos necessários ao bom e fiel desempenho deste mandato.
Uma procuração para alienar não confere poderes para renunciar ao uso e habitação. É necessário que o poder de renunciar ao direito de uso e habitação seja concedido de forma expressa e separada da alienação para que o procurador o possa exercer.
A renúncia ao direito de uso e habitação é um ato autónomo e distinto da alienação e, como tal, necessita de menção explicita na procuração para que seja válida.
Donde, assentando o recurso subordinado do autor nesta interpretação quanto à extensão dos poderes da procuração, o mesmo terá de improceder.
Prosseguindo quanto ao conhecimento da questão posta no recurso independente.
No documento denominado “aditamento a escritura pública”, a ré declara renunciar em nome dos seus pais ao direito de uso e habitação.
Contudo, a ré não tem poderes para renunciar a esse direito em nome dos seus pais.
Do que resulta que esta “declaração anexa” não é suficiente para fazer extinguir o direito de uso e habitação registado a favor dos pais da ré, nem a ré tem poderes para realizar esse ato em seu nome.
Como consequência, considerou o tribunal a quo que a ré, com aquela declaração, se comprometeu a obter documento com vista à renúncia do direito e ao registo dessa renúncia.
Também aqui divergem as posições.
A ré defende que se comprometeu apenas a obter documento que permitisse registar a renúncia que julgava fazer validamente através desse mesmo ato, sempre no pressuposto de que detinha poderes para o efeito.
Vejamos de que lado está a razão.
A apreensão do sentido e alcance decisivo de qualquer texto apura-se por atividade hermenêutica, cujas regras são as estabelecidas nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil.
Nos termos do art. 236.º, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Esta formulação corresponde à chamada “teoria da impressão do destinatário”.[2]
Trata-se do critério objetivo de interpretação quanto ao sentido normal da declaração negocial, baseado na impressão de um declaratário normal, tido este por pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente, em face da declaração negocial e das circunstâncias que o real declaratário conhecia ou podia conhecer.
Privilegiando o sentido objetivo da declaração negocial, o preceito legal é, todavia, temperado por um elemento de inspiração subjetivista: aquele sentido deixa de prevalecer quando não possa razoavelmente ser imputado ao declarante ou quando não coincida com a vontade real do declarante e esta seja conhecida do declaratário. Assim, a interpretação das declarações negociais não se dirige a fixar um facto simples, qual seja o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração, mas o sentido jurídico, normativo, da declaração.
Definido o critério objetivo de interpretação da declaração negocial, importa então confrontá-lo com o quadro factual, de modo a demonstrar porque é que o sentido normal da declaração não corresponde ao entendimento defendido pela ré.
Mostra-se expresso no próprio documento que a ré se comprometeu a obter dos seus pais um documento que permita proceder ao registo dessa renúncia, pois não foi possível renunciar a esse mesmo direito no contrato de compra e venda, pois a procuração anexa não é explícita.
A ré julgava ter poderes para renunciar ao direito de uso e habitação aquando da celebração do contrato de compra e venda. Contudo, como foi entendido pelo notário, a procuração outorgada não lhe conferia tal poder.
Foi em consequência disso que a ré subscreveu o aditamento ao contrato de compra e venda, onde se compromete a obter declaração que permita proceder ao registo da renúncia do direito de uso e habitação.
Como se realça na sentença a redação pode até não ser a mais correta juridicamente, mas percebe-se que a intenção das partes era que a ré obtivesse uma declaração que permita que seja efetuada e registada a renúncia ao direito de uso e habitação.
Nesta conformidade, a ré vinculou-se a obter essa declaração, para extinguir o direito de uso e habitação.
A invocação jurídico-normativa da impossibilidade originária da prestação, nos termos do art. 401.º, do Código Civil, não tem fundamento.
A impossibilidade originária é a impossibilidade de cumprir uma obrigação que existe no momento em que o negócio jurídico é celebrado.
Vem a ré sustentar que lhe é impossível, e sempre foi, obter dos titulares um documento que permita a renúncia do direito.
Decorre, porém, do nº 3, do art. 401.º do CC que só se considera impossível a prestação que o seja relativamente ao objeto, e não apenas à pessoa do devedor.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, no nº 3 do artigo 401.º esclarece-se o significado da impossibilidade em matéria de obrigações. E exemplificam: “É impossível a obrigação de entregar um objecto que foi anteriormente consumido por um incêndio; mas não é impossível a obrigação assumida por um cego de vigiar uma casa, nem a obrigação assumida por uma fábrica quanto a um fornecimento que exceda a sua capacidade de laboração. Nestes últimos casos, não há impossibilidade em relação ao objecto (impossibilidade objectiva), mas em relação à pessoa que se obriga (impossibilidade subjectiva)”.[3]
Ou seja, em matéria de impossibilidade originária da prestação, a impossibilidade subjetiva é irrelevante.
A simples impossibilidade subjetiva não torna a obrigação nula. Sendo, pois, a obrigação válida, e não sendo ela fungível, sujeita-se o devedor às consequências do não cumprimento culposo.[4]
Argumenta, ainda, a ré que, dada natureza da obrigação, estamos perante uma obrigação de meios cabendo à contraparte provar a diligência que deveria ter sido usada e quais os atos que deveriam ter sido praticados, o que não sucedeu.
Não é posição que se discuta já que, no âmbito do cumprimento de prestação, a diligência preparatória, preventiva e reativa aplica-se a qualquer obrigação “de meios” e “de resultado”.
Na obrigação de meios o devedor compromete-se a desenvolver uma atividade com a diligência adequada, mas sem garantir a produção de um resultado.
Como se refere no acórdão do STJ de 26.02.2025[5], “Em bom rigor, não existirá justificação bastante no nosso direito para se proceder a essa distinção, pois, conforme escreve LUÍS MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 4.ª ed., pp. 129 e 130: “em ambos os casos aquilo a que o devedor se obriga é a uma conduta (a prestação), e o credor visa sempre um resultado, que corresponde ao seu interesse (art. 398.º, n.º 2). Por outro lado, ao devedor cabe sempre o ónus da prova de que realizou a prestação (art. 342.º, n.º 2) ou de que a falta de cumprimento não procede de culpa sua (art. 799.º), sem o que será sujeito a responsabilidade.”.
A ré que se havia vinculado a obter a declaração, para extinguir o direito de uso e habitação, não encetou qualquer conduta com essa finalidade.
Resultou, pois, demonstrado o comportamento omissivo da ré (a conduta é a prestação).
Tratando-se de uma obrigação de meios, a prova de que não foi praticado um ato manifestamente indispensável ao preenchimento dos objetivos contratualmente reconhecidos implica que se conclua pelo não cumprimento daquela obrigação.
Na responsabilidade contratual, provado o incumprimento, presume-se a culpa, cabendo ao devedor o ónus de provar que usou da diligência exigível a uma pessoa medianamente cuidadosa para evitar a não realização da prestação a que estava adstrito.[6]
No caso, o credor provou o incumprimento. A devedora, por sua vez, não logrou provar que a falta de cumprimento da obrigação não procedeu de culpa sua.
Daqui decorre, a improcedência da pretensão recursiva da ré.
Em face do exposto, são julgados improcedentes o recurso independente da ré e o recurso subordinado do autor.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso independente interposto pela ré e o recurso subordinado interposto pelo autor, confirmando a decisão recorrida.
Custas de cada um dos recursos pelos respetivos recorrentes.
Guimarães, 4 de Novembro de 2025
                                              
Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1ª Adj. - Des. Margarida Pinto Gomes
2ª Adj. - Des. Sandra Melo


[1] Neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, A Autorização, 2ª Edição, Almedina, pág. 274.
[2] A este propósito pode ver-se Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2005, pág. 444 e segs.
[3] Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 349.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 2ª edição, pág. 39.
[5] Proferido no processo nº 23376/17.6T8LSB.L3.S1, e acessível em www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, acórdão do STJ de 27-11-2008, proferido no processo nº 4585/07, Sumários do STJ (Boletim) – Cível.