Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
107/08.6TBAMR-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: FALTA DE ADVOGADO
FACTOS
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1. A gravação da prova prevista no artigo 651.º n.º 5 do CPC não se destina a eventual recurso com impugnação da matéria de facto, mas sim a possibilitar ao advogado que não compareceu por motivo justificado, a audição do respectivo registo para eventual pedido de renovação de alguma das provas produzidas.
2. Tratando-se de factos negativos há uma natural dificuldade de prova que aconselha menor exigência quanto à prova dos mesmos, mas que não conduz à inversão do ónus da prova.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
A intentou contra B acção com processo ordinário em que pede a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 23.539,27, acrescida de juros de mora, em virtude do não pagamento de factura relativa a trabalhos prestados.
Após a entrada da petição inicial, a secretaria do tribunal remeteu para a ré, em 26/02/2008, carta registada com aviso de recepção para a citação da mesma, nos termos do disposto no artigo 236.º do Código de Processo Civil, cujo duplicado se encontra junto a fls. 8 deste apenso de recurso de apelação em separado.
O aviso de recepção correspondente – que se encontra junto a fls. 9 deste apenso de recurso de apelação em separado – foi devolvido a 27/02/2008, tendo sido assinado, nessa data, por Carla ... e deu entrada no tribunal no dia 4 de Março de 2008.
Não tendo sido oferecida contestação, foi proferido despacho em que se considerou a ré regularmente citada e se declararam confessados os factos articulados pela autora.
Deduziu, então, a ré, incidente de falta de citação, alegando só ter tido conhecimento do processo com a notificação deste último despacho e nunca ter recebido a citação para a acção que, segundo alega, teria sido entregue numa loja próxima da sua e não na sua sede, não a tendo chegado a receber, tendo o aviso de recepção sido assinado por pessoa que não pertence aos quadros da empresa.
Contestou a autora pugnando pela improcedência do pedido formulado pela ré e considerando que esta foi regularmente citada.
Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pela ré, em duas datas diferentes, sendo que, na última delas, em face da ausência do mandatário da ré, foi gravada a prova nos termos do disposto no artigo 651.º n.º 5 do Código de Processo Civil.
Foi proferida decisão que julgou improcedente a pretensão deduzida pela ré de falta de citação.
Discordando da decisão, dela interpôs recurso a ré, tendo formulado as seguintes
Conclusões:
1. A douta sentença recorrida não fez a boa aplicação do direito nem decidiu de acordo com os elementos fornecidos no processo que implicariam decisão diferente.
2. Estando em causa a prova de um facto negativo, verifica-se uma inversão do regime regra do ónus da prova, dado que o non liquet probatório tem de resolver-se em favor da recorrente.
3. A gravação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento tem deficiências que, pela impossibilidade da sua audição, impede a reacção da recorrente contra a decisão, o que constitui uma nulidade.
4. O princípio da livre apreciação da prova cede perante a prova tabelada, não tendo o tribunal um poder arbitrário de julgar os factos.
A final pede que seja revogada na sua totalidade a decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

As Questões a resolver traduzem-se em saber se:
- os elementos fornecidos no processo implicariam decisão de facto diferente;
- estando em causa a prova de um facto negativo, haveria uma inversão do ónus da prova;
- a gravação de parte da prova efectuada ao abrigo do artigo 651.º n.º 5 do CPC, estando deficiente, implica a nulidade do processado.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1. A ré tem a sua sede e escritórios no n.º 6-A da Praceta D. F..., em Almada.
2. Junto aos autos encontra-se um aviso de recepção dirigido a «Ed... – Construções S... e Filhos, Lda.», Praceta D. F..., Almada, respeitante à citação da ré, aviso esse onde foi inscrita, com data de 27/02/2008, uma assinatura com os dizeres «Carla A...» e o número de Bilhete de Identidade «102...».

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 660.º n.º 2, 684.º n.ºs 2 e 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.

Importa conhecer primeiro da invocada nulidade por deficiência da gravação do depoimento de uma das testemunhas.
Vejamos.
A inquirição de testemunhas nos autos ocorreu em dois momentos distintos. No dia 11 de Dezembro de 2008, em data acordada com os mandatários, procedeu-se à inquirição da testemunha presente e relegou-se para momento posterior a inquirição de outra testemunha que se encontrava a faltar e porque o mandatário da ré disse não prescindir do seu depoimento. A data da inquirição desta segunda testemunha não ficou, desde logo, designada, uma vez que importava averiguar junto do tribunal de Almada da possibilidade de realização de videoconferência. Obtido o agendamento da videoconferência, designou-se, então, nova data e, em 16/01/2009, realizou-se a inquirição da segunda testemunha.
É exactamente esta segunda inquirição que, agora, vem posta em causa pela recorrente.
Na data designada, encontravam-se presentes todas as pessoas para o acto convocadas, à excepção do mandatário da ré, tendo então o Sr. Juiz proferido o seguinte despacho: «Verificando-se que o ilustre mandatário da ré, Dr. Cunha e Castro, não se encontra presente na diligência e uma vez que não comunicou a impossibilidade da sua comparência (artigo 155.º, n.º 1 do CPC), determino a gravação da prova testemunhal que irá ser produzida, nos termos do disposto no artigo 651.º, n.º 5 do CPC.»
Dispõe o artigo 651.º n.º 5 do Código de Processo Civil que «verificando-se a falta de advogado fora das circunstâncias previstas nas alíneas c) e d) do n.º 1, os depoimentos, informações e esclarecimentos são gravados, podendo o advogado faltoso requerer, após a audição do respectivo registo, a renovação de alguma das provas produzidas, se alegar e provar que não compareceu por motivo justificado que o impediu de dar cumprimento ao disposto no n.º 5 do artigo 155.º».
Desde logo se vê que o que está aqui em causa não é a gravação da prova para possibilitar o posterior recurso com impugnação da matéria de facto, mas apenas o possibilitar ao advogado que não compareceu por motivo justificado, a audição do respectivo registo para eventual pedido de renovação de alguma das provas produzidas.
Nos termos deste artigo, os mandatários das partes estão obrigados a justificar as faltas de comparência, se pretenderem usar da faculdade de renovação da prova aí prevista – veja-se Acórdão desta Relação de 10/02/2005, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 07/11/2002, in CJ, ano XXVII, tomo V, pág.71, onde se pode ler: «…a faculdade de reinquirição depende de o mandatário faltoso haver logrado justificar a sua falta de comparência à audiência de julgamento, alegando e provando o motivo insuperável que o haja impedido de comparecer».
Aliás, neste último Acórdão vai-se até mais longe, aí se entendendo que, no caso em que a audiência tenha sido designada em data acordada com o mandatário e este falte, não comunicando a causa da impossibilidade de comparência até à abertura da audiência, realizando-se o julgamento com o registo dos depoimentos, ao advogado faltoso não é facultada a reinquirição
No caso dos autos, não resulta com certeza da certidão junta para instruir o apenso de recurso, se a marcação da data para inquirição da testemunha terá sido feita com o acordo dos mandatários ou não.
Contudo, em qualquer dos casos, com acordo ou sem ele, o mandatário da ré, que não esteve presente nem comunicou a impossibilidade de comparência, até à abertura da audiência, nos termos do n.º 5 do artigo 155.º do CPC, também não alegou nem provou, posteriormente, que não compareceu por motivo justificado que o impediu de dar cumprimento ao disposto no n.º 5 do artigo 155.º, pelo que não podia requerer, após a audição do registo, a renovação da prova produzida.
Assim, não tendo justificado a sua falta, nesses termos, não podia pedir a reinquirição, pelo que precludiu a sua possibilidade de vir agora invocar a nulidade com base em deficiências da gravação da prova.
Se o mandatário tinha um motivo justificado para não comparecer à audiência, impedindo-o de dar cumprimento ao artigo 155.º n.º 5 do CPC, tinha que o ter alegado e provado de imediato, para que lhe fosse facultada a audição do registo e a possível reinquirição da testemunha.
Não o tendo feito, a referida gravação torna-se irrelevante, uma vez que se perde a sua razão de ser, pois, como dissemos no início, ela é efectuada não para se poder impugnar posteriormente a matéria de facto – ‘reagir contra a decisão’ nos termos utilizados pela apelante – mas para possibilitar ao advogado que faltou justificadamente, a sua audição e a possível reinquirição.
Daí que seja extemporâneo vir, agora, pôr em causa a qualidade da gravação, improcedendo, assim, a sua 3.ª conclusão.
Analisada esta questão prévia, importa agora conhecer da nulidade da citação que, no fundo, é o que está em causa nesta apelação, pese embora a apelante nunca assim se lhe tenha referido.
«O acto de citação constitui uma exigência formal da garantia do direito fundamental de defesa (…) Constituem postulados do direito de defesa, o conhecimento efectivo do processo, que o acto de citação garante, a concessão de prazo suficiente para a oposição e o tempero da rigidez das preclusões e cominações decorrentes da falta de contestação» - José Lebre de Freitas, in «Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil», Vol. I, 2.ª edição, pág. 118.
A lei processual enuncia cuidadosamente as formalidades essenciais do acto de citação, em geral, para toda e qualquer modalidade de citação – artigo 235.º do CPC – e, em especial, para cada modalidade de citação – no caso de citação postal, o artigo 236.º do CPC.
No plano geral, o artigo 235.º do CPC exige: que ao réu seja remetido ou entregue o duplicado da petição inicial e a cópia dos documentos que a tenham acompanhado; que o documento de citação contenha a identificação do tribunal e da secção onde corre o processo (se já tiver havido distribuição), bem como a expressa indicação de que o réu ficou citado para a acção, do prazo dentro do qual pode apresentar a defesa, das cominações em que incorre se não a apresentar e da obrigatoriedade do patrocínio judiciário, quando ocorra.
No plano especial da citação postal, que aqui nos ocupa, quando o réu seja uma pessoa colectiva, exige o artigo 236.º do CPC: que seja remetida carta registada com aviso de recepção para a sede ou para o local onde funciona normalmente a administração; que o distribuidor do serviço identifique a pessoa a quem a carta é entregue, advertindo-o de que a não entrega ao citando o fará incorrer em responsabilidade; que o aviso de recepção seja por esta assinado, estabelecendo o artigo 238.º n.º 1 do CPC que a citação por via postal se considera feita no dia em que se mostre assinado o aviso de recepção e tem-se por efectuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de recepção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário.
A falta de qualquer dos elementos e formalidades exigidos, pela norma geral do artigo 235.º do CPC ou pelas normas específicas da modalidade de citação utilizada, acarreta a nulidade do acto, arguível nos termos do artigo 198.º do CPC.
Vemos, assim, que, no caso de citação por via postal de pessoa colectiva, a citação se considera regularmente feita se a carta for entregue no local mencionado no respectivo endereço, desde que seja efectivamente o da sede da pessoa colectiva, sendo indiferente a qualidade da pessoa que ali a receba e assine o recibo ou aviso de recepção – veja-se Acórdãos da Relação de Lisboa de 30/09/93, in CJ 1993, tomo IV, pág. 117 e da Relação do Porto de 21/04/97 in BMJ 466.º, pág. 585.
Veja-se, também, que o aviso de recepção é uma formalidade ad probationem, exigida apenas como meio de prova da citação, não ficando excluída a possibilidade de se provar a citação por outros meios de prova – Acórdão da Relação do Porto de 06/11/2003, in CJ ano XXVIII, tomo V, pág. 179.
Contudo, o aviso de recepção desempenha uma função que vai além da que é desempenhada pela simples carta registada, constituindo uma formalidade adicional que reforça a necessidade de certeza quanto à ocorrência do acto de entrega e à respectiva data.
No caso dos autos o aviso de recepção foi correctamente endereçado para a sede social da sociedade ré, conforme se verifica da cópia junta a este apenso e resulta dos factos provados (tenha-se em vista os próprios documentos juntos pela ré que identificam a sua sede social). O referido aviso de recepção foi assinado por Carla Antunes (funcionária da ré/apelante), com aposição da sua identificação – número, data e entidade emissora do bilhete de identidade – e datado do dia 27/02/2008, data em que foi reenviado ao tribunal. Está, também, correctamente assinalada a quadrícula que refere que o mesmo foi assinado por pessoa a quem foi entregue a carta e que se comprometeu após a devida advertência, a entregá-la prontamente ao destinatário.
Ou seja, foram cumpridas todas as formalidades previstas na lei para a citação postal de pessoa colectiva.
E cumpridas todas as formalidades, presume-se que a citação foi correctamente efectuada, com a carta entregue ao destinatário – artigo 238.º n.º 1 do CPC.
Tal presunção pode, todavia, ser ilidida, mas, para o fazer, a apelante teria que efectuar prova em contrário – artigo 350.º n.º 2 do Código Civil – o que decorre, aliás, também, do artigo 238.º n.º 1 do CPC, onde se lê «salvo demonstração em contrário».
No caso presente, a apelante teria que fazer prova do contrário, ou seja, que pese embora tudo o que consta do aviso de recepção, não recebeu a notificação.
Tratando-se de factos negativos, há uma natural dificuldade de prova, que torna aconselháveis menores exigências quanto à prova dos mesmos factos, mas tão-só este tipo de actuação, uma vez que o artigo 342.º do Código Civil não dá relevância à distinção entre factos positivos ou negativos na distribuição do ónus da prova. Assim, não é pelo facto de estarmos perante um ‘facto negativo’ que se inverte o ónus da prova, nem tão pouco pela dificuldade que isso naturalmente representa – veja-se, neste sentido, Acórdão do STJ de 07/02/2008, in www.dgsi.pt e Pereira Coelho, in RLJ, 117.º, pág. 95, citado por Abílio Neto em anotação ao artigo 342.º no seu Código Civil Anotado, 17.ª edição.
O que a apelante fez foi limitar-se a dizer que desenvolveu diligências junto dos serviços competentes dos CTT, onde lhe foi possível apurar que o aviso de recepção da carta registada que visava a sua citação foi assinado por pessoa que dá pelo nome de Rita Pinto e que a carta para citação teria sido deixada num estabelecimento próximo onde trabalha a dita Rita ‘Santos’.
Desde logo resulta, face à existência do aviso de recepção nos autos, a falsidade do que se alega quanto ao mesmo estar assinado por Rita Pinto.
A documentação a que a apelante terá tido acesso nos CTT, presencialmente ou por acesso via internet, nunca terá a força probatória que emana do aviso de recepção. Regressado ao tribunal, o aviso de recepção vai integrar o processo, ficando a constituir uma peça deste, enquanto as listas de distribuição dos CTT ou a consulta do sítio dos CTT na internet, são elementos exteriores ao processo que não têm a virtualidade de, por si só, pôr em causa a prova que resulta da existência do aviso de recepção nos autos.
Não pode substituir-se a prova formal decorrente do aviso de recepção pela prova decorrente do recibo da correspondência ou listagens de distribuição dos CTT, sendo que tais documentos são meros «meios de prova complementares sujeitos à livre apreciação do julgador» - veja-se Lebre de Freitas, in obra citada, pág. 129,130 – sendo que os recibos dos CTT são, em primeiro lugar, prova do cumprimento das obrigações decorrentes para os CTT do contrato de prestação de serviços por eles celebrado com o remetente.
O facto de constar o nome «Rita Pinto» no recibo dos CTT (ou listagem de distribuição) não põe, por qualquer forma em causa o facto de o aviso de recepção estar assinado por Carla A..., funcionária da apelante, facto esse considerado provado na decisão em recurso.
Como já vimos, não houve, portanto, nenhum non liquet probatório que tivesse de resolver-se em favor da apelante, uma vez que presumindo-se que a citação foi correctamente efectuada face aos elementos constantes do aviso de recepção, teria de ser a ré a ilidir tal presunção, fazendo a prova do contrário, o que não foi feito, sendo que os elementos de prova carreados para os autos teriam que ser apreciados livremente pelo julgador sempre tendo em vista a força probatória do aviso de recepção existente nos autos.
Daí nenhuma censura merecer a douta decisão recorrida que, por isso será de manter, improcedendo todas as conclusões da apelante.

Sumário:
1. A gravação da prova prevista no artigo 651.º n.º 5 do CPC não se destina a eventual recurso com impugnação da matéria de facto, mas sim a possibilitar ao advogado que não compareceu por motivo justificado, a audição do respectivo registo para eventual pedido de renovação de alguma das provas produzidas;
2. Tratando-se de factos negativos há uma natural dificuldade de prova que aconselha menor exigência quanto à prova dos mesmos, mas que não conduz à inversão do ónus da prova.

III. DECISÃO
Em face do exposto, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
***
Guimarães, 26 de Outubro de 2010