Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
318/13.2DBRG.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: ABUSO CONFIANÇA FISCAL
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
REVOGAÇÃO
AUDIÇÃO DO ARGUIDO
ARTº 61º
Nº 1
AL B)
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - É de revogar a suspensão provisória do processo aplicada por crime de abuso de confiança fiscal, quando o arguido cometa crime idêntico no período da suspensão.

II - Tal revogação opera mesmo que o arguido, assistido por defensor, não tenha sido expressamente advertido dessa consequência.

III - Nos termos do artº 61º, nº 1, al. b), do CPP, o arguido tem de ser ouvido acerca da pretensão, para se poder pronunciar sobre a mesma."
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. No processo comum com o nº 318/13.2IDBRG, a correr termos no Tribunal Judicial da comarca de Braga – Juízo de Instrução Criminal de Guimarães – Juiz 2, foi proferido despacho de pronúncia, datado de 10/04/2018, do seguinte teor (transcrição):

- Decisão.

Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido:

- Determinar o arquivamento dos autos em relação à arguida Maria, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 3, do Código de Processo Penal;

- Pronunciar para julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular, os arguidos:

- «X CALÇADOS UNIPESSOAL, LDA.», com sede na Rua …, Guimarães;
- V. F., casado, gerente, natural de …, Guimarães, onde nasceu a …, filho de … e de … e residente na Rua …, Guimarães;

Porquanto indiciam suficientemente os autos que:

1.º
A sociedade arguida, contribuinte n.º …, com sede na Rua …, Guimarães, está registada em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) na actividade de “Fabricação de Calçado” (CAE: …) e está enquadrada, para efeitos de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade trimestral.
2.º
Em data indeterminada, mas seguramente no quarto trimestre de 2012 o arguido formulou o firme propósito de não pagar os impostos devidos ao Estado, apoderando-se das quantias que eram liquidadas a título de I.V.A., nas operações comerciais que iam efectuando.
3.º
No desenvolvimento desse propósito, muito embora tenha vindo a exercer, de modo habitual, continuado e sem interrupções, a mencionada actividade, no 4.º trimestre de 2012, o arguido apoderou-se das quantias entregues pelos seus clientes a título de I.V.A. utilizando-as em seu proveito.
4.º
Efectivamente, os arguidos não procederam à entrega aos cofres do Estado, a título de I.V.A. por ela liquidado e recebido:
Ano de 2012
Quarto Trimestre - €13.242,34.
5.º
Na verdade, apesar de estarem obrigados a enviar à administração tributária, até ao dia 15 do 2.º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, as declarações periódicas acompanhadas dos correspondentes meios de pagamento, respeitantes ao imposto liquidado nas transacções que efectuava, os arguidos, perfeitamente, cientes dessa obrigação, enviaram naquele período a declaração desacompanhada do montante do imposto exigível, ascendendo, presentemente, ao valor de €13.242,34 (treze mil, duzentos e quarenta e dois euros e trinta e quatro cêntimos), passando a dele dispor como se seus fossem.
6.º
De igual forma não o fizeram nos 90 (noventa dias) dias após o prazo mencionado em 5.º.
7.º
E, apesar de, regularmente, notificados nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 4, do artigo 105.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias, com a redacção introduzida pelo artigo 95.º, da Lei n.º 53-A/2006, de 20/12, para efectuar o pagamento da quantia de IVA, supra referida, com os acréscimos legais e coimas aplicáveis pela falta de entrega daquelas prestações tributárias, não o fizeram, após o decurso do prazo de 30 dias, nem posteriormente.
8.º
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente – sempre em representação da sociedade arguida - com o propósito de obter vantagem patrimonial a que sabia não ter direito, apossando-se do montante do imposto supra mencionado, deduzido nos termos da lei, que estava legalmente obrigado a entregar ao Estado, não desconhecendo que a sua posição era tão só a de assegurar, enquanto mero depositário, a sua detenção para ulterior entrega à Administração Fiscal, bem sabendo que tal conduta é proibida por lei.

Incorreram assim:

- O arguido V. F., na forma consumada, na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo disposto no artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributarias;
- A sociedade «X Calçados Unipessoal, Lda.» na prática do mesmo crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo disposto nos artigos 7.º e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributarias.
*
- Prova.

A indicada a fls. 143/144.
*
- Medidas de coacção.

Como é sabido, para aplicação de uma qualquer medida de coacção, com excepção do simples Termo de Identidade e Residência, necessário se torna, no momento da sua aplicação, a verificação em concreto de um dos requisitos gerais previstos no artigo 204.º, do Código de Processo Penal.

Da análise dos autos, e daquilo que é do conhecimento do Tribunal, não há, pelo menos neste momento, qualquer circunstancialismo ou factualismo que permita ter por verificado um (ou mais) daqueles requisitos.

Por conseguinte, o arguido pronunciado deverá aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência (cfr. artigos 191.º, 192.º, 193.º, 196.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal), já prestado nos autos a fls. 87.
*
- Responsabilidade tributária.

Sem custas, por não serem devidas.
*
Registe e notifique.
*
Abra vista ao Ministério Público para registo na base de dados das suspensões provisórias do processo.
*
Oportunamente remeta os autos à distribuição.”
*
2 – Não se conformando com a decisão, os arguidos interpuseram recurso oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):

I - A entidade condenada no âmbito do processo n.º 49/16.1IDBRG tem a firma de X II – Indústria de Calçado, Lda., sociedade comercial com a natureza jurídica de sociedade por quotas, identificada com o N.I.P.C. …, enquanto a Arguida, ora Recorrente, X Calçados Unipessoal, Lda., nos presentes autos, é uma sociedade comercial com a natureza jurídica de sociedade unipessoal por quotas, identificada com o N.I.P.C. ....
II - Atento o conteúdo da decisão de suspensão provisória do processo, a informação da Autoridade Tributária e Aduaneira e a ausência de outras condenações por crimes da mesma natureza, impõe-se o arquivamento dos presentes autos, também, quanto à Arguida, ora Recorrente, X Calçados Unipessoal, Lda.
Por sua vez,

III - O despacho determinativo da suspensão provisória do processo não consignou qualquer advertência de que a prática de crimes da mesma natureza durante o período da suspensão importavam o prosseguimento do processo e que as prestações feitas não poderiam ser repetidas.
IV – Bem pelo contrário, o que ficou, expressamente, consignado foi que se a injunção fosse cumprida o processo seria arquivado, caso contrário, isto é, se o pagamento do imposto e demais acréscimos legais em divida não fosse concretizado, o processo seguiria, oportunamente, para julgamento pelos factos e qualificação jurídica da acusação pública e com a prova ali indicada.

De qualquer forma,

V - O efeito despoletado pela decisão recorrida dependia, obrigatoriamente, de uma expressa advertência nesse sentido, ou seja, os Arguidos deviam ter sido, explicitamente, precavidos que o processo poderia prosseguir e que as prestações realizadas não podia ser repetidas, também, no caso de cometerem, durante o prazo de suspensão do processo, um crime da mesma natureza e pelo qual viessem a ser condenados.
VI - Em face da ausência dessa expressa advertência, aliado ao conteúdo do despacho determinativo da suspensão provisória do processo e a informação da Autoridade Tributária e Aduaneira, impõe-se o arquivamento dos presentes autos, também, quanto ao Arguida, ora Recorrente, V. F..

Por outra via,

VII - O Tribunal de Instrução a quo, ao revogar a suspensão provisória do processo determinada nas condições supra evidenciadas pôs em causa a segurança, confiança e a expectativa dos direitos e garantias processuais do Arguido, ora Recorrente.
VIII - Pois, o Recorrente, V. F., em face da decisão, expressamente consignada, determinativa suspensão provisória do processo, sempre acreditou, criando legítimas expectativas nesse contexto, que o integral pagamento do imposto e dos demais acréscimos legais em dívida conduziria ao arquivamento do presente processo, e que se assim não fosse, o processo seguiria para julgamento pelos factos e qualificação jurídica da acusação pública, e com a prova ali indicada.
IX - A decisão citada, nos moldes evidenciados, gerou no Recorrente, V. F., a confiança necessária para que tomasse disposições e organizado plano de vida que, agora, fruto da decisão recorrida saem, totalmente, frustrados.

Sem prescindir disso,

X - A consequência prevista no artigo 282.º, n.º 4, alínea b), do C.P.P., não é automática ou ope legis, sobretudo, quanto não consta da proposta de suspensão provisória do processo, mormente, apresentada por iniciativa judicial; não consta da aceitação ou concordância dos restantes sujeitos processuais, in casu, os Arguidos e o Ministério Público; e, finalmente, não consta da decisão que sobre a mesma incide nem de qualquer uma das expressas advertências e consequências gizadas na determinação judicial.

Não obstante isso,

XI - Nestes autos, o Mmo Juiz a quo assumiu que a simples constatação da prática pelo Arguido, V. F., durante o prazo de suspensão do processo, de um crime da mesma natureza impunha, automaticamente, sem necessidade de outras averiguações e, inclusive, sem a sua audição, a revogação da suspensão determinada.
XII - Pelo contrário, entendemos que é necessário, previamente, realizar um juízo de culpa ou vontade de não cumprir a injunção, obrigação ou regra de conduta por parte do arguido, e a consciência das consequências que incorria, nomeadamente, de prosseguimento do processo e não repetição das prestações realizadas, em caso de cometimento de outro crime da mesma natureza durante o período de suspensão.
XIII - Sendo a audição do arguido (e/ou do seu defensor), in casu, exigível no exercício de uma garantia de defesa do arguido e do essencial contraditório, na sua manifestação do direito de audição sobre decisão que o afecte do ponto de vista pessoal.

Em conclusão,

XIV - O despacho recorrido viola e faz uma errada interpretação das disposições legais constantes dos artigos 6.º, n.º 1, 282.º, n.º 3 e 4, alínea b), 495.º, n.º 2, todos do C.P.P., e dos artigos 55.º e 56.º, do C.P., o artigo 6..º da Convenção Europeia dos Direito do Homem, afigurando-se-nos, ainda, inconstitucional a interpretação do artigo 282.º, n.º 4, alínea b), do C.P.P., gizada pelo despacho recorrido, por violar o princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança, que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático ínsito no artigo 2.º da C.R.P., e as garantias de defesa do Arguido inscrito no artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P.

Termos em que, invocando-se o Douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência, revogar-se a decisão recorrida, determinando, concludentemente, o arquivamento dos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 282.º, n.º 3, do C.P.P., também quanto aos Recorrentes.
Porém, V. Ex.as decidirão como for de JUSTIÇA.”

3 – A Exma. Procuradora respondeu ao recurso, defendendo a total improcedência do mesmo e a manutenção do despacho recorrido.
4 – Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que:

- o recurso do arguido V. F. deve improceder;
- houve erro de julgamento quanto à “X – Calçados Unipessoal, Lda”, por ser entidade distinta da que foi condenada no processo que impôs a revogação da suspensão provisória do processo.
5 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
6 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, do Código de Processo Penal.
* * *
II – Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram da respetiva motivação - artº 412º, n1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A -, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas - artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48).
2 - As questões invocadas pelos recorrentes são, em síntese, as seguintes:
- Erro de julgamento (por a pessoa colectiva beneficiária da suspensão provisória do processo ser diferente da entidade condenada nos autos que determinaram a revogação daquela medida);
- Falta de advertência aos arguidos da revogação da suspensão em caso de cometimento de crime da mesma natureza;
- Funcionamento “ope legis” da causa de revogação prevista no artigo 282º, nº 4, al. b), do CPP.

3Fundamentação constante do despacho recorrido (transcrição):

“Conforme referido pelo Ministério Público na douta promoção que antecede, os arguidos «X Calçados Unipessoal, Lda.», V. F. e Maria foram acusados da prática de crime de abuso de abuso confiança, previsto e punido pelo artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias.
Já em fase instrutória, por decisão datada de 12 de Maio de 2014 e nessa data notificada aos mesmos, determinou-se a suspensão provisória do processo, por 24 meses, com a condição de os arguidos pagarem o imposto em dívida e legais acréscimos, em prestações mensais e sucessivas de acordo com guias de liquidação a emitir pela Administração Tributária.
Entretanto, foi junta certidão de sentença proferida no processo comum singular n.º 49/16.1IDBRG que condenou os arguidos «X Calçados Unipessoal, Lda.» e V. F. pela prática de um outro crime de abuso de confiança fiscal, praticado em 15/02/2016, altura em que decorria ainda o período de suspensão.
A arguida Maria foi absolvida e não se lhe conhecem outras condenações por crimes da mesma natureza.
Tal decisão transitou em julgado relativamente aos três arguidos, conforme se extrai de fls. 467 e 472.
Tal como também é referido pelo Ministério Público na aludida promoção, verifica-se em relação aos arguidos «X Calçados Unipessoal, Lda.» e V. F. a circunstância prevista no artigo 282.º, n.º 4, alínea b), do Código de Processo Penal, determinante da revogação da suspensão.
Quanto à arguida Maria, impõe-se o arquivamento dos autos, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.”
*
III - Apreciação do recurso

O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo JIC que revogou a suspensão provisória do processo anteriormente fixada e pronunciou os arguidos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos artigos 7º e 105º, nº 1, do RGIT.

Constituiu fundamento para a revogação daquela medida de suspensão provisória do processo a condenação dos arguidos pela prática de um outro crime de abuso de confiança fiscal, praticado durante o período da referida suspensão.
*
Apreciando as razões concretas da discordância apresentada pelos recorrentes e começando pela primeira apontada, ou seja a diferente identidade das pessoas colectivas (a ora pronunciada e a que foi condenada no processo que deu causa à revogação).

Os recorrentes argumentam que, nos presentes autos, a sociedade arguida é a “X Calçados Unipessoal, Lda.”, com o NIPC ..., e que a sociedade condenada no processo comum nº 49/16.1IDBRG, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 3, que deu causa ao despacho recorrido, foi a “X II – Indústria de Calçado, Lda.”, com o NIPC ….

Ora, impõe-se, desde já, concluir que assiste inteira razão aos recorrentes.

Na verdade, compulsados os autos designadamente a certidão da sentença condenatória da “X II – Indústria de Calçado, Lda.” (fls. 449 a 460), mas também os inúmeros documentos – com relevo para a certidão do registo comercial de fls. 30 a 32 - referentes à pessoa colectiva em causa nos presentes autos (“X Calçados Unipessoal, Lda.”), logo se verifica que, apesar de alguma similitude na designação e de terem sede no mesmo local, são sociedades distintas, com números de identificação de pessoas colectivas (NIPC) diferentes e que se não podem confundir.

Assim, mal andou o Tribunal “a quo” ao revogar a suspensão provisória do processo e pronunciar a sociedade arguida nos presentes autos, já que se não verifica, relativamente a ela, o invocado fundamento.

Neste segmento, é manifesta a procedência do recurso.
*
Os recorrentes invocam mais dois motivos de discordância:

- a não advertência expressa de que a prática de crime da mesma natureza no decurso do período da suspensão implicava a revogação da suspensão e o prosseguimento do processo, o que “pôs em causa a segurança, a confiança e a expectativa dos direitos e garantias do arguido”;
- a revogação da suspensão - mesmo em caso de condenação por crime da mesma natureza cometido no decurso da suspensão - não opera de modo automático, impondo-se formular um juízo de culpa sobre as razões do não cumprimento, ouvindo-se o arguido sobre decisão que o afeta, no exercício das suas garantias de defesa e do contraditório.

Apreciando a última questão suscitada.

Preceitua o artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal: “O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas: a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.”.

Relativamente às causas de revogação previstas na alínea a) da citada norma, não se suscitam dúvidas acerca da necessidade de ouvir o arguido sobre as razões determinantes do incumprimento das injunções e regras de conduta. Na verdade, só assim se possibilita a formulação (ou não) de um fundamentado e necessário juízo de culpa por parte do mesmo no não cumprimento das regras fixadas – cfr. anotação ao art. 282º do CPP in Código de Processo Penal Comentado, Maia Costa, António Henriques Gaspar e outros.

Todavia, estas razões não podem ser transpostas para a situação prevista na alínea b).

De facto, essas razões podem e devem – e, certamente, o foram no caso concreto – ser expostas na audiência de julgamento, onde o arguido usufrui de todas as garantias de defesa legalmente estatuídas.

Porém, decorrida essa fase e proferida sentença transitada em julgado condenatória do arguido, que mais explicações poderá ele fornecer para “justificar” a sua conduta? Salvo continuar a “apregoar” a sua inocência – como se vê, frequentemente, nos meios de comunicação social – nenhuma outra se vislumbra.

Contudo, não se podem olvidar as garantias de defesa do arguido, assim como o princípio do contraditório, na vertente do direito de audição do mesmo sobre qualquer decisão que pessoalmente o afete.

A verdade é que, compulsados os autos, se verifica que nem o arguido nem o seu defensor foram notificados da junção aos autos da mencionada certidão condenatória, nem sequer da promoção do Ministério Público no sentido da revogação da suspensão provisória do processo por efeito dessa condenação, mas somente do despacho do JIC (fls. 474 a 477) que revogou a suspensão e pronunciou os arguidos (ora posto em causa).

Estabelece o artigo 61º, nº 1, do CPP, que “O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de: al. a) … b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte.”.

Ao não se dar conhecimento ao arguido, pelo menos, da pretensão do Ministério Público, bem como ao não lhe ser fixado prazo para se pronunciar sobre a mesma, preteriram-se formalidades legais essenciais, violando as garantias de defesa do arguido em processo penal e o princípio do contraditório.

Em decorrência do exposto e na procedência do recurso, impõe-se a revogação do despacho recorrido (de fls. 474 a 477), que revogou a suspensão provisória do processo e pronunciou os arguidos, devendo o Tribunal a quo notificar os arguidos para se pronunciarem, em prazo a fixar, sobre a pretensão do Ministério Público, bem como apreciar novamente as razões da revogação da suspensão provisória, mormente em relação à sociedade arguida.

Fica prejudicada a apreciação da outra questão suscitada.
*
IV - DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelos arguidos V. F. e “X Calçados, Unipessoal, Lda.” e, em consequência:

- revogar o despacho exarado a fls. 474 a 477 dos autos;
- determinar a baixa dos autos à primeira instância a fim de se proceder à notificação dos arguidos para se pronunciarem, em prazo a fixar, sobre a pretensão do Ministério Público, bem como proceder a nova apreciação da suspensão provisória do processo, mormente em relação à sociedade arguida.
*
Sem custas.
*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
*
Guimarães, 28 de Janeiro de 2019

(Mário Silva)
(Maria Teresa Coimbra)