Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7003/11.8TBBRG.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
DANO CULPOSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A prudência normal, para efeitos da interpretação do artigo 390 n.º1 do CPC, não abrange as situações de interpretação errada ou discutível, porque seria exigir demasiado ao homem médio, em matéria que envolve conhecimentos muito específicos.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

M…, residente na Rua…, Braga, intentou a presente acção, com processo comum sob a forma ordinária, contra M…, residente na Rua …, em Coruche, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de €227.500,00 a título de indemnização pelos danos que culposamente lhe causou em consequência de uma providência cautelar de arresto que requereu e que veio a ser considerada injustificada, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Devidamente citado, o Réu contestou, arguindo a prescrição do direito de indemnização que a A. se arroga e pugnando pela improcedência da acção e pela condenação da A. como litigante de má-fé.
A A. replicou pela forma constante de fls. 32 a 36.
Realizou-se uma audiência preliminar com os fins previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 508º-A do Código de Processo Civil.
Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a acção, absolvendo o réu do pedido.

Inconformado com o decidido, a autora interpôs recurso de apelação, formulando conclusões.
Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido.

Damos como assentes os factos consignados na decisão recorrida, que passamos a transcrever:
1 – A A. foi administradora única da sociedade comercial de nacionalidade espanhola denominada “L…” desde 16 de Novembro de 2004, data da sua constituição, até 30 de Janeiro de 2007;
2 – O capital dessa sociedade era de €3.500,00, dividido em 3.500 participações sociais no valor nominal de €1,00 cada e foi integralmente realizado por J… e pelo ora Réu, subscrevendo o primeiro 2.800 participações e o segundo 700 participações;
3 – Por escrito datado de 13 de Outubro de 2004, a ora A. alugou à “R…, S.A.” o veículo automóvel com a matrícula …- ZB pelo período de 60 meses, mediante uma contrapartida pecuniária mensal de €328,90, com excepção da primeira, cujo montante ascendia a €478,90 – cfr. doc. de fls. 94;
4 – O ora Réu subscreveu o acordo corporizado nesse escrito na qualidade de fiador das obrigações através dele assumidas pela A.;
5 – Por escrito datado de 24 de Março de 2005, a ora A., agindo na qualidade de administradora e em representação da “L…”, alugou à “R…, S.A.” o veículo automóvel com a matrícula …-ZR pelo período de 60 meses, mediante uma contrapartida pecuniária mensal de €440,76, com excepção da primeira, cujo montante ascendia a €590,76 – cfr. doc. de fls. 83;
6 – O ora Réu subscreveu o acordo corporizado nesse escrito na qualidade de fiador das obrigações através dele assumidas pela “L…”;
7 – Por cartas registadas com aviso de recepção datadas de 24 e 22 de Outubro de 2007, a “R…” comunicou à A. e à “L…”, respectivamente, a resolução dos mencionados acordos por falta de pagamento dos alugueres neles estabelecidos e exigiu a restituição imediata dos veículos que deles foram objecto – cfr. doc.s de fls. 95 e 84;
8 – Em 20 de Outubro de 2008, o Réu intentou uma providência cautelar de arresto contra a A., que correu termos pelo 4º Juízo Cível deste Tribunal Judicial de Braga sob o n.º412/08.1TBCCH, com vista a garantir o direito de regresso que pretensamente lhe assistiria sobre esta emergente do pagamento dos valores em dívida no âmbito dos ajuizados contratos, pagamento esse que a “R…” lhe exigia em duas acções judiciais, uma das quais correu termos pelo mesmo Juízo Cível sob o n.º 3189/07.4TBBRG e a outra pelo Tribunal Judicial de Amares sob o n.º 407/07.2TBAMR, e que se via na contingência de ter de realizar – cfr. doc. de fls. 233 a 257 dos autos de providência cautelar apensos;
9 – Mais alegou o Réu nesse procedimento, para alicerçar o pedido de arresto fundado no incumprimento do contrato celebrado com a “R…” relativamente ao veículo automóvel com a matrícula …-ZR, que a A. continuava a utilizar esse veículo e, na qualidade de administradora única da locatária, a firma “L…”, deixara deteriorar, premeditadamente, a situação financeira desta, colocando-a na situação de não poder cumprir;
10 – Ouvida, sem audiência da requerida, ora A., a prova arrolada pelo requerente, a providência em causa veio a ser decretada por despacho proferido em 19 de Novembro de 2008 e, subsequentemente, foram arrestados os bens móveis que integravam o recheio de um estabelecimento comercial, denominado “C…”, pertencente à A. – cfr. doc. de fls. 77 a 108 dos autos de providência cautelar apensos;
11 – A acção como preliminar da qual esse procedimento foi intentado, que correu termos por esta Vara Mista sob o n.º 263/09.6TBBRG, foi julgada improcedente logo no despacho saneador, por se ter entendido que “o autor apenas poderia obter a condenação da ré no pagamento da quantia a que se obrigou em virtude da fiança, se tivesse adquirido já os direitos da locadora – credora – cumprindo a obrigação afiançada”, desiderato que, confessadamente, ainda não ocorrera – cfr. doc. de fls. 68 a 70 dos autos de providência cautelar apensos.

Das conclusões do recurso ressalta a questão de saber se o réu agiu com culpa, ao requerer o arresto que veio a ser decretado e considerado injustificado na acção principal.

A decisão que decretou o arresto foi considerada injustificada logo no saneador da acção principal, com o fundamento de que o direito de crédito invocado não existia, porque o autor, como fiador, ainda não tinha pago a dívida que afiançara, pelo que ainda não tinha adquirido o direito de sub-rogação.

Por sua vez, nesta acção, o tribunal desvalorizou a existência do direito, considerando-a como um equívoco, não censurável para um bom pai de família, afastando a negligência e focando-se mais na forma como o réu alegou a matéria de facto, concluindo que foi transparente e não tentou enganar o tribunal.

A autora apelante foca a negligência na análise jurídica dos factos por parte do réu, destacando o erro jurídico, como censurável e integrador do conceito de negligência inconsciente.

A questão a decidir centra-se na censura ou não da actuação do réu aquando da propositura da providência cautelar. Se tomou os devidos cuidados, se analisou, com prudência, os factos e se os interpretou, devidamente, à luz do direito e se dentro duma perspectiva de um homem normal se havia fundamento para deduzir a providência em causa.

O réu, na providência cautelar que deduziu, alegou factos caracterizadores duma relação de fiança, em que foca dois contratos de aluguer de viaturas, um em nome duma sociedade de que era sócio e a autora administradora, mas responsável, pela gestão danosa, que a levou ao incumprimento do contrato e outro em que actuou em nome próprio como locatária, acabando por não cumpri-lo. E a credora, depois de resolver os contratos, demandou-o judicialmente. E, em face desta situação, e prevendo que iria acabar por pagar os créditos emergentes do incumprimento dos contratos, para garantir o pagamento futuro, deduziu o arresto contra a autora, evidenciando estes pontos que vieram a ser aceites como válidos pelo tribunal que decretou a providência.
A actuação do réu foi transparente, e assentou num direito de crédito condicional. Como fiador era responsável pelo pagamento da dívida. Bastava que a credora executasse o seu património para ter que pagar. E esta actuação seria o corolário normal depois de o demandar judicialmente. O circunstancialismo fáctico conduzia a uma interpretação neste sentido, à luz de um juízo de prudência normal, para qualquer homem medianamente inteligente e diligente. Estaria eminente uma execução ou um pagamento voluntário, para evitar o vexame da penhora.
E foi dentro deste contexto fáctico que o réu actuou, deduzindo a providência e o tribunal teve a oportunidade de analisar a clareza dos factos, dos fundamentos jurídicos, para formar a sua convicção e aplicar o direito, mesmo numa situação em que não se exige uma certeza na ponderação fáctica, bastando-se com a prova sumária e a probabilidade séria da existência do direito.

Ponderando as duas decisões, a cautelar e a definitiva, em que a primeira decretou a providência e a segunda a considerou injustificada, constata-se que há divergência na análise jurídica dos mesmos factos. A cautelar aceitou, como provável, a existência dum direito de crédito condicional, dependente dum acontecimento futuro, o pagamento voluntário por parte do requerente, aqui réu, ou a execução forçada do seu património, enquanto a definitiva afastou a existência da condição, para concluir que a sub-rogação só gerava direito de crédito depois de haver o pagamento por parte do requerente e aqui réu.
A questão é duvidosa, e, além disso, no domínio da interpretação jurídica, há uma grande liberdade de acção, porque as regras interpretativas são tão latas que permitem uma grande elasticidade na argumentação. Daí que, só em situações muito evidentes perante a doutrina e a jurisprudência é que se poderá admitir negligência grosseira por ignorância. Mas neste caso, não é admissível que seja decretada a providência desde que a facticidade seja clara. Pois, numa situação destas, exige-se ao tribunal o conhecimento do direito, da posição da doutrina e da jurisprudência, o que levaria a não decretar a providência por falta de fundamentos. A acontecer o contrário, estaríamos perante uma decisão muito controversa que não pode ser fundamento de responsabilização do requerente.
Nesta perspectiva vai o acórdão do STJ. de 26.09.2002 em www.dgsi.pt que defende que não integra o âmbito de prudência normal e, como tal, não é fundamento de responsabilização, a interpretação jurídica errada ou discutível, que conduza ao decretamento da providência.

No caso em apreço, temos uma situação jurídica controversa, porque, sobre os mesmos factos, incidiram duas decisões opostas, emanadas de dois tribunais diferentes. E a divergência assentou na qualificação jurídica dos factos. Enquanto o da providência aceitou o crédito do requerente como condicional, dependente dum acontecimento futuro, mas com grande probabilidade de se verificar, o da definitiva afastou esta interpretação e defendeu que o crédito não existia à data da propositura do arresto, requisito fundamental para o êxito da providência.
Em face desta divergência jurídica e tendo em conta que no plano interpretativo não podemos ser muito exigentes para o homem médio, porque envolve conhecimentos muito específicos, que só em circunstâncias muito excepcionais se lhe pode imputar negligência por falta desses conhecimentos, revelando falta de cuidado, diligência na análise e interpretação das situações, temos de concluir que a actuação do réu não é censurável, e, como tal, não é responsável pelas consequências emergentes da providência decretada.

Concluindo: 1. A prudência normal, para efeitos da interpretação do artigo 390 n.º1 do CPC, não abrange as situações de interpretação errada ou discutível, porque seria exigir demasiado ao homem médio, em matéria que envolve conhecimentos muito específicos.

Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Guimarães, 02/07/2013
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
Eva Almeida