Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
167/15.5T9PRT-A.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: ASSISTENTE
ORDEM DOS PSICÓLOGOS PORTUGUESES
LEGITIMIDADE
USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: A Ordem dos Psicólogos Portugueses não possui legitimidade para intervir na qualidade de assistente relativamente a um eventual crime de usurpação de funções previsto no artº 358º, do código Penal..
Decisão Texto Integral:
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
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Processo n.º 1673/15.5T9PRT-A.G1

Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1. Nos autos de inquérito (Actos Jurisdicionais) n.º 1673/15.5T9PRT, a correr termos no Tribunal da Comarca de Braga – Guimarães – Instância Central – 2ª Secção Instrução Criminal – J1, de que os presentes constituem apenso, foi proferido, em 08-06-2016, despacho judicial que admitiu a Ordem dos Psicólogos Portugueses e J. P. a intervir nos autos na qualidade de assistentes.
2. Inconformado com a decisão, recorreu o Ministério Público, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. O crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo artigo 358º do Código Penal, assume natureza pública pelo que a legitimidade para promover o processo penal cabe ao Ministério Público, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 48º a 50º do Código de Processo Penal, não se encontrando o procedimento dependente da apresentação de queixa ou acusação particular, nomeadamente por parte das respetivas ordens profissionais.
2. O bem jurídico protegido com esta incriminação consiste, no entender de Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, p. 441, o qual sufragamos, “na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público”, sendo que o interesse direto e imediato na proteção do bem jurídico do crime de usurpação de funções é tutelado única e exclusivamente pelo Estado, e não um interesse particular, ainda que da prática do crime possa resultar prejudicado um particular.
3. No que em particular se refere à Ordem dos Psicólogos Portugueses não existe qualquer lei especial que lhe confira a possibilidade de se constituir assistente nos processos em que esteja em causa a prática do crime imputado à arguida. Na verdade, ao contrário do que refere a Ordem dos Psicólogos Portugueses no seu requerimento constante de fls. 120 e seguintes dos autos, o disposto no artigo 49º da Lei nº 2/2013 de 10 de Janeiro não tem aqui aplicação uma vez que a questão em causa nos autos não está diretamente relacionado com o exercício da profissão que representam
4. Assim entende o Ministério Público que a Ordem dos Psicólogos Portugueses e J. P. carecem de legitimidade para intervir nos autos na qualidade de assistentes, porquanto não são titulares do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, nem o procedimento criminal depende da apresentação de queixa da sua parte, pelo que deverá o douto despacho de fls. 130 ser revogado e substituído por outro que não admita a constituição daqueles como assistentes nos autos.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso interposto, assim se fazendo,
JUSTIÇA.»
3. A Ordem dos Psicólogos Portugueses respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
«A) No caso dos crimes de usurpação de funções o Estado mesmo podendo ser ofendido, não o é em exclusivo, sendo a Ordem dos Psicólogos Portugueses igualmente ofendida;
B) Com efeito, de acordo com o artigo 68.º, n.º 1, do CPP: “1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos”;
C) A Ordem dos Psicólogos Portugueses tem legitimidade ao abrigo da cláusula geral presente na al. a), ou seja, enquanto ofendida pelo crime ou enquanto titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação;
D) Nas situações em que os respetivos estatutos exigem como condição de exercício da profissão a inscrição numa associação pública (como é o caso da Ordem dos Psicólogos Portugueses - cfr. artigo 53.º do respetivo Estatuto, aprovado pela Lei n.º 57/2008, de 4 de setembro), fá-lo por razões que são de eminente interesse público;
E) Efetivamente, considera o legislador que só a inscrição numa associação pode conferir aos utentes o necessário conforto, dado que a associação é responsável pela elaboração de normas deontológicas e pelo exercício da ação disciplinar, o que teoricamente assegura algum nível de preparação aos que na associação estão inscritos;
F) Não se trata somente do interesse público, mas também do interesse privado: com efeito, é atribuição da Ordem dos Psicólogos Portugueses a defesa dos interesses gerais dos utentes (cfr. artigo 4.º, al. a) do Estatuto) - quer isto dizer que o crime de usurpação de funções tem também como intuito a proteção dos direitos e interesses dos destinatários dos serviços prestados por aqueles cujo exercício profissional depende de inscrição numa associação pública;
G) A este propósito, cfr., por exemplo, o recente Acórdão de 13 de Fevereiro de 2013, proferido pela Veneranda Relação do Porto, no Proc. n.º 4746/09.0TAMTS-B.P1;
H) Como resulta do disposto no artigo 76.º, al. g), do Estatuto da Ordem dos Psicólogos Portugueses, constitui dever dos membros efetivos o pagamento de quotas; paralelamente, dispõe o artigo 79.º, al. a) do mesmo Estatuto que as quotas pagas pelos seus membros constituem receitas da Ordem, pelo que se a denunciada se tivesse inscrito na Ordem, estaria não só sob a sua alçada disciplinar (em defesa do interesse dos utentes) como estaria a pagar as contribuições devidas (em favor da Ordem);
I) Assim, a não inscrição da denunciada provoca um prejuízo à Ordem dos Psicólogos Portugueses (também) porque deixa de receber uma receita que poderia almejar;
J) E além da situação poder enquadrar-se de forma substancial no conceito de “titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, verifica-se que existe lei especial que permite a constituição de assistente;
K) De facto, o artigo 49.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro, sob a epígrafe “Processo penal” estabelece que “as associações públicas profissionais podem constituir-se assistentes nos processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam”.

Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o recurso jurisdicional ser julgado improcedente por não provado e, em consequência, manter-se o despacho que admitiu a constituição da Ordem dos Psicólogos Portugueses como assistente no presente processo.»
4. Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se refere o artigo 417.º, n.º 1 do CPP, concordando com a resposta apresentada pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
5. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
1. É do seguinte teor o despacho recorrido (transcrição):
«Requerimento de constituição de assistente de fls. 6 e 84.
Porque têm legitimidade (a cujos fundamentos de fls. 120 e ss aderimos), requereram em tempo, estão devidamente representado (a) por advogado (a) e procederam ao pagamento da taxa de justiça, admito Ordem dos Psicólogos Portugueses e J. P. a intervir nos autos na qualidade de assistentes - (arts. 68º, 70º e 519º, do Código de Processo Penal).
Notifique.»
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2. Com relevo colhem-se dos autos ainda os seguintes elementos:
- Em 28 de Janeiro de 2015 deu entrada no Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto uma denúncia efectuada pela Ordem dos Psicólogos Portugueses contra M. F.;
- Nessa denúncia é atribuída à referida M. F.a prática de um crime de usurpação de funções por proceder à prestação e exercício de funções típicas da profissão de Psicólogo sem se encontrar inscrita na Ordem dos Psicólogos, não tendo realizado estágio, nem entregue o seu projecto de estágio, arrogando-se, ilegitimamente, uma qualidade e habilitação que não detém;
- J. P. reportou à Ordem dos Psicólogos a realização de três consultas de psicologia com a referida M. F..

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2. Apreciando
Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se a Ordem dos Psicólogos Portugueses e J. P. têm legitimidade para intervir nos autos na qualidade de assistentes relativamente a um eventual crime de usurpação de funções previsto no artigo 358.º do Código Penal.
Como já tivemos oportunidade de afirmar no acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2013( - Processo n.º 1066/12.6TALRA.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc. ), que aqui seguimos de perto, atendendo a que se mostra, à partida, afastada a verificação de qualquer das hipóteses de legitimação à constituição de assistente previstas nas restantes alíneas do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, importa, para efeitos da alínea a) do n.º 1 do mesmo preceito, ajuizar se aqueles devem ou não ser considerados ofendidos no sentido técnico-jurídico relativamente ao crime em apreço.
O artigo 68.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal estabelece que se podem constituir assistentes em processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de dezasseis anos.
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias – em perfeita consonância com o actual CPP – a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para intervirem como assistentes em processo penal( - Direito Processual Penal, Primeiro Volume, pág. 512.).
Para efeitos do disposto no artigo 68.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime mas unicamente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime relativamente ao qual se põe a questão da constituição de assistente.
Os titulares de interesses mediata ou indiretamente protegidos não podem ser englobados na abrangência do conceito de ofendido para os efeitos consignados no artigo 68º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles cujo objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou um direito de que é titular um particular( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, 1994, pág. 303.).
Daqui resulta que, nos casos de crimes públicos em que o interesse tutelado é exclusivamente público, a regra é a de que ninguém poderá constituir-se assistente, sendo que o direito de constituição como assistente só existirá se for conferido por lei especial, conforme expressamente dispõe o artigo 68.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
No caso em apreço estaria em causa a eventual prática do crime de usurpação de funções previsto no artigo 358.º do Código Penal.
Este crime pertence ao grupo dos chamados crimes contra o Estado que constitui o Título V do Livro II do Código Penal e, dentro dele, insere-se no Capítulo II que se ocupa “Dos crimes contra a autoridade pública” sendo entendimento pacífico que o bem jurídico protegido é o interesse do Estado “no respeito pelo desempenho regular das funções públicas ou profissionais que exigem título bastante para tal ou a conjugação de requisitos ou condições especiais de exercício”( - Cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, volume II, pág. 1544.) ( - No mesmo sentido de que é o Estado o titular do bem jurídico protegido podem citar-se, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 6/2/1985, BMJ 344, pág. 459, do Supremo Tribunal de Justiça de 7/2/1990, Processo n.º 40520, da Relação do Porto de 9/6/1999, CJ, Ano XIV, Tomo III, pág. 240, da Relação de Lisboa de 16/10/2001, Ano XXVI, Tomo IV, pág. 146, e da Relação do Porto de 17/1/2007, in www.dgsi.pt/jtrp.).
Por outras palavras, o bem jurídico protegido pelo tipo legal consiste na integridade ou intangibilidade do sistema oficial de provimento em funções públicas ou em profissões de especial interesse público( - Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 441; Esta definição coincide no essencial com a apontada por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 929.).
Trata-se de um crime através do qual o Estado “emprega a sua autoridade e define os pressupostos que lhe parecem garantir a competência no exercício das funções do Estado e de certas profissões que, pela sua importância, repercussão e melindre julga carecerem de formação especializada (…). Pune-se alguém que engana outrem quanto à sua habilitação legal para exercer actos próprios de funcionário ou de certa profissão, não por causa desse outrem (ao menos de modo imediato) mas porque o Estado entende que deve exigir uma fidelidade inquebrantável ao sistema de reconhecimento de competências (necessariamente formal) que ele próprio instituiu. No horizonte último do legislador não podem deixar de estar tantos bens jurídicos pessoais patrimoniais, supra individuais que devem ser acautelados. Mas a construção deste ilícito-típico faz-se – o Código já a isso nos habituou – em torno de um bem jurídico - meio que leva em certos casos a quase perder de vista os bens jurídicos-fim que o legitimam”( - Idem, Ibidem, págs. 439 a 440.).
Acerca dos interesses corporativos de classes profissionais, nomeadamente das Ordens, importa ter em conta que, por um lado, as Ordens aparecem apenas na área das profissões tituladas e o crime é mais abrangente: começa pela usurpação de funções em sentido próprio – a prática enganosa de actos exclusivos dos funcionários; e que, por outro lado, mesmo no que respeita às profissões tituladas, as Ordens representam, nesse aspecto, apenas uma longa manus do Estado para a regulação de interesses públicos – não de interesses de uma classe ou conjunto de profissionais( - Idem, Ibidem, pág. 441.).
Também não colhe o argumento extraído do artigo 49.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de Janeiro [a qual estabeleceu o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais], segundo o qual “as associações públicas profissionais podem constituir-se assistentes nos processos penais relacionados com o exercício da profissão que representam” na medida em que a situação em causa não tem directamente a ver com o exercício da profissão que a Ordem dos Psicólogos representa já que a denunciada não está inscrita na Ordem, assim como também não realizou estágio, nem entregue o seu projecto de estágio, e, portanto, os actos por si alegadamente praticados não tiveram lugar no exercício da actividade profissional que aquela representa.
Em suma, no conceito estrito de ofendido, consagrado na nossa lei, não cabem o titular de interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais, os quais podem eventualmente ser lesados e, nessa qualidade, sujeitos processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes.
Não pode, portanto, manter-se a decisão impugnada que admitiu a Ordem dos Psicólogos Portugueses e J. P. a intervir nos autos na qualidade de assistentes porque o bem jurídico especialmente protegido pela norma incriminadora é um interesse público, um interesse do Estado e só por este titulado.

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III – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida que admitiu a Ordem dos Psicólogos Portugueses e J. P. a intervir nos autos na qualidade de assistentes.

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Recurso sem tributação.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 6 de Fevereiro de 2017
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