Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
892/20.7T8BGC-A.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
SEGREDO DA ESCRITURAÇÃO COMERCIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
No quadro de uma relação laboral em que o trabalhador é um dos sócios e diretor financeiro, a exibição de parte da escrita comercial, tendo em vista demonstrar a utilização abusiva dos fundos da empresa por parte da gerência, reveste interesse na ação de impugnação de despedimento, tendo em conta a defesa do autor, que invoca a utilização do procedimento para o afastar da empresa.
O artigo 435º do CPC remete para legislação comercial no que se refere à exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos. Tal norma não obsta à exibição parcial, quando com interesse para a causa.
Sendo a requerida parte no processo e com responsabilidade na questão, sempre seria possível ao abrigo do artigo 43º do C.Com. a solicitação parcial de elementos, verificado o interesse para a causa e efetuada a devida ponderação dos interesses em jogo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

F. C., veio intentar ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra:

“B. e B., Ldª”
Foi apresentado articulado motivador e o autor contestou reconvindo.

Solicitou, além do mais, a seguinte prova:
“ III – O Autor REQUER ainda que a Ré seja notificada para juntar aos autos:
a) Os documentos comprovativos e que serviram de base às movimentações a crédito e a débito efetuadas nas contas dos balancetes 2781 (700026) e 2781 (700049), entre os anos de 2015 até à presente data (para prova do alegado nos artigos 72º a 80º da presente contestação);
b) Notas de carga, faturas e recibos de todas as transações nos anos de 2019 e de 2020 com o cliente “R. A. Noroeste, SL” (para prova do alegado nos artigos 94º, 141º e 144º da presente contestação);
c) Cópia dos documentos comprovativos das transferências referidas no artigo 159º da presente contestação;
d) Certidão permanente atualizada da sociedade (para prova do alegado no artigo 156º da presente contestação).”
- No despacho saneador foi ordenado:
“ Nos termos do art. 429º do Código de Processo Civil, porque os factos a cuja prova se destinam têm relevância para a decisão da causa, determino a notificação da Ré para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos os documentos a que o A. se reporta nas alíneas a) a c) do ponto III do requerimento de prova formulado na contestação e bem assim da ata a que o A. faz referência no artigo 15º do requerimento com a ref.ª 1701232.”
- A ré, inconformada, apresentou recurso no que se refere aos pontos a) e c), apresentando as seguintes conclusões:
1. A Apelante vem recorrer do despacho saneador na parte em que ordenou a sua notificação para a junção aos autos dos documentos referidos nas alíneas a) e c) do ponto III do requerimento de prova formulado na contestação do Recorrido.
2. Os documentos ora aqui em causa são documentos comprovativos e que serviram de base às movimentações a crédito e a débito efetuadas nas contas dos balancetes 2781 (700026) e 2781 (700049), entre os anos de 2015 até à presente data e das transferências referidas no artigo 159º da contestação.
3. Ora, os documentos supra referenciados e cuja junção foi ordenada são indubitavelmente referentes à escrituração comercial da Recorrente.
4. Neste sentido e por força do disposto no artigo 435.º do CPC, aplicar-se-á o disposto nos artigos 41.º a 44.º do Código Comercial.
5. Conforme decorre dos suprarreferidos preceitos legais, vigora o princípio do segredo da escrituração comercial, pelo que a sua exibição ou exame só são admissíveis nas situações previstas nos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial.
6. O que manifestamente não sucede no caso dos autos, uma vez que não se enquadra em nenhuma das situações permitidas, pelo que não poderia o Tribunal a quo ter ordenado a junção aos autos dos mesmos.
7. Sem prejuízo do supra exposto, é ainda notório que tais documentos nem são, relevantes para a prova dos factos indicados pelo Recorrido nos termos do disposto no artigo 429.º do CPC.
8. Por um lado, não se vislumbra qualquer relação direta e necessária entre os factos e os documentos uma vez que não foram devidamente identificados, tendo apenas sido referidos de uma forma genérica por “comprovativos.”
9. Por outro lado, realça-se ainda que o Recorrido já juntou aos autos documentos para prova dos factos por si alegados e que, como tal, não se encontram carecidos de outros meios de prova, conforme resulta dos artigos 72.º (… “consta dos balancetes analíticos da empresa” …), 76.º (…” Documentos n.ºs 5 a 9 juntos com a RNC e que integram o PD”), 78.º (Tudo conforme consta do Documento n.º 10 junto com a RNC e que também integra o PD”) e 79.º (… “conforme Documento n.º 11 junto com a RNC, integrando o PD.”).
10. Além de que, os documentos da escrituração comercial da Recorrente não têm a capacidade de demonstrar os juízos conclusivos a que se referem os pontos 77.º, 79.º e 80.º da contestação.
11. Isto porque, em nenhum momento se baseiam numa análise contabilística e financeira realizada por perito independente.
12. Na verdade, tais documentos se destinariam à prova de proposições conclusivas e valorativas que não podem elas mesmas serem objeto de prova.
13. Acresce ainda que, os factos vertidos nos pontos 72.º a 80.º e 159.º da contestação a cuja prova se destinam tais documentos, carecem de todo de relevância para a boa decisão da causa.
Vejamos,
14. É notório que os factos supramencionados, nada dizem respeito à relação laboral entre a entidade empregadora, aqui recorrente e o Trabalhador, recorrido, sendo-lhes totalmente alheios.
15. O que demonstra desde logo, a falta de interesse dos mesmos para a boa decisão da causa.
16. Não existe ainda a mínima coincidência temporal de tais factos com as infrações disciplinares imputadas ao Recorrido, o que só vem reforçar a falta de relevância dos mesmos.
17. Por fim, sendo o objeto do litígio dos presentes autos, verificar a licitude e regularidade do despedimento, não interessará para o efeito, avaliar a atuação da gerência nem apurar quaisquer eventuais responsabilidades daquela sob pena de deturpamos a finalidade da ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.
18. A gerência, que não é parte na ação pois não se confunde com a Recorrente, não é aqui visada, mas sim o Recorrido enquanto trabalhador.
19. Pelo que, não cabe ao Tribunal a quo proferir um juízo de valor sobre a atuação da gerência.
20. Face ao supra exposto, não podem subsistir dúvidas de que os factos vertidos nos pontos 72.º a 80.º e 159.º da contestação carecem de relevância para a boa decisão da causa.
21. Pelo que, deverá ser revogado o despacho saneador na parte em que ordenou a notificação da ora recorrente para a junção aos autos dos documentos referidos nas alíneas a) e c) do ponto III do requerimento de prova formulado na contestação do Recorrido e em consequência, indeferir a junção aos autos dos mesmos.
Em contra-alegações sustenta-se o julgado. Refere-se que nas conclusões não consta o fundamento específico da recorribilidade, violando-se o disposto no nº 1 do artigo 81º do CPT.
O Exºmo PGA teve vista.
*
Importa à decisão:
1- Artigos 72 a 80 da contestação do autor:
72º
Por outro lado, mas no mesmo sentido, consta dos balancetes analíticos da empresa que:
- No ano de 2015, o gerente emprestou a si próprio, em dinheiro da empresa, 21.048 €;
- No ano de 2016, o gerente emprestou a si próprio, em dinheiro da empresa, 28.252,67 €;
- No ano de 2017, o gerente emprestou a si próprio, em dinheiro da empresa, 39.157,92 €.
73º
No ano de 2018, o gerente J. P.:
- Entregou à D. M. C. (cabeça de casal da herança), a título de devolução de suprimentos, o valor de 40.000 €;
- Emprestou à D. M. C., em dinheiro da empresa 8.850 €;
- Emprestou a si próprio, em dinheiro da empresa 41.338,40 €.
74º
No ano de 2019, o gerente J. P.:
- Emprestou à D. M. C., em dinheiro da empresa, 22.675,68 €;
- Emprestou a si próprio, em dinheiro da empresa, 63.081,93 €.
75º
Em 31.12.2019, a conta 2781 apresentava os seguintes saldos:
- 700026 Senhor J. P. (DEVEDOR) 192.878,92 €
- 700049 D. M. C. (DEVEDOR) 31.525,68 €
76º
Tudo conforme melhor se alcança da análise das contas 2781 (700026 e 700049) dos balancetes analíticos que se juntaram com a RNC – Documentos n.ºs 5 a 9 juntos com a RNC e que integram o PD.
77º
Durante o ano de 2020 e até a data que foi possível ao Autor visualizar as contas bancárias da empresa, o gerente J. P. fez os seguintes movimentos, sem qualquer justificação:
Banco …:
15/01 levantamento em numerário 200,00€;
07/02 levantamento em numerário 1300,00€;
07/02 levantamento em numerário 1000,00€;
10/02 levantamento em numerário 1200,00€.
78º
Tudo conforme consta do Documento n.º 10 junto com a RNC e que também integra o PD.
79º
Estes movimentos de retirada de dinheiro provocaram a devolução do aceite da empresa ao fornecedor de gasóleo “J. e T.” e ao corte de fornecimento, conforme Documento n.º 11 junto com a RNC, integrando o PD.
80º
Ainda no mesmo período, o gerente J. P. fez também os seguintes movimentos, igualmente sem qualquer justificação:
Banco …:
02/02 transferência para M. C. (Mãe) 3000,00€;
02/02 levantamento multibanco 2x200=400,00€;
03/02 levantamento multibanco 2x200€;
08/02 levantamento multibanco 2x200€;
09/02 levantamento multibanco 2x200€;
10/02 levantamento multibanco 2x200€;
06/03 levantamento multibanco 2x200€;
06/03 levantamento cheque 600,00€;
06/04 levantamento multibanco 200,00€;
01/05 levantamento multibanco 2x200€.
Banco ...: 09/04: transferência para J. P. 1200,00€;
14/04 transferência para J. P. 500,00€;
06/05 transferência para J. P. 2208.99€.
**
155º
Importa ainda atualizar o contexto atual da empresa Ré, bem como da atuação do gerente J. P., na medida em que tal atualização comprova, ilustra e concretiza o que se alega na presente contestação.
156º
Em 4/6/2020, o gerente J. P. fez aprovar pela assembleia geral da Ré, com os votos titulados pela herança indivisa (60% do capital social), entre outras coisas, a nomeação de mais dois gerentes, a saber, a Mãe, D. M. C., e um desconhecido sem qualquer contacto anterior com a empresa, de nome N. J. (a tal assembleia geral diz respeito a ata n.º 56).
157º
Fê-lo perante a iminência de vir a ser destituído de gerente no âmbito do processo já acima identificado.
158º
Após a nomeação dos novos gerentes, continuaram a ser feitos movimentos em benefício pessoal de M. C. e do gerente J. P..
159º
Concretamente, identificam-se as seguintes transferências efetuadas a partir da conta da empresa ... – Conta n.º ……..000.001:
- Em 29/6/2020, no valor de 1.750,00€, para conta da Caixa …;
- Em 9/7/2020, no valor de 3.500,00€, para a conta com o IBAN PT50…………….0014.4, pertencente à gerente D. M. C.;
- Em 15/7/2020, no valor de 1.750,00€, para conta da Caixa ….
3- Com a resposta à nota de culpa o autor juntou entre outros os seguintes documentos:
“Balancete auxiliar após retificação em 31/12/2015 de clientes, fornecedores, terceiros, ano de 2015.
***
Apreciando.

Importa saber se deve ou não manter-se o despacho que determinou a notificação da ré para juntar documentação relativa à escrituração comercial.
Refere o recorrido que nas conclusões não consta o fundamento específico da recorribilidade, violando-se o disposto no nº 1 do artigo 81º do CPT. O recurso é claro, indicando-se a fundamentação e as normas que se entende terem sido violadas. Passemos à apreciação do mesmo.
A recorrente refere que os documentos em causa são “documentos comprovativos” que serviram de base às movimentações a crédito e a débito efetuadas nas contas dos balancetes 2781 (700026) e 2781 (700049), entre os anos de 2015 até à presente data, e das transferências referidas no artigo 159º da contestação. Mais refere que se trata de documentos referentes à escrituração comercial da recorrente, sendo aplicável os artigos 41º a 44º do C.Com. por força do artigo 435.º do CPC. Refere que a sua exibição ou exame só são admissíveis nas situações previstas nos artigos 42.º e 43.º do Código Comercial, o que não é o caso. Por outro os documentos são irrelevantes para prova dos factos indicados, nos termos do artigo 429.º do CPC, e que não se vislumbra qualquer relação direta e necessária entre os factos e os documentos, uma vez que não foram devidamente identificados, tendo apenas sido referidos de uma forma genérica por “comprovativos.” Que tais documentos se destinariam à prova de proposições conclusivas e valorativas que não podem elas mesmas serem objeto de prova, aludindo ao teor dos artigos 77, 79 e 80 do articulado do autor. Refere a terminar, que tal factualidade carece de relevância para a boa decisão da causa, não se referindo à relação laboral, não interessando avaliar a atuação da gerência.
Começando a apreciação por esta última referência, diga-se que, se em tese e numa vulgar relação laboral a afirmação será por regra verdadeira, o caso concreto envolve circunstâncias próprias que tornam relevante a averiguação do invocado pelo autor.
Estamos no quadro de uma relação laboral em que o trabalhador é um dos sócios, e era diretor financeiro, invocando este que o despedimento vem na linha de prossecução de interesses pessoais do irmão, o gerente da firma, que não é sócio, sendo embora um dos herdeiros de 60% do capital, que integra a herança indivisa aberta por óbito do Pai de ambos, na qual é cabeça de casal a Mãe. Refere a utilização abusiva de fundos e meios da empresa pelo gerente, e que o processo disciplinar visa o seu afastamento da firma, referindo o seu caráter abusivo. Invoca o disposto no artigo 351º, 3 e 357º, 4 do CT.
Neste quadro de circunstâncias, a prova dos factos invocados pelo autor revestem interesse para apreciação do uso indevido do procedimento para afastamento deste da empresa, para apreciação da aplicação da sanção de despedimento no quadro de sanções disponíveis, de formas indevida, e tendo em vista aquele objetivo. Tal prova é essencial à defesa do autor.
Vejamos então da possibilidade e dos termos em que a prova poderá ser produzida.

Refere o C. Com:
Artigo 42.º
Exibição judicial da escrituração mercantil (Redação do DL 76-A/2006, de 29/3)
A exibição judicial da escrituração mercantil e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de insolvência.
Art.º 43.º -
Exame da escrituração e documentos (Redação do DL 76-A/2006, de 29/3)
1 - Fora dos casos previstos no artigo anterior, só pode proceder-se a exame da escrituração e dos documentos dos comerciantes, a instâncias da parte ou oficiosamente, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.
2 - O exame da escrituração e dos documentos do comerciante ocorre no domicílio profissional ou sede deste, em sua presença, e é limitado à averiguação e extração dos elementos que tenham relação com a questão.
Importa ainda conjugar a disposição do artigo 435º do CPC, anterior 534º.
Nos termos do artigo 435º do CPC a exibição judicial, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos rege-se pelo disposto na legislação comercial. A norma remete para os normativos do código comercial no que respeita à exibição da escrituração comercial, por inteiro. A redação da norma não parece obstar à exibição parcial, quando com interesse para a causa.
Na apreciação de qualquer pedido de exibição (em sentido lato – exibição, cópia de elementos, peritagem…) parcial, devem conjugar-se os interesses em jogo, designadamente os interesses na confidencialidade dos elementos de escrita comercial, e os interesses relacionados com a descoberta da verdade material, em relação com o direito à prova – artº 20º da CRP.
As normas não encerram comandos cristalizados e com atributos mágicos. As normas visam determinados objetivos, têm a sua razão de ser, a sua “ratio”, devendo ser interpretadas tendo em atenção essas razões que as determinam, no quadro da dinâmica social onde se atuam, e no confronto com outros valores que nessa dinâmica intercorram.
Tratam os artigos do C.Com. da tutela da confidencialidade das informações utilizadas no giro comercial das empresas, constantes da sua escrituração, tendo em atenção não apenas, nem sobretudo, a reserva relativa à vida da sociedade, mas essencialmente a valia que tais informações encerram para a empresa, com rebate económico. Informações cujo conhecimento geral pode prejudicar a empresa, colocando nas mãos de terceiros saberes valiosos da empresa, Know-how, métodos de produção, de distribuição, redes de contatos, fornecedores, compradores etc…
Tal tutela não é absoluta, apenas se aplicando nos termos que resultam das normas. Para efeitos probatórios regem os artigos referenciados do C.Com. e ainda a norma citada do CPC.
O artigo 43º, que cabe ao caso, permite nos termos que aí se prescrevem, o acesso a tais elementos. A exibição por inteiro apenas é possível nos casos previstos no artigo 42º, já a exibição, máxime, a solicitação de cópia de partes dos elementos da escrituração comercial, na medida em que tenham relação com a questão, é possível nos termos do artigo 43º do C. Com., e diga-se, embora sem relevo para o caso, já que a requerida é parte, também parece atualmente possível ao abrigo das normas do CPC.
A este propósito deixa-se este extrato do Ac. RP de 7/2/2012, processo nº 615/10.9TBESP-F.P1:
“O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 2/98, de 22 de Abril de 1997, publicado no DR, I Série-A, n.º 6, de 8/1/1998, págs. 119 a 122, no BMJ n.º 466, págs. 86 a 92 e em www.dgsi.pt, decidiu que “O artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida.”
No entanto, a doutrina deste acórdão tem de ser interpretada à luz da atual redação dos citados art.ºs 519.º e 534.º, conjugada com o disposto na legislação comercial, já que estes sofreram alterações após a sua prolação.

De facto, o DL n.º 329-A/95, de 12/12, fundiu o anterior art.º 519.º, n.º 4, com o anterior art.º 534.º, cuja redação estipulava “O disposto nos artigos anteriores não é aplicável aos livros de escrituração comercial, nem aos documentos relativos a ela”, daí resultando o art.º 534.º com a atual redação acima transcrita. Deste modo, a sua previsão ficou circunscrita à “exibição judicial por inteiro dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos, deixando de referir a exclusão da aplicação dos preceitos dos artigos anteriores e remetendo, pura e simplesmente, para o regime da legislação comercial” (cfr. Lebre de Freitas e outros, obra citada, 2.º vol., pág. 469) [obra citada - Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 2.ª ed.].
Assim sendo, o sigilo comercial passou a abranger apenas a exibição, por inteiro, dos livros de escrituração comercial e dos documentos a ela relativos. Mas não a exibição parcial, nos termos permitidos pelos artºs 42.º e 43.º do Código Comercial, ainda que os livros e documentos respeitem a escrituração comercial de terceiro, que não tenha interesse ou responsabilidade nos autos.
Neste sentido, decidiram alguns acórdãos, designadamente desta Relação, de 17/11/2008, proferido no processo n.º 0855318, publicado em www.dgsi.pt, e de 28/11/2011, cuja cópia foi junta pela recorrente e consta de fls. 93 a 104 destes autos.

E, ao que parece, já havia sido sustentado pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 25/11/97, proferido no processo n.º 97A826, relatado pelo Exmo Sr. Conselheiro Aragão Seia, cujo sumário se mostra disponível em www.dgsi.pt e que, pela sua pertinência aqui se transcreve:

“I - A escrituração comercial não é mais secreta que quaisquer outros assentos ou escritos particulares, pelo contrário, e precisamente porque é imposta por lei para permitir conhecer em cada momento o estado do negócio e fortuna do comerciante, isto é, porque se destina a constituir essencialmente um meio de prova, a escrita pode ser objeto de exame, até, embora em casos especiais, contra a vontade e os interesses daquele a quem pertence.
II - Tanto na imposição aos comerciantes da obrigação da escrita, como na determinação do modo por que deve ser organizada, também se atendeu ao interesse geral e mal se explicaria que, representando uma prova pré-constituída, quando essa prova se tornasse necessária e oportuna, se impedisse a sua prestação, com o fundamento de que os lançamentos a examinar podiam ser... prejudiciais ao que os fizera, por dever legal.
III - É, pois, em princípio, admissível exame à escrita de comerciante que não é parte na ação onde o dito exame foi pedido.”…” – obra citada - Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 2.ª ed…”

Quanto a pedido de elementos a parte no processo refere o Ac. RP de 9/10/2012, processo nº 1570/09.3TBVNG-A.P1:
“À luz das exigências crescentes de um processo civil assente no apuramento da verdade, deve, em tese geral, circunscrever-se a recusa da parte em apresentar ou juntar documentos que estejam na sua esfera de disponibilidade às situações previstas no n.º 3 do artigo 519.º do CPC sendo que “o segredo comercial, no seu todo, não está contemplado nas exceções à regra” (Fernando Pereira Rodrigues, Elucidário de Temas de Direito (Civil e Processual), Coimbra Editora, 2010, pág. 307).”
Como quer que se entenda, no caso presente a sociedade é parte e tem responsabilidade na questão, pelo que sempre seria possível ao abrigo do artigo 43º do C.Com. a solicitação parcial de elementos.
No mesmo sentido RP de 21/11/2011, processo nº 462/10.8TBVFR-W.P1; RP de 7/2/2012, processo nº 615/10.9BESP-F.P1.
Sobre o requisito da “responsabilidade” referido no artigo 43º do C. Com., o Ac. RC de 12.03.2012, proc. 882/09.0TBPMS-A.C1, vai no sentido de que sendo parte na causa a pessoa a quem pertença a escrita não há que verificar do requisito de que tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida, por resultar evidente.
No caso é evidente que não é solicitada a exibição por inteiro, mas apenas de parte da escrita. Importa, contudo, na ponderação dos interesses em conflito que apenas sejam solicitados os elementos com interesse para a causa, e cuja exibição seja proporcional e adequada tendo em conta a questão e os objetivos pretendidos com a junção.

No caso concreto, dadas as suas concretas particularidades e a defesa do autor, respeitados aqueles critérios de adequação e proporcionalidade, e mostrando-se os elementos necessários à descoberta da verdade, o direito à confidencialidade que protege a escrituração comercial deve ceder. Ponto é que o solicitado se cinja aos elementos que digam diretamente respeito à questão a dirimir, e sem prejuízo do dever de segredo por parte de quem por via do processo toma conhecimento e tais elementos. Note-se que o trabalhador em causa, até por força dessa qualidade, sempre estaria sujeito ao segredo comercial, conforme resulta dos artigos 128º, 1, f) do CT.

Vejamos.
Pede-se na al. a)
“Os documentos comprovativos e que serviram de base às movimentações a crédito e a débito efetuadas nas contas dos balancetes 2781 (700026) e 2781 (700049), entre os anos de 2015 até à presente data (para prova do alegado nos artigos 72º a 80º da presente contestação)”
O solicitado traduz a ideia de todos os documentos comprovativos de todos os movimentos efetuados nas ditas contas. Com esta extensão não é de admitir o solicitado. Tendo em conta a defesa do autor, a anterior posição que tinha na empresa, o facto de ter junto alguns elementos relativos aos movimentos que questiona, é de deferir o solicitado – “documentos comprovativos que serviram de base aos movimentos “, mas relativos apenas aos movimentos que são indicados nos artigos referenciados da contestação do autor.
Na al. c)
“Cópia dos documentos comprovativos das transferências referidas no artigo 159º da presente contestação;”
O solicitado está devidamente circunscrito e é relativo aos movimentos que o autor refere no dito artigo. É de confirmar a decisão.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, devendo ser juntos pela parte os documentos solicitados, mas limitados no que tange ao solicitado em “a)” aos movimentos concretamente referenciados nos artigos 72º a 80º da contestação.
Custas na proporção de 2/3 pela recorrente e 1/3 pelo recorrido.
21/10/21

Antero Veiga
Alda Martins
Vera Sottomayor