Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
97/14.6T8BCL-B.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: INTERDIÇÃO
REGIME APLICÁVEL
MAIOR ACOMPANHADO
REVISÃO DA MEDIDA DE ACOMPANHAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, que instituiu o regime do maior acompanhado, introduziu uma alteração de paradigma uma vez que se passou de um anterior sistema que assentava em dois institutos - interdição e inabilitação – para um sistema que criou a figura maleável do maior acompanhado, com um conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, das capacidades e possibilidades da pessoa em concreto.
II- À interdição decretada antes da entrada em vigor da referida lei aplica-se este regime convertendo-se aquela decisão em medida de acompanhamento segundo o regime de representação geral.
III- Esta medida de acompanhamento é revista oficiosamente decorridos 5 anos desde a data da entrada em vigor da mencionada lei, i.e., em 10/02/2024, mas pode ser revista a todo o tempo a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público desde que seja alegada a modificação das causas que a justificaram ou que a evolução do beneficiário o justifique.
IV- Encontrando-se o beneficiário internado numa Casa de Saúde o internamento compulsivo do mesmo posterior à decisão que decretou a interdição não consubstancia fundamento de revisão daquela medida de acompanhamento.
V- A invocada “pouca retaguarda familiar” do beneficiário conjugada com a idade avançada da tutora também não fundamenta a revisão da medida de acompanhamento, mas poderá ser ponderada em sede de incidente de remoção da tutora a instaurar pelo Ministério Público.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

No âmbito da acção especial de interdição instaurada pelo Ministério Público contra A. M., foi proferida sentença em 06/05/2015 que declarou este interdito, por anomalia psíquica, desde Fevereiro de 2009 e nomeou para o desempenho das funções de tutor M. M..
Esta sentença transitou em julgado em 11/06/2015.
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Em 06/03/2021 o Ministério Público requereu a revisão da medida aplicada ao abrigo do disposto no art. 26º nº 8 da Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto.
Para tanto referiu que a decisão que decretou a interdição tem mais de cinco anos e acrescentou que o processo devia ser instruído a fim de se aferir da situação actual do beneficiário não obstante o processo de internamento compulsivo que corre termos sob o nº 2564/12.7TBBCL.
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Na sequência de convite a aperfeiçoar o requerimento apresentado fundamentando o pedido de revisão nos termos do disposto no art. 904º nº 2 do C.P.C. o Ministério Publico em 11/02/2021 veio dizer o seguinte:

- a tutora nomeada tem actualmente 87 anos, desconhece se tem cumprido os seus deveres, mas resulta de uma informação datada de 06/12/2019 constante no processo de internamento compulsivo que o beneficiário teria “pouca retaguarda familiar”;
- a tutora terá já apresentado pelo menos uma queixa contra beneficiário sendo que em consequência da mesma foi-lhe aplicada uma medida de segurança;
- por outro lado, face à entrada em vigor do novo regime, é de proceder à reanálise de todos os processos com vista a verificar se o acompanhante desempenha correctamente as suas funções.
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Em 12/03/2021 foi proferida decisão que indeferiu o pedido de revisão da medida.
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Não se conformando com esta decisão veio o Ministério Público dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1- O pedido de revisão da sentença que decretou a interdição foi devidamente fundamentado, essencialmente com a avançada idade da tutora nomeada, com a pendência do processo de internamento compulsivo (apenas na parte em pode conter elementos que interessam à pedida revisão) e, ainda, no facto de ter sido, por aquela, apresentada queixa contra filho, aqui beneficiário, mesmo anteriormente à dita sentença, o que, tudo, ponderado, justifica a pedida revisão.
2- Ainda que assim não fosse, decorreram já mais de cinco anos desde o trânsito em julgado da sentença que decretou a interdição, pelo que o respectivo pedido de revisão não pode ser rejeitado
3- No entender do M.P., as interdições decretadas há mais de cinco anos à data em que a Lei 49/2018, de 14/08 entrou em vigor, devem ser revistas sem ter de esperar que se completem cinco anos desde a sua entrada em vigor, ou seja, só após 10/02/2024.
4- Assim não se entendendo, só decorridos que estejam cinco anos contados desde a entrada em vigor da dita Lei, todos os processos de interdição e inabilitação é que são obrigatória e simultaneamente revistos,
5- Pelo que, pelo menos aqueles que em que tal revisão possa ser desde já efectuada, designadamente aqueles em que o respectivo beneficiário intervém em outros processos judiciais pendentes e quando já decorreram mais de cinco anos desde a aplicação da medida, não deve merecer despacho de indeferimento o respectivo pedido de revisão.
Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 155 do Cód. Civil e 891, nºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.”

Pugna pela revogação da decisão ordenando-se o prosseguimento dos autos com vista à revisão da interdição decretada e à eventual aplicação das medidas de acompanhamento que forem julgadas adequadas à situação actual do beneficiário.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., a questão a decidir é saber se é de deferir a requerida revisão da medida aplicada ao interdito.
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II – Fundamentação

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
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Os presentes autos foram instaurados como acção especial de interdição e neles foi proferida sentença em 06/05/2015 que declarou a interdição, por anomalia psíquica, desde Fevereiro de 2009, de A. M. e nomeou para o desempenho das funções de tutora M. M., sua mãe.
Esta decisão transitou em julgado em 11/06/2015.
Em face dos requerimentos apresentados pelo Ministério Público em 06/03/2021 e 11/03/2021 importa saber, por um lado, se em face do Regime do Maior Acompanhado, é de proceder neste momento à revisão oficiosa da medida aplicada ao interdito (ou, como defende o tribunal a quo, tal revisão oficiosa apenas é admissível decorridos 5 anos desde a data da entrada em vigor da lei que aprovou tal regime, i.e., em 10/02/2024) e, por outro, se se mostram reunidos os requisitos de que depende a revisão a pedido.
Vejamos.
A Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto criou o Regime Jurídico do Maior Acompanhado eliminando os institutos da interdição e inabilitação.
Com este diploma ocorreu uma alteração de paradigma dado que se passou de um anterior sistema que assentava naqueles dois institutos - interdição e inabilitação - que limitavam a capacidade de exercício do requerido de forma estanque e pré-definida na lei para um sistema que criou a figura maleável do maior acompanhado, com um conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, das capacidades e possibilidades da pessoa em concreto. Os fundamentos da interdição e da inabilitação deixam de ser os constantes nos então art. 138º e 152º do C.C. respectivamente para passar a haver uma formulação ampla prevista no art. 138º do C.C. das pessoas maiores que necessitam de medidas de acompanhamento. Parte-se agora de uma ideia de capacidade dotando a pessoa dos instrumentos necessários para a sua tutela nos casos pontuais em que dela careça preservando-se até ao limite a possibilidade de actuação autónoma do sujeito.
A este propósito refere António Pinto Monteiro, in R.L.J., Ano 148 nº 4013, p. 79: “Em suma (…) de um modelo, do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar quem delas necessite, mas sem prejuízo de elas poderem vir a suprir a incapacidade em situações excepcionais, sempre com respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana”. E na p. 77: ““Proteger sem incapacitar” constituiu, hoje, a palavra de ordem (…)”.
Miguel Teixeira de Sousa, in O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, e-book do CEJ subordinado ao tema “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, p. 51. Refere:
«A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
- Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art.º 145.º, n.º 2 do CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
- Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art. 140.º, n.º 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.».
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A Lei nº 49/2018 dispôs no art. 26º, sob a epígrafe “Aplicação no tempo”:

1 - A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor.
2 - O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes.
3 - Aos atos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática.
4 - Às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação.
5 - O juiz pode autorizar a prática de atos pessoais, direta e livremente, mediante requerimento justificado.
6 - Às inabilitações decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, cabendo ao acompanhante autorizar os atos antes submetidos à aprovação do curador.
7 - Os tutores e curadores nomeados antes da entrada em vigor da presente lei passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o regime adotado por esta lei.
8 - Os acompanhamentos resultantes dos nº 4 a 6 são revistos a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público, à luz do regime atual.

Deste preceito resulta:

- a aplicação imediata da lei aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, recorrendo o julgador aos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias; e
- quanto às interdições e inabilitações decretadas antes da entrada em vigor deste diploma aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos, no primeiro caso, ao acompanhante poderes gerais de representação podendo o juiz autorizar a prática de actos pessoais, directa e livremente, mediante requerimento justificado e, no segundo caso, cabendo ao acompanhante autorizar os actos antes submetidos à aprovação do curador. Estes acompanhamentos são revistos, à luz do actual regime, a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público.

A razão de ser deste preceito no que concerne às decisões transitadas em julgado que decretaram a interdição e inabilitação e à revisão a pedido das medidas aplicadas radica, quanto a nós, por um lado, na convicção que a rigidez do antigo modelo dualista, centrado no suprimento da incapacidade de exercício e na conservação do património, pode não acautelar suficientemente os concretos e actuais interesses do requerido e, por outro, permitir um controlo jurisdicional eficaz sobre os constrangimentos imposto aos beneficiários.
No que concerne à revisão das medidas dispõe o actual art. 155º do C.C. que O tribunal revê as medidas de acompanhamento em vigor de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.
E o art. 149º do C.C.: O acompanhamento cessa ou é modificado mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justifiquem (nº 1) e Podem pedir a cessação ou modificação do acompanhamento o acompanhante ou qualquer uma das pessoas referidas no nº 1 do artigo 141º (nº 3).

Por fim, preceitua o art. 904º do C.P.C.:
(…)
2. As medidas de acompanhamento podem, a todo o tempo, ser revistas ou levantadas pelo tribunal, quando a evolução do beneficiário o justifique.
3. Ao termo e à modificação das medidas de acompanhamento aplicam-se, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, o disposto no art. 892º e seguintes, correndo os incidentes respectivos por apenso ao processo principal.

Assim, prevê-se, por um lado, a revisão oficiosa da medida aplicada no mínimo de 5 em 5 anos (art. 155º do C.P.C.) e, por outro, a revisão a pedido em face de determinada justificação apresentada, a qual pode ser solicitada a todo o tempo (art. 149º nº 1 e 3 do C.C. e 904º nº 2 e 3 do C.P.C.).
No que diz respeito à primeira, uma vez que o regime anterior não previa de todo a revisão da decisão, importa apurar a partir de que momento se conta o prazo mínimo de 5 anos previsto no art. 155º do C.P.C., se da entrada em vigor da nova lei ou da data da prolação da decisão.
Acerca desta questão pronunciaram-se em sentido oposto dois dos conferencistas no âmbito de acção de formação contínua no Centro de Estudos Judiciários subordinada ao tema “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, realizada em Fevereiro de 2019, conforme ebook respectivo - http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf.
Miguel Teixeira de Sousa, p. 59-60, pronunciou-se no sentido do disposto no art.º 155.º C.C. ser de aplicação imediata a todas as interdições e inabilitações convertidas, mas o prazo nele estabelecido só se conta a partir da entrada em vigor do regime de acompanhamento de maiores aplicando extensivamente o disposto no art. 297º nº 1 do C.C. Conclui que com esta interpretação evita-se que, de um momento para o outro, todas as antigas interdições e inabilitações se encontrem em situação de terem de ser revistas. Esta a posição adoptada na decisão recorrida que transcreveu as palavras deste Professor.

Nuno Luís Lopes Ribeiro, p. 108-109, defendeu a revisão oficiosa de todos os processos de interdição decididos. A este propósito referiu:
“Quanto aos processos já decididos, (…) o regime levanta-nos algumas dúvidas; senão, vejamos:
Como vimos, o exercício de poderes gerais de representação constituiu apenas uma face do conteúdo do acompanhamento, previsto no art.º 145.º, n.º 2, b) do Cód. Civil.
De fora ficam o exercício de responsabilidades parentais, a administração total ou parcial de bens, a autorização prévia para a prática de certos actos e a disposição de bens imóveis.
Fica ainda de fora o exercício dos negócios da vida corrente e dos direitos pessoais, previstos no art.º 147.º. (…)
Por isso, parece-nos que o juiz, oficiosamente, deve reanalisar todos os processos de interdição decididos e, ao abrigo da faculdade de adequação formal, reabrir a possibilidade de produção de prova, com contraditório e fixar um regime de acompanhamento à luz do regime actual.
A possibilidade de revisão a pedido, nos termos do n.º 8, não pode impedir a revisão oficiosa, que sempre deverá ocorrer no mínimo de cinco em cinco anos, como resulta da articulação entre os artigos 155.º do CC e 904.º, n.º 2 do CPC.”
Subscrevemos o primeiro entendimento, o qual resulta, na nossa opinião, da melhor interpretação da lei.
Interpretar a lei consiste numa operação técnico-jurídica tendente a determinar o conteúdo e o sentido das normas jurídicas e realiza-se através de regras ou critérios que devem utilizar-se harmónica e não isoladamente, os quias resultam do art. 9º do C.C..
Primeiro atende-se às palavras através da qual a lei se exprime, as quais constituem o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação (elemento literal ou gramatical). A letra da lei tem uma função negativa ou de exclusão - afasta qualquer interpretação que não tenha uma base de apoio na lei - e positiva ou de selecção - privilegia, sucessivamente, de entre os vários significados possíveis, o técnico-jurídico, o especial e o fixado pelo uso geral da linguagem. Considera-se que o legislador soube exprimir correctamente o seu pensamento e se serviu do vocábulo jurídico adequado.
Mas, além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer por vezes aos elementos lógicos que se agrupam em três categorias: elemento histórico (a história da lei); o elemento sistemático (as leis interpretam-se umas pelas outras, pois a ordem jurídica forma um sistema) e elemento racional ou teleológico (ratio legis).
Ora, uma vez que o art. 26º nº 4 e 8 da Lei nº 49/2018 alude apenas à revisão a pedido há que recorrer ao regime geral na aplicação do disposto no art. 155º do C.C.. Assim, não obstante a letra do art. 297º do C.C. prever apenas a sucessão de leis que prevêem diferentes prazos, a doutrina tem defendido que, no seu nº 1, a letra da lei, ao não prever a possibilidade da anterior lei não estabelecer qualquer prazo, ficou aquém do seu espírito ou que o legislador disse menos do que queria, pelo que, por interpretação extensiva, aplica o mencionado preceito a tal situação. Neste sentido vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Ed. Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1987, p. 271. Assim, a revisão oficiosa apenas se impõe em 10/02/2024.
Entendemos que o legislador não quis que ocorresse a revisão oficiosa imediata de todas as interdições e inabilitações decretadas, pois não se vislumbra por que razão, consagrando um preceito para a aplicação no tempo (art. 26º) em que prevê a conversão das anteriores decisões em medidas de acompanhamento nos termos aí referidos, apenas tenha aludido à revisão a pedido (nº 8). Acresce que a interpretação defendida pelo recorrente não resulta dos chamados elementos lógicos. Com efeito, a história da lei, a ordem jurídica no seu todo e a ratio legis não a impõem sendo que, quanto ao elemento teológico, importa referir que o objectivo de adequação da medida à situação concreta e actual mostra-se salvaguardado pelo pedido de revisão por parte do próprio, acompanhante ou Ministério Público.
É um facto que este entendimento leva a que as interdições e inabilitações há muito decretadas tenham de esperar até 10/02/2024 para serem revistas, mas a experiência dos tribunais e da vida mostra-nos que existem situações perfeitamente estáveis que não exigem tal imediata revisão e que no caso de situações problemáticas ou duvidosas o próprio, o acompanhante e/ou Ministério Público não hesitam em recorrer a juízo justificando tal decisão.
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No caso em apreço não nos encontramos perante uma revisão por iniciativa do tribunal, mas a pedido pelo Ministério Público pelo que importa apurar se os fundamentos invocados a justificam. Vejamos os factos:

Na sentença proferida em 06/05/2015 lê-se que o requerido A. M. o requerido “padece (de modo permanente e irreversível) de esquizofrenia paranóide, doença com curso crónico e deterioração cognitiva, afectiva e social grave, revelando ideação delirante e carecendo da supervisão de terceira pessoa, a qual lhe providencia pela prestação de cuidados de saúde e vigilância, razão pela qual não tem autonomia para determinar a sua pessoa e reger o seu património. Estão, pois, reunidos os pressupostos para declarar o requerido interdito, por anomalia psíquica (…)”.
No relatório pericial que a precedeu resulta que a doença se terá manifestado por volta dos 18 anos, que o requerido viveu com a mãe até 2009, altura em que, na sequência de episódio de violência aparentemente devido a descompensação psicótica por não toma da medicação, foi internado no Hospital …, em Coimbra. Depois terá sido feita uma tentativa de voltar a viver com a mãe, o que não se mostrou possível devido a episódios de violência devido a descompensação psicótica pelo que foi internado na Casa de Saúde …, em Barcelos, onde se encontrava na data da perícia.
O Ministério Público, no requerimento de 11/03/2021 (na sequência de convite ao aperfeiçoamento), referiu ter tomado conhecimento, através do processo de internamento compulsivo nº 2564/12.7TBBCL referente ao aqui requerido, de uma informação datada de 06/12/2019 nos termos da qual este teria “pouca retaguarda familiar” e desconhecer se a tutora, pessoa de 87 anos, tem cumprido os deveres previstos no art. 146º do C.C.. Alude ainda a, pelo menos, uma queixa da tutora contra o requerido por violência.

Quid iuris?

Acompanhamos o tribunal recorrido no que diz respeito à irrelevância das alegadas queixas da tutora por violência. As mesmas não são recentes, terão estado na origem de um internamento num hospital psiquiátrico e depois do internamento na Casa de Saúde de …, em Barcelos, e foram necessariamente valoradas aquando da sentença proferida que, não obstante as mesmas, nomeou como tutora a mãe do requerido.

Acompanhamos também na parte em que conclui que o simples facto do requerido ter sido eventualmente alvo de novo(s) internamento(s) compulsivo(s) não fundamenta o pedido de revisão.
São realidades distintas o internamento compulsivo e o internamento do maior acompanhado. Têm diferentes fundamentos e regimes.
O primeiro internamento, que se encontra regulado pela denominada Lei de Saúde Mental aprovada pela Lei nº 36/98 de 24/07 (alterada pela Lei nº 101/99 de 26/07 e pela Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto), destina-se aos portadores de anomalia psíquica, designadamente das pessoas com doença mental (art. 1º), só pode ser determinado quando for a única forma de garantir a submissão a tratamento do internado e finda logo que cessem os fundamentos que lhe deram causa (art. 8º nº 1), se for proporcionado ao grau de perigo e ao bem jurídico em causa (art. 8º nº 2), deve obedecer aos pressupostos referidos no art. 12º e A revisão é obrigatória (…) decorridos dois meses sobre o início do internamento ou a decisão que o tiver mantido (art. 35º nº 2).
Por seu turno, o internamento do acompanhado previsto no art. 148º do C.C. cabe na al. e) do n.º 2 do art. 145º do mesmo código como medida de acompanhamento, mas apenas deve ser justificado pela necessidade de providenciar por cuidados básicos e/ou de saúde (e não apenas de saúde mental) que o beneficiário, por si, e em virtude de doença ou fragilidade, não pode assegurar (art. 139º nº 2 do C.C.) sendo objecto de revisão nos mesmos termos das demais medidas de acompanhamento.
Assim, no caso em análise os alegados novos e pontuais internamentos compulsivos são compatíveis com o internamento do requerido na mencionada Casa de Saúde, o que se verifica, aliás, há largos anos.
O facto da tutora ter 86 ou 87 anos não justifica a revisão da medida de acompanhamento.
Nos termos do art. 143º nº 2 c) do C.C. o acompanhante pode ser um dos progenitores, o qual não pode, aliás, escusar-se ou ser exonerado (art. 144º nº 1 do C.C.). Mas, o tutor pode ser removido se faltar ao cumprimento dos deveres próprios do cargo ou revele inaptidão para o seu exercício e/ou se, por facto superveniente à investidura no cargo se constitua nalguma das situações que impediriam a sua nomeação, a requerimento do Ministério Público, do acompanhante ou do próprio requerido - art. 1948º a) e b), 1949º ex vi art. 152º do C.C..
A alegada informação constante do processo de internamento compulsivo, nos termos da qual o aqui requerido teria “pouca retaguarda familiar”, conjugada com dados que resultam dos autos, como a idade da tutora, a residência desta (Caminha) e a residência do requerido (Barcelos), indicia a possibilidade da tutora/acompanhante poder não se encontrar a exercer a sua função em conformidade com a lei, designadamente não visitando o requerido com a periocidade mínima mensal conforme estipula o art. 146º nº 2 do C.C..
Contudo, entendemos que este facto, a confirmar-se, não deverá ser ponderado em sede de revisão da medida de acompanhamento. Com efeito, a decisão de interdição, ao abrigo do disposto no art. 26º nº 4 da Lei nº 49/2018, converteu-se em medida de acompanhamento de representação geral nos termos do art. 145º nº 2 b) do C.C., e não se vislumbra qualquer modificação das causas que o justificaram (art. 149º nº 1 do C.C.) ou que a evolução do beneficiário o justifique (art. 904º nº 2 do C.P.C.).
Mas, já poderá ser ponderado em sede de incidente de remoção de tutor a instaurar pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no art. 1948º a) e b), 1949º ex vi art. 152º do C.C..
Pelo exposto, a apelação improcede.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – A Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, que instituiu o regime do maior acompanhado, introduziu uma alteração de paradigma uma vez que se passou de um anterior sistema que assentava em dois institutos - interdição e inabilitação – para um sistema que criou a figura maleável do maior acompanhado, com um conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, das capacidades e possibilidades da pessoa em concreto.
II - À interdição decretada antes da entrada em vigor da referida lei aplica-se este regime convertendo-se aquela decisão em medida de acompanhamento segundo o regime de representação geral.
III – Esta medida de acompanhamento é revista oficiosamente decorridos 5 anos desde a data da entrada em vigor da mencionada lei, i.e., em 10/02/2024, mas pode ser revista a todo o tempo a pedido do próprio, do acompanhante ou do Ministério Público desde que seja alegada a modificação das causas que a justificaram ou que a evolução do beneficiário o justifique.
IV – Encontrando-se o beneficiário internado numa Casa de Saúde o internamento compulsivo do mesmo posterior à decisão que decretou a interdição não consubstancia fundamento de revisão daquela medida de acompanhamento.
V – A invocada “pouca retaguarda familiar” do beneficiário conjugada com a idade avançada da tutora também não fundamenta a revisão da medida de acompanhamento, mas poderá ser ponderada em sede de incidente de remoção da tutora a instaurar pelo Ministério Público.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmam a decisão recorrida.
Sem custas.
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Guimarães, 13/05/2021
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues