Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1183/21.1.T8VRL-B.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
ALIMENTOS PROVISÓRIOS
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. As decisões proferidas no âmbito do nº7 do art. 931º do CPCivil têm natureza análoga às dos processos de jurisdição voluntária, por isso, podem após o respectivo trânsito em julgado ser modificadas caso se alterarem as circunstâncias em que se fundaram.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

Neste processo especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, intentado em 4.6.2021 por A. R. J., contra E. E., na tentativa de conciliação realizada em 13/7/2021, na qual as partes não se conciliaram, o mandatário da R. formulou o seguinte requerimento:

“A Ré nos termos do art.º 931.º n.º 7 do C. P. C e porque não tem qualquer fonte de rendimento (conforme também aliás também consta do requerimento do apoio judiciário já junto aos autos), sendo que do casal o único que auferia e aufere rendimentos é o marido, e não podendo a Ré estar mais tempo sem dinheiro, pelo menos para o seu sustento, sendo que já está sem qualquer contribuição do seu marido desde pelo menos Fevereiro deste ano de 2021, é urgente que seja fixada provisoriamente o valor a pagar pelo marido que seja suficiente para a sua alimentação.
Espero de V.ª Ex.ª deferimento.”
Após a resposta do A. que solicitou a realização de diligência com vista a apurar da necessidade dos alimentos provisórios requeridos, tal requerimento mereceu a seguinte
Decisão:
“Pretende a Ré a fixação de um valor, a título de pensão de alimentos, ao abrigo do disposto no art.º 931.º, n.º 7, do C. P. Civil.
Trata-se de um incidente processual sendo que as provas devem ser oferecidas com o respetivo requerimento em que se deduz o pedido e com a oposição, se a mesma for apresentada.
No caso em análise, a Ré sustenta a sua incapacidade económica no facto de ter peticionado apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Ora, um pedido de apoio judiciário, por si só, não é elemento bastante para que se possa concluir, sequer, que haja qualquer tipo de incapacidade por parte da demandada de prover ao seu sustento na pendência da presente ação.
Inexistindo outros elementos documentais nos autos dos quais se possa extrair que a Ré carece de alimentos, indefere-se a sua pretensão.
Custas deste incidente pela Ré, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal – cf. art.º 7.º, n.º 4, do R. C. Processuais.
Notifique.
*
A R. não impugnou tal decisão, seguindo os autos os seus termos.
Após a contestação, por requerimento de 17-11-2021, a Ré formulou novo pedido de fixação de alimentos provisórios, alegando, para tanto, e em síntese, o seguinte:

- A ré/requerente e o autor/requerido celebraram casamento católico, em - de Março de 1994, sem convenção antenupcial e do casamento nasceram 2 filhos, maiores.
- A requerente, que sempre foi doméstica, ao longo dos 27 anos que durou o casamento, contribuiu com o seu trabalho para a economia comum do casal, o bem estar e o futuro do marido R. J. e educação dos filhos de ambos, com a sua dedicação ao marido, aos filhos e às tarefas domésticas e gestão do dia a dia do lar.
- Era ela quem geria a casa, nomeadamente, era ela quem fazia os pagamentos, da água, da luz, fazia as compras e tudo que fosse indispensável para que nada do que é essencial faltasse em casa, no lar, sendo que, para esse efeito, o marido R. J. entregava-lhe o cheque do ordenado que era e é declarado na empresa onde ele trabalha no valor líquido de € 792,19, que a R. depositava na conta e fazer com ele a gestão da casa.
- Desde do mês de Fevereiro deste ano de 2021 e até hoje que o marido R. J. deixou de entregar à requerente o cheque do valor do ordenado declarado, ou qualquer outra quantia, violando o disposto no art.º 1675º do CC.
- A requerente sempre foi doméstica e não tem qualquer fonte de rendimento ou apoio do Estado.
- Este direito a alimentos, é o único que a pode ajudar ou valer, até ao divórcio ao abrigo dos arts.º 1675º e 2015º CC, e após o divórcio ao abrigo dos arts. 2016 e 2016-A do CC.
- O requerido, continua a ter emprego como sempre teve e a receber e a ser aumentado como sempre sucedeu e sucederá, e a ter estabilidade profissional e reforma para o contribuiu o trabalho da requerente como doméstica que em casa tratava dele, dos bens dele, da alimentação dele, da roupa dele, do bem estar dele, da cama que também era dele e dos filhos que também eram e são dele, ao longo de de 27 anos.
- A requerente tem apenas o 6º ano de escolaridade, não tem nenhum curso ou formação; tem nesta altura 47 anos de idade e problemas de saúde pelo que terá muita dificuldade em conseguir arranjar um emprego e sobretudo um emprego fixo.
- O requerido, como ele próprio confessa na sua petição inicial do divórcio, decidiu no dia 2 de Fevereiro de 2021, abandonar a casa de morada de família, não pelas razões que ele refere na sua petição inicial, que são totalmente falsas, mas, para ir viver com a sua amante, sendo o culpado na separação do casal, e violou frontalmente os deveres dos cônjuges, de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, plasmados nos artigos 1672º e segs do CC.
- Desde aquele dia 02 de Fevereiro de 2021 que o requerido vive como se de marido e mulher se tratassem, com a sua amante, em Murça.
- Atualmente recebe necessariamente um ordenado superior ao que entregava à aqui requerente, dado que, pelo menos, o ordenado base ou salário mínimo nacional, que é o único valor que o marido R. J. apenas declara, foi atualizado no dia 01 de Janeiro deste ano 2021, para o valor de € 665,00, e ganhava e ganha ainda à parte do valor que é declarado (que é apenas o ordenado mínimo) € 500,00 líquidos.
- Além disso, executa trabalhos de construção civil, de trolha, de pedreiro, de picheleiro, de pintor, de eletricista e outros, pois sabe fazer tudo, tem jeito para tudo, faz todo o tipo de serviço, auferindo por esses serviços uma media mensal de cerca de € 750,00, pelo que o seu rendimento mensal é de cerca de € 2.000,00.
- Actualmente, o requerido, vive maritalmente na casa da sua amante, sendo que esta tem um emprego, num escritório de advogados, e pelo que se ouve dizer, aufere mensalmente cerca de € 800,00, ou até mais, dado que já trabalha há muitos anos nesse escritório, mas, pelo menos e seguramente, nunca auferirá quantia inferior ao ordenado mínimo nacional de € 665,00.
- Pode e está em condições de poder dar de pensão de alimentos à requerente, ainda sua mulher uma pensão de alimentos provisórios, na ordem do ordenado mínimo nacional mensal de € 665,00.
- A requerente, com o abandono pelo marido do lar conjugal, encontra-se numa situação muito difícil desde Fevereiro deste ano de 2021.
- A sua salvação, para que não passasse fome, senão as suas dificuldades teriam sido muito maiores, foi um dinheiro que tinham na conta do casal da Caixa ..., no valor de € 3.200,97, único a que a aqui requerente teve acesso,
- Este dinheiro, desde o abandono da aqui requerente pelo autor, foi por ela gasto para que a requerente se pudesse sustentar, alimentar, vestir e calçar, sobreviver, sem ter ainda que mendigar,
- Mas, manifestamente insuficiente, para colmatar as suas necessidades mais básicas, que incluem ainda o pagamento da água e da luz.
- Com este dinheiro, a aqui requerente, teve ainda de pagar contas do marido R. J. que este deixou, desde que ele abandonou o lar em Fevereiro até Julho, de gastos com o seu telemóvel na ordem e em média dos € 70,00 a € 90,00 mensais, que estavam incluídos no pacote da internet e canais de televisão que tinham em casa, e teve de pagar ainda a água e a luz.
- Tal quantia foi já totalmente despendida pela requerente nas suas necessidades diárias mais básicas, nomeadamente a alimentação diária, pelo que, e dado que ainda não foi decretado o divórcio, deve ser reconhecido e declarado pelo tribunal, como dinheiro que integrou a obrigação de alimentos na vigência da sociedade conjugal, nos termos dos arts. 2015º e 1675º do CC, que melhor se denominaria dever de manutenção, e que foi absorvido pelos encargos da vida familiar, nomeadamente a alimentação do conjugue que não aufere rendimentos, e que reveste natureza meramente provisória.
- Nesta altura, a aqui requerente já precisou e precisa da ajuda de familiares e amigos, para poder sobreviver, e já teve necessidade de pedir dinheiro emprestado e por isso encontra-se atualmente numa situação muito difícil e já endividada, pois o valor acima referido foi manifestamente insuficiente para todas as necessidades elementares da aqui requerente.
Terminou peticionando a condenação do requerido no pagamento do valor mensal de € 665,00, a título de alimentos provisórios, por força do disposto nos artigos 2003º, nº1, 2009, nº1 alínea a), 2016º, nº 2 e 2016º-A, todos do Código Civil, e nº 7 do art.º 931º do C.P.C., e a transferir o valor para uma conta da requerente por esta a indicar, bem como a reconhecer que valor de € 3.200,97, da conta do casal da Caixa ... que existia na data da separação de facto, integrou a obrigação de alimentos na vigência da sociedade conjugal, nos termos dos arts. 2015º e 1675º do Código Civil, e absorvido pelos encargos da vida familiar desde a data da separação do casal em 02 de Fevereiro de 2021até à data da entrada do presente pedido de fixação provisória de alimentos.
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O A. deduziu oposição, na qual além de impugnar os factos alegados, invocou a excepção do caso julgado.
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Notificada para o efeito a R. pronunciou-se sobre a excepção invocada pelo A., pugnando pela improcedência da mesma, considerando não se acharem preenchidos os respectivos pressupostos.
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Em 24.1.2022, foi proferida decisão que julgando procedente a excepção do caso julgado, absolveu o A. da instância relativamente ao pedido de alimentos provisórios, com a seguinte argumentação:
“O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a anterior ter sido decidida por decisão que já não admite recurso ordinário, visando-se assim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (cf. artigo 580.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
A causa repete-se quando se propõe ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cf. artigo 581.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

No caso em apreço, através do requerimento apresentado no dia 17 de Novembro de 2021, a Ré deduz contra o Autor, pela segunda vez, o pedido de fixação provisória de alimentos, ao abrigo do disposto no art.º 931.º, n.º 7, do CPC, com fundamento na mesma causa de pedir invocada no requerimento de 13 de Julho de 2021 - não dispor de qualquer fonte de rendimento e depender do rendimento do marido para prover ao seu sustento, o qual cessou a sua contribuição quando saiu da casa de morada de família no dia 2 de Fevereiro de 2021.
Em ambos os incidentes as partes são as mesmas, tal como a causa de pedir e o pedido.
A decisão que recaiu sobre a pretensão da demandada formulada em sede de tentativa de conciliação é uma decisão de mérito, por via da qual se indeferiu o pedido em questão por a Ré não ter logrado provar a, por si alegada, incapacidade económica para prover ao seu sustento.
Por outro lado, no requerimento de 17 de Novembro de 2021 a Ré não invoca quaisquer circunstâncias supervenientes à data da prolação da decisão de 13 de Julho de 2021.
Com efeito, a demandada limita-se a explanar o que já tinha alegado anteriormente, ou seja, que não tem rendimentos, que dependia e depende do rendimento do marido, aqui Autor e que este deixou de contribuir para a economia do casal desde Fevereiro de 2021.
Posto isto, cumpre concluir que o incidente agora deduzido pela Ré consubstancia a repetição daquele que suscitou em sede de tentativa de conciliação e relativamente ao qual recaiu decisão de mérito já transitada em julgado.”
Verifica-se, pois, uma situação de caso julgado (identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir), a qual, como exceção dilatória que é, obsta ao conhecimento do mérito do pedido de fixação de alimentos provisórios e conduz à absolvição do Autor da instância, o que se decide – cf. artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea i), 578.º, 580.º, 581.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do CPC.
Custas deste incidente pela Ré, fixando-se a taxa de justiça em duas UCs, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia – cf. art.º 7.º, n.º 4, do RCP.
Notifique.”
*
Inconformada, a R. interpôs recurso desta decisão, terminando as suas alegações com as seguintes
Conclusões (transcrição)

1º A preocupação do nosso legislador desde pelo menos a revisão do CPC de 1995, é de que o direito de acesso aos Tribunais envolva a eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litigio, privilegiando assim claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma, nomeadamente através do artigo 6º, do C.P.C.
2º Perante o confronto dos dois requerimentos, o tribunal “a quo” nunca se poderia ou poderá contradizer nas decisões (razão fulcral de preocupação da exceção do caso julgado). A simplicidade do pedido inicial ditado para a ata, que levou a uma primeira decisão meramente formal, baseada na falta de elementos de prova, não se poderá nunca contradizer com a segunda, face à extensão da matéria factual que a recorrente agora através do seu novo requerimento levou aos autos, à suficiente prova documental carreada para os autos e ainda à prova testemunhal que também indicou, além de outros argumentos diferentes que agora colocou ao tribunal para este se pronunciar, de circunstâncias supervenientes, nomeadamente o uso de dinheiro comum para as suas necessidades mais básicas, teria o tribunal “ a quo” agora necessariamente de proferir uma decisão de fundo, de mérito, totalmente diferente da primeira, que nunca a poderia ou poderá contradizer.
3º Por isso, e salvo sempre melhor interpretação, o tribunal “a quo” no despacho de que ora se recorre, faz interpretação errada dos factos à subsunção das normas da exceção do caso julgado (arts. 580º e 581º do C.P.C.), além de que estamos perante decisões meramente provisórias, que podem e estão sempre sujeitas, por força da sua natureza provisória, a alterações.
4º O tribunal “a quo” da interpretação que fez da lei, e ao escolher caminho da mera formalidade, nunca tendo aqui proferido qualquer decisão de mérito que justificasse a justeza da sua decisão e a boa administração da justiça, desconsiderando até um pedido muito importante para um qualquer cidadão como é o de alimentos provisórios, violou todos os normativos referidos na motivação e conclusões do presente recurso, nomeadamente, o disposto no artigo 931º, nº7, e ainda os arts. 580º e 581º, e 6º, todos do CPC.

Neste termos e nos melhores de direito que V.ªs Ex.ªs mui superiormente sempre podem suprir, deve o presente recurso ser julgado provado e totalmente procedente, com as devidas consequências legais, e ser admitido o pedido de alimentos provisórios da recorrente, como ato de inteira e sã justiça.
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Não houve resposta às alegações da recorrente.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo, o que se manteve.
*
Após a remessa do recurso a este Tribunal da Relação, em 14.6.2022, realizou-se a audiência prévia, na qual as partes acordaram no divórcio por mútuo consentimento, declarando que prescindiam reciprocamente de prestação de alimentos e que a casa de morada da família ficava atribuída ao cônjuge mulher e relacionaram os bens comuns.
Por sentença proferida nessa data foi declarado dissolvido o casamento celebrado entre as partes em 19 de Março de 1994 e homologados os acordos celebrados, tendo ainda as partes posto termo à acção pendente respeitanne aos alimentos definitivos peticionados pela A, nada dizendo quanto aos alimentos provisórios.
Recebida neste Tribunal, certidão da referida audiência prévia, notificou-se a R. para dizer se mantinha interesse no presente recurso, ao que a mesma respondeu afirmativamente, pelo que, sendo os pressupostos legais dos alimentos provisórios aqui em análise distintos dos alimentos definitivos de que as partes prescindiram, impõe-se o conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Delimitação do objecto do recurso.

Face ao disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente.
Assim, tendo em conta as conclusões da recorrente, a questão a decidir consiste em saber se se verificam ou não os requisitos legais do caso julgado e, em caso afirmativo, as suas consequências na situação em apreço.

III- Fundamentação

A- Os Factos
As incidências fáctico-processuais relevantes são as constantes do antecedente relatório.

B- O Direito
Antes de apreciarmos propriamente a questão do caso julgado, importa fazer um enquadramento do incidente de atribuição de alimentos provisórios aqui em apreço.
Como vimos, a R. peticionou alimentos provisórios, no âmbito do processo de divórcio, ao abrigo do nº7 do art. 931º do C.P.Civil que preceitua « Em qualquer altura do processo, o juiz por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias».
Nas palavras de Abrantes Geraldes e Outros, in Código de Processo Civil Anotado, Reimpressão 2020, Vol.II, p. 375 e 376 «Prevêem-se neste normativo providências especiais que assumem natureza híbrida, comungando das características próprias, quer do procedimento cautelar, quer dos incidentes da instância. A conexão com as regras dos incidentes decorre da agilidade e do carácter sumário que o preceito incute, designadamente a parte final, devendo o juiz cercear diligências que não se coadunem com essa natureza sumária. E comungando das características próprias do procedimento cautelar de alimentos provisórios, pode acontecer uma situação de litispendência entre a decisão provisória e o procedimento tipificado no artigo 384º do C.P.Civil.»
Com efeito, os alimentos provisórios tanto podem ser pedidos ao abrigo do procedimento cautelar previsto no art. 384º do CPCivil, como pelo procedimento especial previsto no art. 931º, nº 7, do mesmo Código que, em termos processuais, assume a natureza de incidente da instância, visando a resolução provisória de relações jurídicas conexas com a questão principal do processo, o divórcio, aplicando-se-lhe as regras gerais dos incidentes da instância previstas nos artigos 292º a 295º do CPCivil.
O nº7 do art. 931º do C.P.Civil, consagra assim um providência cautelar, de carácter especialíssimo, como preliminar ou incidente enxertado na própria ação de divórcio, que, além do mais, permite ao cônjuge carenciado requerer a fixação de um regime provisório de alimentos que se mantém até ser definitivamente julgada a ação de divórcio, sendo certo que transitada em julgado essa decisão e seja qual for o seu desfecho - procedência ou improcedência – “morre” a dita providência cautelar, esgotando-se, consequentemente, os alimentos provisoriamente fixados ao cônjuge carecido. Diferentemente, a providência cautelar de alimentos provisórios, prevista no art. 384º do CPCivil, sendo um procedimento cautelar típico tem sempre carácter instrumental em relação a um pedido de alimentos definitivos que pode ser formulado como pedido acessório na acção de divórcio ou numa acção declarativa autónoma - cfr. neste particular Ac. TRG de 13-07-2021, Proc.594/21.7T8VRL.G1 (Relatora Maria João Matos) e Ac. TRE de 12-10-2017; Proc.2521/16.4T8PTM.E1 (Relator Manuel Bargado), ambos disponíveis in www. dgsi.pt. E ainda Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf onde se lê: «Caso os alimentos provisórios tenham sido pedidos ao abrigo do nº7 do art. 931º do CPC, estes apenas são devidos na pendência do processo de divórcio e caducam se no prazo de 30 dias após a sentença não for instaurada a acção de alimentos definitivos.»
Assim delineada a natureza do procedimento em apreço, passemos à análise da questão do recurso.
Nas suas alegações, a recorrente começa por sustentar que não há caso julgado porquanto a primeira decisão proferida na tentativa de conciliação foi uma decisão formal, não de mérito, baseando-se apenas na falta de prova documental, não tendo o Tribunal a quo efectuado as diligências que a lei lhe permitia com vista a proferir uma decisão de mérito, violando o dever de gestão processual previsto no art. 6º do CPCivil, bem como o princípio da prevalência da verdade material que enforma o nosso sistema processual civil desde a revisão de 1996 operada pelo Dec-Lei nº 329- A/95 de 12.2
Desde já antecipamos que entendemos não assistir razão à recorrente em tal argumentação, pois, se é certo que o juiz deve conduzir o processo em ordem à justa composição do litígio através de uma decisão de mérito em prazo razoável, o nosso sistema processual continua a assentar no princípio do dispositivo, genericamente consagrado no art. 5º do CPCivil, competindo às partes, em princípio, alegar e provar os factos essenciais em que assentam a sua pretensão ou as exceções invocadas. E, no caso em apreço, aplicando-se, como vimos, os arts 292ºe 293º do CP relativos aos incidentes da instância, é indiscutível que sobre a R. impendia o ónus de alegar os factos em que assentava a sua pretensão e indicar as provas respectivas.
Como se refere no Ac. TRP de 16.01.2014, Proc.228/13.3TMPRT-B.P1 (relator Amaral Ferreira)in www.dgsi.pt, num caso em que se aplicava o anterior art. 1407º, nº7 do CPC, cuja redacção é era idêntica ao actual 931º, nº7, a propósito deste procedimento «Em termos processuais, o regime provisório previsto no artº 1407º, nº 7, constitui um incidente da instância (artºs 302º a 304º), com submissão a critérios de conveniência, como resulta da própria norma, da mesma forma que, nos termos do artº 1410º, o estão os processos de jurisdição voluntária (acórdãos da RL, de 9/6/1994 e de 29/10/1996, publicados, respectivamente, na CJ, Tomo III/1994, pág. 109, e Tomo IV/1996, pág. 144).
Sendo o incidente deduzido pelas partes, sobre as mesmas recai o ónus de alegar os respectivos factos essenciais e apresentar os respectivos meios de prova (artº 264º, nº 1), sendo certo que, não obstante o critério de equidade que preside ao seu julgamento, não estão as partes dispensadas do respectivo ónus da prova. Para além das partes, também o juiz pode tomar a iniciativa da fixação do regime provisório referido, se para tanto os elementos disponíveis no processo de divórcio e separação litigiosos o justificarem. Em qualquer dos casos, e como decorre expressamente do nº 7 do artº 1407º, o juiz pode também ordenar a realização das diligências que repute necessárias, à semelhança do dever de gestão processual e do princípio do inquisitório, fixados no artº 265º.
Os poderes instrutórios atribuídos, neste caso, ao juiz não se destinam a dispensar o ónus da prova das partes, que se mantém, mas a possibilitar uma decisão mais equitativa, quanto às pretensões formuladas, dada a natureza dos interesses em causa. Por isso, ao requerer-se um regime provisório de alimentos, a parte tem sobre si o ónus de provar que lhe assiste o respectivo direito (artº 342º, nº 1, do Código Civil). Para o efeito, tem de carrear para o processo, no momento próprio, os respectivos meios probatórios e realizar a respectiva prova, sob pena de comprometimento da pretensão formulada. O poder instrutório do juiz pode permitir completar a prova oferecida pelas partes, mas, de forma alguma, a pode substituir.
É que, embora nos processos de jurisdição voluntária os critérios de legalidade estrita não se imponham totalmente ao Tribunal quando lhe é solicitada a adopção de uma resolução, isso não significa, nem pode significar, que lhe seja lícito abstrair em absoluto do direito positivo vigente, como se ele não existisse e como se, acima das normas legais estivesse o critério subjectivo do julgador ou os interesses individuais das partes.
E a conveniência a que se refere o artº 1407º, nº 7, inserido no capítulo que trata do divórcio e separação litigiosos, e nos termos do qual o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, poderá fixar um regime provisório quanto a alimentos, respeita apenas ao circunstancialismo, relativo às partes, que estiver indiciariamente provado ou já provado. Se tal circunstancialismo impuser a fixação de um regime provisório quanto a alimentos, pode esse regime ser fixado em qualquer altura do processo. E deverá mesmo ser fixado, se as diligências que vierem a ser realizadas, por ordem do juiz, como o permite a parte final daquele nº 7, confirmarem a existência desse circunstancialismo. Se assim não fosse, essas diligências seriam actos inúteis, proibidos por lei (artº 137º do C.P.C.). Assim, se de tal circunstancialismo resultar que alguma das partes necessita de alimentos e que a outra está em condições de lhos prestar, não poderão esses alimentos deixar de ser fixados provisoriamente.»
No mesmo sentido, A. Abrantes Geraldes e Outros, in Código de Processo Civil Anotado, Reimpressão 2020, Vol.II p. 377 escrevem: «Os poderes instrutórios atribuídos n aparte final do nº7 do art. 931º não se destinam a dispensar o ónus da prova das partes, que se mantém, mas a possibilitar uma decisão mais equitativa quanto às pretensões formuladas, dada a natureza dos interesses em causa. Tais poderes instrutórios atribuídos ao juiz permitem completar a prova oferecida pelas partes, mas não substituí-la.
Destarte, nenhuma censura merece, nomeadamente por violação do art. 6º do CPC, a decisão de indeferimento do incidente proferida na tentativa de conciliação, na qual, além de se referir que o requerimento de apoio judiciário não era elemento bastante para se concluir que a R. carecia de alimentos, se acrescentou que inexistiam nos autos quaisquer outros elementos documentais que apontassem nesse sentido.
Ora, não tendo tal decisão sido objecto de recurso transitou em julgado.
Como é consabido, a decisão judicial transitada em julgado passa a ter «força obrigatória» dentro do próprio processo, como estabelece o art. 620º, nº1 do C.P.Civil, e também fora do próprio processo quando julgue de mérito, como estatui o art. 619º, nº1 do mesmo diploma legal. A referida força obrigatória desdobra-se assim numa dupla eficácia, que corresponde aos efeitos negativo e positivo do caso julgado.
Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Vol II, 2018, Almedina, p.185 e 186 escreve “O efeito negativo do caso julgado consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos arts. 577º al. I) segunda parte, 580º e 581º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior…. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veriate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objecto processual, mediante a exclusão do poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, correspondendo-lhe a excepção de caso julgado; o efeito positivo do caso julgado admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.”
Porém, há excepções à regra da imutabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado, designadamente as previstas nº 2 do art. 619º e no nº1 do art.988º do CPCivil.
O art.988º /1 do CPC preceitua: “Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso».
Trata-se duma espécie de caso julgado, sujeito a uma cláusula “rebus sic stantibus”, ou seja, um caso julgado com efeitos temporalmente limitados. Mas desta especificidade da alterabilidade das resoluções nos processos de jurisdição voluntária, não decorre, porém, um menor valor, uma menor força ou menor eficácia da decisão. Na verdade, enquanto não for alterada nos termos e pela forma processualmente adequada, pelo Tribunal competente, a decisão impõe-se tanto às partes, como a terceiros afectados pela mesma e até ao próprio Tribunal – caso julgado material e formal – na medida em que proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 613º n.º 1 do CPC) só podendo ser alterada nos termos prescritos na lei. Enquanto isso não suceder a decisão tem a plena força do caso julgado material.
Como vimos, o procedimento previsto no nº7 do art.931º do CPC aqui em apreço, tem uma natureza semelhante aos processos de jurisdição voluntária, pelo que, em nosso entender, verificando-se uma alteração superveniente das circunstâncias é de admitir a alteração da decisão anterior.
Neste sentido, reportando-se a uma ação de alimentos vidé Ac. STJ de 27-05-2010, Proc.970/03.7TMLSB-D.S1 (Relator Moreira Alves), cujo sumário está disponível in.www.dgsi.pt. E também Pedro Dias Ferreira, «A Pensão Alimentar Na Sequência de Divórcio, Separação e Dissolução da União de Facto, Sua Alteração E Cessação», III Jornadas de Direito da Família e das Crianças, e-book, in https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/Pedro-Dias-Ferreira.pdf.
A recorrente, nas suas alegações sustenta que no requerimento de 17-11-2021, alegou circunstancias supervenientes, designadamente, o ter-se esgotado o depósito bancário, no valor de € 3.300,97, que o casal possuía na Caixa ... e que lhe permitiu prover ao seu sustento desde que o A. abandonou o lar conjugal em fevereiro de 2021.
Atentando no extenso requerimento apresentado pela recorrente em 17-11-2021, quase toda a factualidade se apresenta como nova, pois o requerimento feito na tentativa de conciliação foi formulado de forma conclusiva, sendo praticamente omisso quanto a factos.
Porém, face ao que ficou dito, o que importa verificar é se foram alegadas circunstâncias supervenientes (posteriores à decisão de 13.7.2021) que legitimem a formulação de novo pedido.

Lendo o referido articulado, nos artigos 55º a 61º é alegado o seguinte:
55º Como se disse já supra, a D. E. E., com o abandono do seu marido do lar conjugal, este deixou-a numa situação muito difícil desde Fevereiro deste ano de 2021.
56º A sua salvação, para que não passasse fome, senão as suas dificuldades teriam sido muito maiores, foi um dinheiro que tinham na conta do casal da Caixa ..., no valor de € 3.200,97, único a que a aqui requerente teve acesso,
57º Este dinheiro, desde o abandono da aqui requerente pelo autor, foi por ela gasto para que a requerente se pudesse sustentar, alimentar, vestir e calçar, sobreviver, sem ter ainda que mendigar,
58º Mas, manifestamente insuficiente, para colmatar as suas necessidades mais básicas, que incluem ainda o pagamento da água e da luz.
59º Com este dinheiro, a aqui requerente, teve ainda de pagar contas do marido R. J. que este deixou, desde que ele abandonou o lar em Fevereiro até Julho, de gastos com o seu telemóvel na ordem e em média dos € 70,00 a € 90,00 mensais, que estavam incluídos no pacote da internet e canais de televisão que tinham em casa, e teve de pagar ainda a água e a luz.
60º Foi como se disse já pela requerente totalmente consumido nas suas necessidades diárias mais básicas, gasto pela requerente para a sua própria sobrevivência, sem os quais a sua alimentação diária não seria possível, pelo que, e dado que ainda não foi decretado o divórcio, deve ser reconhecido e declarado pelo tribunal, como dinheiro que integrou a obrigação de alimentos na vigência da sociedade conjugal, nos termos dos arts. 2015º e 1675º do CC, que melhor se denominaria dever de manutenção, e que foi absorvido pelos encargos da vida familiar, nomeadamente a alimentação do conjugue que não aufere rendimentos, e que reveste natureza meramente provisória.
61º Sendo que nesta altura, a aqui requerente já precisou e precisa da ajuda de familiares e amigos, para poder sobreviver, e já teve necessidade de pedir dinheiro emprestado e por isso encontra-se atualmente numa situação muito difícil e já endividada, pois o valor acima referido foi manifestamente insuficiente para todas as necessidades elementares da aqui requerente.»
Ora, este quadro factual apesar de se não se reportar inteiramente ao período posteriormente a 13.7.2021 porque os factos tiveram início anteriormente, evidencia precisamente a situação de falta de recursos da Ré à data do pedido, mercê do esgotamento da quantia de € 3.200,97 da conta bancária do casal que a mesma foi usando para o seu sustento.
Assim, salvo o devido respeito, não podemos concordar com a afirmação da decisão recorrida de que no requerimento de 17.11.2021 a Ré não invoca quaisquer circunstâncias supervenientes à data da prolação da decisão de 13 de Julho de 2021.
Destarte, não obstante o trânsito em julgado da decisão proferida em 13 de Julho de 2021, podendo a mesma ser alterada ocorrendo uma modificação superveniente das circunstâncias, dado ter uma natureza análoga aos processos de jurisdição voluntária, entendemos que os factos alegados permitem configurar essa alteração de circunstâncias e assim sendo o pedido alimentos provisórios apresentado em 17.11.2021 devia ter sido recebido e tramitado com vista à fixação de uma pensão de alimentos única e exclusivamente para o período de pendência da acção de divórcio.
E apesar dos cônjuges terem vindo a prescindir de alimentos definitivos, tratando-se de pedidos distintos, face à posição manifestada pela Ré, impõe-se a procedência do recurso e, consequentemente, a revogação da decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que dando seguimento ao pedido apresentado, proceda à respectiva instrução, decidindo a final se o requerido deve ou não ser condenado no pagamento de alimentos provisórios à requerente desde 17.11.2021 até à data do trânsito em julgado da decisão do processo de divórcio.
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IV- Decisão

Pelo exposto, os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogando a decisão recorrida determina-se o prosseguimento do procedimento de fixação de alimentos provisórios apresentado pela Ré em 17.11.2021, ao abrigo do nº7 do art. 931º do C.P.Civil, nos termos legalmente previstos.
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As custas do recurso ficam a cargo da recorrente que tirou proveito do mesmo, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário (cfr. art. 527º, nº1 e2 do CPC)
Notifique
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Guimarães, 6 de Outubro de 2022

Os Juízes Desembargadores
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto: Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte