Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
651/06.0TBGMR-B.G1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: ALIMENTOS
MENORES
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
DESCONTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Não é ilegal nem inconstitucional a interpretação do art.º 189.º da OTM no sentido de se poderem efectuar deduções no vencimento de devedor de prestações alimentares, vencidas ou vincendas, devidas a menores seus filhos, ainda que, de tal dedução resulte para aquele devedor rendimento inferior ao salário mínimo, desde que essas deduções não ponham em causa o mínimo de sobrevivência, garantido por montante equivalente ao do rendimento de inserção social.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO
C…, mãe dos menores R… e C…, deduziu o presente incidente de incumprimento nos termos do disposto no art.º 181.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pela Lei 314/78 de 21 de Outubro, doravante designada OTM, contra J…, pai dos menores.
Para tanto, alega que o requerido não tem pago a prestação alimentar mensal de € 100,00 para cada filho, conforme foi determinado por decisão judicial em sede de regulação do exercício do poder paternal.

Realizou-se a conferência a que alude o art.º 181.º n.º 2 da OTM, com a presença de ambos os progenitores dos menores.
O Digno Magistrado do M.º P.º pronunciou-se no sentido de ser efectuado desconto directo da prestação de alimentos devida aos menores, no valor mensal de € 200,00, no salário auferido pelo requerido, acrescido da quantia de 50€, a título de prestações vencidas, até perfazer o montante em dívida.

Notificada, a requerente veio esclarecer que o requerido tem pago a quantia mensal de € 100.00 desde Fevereiro de 2009.

Foi proferida sentença datada de 04/11/2010, onde se decidiu julgar o presente incidente de incumprimento totalmente procedente por provado e, nessa medida, nos termos do disposto no art.º 189.º n.ºs 1 alínea b) e 2 da OTM, determinou-se o desconto directo no vencimento auferido por J… pelo trabalho prestado a José… , a ter início no próximo mês de Dezembro de 2010, das seguintes quantias:
a) 216,86 (duzentos e dezasseis euros e oitenta e seis cêntimos) a título de prestações de alimentos vincendas;
b) 141,64 (cento e quarenta e um euros e sessenta e quatro cêntimos), durante 60 (sessenta meses), a título de prestações de alimentos vencidas.
Mais se determinou que as quantias em causa deverão ser entregues directamente á mãe dos menores, C… .

Inconformado, o requerido J… interpôs recurso de apelação da sentença, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
I - Desde 2006 que o requerente não podia pagar quaisquer alimentos;
II - Desde Fevereiro de 2009, o requerente passou a auferir o vencimento de €497,50 e pagou a título de alimentos mensalidade de €100,00, ficando apenas com €397,00 para repor a sua força de trabalho.
III - Os menores têm estado sem alimentos por exclusiva responsabilidade da sua mãe e do Ministério Público.
IV - O recorrente não pode dispor de €200,00, nem de €358,50 mensalmente, pois apenas fica com €139,00 para si, incapazes de lhe reporem a sua força de trabalho ou garantir a sua sobrevivência;
V - A decisão recorrida não obedece a critérios de legalidade estrita, mas obedece ao bom senso e ao prudente arbítrio do julgador;
VI - O bom senso e o prudente arbítrio obrigam a que o recorrente não seja condenado em mais de €100,00 mensais, a descontar no seu vencimento, pois a quantia mensal sobrante, de €397,50, já é menos que o mínimo estabelecido pelo Estado Português para repor a força de trabalho;
VII - E a quantia sobrante deixada pela sentença recorrida, de €139,00, não é sequer capaz de garantir a sobrevivência do recorrente:
VIII - Pelo que, a sentença recorrida violou os art.ºs 150.° da OTM, 1410.° do CPC e 2004 do CCiv;
IX - Uma vez que não teve em conta as reais possibilidades do recorrente para o pagamento de alimentos.

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ás alegações pugnando pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II FUNDAMENTAÇÃO
Objecto do Recurso
Considerando que:
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º nºs 3 e 4 e 690 nº 1 do Código de Processo Civil);
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
A questão a decidir é a de saber se é ilegal o ordenado desconto no vencimento do requerido, para pagamento das prestações alimentares vencidas e vincendas devidas aos seus filhos menores.

Os factos provados que fundamentaram a decisão recorrida são os seguintes:

A) R… nasceu em Creixomil, Guimarães, em 19/08/1996 e está registado como sendo filho de J… e de C… - certidão de fls. 5 dos autos principais;
B) C… nasceu em Creixomil, Guimarães, em 10/06/2000 e está registada como sendo filha de J… e de C… - certidão de fls. 6 dos autos principais;
C) Por sentença proferida a fls. 143 e ss. dos autos principais (em 25/09/2006) e já transitada em julgado, foi o exercício (do poder paternal) destes regulado, além do mais, do seguinte modo:
a. O pai contribuirá mensalmente para o sustento dos menores com a quantia de 100,00€ por cada menor, num total de 200,00€, a pagar até ao dia 08 de cada mês, por depósito em conta bancária a identificar nos autos, quantia a actualizar anualmente de acordo com a inflação;
D) Até à data, o pai dos menores apenas tem vindo a entregar a quantia de 100,00€ (cem euros) mensais a título de alimentos, o que vem fazendo desde Fevereiro de 2009 (inclusive), nada mais tendo pago a esse título;
E) O pai dos menores trabalha actualmente para José… , recebendo um vencimento mensal líquido de 497,50€ (quatrocentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos).

O DIREITO APLICÁVEL
O desconto directo no vencimento do requerido, foi ordenado na sentença recorrida ao abrigo do disposto no art.º 189.º da OTM, que visa a cobrança coerciva da prestação de alimentos devidos a menores, através de um procedimento pré-executivo, ou seja, “à margem de uma acção executiva e independente dela, no sentido que não a procede e aplica-se a qualquer processo tutelar cível que tenha fixado uma prestação de alimentos.” Tomé d’Almeida Ramião, Organização Tutelar de Menores Anotada e Comentada, 2008, pag 152.
Nesta norma prevê-se o pagamento das prestações de alimentos vencidas e vincendas através do desconto no vencimento ou outros rendimentos do devedor, que sejam pagas com regularidade, designadamente rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens etc.
Como é evidente, para que se possa usar tal meio de cobrança, é essencial que a prestação ou prestações em dívida tenham sido fixadas judicialmente, como sucedeu no caso concreto.
Assim, estando em causa apenas a sua cobrança coerciva em virtude do incumprimento do respectivo devedor, não faz qualquer sentido, como parece defender o apelante, que se tome em conta, neste momento, o disposto no art.º 2004.º do Código Civil, que determina que os alimentos devem ser proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de os receber. Tal ponderação já foi feita quando da fixação do montante das prestações de alimentos em causa, sendo certo que não foi requerida qualquer alteração. E, enquanto o montante de alimentos fixado na aludida sentença homologatória não for alterado, o requerido, pai da menor, está obrigado a cumpri-lo pontualmente.
Estando demonstrado que o requerido estava obrigado por decisão judicial transitada, a pagar a cada um dos seus filhos menores uma prestação alimentar, e que há já algum tempo vem incumprido total ou parcialmente tal obrigação, a única questão que se coloca é a de saber se o montante do desconto ordenado no seu vencimento é ilegal, designadamente porque do mesmo resulta que aquele ficará com um rendimento muito inferior ao do salário mínimo nacional.
O Plenário do Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 177/2002, de 2 de Julho de 2002 (DR de 02/07/2002), fixou jurisprudência no sentido de que a penhora de um terço sobre pensões ou outras regalias sociais, de valor inferior ao salário mínimo nacional, é inconstitucional, por ferir o princípio da dignidade humana plasmado nas disposições conjugadas nos artigos 1º, 59º, nº 2, al. a) e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Na sequência do referido acórdão do TC, o art.º 824.º do CPC foi alterado pelo DL nº 38/2003, de 08 de Março, determinando-se, no seu n.º 2, que “a impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”.
Bem se compreende esta exclusão do crédito de alimentos já que, “existindo obrigação alimentícia, no caso paternal, estão em conflito interesses da mesma natureza: o dos filhos, credores de alimentos, e o do dignidade humana do pai, devedor desses alimentos, ambos com necessidades vitais a satisfazer.” Ac. da Relação do Porto de 28/06/2004, relatado pelo Desembargador Caimoto Jâcome, proferido no processo JTRP00039822, em www.dgsi.pt.
Em conformidades com este entendimento, no Acórdão deste Tribunal n.º 306/2005, concluiu-se – com dois votos de vencido - ser inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito com referência aos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição, a norma da alínea c) do nº1 do artigo 189º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução, para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário para satisfazer as suas necessidades essenciais.
Entendeu-se então que «o critério de determinação da parcela do rendimento do progenitor que não pode ser afectado ao pagamento coactivo da prestação de alimentos devidos ao filho, não pode alcançar-se por equiparação ao montante do salário mínimo nacional, montante este que pode servir de referencial quando os “custos do conflito” se hão-de repartir, em sede constitucional, entre a preservação de um nível de subsistência condigna do devedor e a garantia do credor à satisfação do seu crédito, tutelada pelo artigo 62º, nº1 da Constituição, mas não quando entram em colisão o dever e o direito correlativo de manutenção dos filhos pelos progenitores, situação em que, de qualquer dos lados, fica em crise o princípio da dignidade da pessoa humana, vector axiológico estrutural da própria Constituição. De um modo ainda aproximativo, pode reter-se a ideia geral de que, até que as necessidades básicas das crianças sejam satisfeitas, os pais não devem reter mais rendimento do que o requerido para providenciar às suas necessidades de auto-sobrevivência».
E assim, «rejeitado o critério do salário mínimo, entendeu-se que o ordenamento jurídico oferece um outro referencial positivo que pode ser usado como critério orientador do limite de “impenhorabilidade” para este efeito: o do rendimento social de inserção, criado pela Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio (em substituição do rendimento mínimo garantido, criado pela Lei n.º 19-A/96, de 29 de Junho) e regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 283/2003, de 8 de Novembro e pela Portaria n.º 105/2004, de 26 de Janeiro (estabelece o montante dos apoios especiais)».
No decurso de 2010 e a partir do mês de Agosto, o rendimento social de inserção situou-se no valor mínimo de € 189,52 (cfr Lei 4/2007, de 16/Jan.; Dec.-Lei n.º 70/2010, de 16/Jun.).
No caso concreto, o desconto ordenado tem como consequência que a parte do vencimento de que o requerido passará a dispor mensalmente ascenda a € 139, 00, isto é, aquém do rendimento social de inserção em vigor à data da decisão recorrida.
Considerando o aludido critério defendido pelo Tribunal Constitucional, a que aderimos e sendo certo que o requerido, durante cerca de quatro anos, em nada contribuiu para o sustento dos seus filhos, não estando sequer demonstrado que não possa até envidar esforços para aumentar os seus rendimentos designadamente através do trabalho, deve ser reduzido o desconto ordenado no vencimento daquele, apenas de molde a assegurar o aludido mínimo de sobrevivência, garantido por montante equivalente ao do rendimento de inserção social. CF, neste sentido, entre outros, Acórdão da Relação de Guimarães proferido no processo número 503-D/1996.G1, relatado pelo Desembargadora Raquel Rego.
Procede assim parcialmente o recurso, pois que, a quantia que o apelante pretende seja descontada no seu vencimento, de € 100,00, é escassa tendo em conta o valor das prestações vencidas e vincendas

III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta secção cível em julgar a apelação parcialmente procedente, determinando-se o desconto directo no vencimento auferido por J… pelo trabalho prestado a José… , a ter início no próximo mês de Dezembro de 2010, das seguintes quantias:
c) 216,86€ (duzentos e dezasseis euros e oitenta e seis cêntimos) a título de prestações de alimentos vincendas;
d) 91,12€ (noventa e um euros e doze cêntimos) durante 93 (noventa e três) meses e uma 94ª (nonagésima quarta) prestação de 24,34€ (vinte e quatro euros e trinta e quatro cêntimos), de modo a perfazer o total de 8.498,50€ (oito mil quatrocentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos) a título de prestações de alimentos vencidas.
No mais, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante na proporção do seu decaimento no recurso.
Notifique.

Guimarães, 29 de Março de 2011
Isabel Rocha
Manuel Bargado
Helena Melo