Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1032/08.6TAVCT.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: NEGLIGÊNCIA MÉDICA
NEXO DE CAUSALIDADE
DEVER OBJECTIVO DE CUIDADO
ABSOLVIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) A comprovação da negligência tem de fazer-se tanto no tipo de ilícito, como no tipo de culpa. Trata-se de uma análise em dois graus. Assim, num primeiro momento há que fixar uma relação entre a conduta do agente e o resultado concreto verificado. Num segundo momento, deverá estabelecer-se uma relação entre o dever objectivo de cuidado que racaia sobre o agente e o resultado concreto.
II) Daqui resulta que pode haver nexo causal entre o comportamento do agente e o resultado concreto mas, mesmo assim, este último não pode ser imputado àquele dado ter-se demonstrado que tal resultado se teria produzido independentemente da observância ou não do dever de cuidado imposto ao agente.
III) No caso dos autos, não se mostrando provada matéria factual susceptível de permitir o estabelecimento de um nexo causalidade entre a violação do dever objectivo de cuidado que racaía sobre os arguidos e as consequências sofridas pela paciente, nem mesmo entre o comportamento dos arguidos e um concreto resultado no corpo ou na saúde da ofendida/assistente, impõe-se concluir pela não verificação de todos os elementos do crime do artº 148º do Código Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. No despacho proferido em 17-04-2015, a Exmª juíza da secção criminal da Instância Local e Comarca de Viana do Castelo indeferiu o requerimento para solicitação de informação sobre o número de pessoas que foram atendidas em 25 de Abril de 2008 no serviço de urgência da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, pelos médicos arguidos neste processo, desde o início do turno até à hora da alta da assistente requerida pela assistente (cfr. fls. 1125).

Inconformada, a assistente Susana M. interpôs recurso para revogação e substituição dessa decisão por despacho que determine a a realização da diligência probatória (fls. 1154 a 1165).

A magistrada do Ministério Público na instância local de Viana do Castelo formulou resposta concluindo que o recurso deve improceder (fls. 1214 a 1216).

2. Na sentença proferida em 18-06-2015, a Exmª juíza da secção criminal da Instância Local e Comarca de Viana do Castelo absolveu os arguidos António J. e Maria F. da prática do crime de ofensa à integridade física por negligência previsto e punido pelo artigo 148º, nº 1 do Código Penal (fls. 1181 a 1211).

Inconformada, a assistente Susana M. interpôs recurso, concluindo que deve ser proferido acórdão deste tribunal da relação que revogue a sentença de primeira instância e condene os arguidos pelo cometimento do crime por que vinham pronunciados (fls. 1249 a 1275).

O Ministério Público, representado pela magistrada na instância local de Viana do Castelo apresentou resposta concluindo a final que o recuso não merece provimento (fls. 1287 a 1301).

A arguida Maria F. formulou resposta, concluindo que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente e confirmada a sentença recorrida (fls. 1303 a 322).

O arguido António J. apresentou igualmente resposta concluindo pela improcedência do recurso da assistente (fls. 1342 a 1357).

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público, por intermédio de procurador-geral adjunto, exarou parecer no sentido da improcedência dos recursos (fls. 1368 a 1373).

A assistente respondeu ao parecer do Ministério Público, reiterando a posição anteriormente expressa nas motivações.

Recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. No decurso da sessão da audiência de julgamento de 17-04-2015, o mandatário da assistente requereu o seguinte (transcrição):

“Tendo sido referido pelas duas últimas testemunhas inquiridas que num ambiente de stress de urgência é normal passarem diagnósticos de fractura como nos autos, podendo ser essa a justificação para uma análise menos cuidada de um RX e um não diagnóstico da fractura em questão nos autos, afigura-se-nos relevante, para avaliar em concreto dessa realidade no dia dos factos ora em apreciação - 25-04-2018 - que se verifiquem o número de pessoas que foram atendidas pelos médicos aqui arguidos nesse mesmo dia no serviço de urgência na ULSAM em Viana do Castelo, desde o início do seu turno até às 11h34 (data da alta dada à assistente).

Pelo exposto requer a V. Exª., se digne mandar oficiar àquela Unidade de Saúde Local do Alto Minho, para que venha prestar as informações acima evidenciadas.”

Sobre este requerimento incidiu o despacho judicial recorrido, com o seguinte teor (transcrição):

“Vigora no nosso Processo Penal o critério de necessidade no que se refere à produção de meios de prova, tal qual decorre de forma expressa, do disposto no artº 340º nº 1 do C.P.P..

No caso de que nos ocupamos, não só esse critério da necessidade não é sustentado, pois alega-se apenas relevância, como se não vislumbra que seja necessário, ou sequer relevante à descoberta da verdade e boa decisão da causa - oficiar-se nos termos requeridos (para saber-se o número de pessoas assistidas e ainda a assistir pelos arguidos, doentes vistos pelos arguidos em internamento, actos cirurgicos praticados pelos arguidos).Com efeito, e sendo certo que é do senso comum e conhecimento geral as condições em que os utentes são atendidos e observados nos serviços de urgência (e foi apenas isso que as testemunhas disseram, nada falando e nada sabendo no caso concreto) o certo é que tal factualidade se afigura desde logo irrelevante em face do princípio da responsabilidade que recaía sobre os arguidos. Por outro lado, nem os próprios arguidos se "refugiaram" nas condições de assistência intensas no serviço de urgência para justificarem a sua conduta no dia dos factos.

Face ao exposto, por falta de fundamento legal, aliás não invocado, indefere-se o requerido.”

A questão a resolver no âmbito deste recurso consiste fundamentalmente em saber se se deve manter o juízo de desnecessidade de produção de prova decorrente da informação a prestar pelo serviço de urgência.

Em nossa apreciação, a informação pretendida pela assistente sempre seria supérflua ou inútil para a decisão da causa, quer quanto ao preenchimento do tipo negligente, quer para a eventual escolha e determinação da medida concreta da pena, por diferentes ordens de razões:

Em primeiro lugar, não se vislumbra que tenha sido invocada pelos arguidos qualquer “causa de exclusão” ou de atenuação do juízo de censurabilidade da conduta decorrente do volume ou carga de exigência no serviço de urgência. A afirmação da arguida de que por natureza o serviço de urgência de destina a um atendimento “rápido” constitui um “facto notório” e as referências vagas e imprecisas das testemunhas Abel T. e Orlando P. sempre seriam insubsistentes para um juízo probatório nesse âmbito.

Por outro lado, a informação sobre o número de pessoas assistidas e a assistir naquele dia também nunca permitiriam conhecer de forma objectiva o “contexto” em que ocorreu o exame e a consulta da assistente, que sempre se encontraria dependente do conhecimento de todo um conjunto de diversos outros elementos referentes à gravidade das situações já examinadas nesse dia e em espera para examinar, ao número de profissionais de saúde envolvidos no atendimento, aos meios técnicos disponíveis.

Por último e mais importante, a ponderação sobre o “volume de serviço” e a consequente pressão psicológica provocada por um elevado número de pessoas para assistir, sempre seria irrelevante para desvalorizar ou, sequer, para atenuar a responsabilidade dos médicos na prestação de cuidados de saúde em serviço de urgência de uma unidade hospitalar.

Pelo exposto, concluímos que a prova requerida se configura como desnecessária e irrelevante, pelo que se justifica o indeferimento do requerimento da assistente, em conformidade com o disposto no artigo 340.º n.º 1 e n.º 4, alínea b) do Código de Processo Civil e o recurso não merece provimento.

3. Tendo em conta as conclusões da motivação, as questões a apreciar no recurso que incide sobre a sentença são as seguintes:

a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto – saber se deve ser considerado como provado, em substituição do ponto dez do elenco dos factos provados da sentença recorrida, que como consequência directa e necessária da conduta dos arguidos, a assistente sofreu dores no punho esquerdo e viu agravados os períodos de dor, doença e de afectação da capacidade de trabalho para além do período médio normal de 180 dias e que sabiam os arguidos que a sua descrita actuação os tornava incurso em responsabilidade criminal.

b) Preenchimento dos elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência do artigo 148.º n.º 1 do Código Penal.

4. Matéria de facto

Para a fundamentação da presente decisão, torna-se imprescindível transcrever parcialmente a sentença objecto de recurso.

O tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):

1. No dia .. de Abril de 2008, pelas 09.27h, a assistente Susana M., recorreu, na sequência de uma queda de escadas de que foi vítima na sua residência, ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar do Alto Minho, EPE, de Ponte de Lima, tendo aí sido assistida pela Dra. Maria A..
2. Aí, e uma vez que a assistente se queixava de dor no punho esquerdo e apresentava deformidade (inchaço) no mesmo, foram efectuados exames radiológicos à mesma – duas incidências – e foi a ora assistente encaminhada para o Centro Hospitalar do Alto Minho, EPE, de Viana do Castelo, a fim de a mesma ser vista por um médico-especialista.
3. Assim, para o efeito, deslocou-se a assistente ao Centro Hospitalar do Alto Minho, EPE, de Viana do Castelo, onde foi admitida pelas 11.11h do dia 25 de Abril de 2008, mais tendo o Centro Hospitalar do Alto Minho EPE, de Ponte de Lima, disponibilizado, através do sistema informático, os exames imagiológicos referidos em 2).
4. Nesta unidade a assistente foi vista pelo Dr. António F., médico então a frequentar o internato médico desde 01.01.2007 e a formação específica em ortopedia desde 01.01.2008 e pela Dra. Francisca G., médica ortopedista, assistente hospitalar de ortopedia.
5. Analisados os referidos exames radiológicos, consideram os ora arguidos que a assistente não apresentava sinais radiográficos evidentes de fracturas recentes.
6. Assim, e face ao diagnóstico médico referido em 5), foi dada alta da urgência à assistente com o diagnóstico de traumatismo do punho, apenas com aplicação de ligadura e prescrição de anti-inflamatórios, nomeadamente Arthotec 75 (AINE), e indicação de vigilância de sinais de alarme e reavaliação no médico assistente se houve persistência ou agravamento das queixas.
7. Sucede, porém, que decorrido um mês de ingestão da medicação recomendada, sem evolução favorável, a assistente deslocou-se, de novo, ao Centro Hospitalar do Alto Minho, EPE, de Viana do Castelo, onde, após realização de novo exame radiológico, lhe foi diagnosticada, pelo Dr. P…, fractura do escafóide esquerdo.
8. A fractura do escafoide cárpico nem sempre é visível nos exames radiográficos coincidentes com o traumatismo, podendo só se identificar o traço de fractura cerca de 2 a 3 semanas depois, o que ocorre em cerca de 1/3 dos casos.
9.No caso da assistente, logo no exame inicial era identificável a existência de uma linha de fractura no 1/3 proximal do escafóide com orientação oblíqua.
10.Numa doente com história traumática, jovem e com queixas no punho é mandatário colocar desde logo o diagnóstico de fractura possível do escafóide cárpico.
11. Na dúvida, deveria ter-se recorrido a uma macroradiografia ou a uma TAC. 12. A alta dada à doente com o diagnóstico de contusão do punho “tout court” revela atitude menos cuidada.
13. Não houve assim cumprimento da boa prática médica, uma vez que logo no exame radiográfico inicial é identificável traço de fractura no escafoide carpico que obrigava a uma imobilização inicial do punho, com o objectivo de consolidação da fractura e diminuição das dores.
14. Os arguidos não previram – mas podiam e deviam ter previsto – que a lesão sofrida pela assistente, correspondesse a uma fractura do escafóide carpico, lesão esta que, atenta a história traumática e sendo a assistente pessoa jovem e com queixas no punho, era boa prática médica colocar, tanto mais que nos exames radiológicos referidos em 2) e 3) era vísivel a existência de uma linha de fractura no 1/3 proximal do escafoide com orientação oblíqua, sendo que os arguidos, na dúvida, sempre poderiam recorrer à realização de uma macroradiografia ou a uma TAC – o que não fizeram.
15. A alta dada à ora assistente, com simples diagnóstico de traumatismo do punho, revela atitude menos cuidada e contrária à legis artis a que estavam,

por dever de ofício, obrigados.
16. Deveriam, pois, os arguidos, atento o quadro clínico que apresentava a assistente, ter tido um maior cuidado na observação médica realizada àquela, recorrendo a exames complementares de diagnóstico – nomeadamente, realização de uma macroradiografia ou a uma TAC, o que efectivamente não aconteceu.
17. Devido a essa falta de atenção, cuidado específicos e cumprimento da sua legis artis, os arguidos não se aperceberam da fractura do escafóide esquerdo que a assistente apresentava.
18. Os arguidos não actuaram com a diligência devida e exigível, atenta a desconformidade concreta demonstrada na sua actuação no confronto com o padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes, perante um caso idêntico, podendo fazê-lo.
19.O arguido António F. é médico ortopedista- assistente hospitalar e trabalha na unidade local do Alto Minho.
20.Aufere cerca de 1935 euros por mês. Tem como despesas mensais mais importantes a renda de casa no valor de 1150, compartilhada com a namorada.
21.A arguida Maria F. ainda trabalha no Centro Hospitalar do Alto Minho e aufere cerca de … euros por mês.
22.Reside com o marido que é também médico e ganha … euros por mês e têm 3 filhos de 10, 7 e 5 anos.
23.Tem como despesas mensais mais relevantes o colégio dos filhos no montante individual de 600 euros; a quantia de 2000 euros referente à aquisição de casa própria e a quantia mensal de 900 euros que despende com a empregada doméstica.
24.Os arguidos não têm antecedentes criminais.
25. São considerados pelos colegas como médicos competentes.
26. Não é possível garantir que a fractura consolidava sem intervenção cirúrgica se tivesse sido efectuada imobilização no dia 25.04.2008, embora essa possibilidade fosse claramente maior caso tivesse sido feita imobilização.
27. Ainda que tivesse sido efectuada a imobilização a 25.04.2008, a fractura poderia ter evoluído para uma não consolidação e vir a necessitar de cirurgia.
28. O medicamento Arthotec 75 tem efeito analgésico.
29. Em consequência da queda referida em 1. a assistente Susana M. sofreu e sofre dores no punho esquerdo, limitação ligeira da mocilidade e força de pinça normal, lesão esta que lhe determinou doença um período de 500 dias para a cura com afectação da capacidade de trabalho geral e 360 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional.
31. As fracturas do escafóide são de difícil diagnóstico, tratamento e consolidação.
32. Os sinais clínicos evidenciados pela ofendida de deformidade (inchaço) e de dor são também compatíveis com o diagnóstico de traumatismo.”

O tribunal julgou não provado que (transcrição) :

“1.Que nas circunstâncias de tempo e local id. em 2. dos factos provados a assistente foi encaminhada para o Centro Hospitalar do Alto Minho E.P.E por suspeita de fractura do pulso esquerdo.
2.Que nas circunstâncias id. em 4 dos factos provados, a assistente informou os arguidos que os ossos do seu punho esquerdo se encontravam fracturados.
3.Que como consequência directa e necessário da omissão e prescrição do tratamento médico adequado à fractura em questão, a assistente Susana M. sofreu e sofre dores no punho esquerdo, limitação ligeira da mobilidade e força de pinça normal, lesão esta que lhe determinou doença um período de 500 dias para a cura com afectação da capacidade de trabalho geral e 360 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional.
4.Que sabiam os arguidos que a sua descrita actuação os tornava incurso em responsabilidade criminal.
5. Que as consequências que para a ofendida advieram da conduta dos arguidos seriam exactamente as mesmas caso tivesse sido diagnosticada a fractura e imobilizada a mesma.
6. Que em face da resolução dos monitores do serviço de urgência o exame radiológico disponibilizado aos arguidos informaticamente não apresentava sinais ilustrativos da existência de fractura.
7. Que quando foi observada pelos arguidos a ofendida não tinha sinais clínicos que permitissem colocar o diagnóstico de fractura do escafóide esquerdo.”

Na motivação da convicção do tribunal recorrido consta o seguinte (transcrição):

“A convicção do tribunal sobre a factualidade provada e não provada formou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as regras de experiência comum e do normal acontecer, atendendo-se nomeadamente à prova pericial, à prova documental e à prova pessoal produzida, nomeadamente às declarações dos arguidos, declarações da assistente e depoimentos prestados por todas as testemunhas inquiridas.
Assim, foram considerados:
- toda a prova documental e pericial, com destaque para:
-o Parecer Técnico-Científico de fls. 171 a 173, 190 a 191 e 1093;
- o Parecer Técnico-Científico de fls. 535 e fls. 554;
-a Perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 268 a 271;
- os elementos clínicos de fls. 12 a 16, 25 a 28, 36 a 54, 107 a 126, 132 a 139, 153 a 156, 162 a 167;
- os exames imagiológicos de fls. 177 a 179;
- cópia da receita médica constante de fls. 356;
- os C.R.C.s de fls. 197 e 248;
- as declarações do arguido António Félix:
Prestando declarações, o que fez de forma clara e concisa, começou por referir que no dia 25.05.2008, frequentava o 2º ano do internato, o 4º mês de estágio em ortopedia e estava de urgência. Já tinha escolhido a especialidade de ortopedia há 3 meses na altura. Esclareceu posteriormente, sobre o tipo de responsabilidade que sobre si recaía que a partir do 2º ano, que os internos têm autonomia, embora seja uma medicina tutelada.
A arguida Maria F. era médica-ortopedista na unidade de saúde em causa.
Sobre os factos referiu que tem uma ideia vaga da ofendida. Terá sido atendida em Ponte de Lima, que a mandou para Viana. Coube-lhe a ele ver a senhora. Tinha um raio x no sistema informático e foi aí que viu. Confrontado com a película referente ao mesmo referiu que a visualização é assim melhor (não é a mesma coisa ver na película e no ecrã do computador; a resolução de imagem não é tão boa, sai prejudicada a observação). A linha era visível, mas menos óbvia do que na película, não se recorda se ampliou no monitor ou não.
Não tinha sinais clínicos que fizessem suspeita de fractura (em Ponte de lima teriam tido dúvidas, o que decorre de o médico ser de especialidade de clínica geral).
A paciente não apresentava deformidade compatível com fractura de escafóide.
Com as informações clínicas que tinham, chegou-se ao diagnóstico de contusão. Foi interpretado como não tendo fractura (posteriormente esclareceu que é uma fractura de difícil diagnóstico, que muitas vezes não é diagnosticada devido a ossos que se sobrepõem nas imagens, à forma do escafóide, entre outras causas).
Foi uma decisão mútua dele e da colega, a co-arguida.
Foi dito à sra. que deveria voltar e foi-lhe receitada medicação para as dores (cópia da receita constante de fls. 356 dos autos).
Se tivesse sido diagnosticada da fractura teria sido feita imobilização durante 8 a 12 semanas. A ofendida nunca seria operada no dia em foi observada por ele nas urgência e não foi operada posteriormente por causa do atraso do diagnóstico.
Actualmente é médico ortopedista- assistente hospitalar e trabalha na unidade local do Alto Minho.
Aufere cerca de 1935 euros por mês. Tem como despesas mensais mais importantes a renda de casa no valor de 1150, compartilhada com a namorada.
- declarações da arguida Maria F.:
Prestando declarações, o que fez de forma clara e bastante segura, começou por referir que é assistente hospitalar de ortopedia e no dia em causa estava de urgência com o co-arguido.
Não se recorda da assistente. Sabe que foi à urgência com o Dr. P., fez radiografia e colocou gesso.
Mais referiu que a fractura do escafóide não dá deformidade. É diferente ver a radiografia na mão do que no computador (a imagem pode ser uma sobreposição da curva do escafóide).
Este tipo de fracturas dá não consolidação em grande parte dos casos.
Questionada respondeu que se no dia 25 tivessem visto a fractura tinham colocado o gesso e em 2 meses, se não consolidasse, faziam cirurgia.
O facto de estar 2 meses sem ter o punho imobilizado não a prejudicou.
Concluiu que se o Dr. P. pediu outra radiografia é porque na primeira não era visível (com uma diferença de uma semana, duas radiografias sobre a mesma fractura não têm nada a ver uma com a outra, começa a ser mais visível com o passar do tempo).
Mais referiu que é perita médica legal e quanto a sequelas, se a ofendida as apresenta, podia apresentá-las de igual forma caso tivesse sido tratada no dia 25 de Abril.
Ainda trabalha no Centro Hospitalar do Alto Minho e aufere cerca de 3200 euros por mês. O marido é médico ganha 3200 euros por mês e têm 3 filhos de 10, 7 e 5. Tem como despesas mensais mais relevantes o colégio dos filhos no montante individual de 600 euros; a quantia de 2000 euros referente a um crédito que contraiu e a quantia mensal de 900 euros que despende com a empregada doméstica.
- às declarações da assistente Susana Lopes, comerciante.
Começou por contar ao tribunal que caiu de umas escadas no dia 25.04. e foi ao Centro de Saúde a Ponte de Lima, onde a médica que a observou a mandou fazer um raio x, que efectuou. Tinha dores e o “osso de fora”, tinha uma deformidade. Foi-lhe diagnosticada fractura no escafóide e a médica disse-lhe que tinha que ir para Viana, para ser vista por ortopedistas. Não viu o raio x em Ponte de Lima.
Depois, já em Viana foi vista pelos arguidos, tendo-lhes comunicado que tinha fractura do escafóide, mas “eles não quiseram saber”, nem viram o exame no computador (eles não foram ver ao computador). Concretizou que os arguidos não saíram de trás da secretária, só olharam para o pulso (“estavam na brincadeira um com o outro”). Disseram que era magoado e mandaram tomar medicação para as dores, dizendo que passava dali a 3 ou 4 semanas.
Foi para casa, continuou com dores. Ao fim de 3 semanas deixou cair um copo de água e foi novamente a Viana às urgências.
Foi então vista pelo Dr. P. e pelo Dr. T.. Ele viu o primeiro exame e disse logo que o escafóide estava partido, depois fez-lhe um exame (terá sido para comparar).
Disseram que tinha sido um erro, que tinham que levar a uma reunião do hospital.
Colocaram-lhe gesso com que andou 1 mês e meio, e depois foi operada (por 3 vezes). Esteve muito tempo incapacitada para o trabalho.
As declarações da assistente revelaram-se algo fantasiosas e pouco credíveis nomeadamente quanto ao que aconteceu quando foi atendida na urgência pelos arguidos e foram parcialmente infirmadas pela demais prova produzida como adiante se demonstrará.
- ao depoimento de Maria G., mãe da ofendida.
De forma sincera começou por contar ao tribunal que a filha caiu em casa.
Ela acompanhou-a ao hospital em Ponte de Lima, mas não entrou na consulta. A filha fez um raio x, disse-lhe que a médica tinha dito que ela tinha o pulso partido e que era melhor ir para Viana (porque em Ponte de Lima não há ortopedia).
Veio com a filha a Viana mas também não entrou com filha (veio ela, testemunha a conduzir; a filha não vinha com tala nem nada).
Depois a filha disse que a médica disse que era só magoado e veio embora com um analgésico, disseram-lhe que passava em 2 a 3 semanas.
A filha estava revoltada pela forma como foi atendida e porque tinha dores, mas aceitou o que a médica disse.
Mas a dor não passou em 2 a 3 semanas (não lhe disseram para regressar ao hospital se não passasse).
Depois ela não suportava a dor, estava a perder a sensibilidade e voltou ao médico com o pai. A filha depois foi submetida a várias intervenções cirúrgicas.
-depoimento de João F., pedreiro, marido da assistente.
De forma objectiva contou ao tribunal que a esposa caiu e magoou-se.
Ele não estava em casa e a ofendida depois contou-lhe que em Ponte de Lima disseram que tinha fractura e em Viana que não tinha nada. A esposa confiou nos médicos de Viana e esperou 3 semanas como disseram; colocou pomada e tomou analgésicos, mas não passou. Continuava com dores que aumentaram e voltou ao hospital com o pai. O médico disse que estava partido.
Questionado respondeu que nunca lhes passou pela cabeça nesse intervalo de tempo ir a outro médico ou a outro hospital.
- depoimento de Manuel P., médico ortopedista.
Mostrou conhecimento dos factos porquanto no dia 20.05.2008 observou a ofendida nas urgências, que lhe referiu a queda no mês anterior e que tinha dor no punho que lhe dificultaria a mobilidade (disse que tinha ido a Ponte de Lima, fez raio x e perante a suspeita, dúvida sobre a leitura da radiografia –se haveria ou não haveria fractura- a colega de Ponte de Lima mandou-a a Viana).
Face à manutenção da queixa pediu logo raio x para confrontar com o primeiro exame. Os sinais do 2º exame eram de fractura. Foi comparar com o anterior. É possível que pudesse haver dúvida perante o primeiro exame.
Não sabe se quando a ofendida foi observada inicialmente as manifestações clínicas eram muito evidentes (que são edema, dor intensa, não dá “deformidade”, dá inchaço- edema)). O diagnóstico é complementar.
Na dúvida ele fazia imobilização por gesso ou ligadura.
Confrontado com as radiografias de Ponte de Lima referiu que há suspeita de fractura. Passados uns dias é que os sinais se tornam evidentes.
O tratamento inicial seria a imobilização.
Depois de ter sido por si observada a ofendida esteve mês e meio imobilizada e depois houve intervenção cirúrgica por não consolidação (quando a imobilização é logo feita o prognóstico é melhor, mas não há garantias).
As consequências e limitações que ela tem agora também poderia ter se tivesse sido diagnosticada a fractura e feita imobilização (dores e rigidez).
Acredita que ela estivesse na mesma, embora tenha atrasado a consolidação óssea.
Questionado sobre se a dor se agravou face à não imobilização do punho referiu que se tivesse o punho imobilizado logo teria tido menos dores do que as que sentiu nesse período até à imobilização posterior.
A ausência de imobilização inicial da fractura pode ter atrasado a consolidação que também não se conseguiu com a imobilização que foi depois efectuada.
A fractura do escafóide leva sempre 4 ou 6 meses a recuperar (sem procedimento cirúrgico). Com procedimento cirúrgico poderia ser mais tempo.
Inicialmente faz-se um tratamento conservador (2 a 3 meses) e só depois a cirurgia.
Foi um depoimento muito claro e objectivo.
- depoimento de António L., pai da ofendida.
Prestando depoimento de forma sincera, começou por referir que a filha foi com a mãe a Ponte de Lima na sequência da queda, e depois foi a Viana.
A filha disse-lhe que em Ponte de Lima disseram que estava partido e depois em Viana que estava magoado.
Posteriormente foi ele que tomou a iniciativa de trazer a ofendida a Viana outra vez. Não entrou com ela na consulta. Saiu com o braço engessado, o médico ter-lhe á dito que estava partido e bem partido. Antes disso encontrou-a várias vezes a chorar com as dores.
- ao depoimento de Francisco L., médico:
É médico de clínica geral e também trabalha no IML.
Vê habitualmente radiografias como qualquer médico. Quando há suspeita de traumatologia referenciam para o hospital e para a ortopedia.
A fractura do escafóide é uma fractura delicada, de diagnóstico delicado.
Confrontado com a radiografia em causa nos autos referiu que tem dúvidas sobre a existência de fractura, tem que ser mostrada a um ortopedista (e isso estando já sugestionado para a sua existência).
No mais nada revelou saber sobre os factos em apreço, e como tal o seu depoimento, ainda que objectivo, pouco relevou para o tribunal.
- depoimento de Miguel L., médico ortopedista.
Faz urgências em Viana do Castelo. Não estava de urgência em Viana no dia em causa.
Questionado sobre o diagnóstico da fractura do escafóide referiu que é um osso maldito, são muito difíceis de reconhecer. Ás vezes só são reconhecidas 10 ou 12 dias depois.
O mais importante para a consolidação é a vascularização, que é a pior de todas (como era o caso, fractura do terço proximal).
Questionado sobre se teria imobilizado o pulso naquele dia, não foi conclusivo, referindo que há quem diga que sim, que deve fazer-se e quem diga que não.
Informado que a ofendida só voltou ao médico 30 dias depois concluiu que ou não teve muitas dores ou negligenciou as queixas que tinha.
Nunca se diz ao paciente para vir 30 dias depois, é sempre cerca de uma semana depois, 10 dias. É impossível que a arguida tenha dito isso (do que conhece do trabalho da mesma).
Mais referiu que o facto de ter sido imobilizada só um mês depois pode não ter prejudicado em nada o curso da fractura.
Confrontado com a radiografia em causa nos autos referiu que a fractura pode confundir-se com um sulcro que existe ali. Está sobreposta por um outro osso.
Está absolutamente convicto que o diagnóstico imediato de uma fractura destas já lhe escapou. Se o doente voltasse 1 semana ou 10 dias depois, já não lhe escaparia, pois dada a persistência dos sintomas usaria outros meios de diagnóstico.1 mês depois muito mais visível seria. Se o colega um mês depois pediu outro exame é porque não considerou também o primeiro conclusivo, se o viu.
Questionado respondeu que no caso dos autos ele não imobilizaria logo.
A fractura em causa por si é de difícil consolidação e no lugar concreto, pela sua localização, mais difícil é de consolidar. Há fracturas destas imobilizadas no próprio dia que não consolidam e podem ter necessidade de cirurgia. Podia ser tudo exactamente igual, caso tivesse sido feita imobilização.
Mesmo imobilizada a fractura poderia necessitar de 10 semanas de imobilização e ainda assim após necessitar de cirurgia.
Acrescentou que muito frequentemente as fracturas articulares, mesmo consolidadas, têm sequelas dolorosas, com mudanças do tempo, etc.
Á data ele era o orientador do estágio do arguido (da especialidade).
A última palavra é sempre do médico especialista.
A sua prática é de, se o doente tiver muitas dores imobilizar; se não, não vê tanta vantagem na imobilização que pode ter efeitos nefastos. Imobilização antálgica (para não doer).
Mas diagnosticada a fractura tinha que ser imobilizada, para manter uma posição adequada (a consolidação é outra coisa).
Confrontado com fls. 13 referiu que se o médico de Ponte de Lima suspeita de fractura escreve sempre isso, para explicar o motivo do envio (às vezes os médicos sobrevalorizam o que vêem; a médica em causa, de Ponte de Lima não sabe como faz, não a conhece).
Questionado sobre se a fractura em causa dá deformidade, respondeu negativamente, mas inchaço pode dar, mas isso até pode ser por entorse.
Mostrou-se bastante pormenorizado no seu depoimento, centrado essencialmente na sua prática clínica.
- depoimento de António R., médico ortopedista.
É médico ortopedista há 25 anos.
Também trabalha em … desde 1994.
É do director de serviço de ortopedia e mostrou-se bastante seguro e objectivo no seu depoimento.
O caso foi analisado no serviço. Já viu a radiografia.
Confrontado com a mesma referiu que os doentes da periferia às vezes vêem porque os médicos que os viram têm dúvidas; não é necessariamente porque têm fractura. Aliás, a maioria não tem. É comum até dizerem que tem fractura e depois não tem. O colega manda a informação. Em 2008 a informação do colega era pelo sistema informático.
Esclareceu que o diagnóstico de fractura é sempre do especialista.
Referiu que o diagnóstico é feito com base na clínica e na radiografia (meio complementar de diagnóstico da suspeita clinica). Há que conjugar dor, hematoma e radiografia.
As fracturas do escafóide são de difícil diagnóstico. Á posteriori, o diagnóstico é mais fácil. Recomendam aos doentes que voltem ao serviço.
Questionado respondeu que a fractura em causa não é evidente (não está desviada, está alinhada, há sobreposição óssea).
O escafóide pode fracturar de forma a ser facilmente visível, mas não é o caso.
Nesta situação diria ao doente para voltar ao serviço de urgência: é a prática clínica.
O diagnóstico feito pelos arguidos- constante da ficha clínica é preventivo.
Se não tivessem tido dúvidas nenhumas davam alta (e tão só).
As fracturas do terço proximal, como o caso, são as mais problemáticas.
Se tivesse sido diagnosticada a fractura teria sido imobilizada (para criar condições para a consolidação), mas mesmo assim o prognóstico é reservado, ainda assim não há garantia de que viesse a consolidar. Mesmo com cirurgia podia não consolidar (depende do doente, do osso).
Se há dúvida na existência de fractura, o médico pode não imobilizar- o critério é o da dor (a imobilização nesse caso é direccionada para alivio de dor).
Mesmo após a consolidação podem ficar sequelas, como dor residual, perda de mobilidade não.
Em face do que apurou a assistente foi tratada correctamente (foi-lhe dito para voltar se persistissem os sintomas- é o que consta do relatório de urgência).
Referiu que se a ofendida depois demorou 30 dias a voltar ao hospital é porque ou não teve dor ou negligenciou a dor.
O arguido à data estava na fase do internato geral: os internos tomam decisões, têm autonomia para isso.
Foi um trabalho conjunto dos dois arguidos.
Questionado respondeu que a ofendida podia apresentar um inchaço, não um osso fora do lugar.
- depoimento de Abel J., médico ortopedista,
É médico no Hospital de ….
Contou ao tribunal que o caso foi falado na reunião de serviço. Achou que podia ser uma situação que podia ocorrer a qualquer um deles (escapar uma fractura de escafóide na urgência). Havia uma 1ª radiografia que não era de boa qualidade, não se via quase nada; depois passado algum tempo já se via alguma coisa.
Confrontado com a radiografia em causa nos autos diz que pode numa urgência não se ver a fractura. O diagnóstico baseia-se também no exame clínico. Se os arguidos não vissem a fractura podiam mandar a doente embora e dizer-lhe para regressar passados uns dias, por ex. se tivesse dores. Esta fractura pode provocar inchaço ou não, o exame clínico é que é importante (movimentos do punho e onde é que dói).
Admite que ele próprio pudesse não ter logo diagnosticado a fractura.
“Mesmo com o zelo todo, este tipo de fractura pode passar”. ”Isto não é como 2 e 2 serem 4”. Sente que podia estar ele aqui… podia acontecer-lhe a ele.
Referiu que não é normal um doente estar depois 4 semanas com uma fractura e não regressar.
Esta fractura em concreto é de difícil consolidação, tratamento e diagnóstico.
Ainda que tivesse sido diagnosticada logo a fractura, e imobilizada, a fractura podia consolidar ou não sem recorrer a cirurgia. A ele já lhe aconteceu não consolidar, não há regra. O efeito podia ser o mesmo, com ou sem imobilização.
Os factores que interferem na consolidação são a circulação, mas o ideal é imobilizar. Pode não consolidar por não ter vasculização suficiente. Mesmo com imobilização pode continuar a ter dores.
Confrontado com a incapacidade de mais de 500 dias referiu que é exagerada, pois este tipo de fractura determina no máx. 6 meses a contar da fractura para recuperação, com imobilização de 8 semanas.
Ainda que não seja feita imobilização, isso não condiciona a consolidação.
A doente ao não voltar ao hospital prejudicou o tratamento.
Confrontado com fls. 39 referiu que a paciente foi vista pelo dr. Peres, o nome dele aparecerá de estar a ficha aberta em nome dele.
Confrontado com a régua dor 6, referiu que lhe parece exagerado.
O seu depoimento assentou sobretudo na sua experiência profissional.
- ao depoimento de O., médico.
É especialista em cirurgia geral e perito da companhia de seguros.
Também faz avaliações de dano corporal na área de sinistros.
A arguida é uma excelente profissional e colega.
Foi confrontado com a radiografia em causa nos autos.
Referiu que o contexto do serviço de urgência em nada se compara com o de quem elabora um relatório.
Segundo referiu, na avaliação do paciente, primeiro faz-se o exame objectivo. Depois, se há dúvida faz-se a radiografia. Se ainda tem dúvidas faz-se outros exames, caso estejam disponíveis.
Confrontado com a ficha de atendimento na urgência referiu que neste caso era fundamental a existência ou não de dor localizada.
O diagnóstico de contusão dá dor. Mesmo sem fractura quando uma pessoa cai dá dor (por ex. adveniente de traumatismo). Inchaço de punho era sinónimo de traumatismo.
Referiu que o doente também tem que ter responsabilidade (se a pessoa teve dor esteve à espera de quê para recorrer novamente ao hospital ???- questionou).
Passados 30 dias é mais fácil o diagnóstico da fractura. A fractura podia ter tido a mesma evolução sem imobilização. A consolidação depende fundamentalmente do organismo.
Confrontado com as conclusões do parecer referiu que não é linear.
Quanto às dores de que a ofendida ainda sofrerá afirmou que é uma dor residual, independente do tratamento.
O facto de ter sequelas é consequência da fractura e não do tratamento.
Nenhum doente de fractura de escafóide fica sem sequelas…(nunca viu nenhum).
Sobre a incapacidade de 500 dias referiu que é absurdo. O médio é 6 meses.
A imobilização é para estabilização da fractura.
- depoimento de Maria A., médica,
É clínica de clínica geral.
No caso, foi a médica de triagem em Ponte de Lima, de onde decorre o conhecimento que tem dos factos e a relevância do seu depoimento.
Questionada sobre a sua prática referiu que se não tem certeza de fractura não faz constar dos registos clínicos; se tiver a certeza absoluta, faz constar. Se não tem certeza diz ao paciente que vai enviar ao hospital para descartar fractura, para que eles avaliem.
Foi confrontada com fls. 16 e 13 e com o raio x em causa nos autos, afirmando que não vê ali fractura.
Esclareceu que mandam sempre fazer o raio x para que quando os doentes chegam a Viana tenham o raio x feito. Todos os traumatismos fazem raio x. Só têm esse meio.
No caso, mandou avaliar a doente por causa da dor e da deformidade (esclareceu depois que quando dizia deformidade referia-se a edema, inchaço…)
A fractura pode ser deformidade por edema, sem ter fractura. Pode-se ter fractura sem deformidade e o contrário também pode acontecer.
O sintoma que poderia indiciar a fractura é a dor.
Peremptoriamente afirmou que o envio para Viana não foi por suspeita de fractura, mas para ser vista por especialista e descartar a possibilidade.
- depoimento de Manuel C., médico ortopedista.
Também trabalha em …. Ouviu comentar sobre este caso no serviço.
Sabe que está em causa uma fractura de escafóide, que são as fracturas de mais difícil diagnóstico (40 % delas não são diagnosticadas na 1ª observação). O sítio onde esta está ainda é de pior diagnóstico (no polo proximal). A dificuldade de diagnóstico decorre da anatomia o escafóide.
Confrontado com a radiografia em causa nos autos referiu que as fracturas podem-se confundir com a “crista anatómica”.
O diagnóstico resultará da suspeita clínica (dor no punho) e do raio x.
Esclareceu que a fractura do escafóide muito raramente dá inchaço. Uma entorse dá inchaço e não é fractura.
Na radiografia do processo não é evidente a fractura; a imagem é compatível com um mero risco.
Já viu radiografias iguais a esta, pediu mais tarde mais exames e não era fractura.
Assim, a imagem dos autos pode corresponder a várias coisas. Agora sabe que existe ali uma fractura.
Perante esta radiografia ele não pedia um TAC; é conveniente aguardar e depois repetir a radiografia, pois passados uns dias a imagem já é diferente (não é exequível fazer TAC a todos os doentes).
Perguntado respondeu que não é normal um doente com uma fractura esperar 4 semanas para regressar ao hospital; se as dores persistem ou agravam deve voltar em 8 a 10 dias. Nesses casos a dor é mais localizada e é mais fácil o diagnóstico.
Se a fractura tivesse sido logo diagnosticada no 1º dia, ele imobilizava, mas a percentagem de não consolidação, mesmo com imobilização é muito grande. Pode ser necessário tratamento cirúrgico e mesmo assim não chegar a consolidar.
Há doentes que fracturam, consolidam e nem sequer sabem que tiveram uma fractura. Resolve-se espontaneamente (fracturas do escafóide).
A imobilização não é necessária à consolidação, é para diminuir a dor (efeito analgésico).
A doente podia ter sido diagnosticada, imobilizada, e eventualmente ter as mesmas queixas.
Se corresse tudo muito bem eram 3 meses de doença; a média é de 180 dias.
Incapacidade havia sempre. Acrescentou que mesmo imobilizada, a ofendida podia continuar a ter dores.
Vejamos então agora o que resultou para o tribunal da análise crítica e conjugada da prova produzida:
Quanto aos factos constantes dos pontos 1. e 2. da factualidade provada, a convicção positiva do tribunal assentou no correlacionamento das declarações da assistente com o depoimento da testemunha Maria G. e com o relatório detalhado do episódio de urgência constante de fls. 13 a 14, do qual resulta a assistência prestada à assistente em Ponte de Lima pela testemunha, médica de clínica geral a exercer funções naquela unidade hospitalar, que lhe observou “deformidade” (leia-se inchaço) e dor no pulso esquerdo e onde foram efectuadas os exames radiológicos que constam dos autos a fls 177, 1056 e 1057, na sequência do que foi encaminhada para Viana do Castelo para ser vista por um especialista.
A assistência hospitalar prestada depois já em Viana do Castelo está documentada no mesmo relatório, sendo corroborada pela assistente e pelos arguidos, que ali se encontravam, no exercício das suas funções, observaram a assistente e os exames radiológicos, concluindo nos termos apurados de ausência de clínica de fractura, traumatismo de punho e decidiram pela alta da urgência com recomendação de vigilância de sinais de alarme, esclarecimentos, reavaliação no médico assistente se houvesse persistência ou agravamento das queixas (pontos 3. a 6. da factualidade provada).
Já a factualidade constante do ponto 7. resultou do correlacionamento das declarações da assistente com o depoimento do Dr. P., que mostrou conhecimento directo da mesma por ter sido quem observou então a ofendida, estando essa assistência documentada a fls. 39 e segs.
Quanto à factualidade constante dos pontos 8. a 17. foi determinante na convicção do tribunal o parecer técnico-científico de fls. 171 a 173 e de 190 a 191 (Instituto Nacional de Medicina Legal) e o parecer técnico científico de fls. 535 e fls. 554 ( Ordem dos Médicos, Colégio da Especialidade de Ortopedia), dos quais resulta inequivocamente (e nenhuma dúvida se levantou sobre esse facto na audiência de julgamento) que a fractura em causa era já visível nos exames iniciais.
Ora, os arguidos tiveram acesso informático aos referidos exames (assim como tiveram o mesmo acesso, informático, o relator do parecer do INML e o Presidente do Colégio de Ortopedia- cfr. fls. 172 e 177 e 554) sem que a tenham logo diagnosticado (e não se apurou qualquer impedimento técnico que lhes permitisse visualizar a fractura- cfr. ponto 6. da factualidade não provada), ou, na dúvida, realizado outros exames como uma macroradiografia ou uma TAC, o que sempre se impunha em face da história traumática, juventude da ofendida e quadro de dor (cfr. parecer a fls. 172), concluindo o referido parecer do INML que a conduta dos arguidos revela atitude menos cuidada e incumprimento da boa prática médica, que obrigava a uma imobilização inicial do punho (conclusão que só aparentemente é contrariada pelo parecer da Ordem dos Médicos, já que a ausência de sinais de negligência ou má prática médica relatada no parecer de 535 partiu do pressuposto errado de que a fractura não era observável no exame radiográfico inicial, como resulta claramente da conjugação do parecer de fls. 535 com o parecer de fls. 554, após visualização dos exames em causa).
E a convicção do tribunal, formada nos termos expostos, não foi infirmada ou sequer abalada, quer pelas declarações dos arguidos, quer pelos depoimentos das testemunhas inquiridas, nomeadamente pelos depoimentos das testemunhas colegas de profissão dos arguidos que nos termos supra expostos limitaram-se a atestar a dificuldade do diagnóstico das fracturas do escafóide e a pronunciar-se de forma opinativa sobre o seu tratamento e as incertezas subsequentes ao mesmo (relevando os seu depoimentos, cuja honestidade não levantou dúvidas ao tribunal quanto a outra factualidade apurada, nomeadamente a constante dos pontos 31. e 32. e que se deu como não apurada- cfr. ponto 7.- pois os sinais clínicos apresentados pela ofendida- inchaço e dor eram compatíveis com traumatismo ou fractura- cfr. depoimento do Dr. P. e exame físico de fls. 13- já em Ponte de Lima a ofendida apresentava deformidade (inchaço) e dor).
Com efeito, os pareceres técnico-científicos, nomeadamente os emitidos pelo Conselho Médico Legal e pelo Colégio de Ortopedia constituem prova pericial e o entendimento definitivo daquelas entidades sobre a questão colocada.
O valor da prova pericial encontra-se fixado no artº 163º do CPP, onde se estipula no que ao caso interessa que o juízo técnico científico se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o que constitui uma excepção à regra da livre apreciação consignada no artº 127º do CPP.
Sendo certo que a lei processual penal ressalva a possibilidade de a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos (artº 163º, nº2 do CPP), sempre essa divergência deve ser cientificamente fundamentada, estribando-se a divergência numa crítica da mesma natureza.
De onde decorre que a prova testemunhal produzida não pode sobrepor-se, infirmar ou sequer abalar, como não abalou o que resulta desses pareceres.
No caso do INML é de salientar que nem os seus órgãos, nem os seus peritos intervêm nos processos a título particular, no sentido de indicados por uma parte, e os pareceres emitidos, no âmbito da consulta técnico científica “são insusceptíveis de revisão e constituem o entendimento definitivo do conselho sobre a questão concretamente colocada, salvo a apresentação de novos elementos que fundamentem a sua alteração” (artº 6º, nº4 do DL 131/2007, de 27/04), prevalecendo mesmo perante um qualquer outro relatório pericial (cfr. Ac. RC de 24.04.2012, relator Olga Maurício, disponível emww.dgsi.pt).
Não se trata portanto, ao contrário do alegado, de “colocar na mesma balança” a posição assumida pelo professor Doutor Jacinto M. e a posição assumida por algumas das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento, pois que a posição assumida por aquele no parecer de que foi relator, foi aprovada por unanimidade pelo CNML (cfr. 170), definindo assim, repetimos, o entendimento definitivo do conselho sobre a questão concretamente colocada (sendo considerados naquele entendimento todos os factos relevantes, nomeadamente que se tratou de um atendimento na urgência e que a informação imagiológica foi disponibilizada pelo sistema informático do Centro Hospitalar, de onde carece de fundamento também esta parte o alegado quanto às diversas condições em que foi elaborado o parecer e bem assim à informação que já existia quando este foi elaborado e que foi de facto fornecida pelo tribunal, sendo o juízo efectuado necessariamente um juízo ex-ante).
De onde o tribunal concluiu que os arguidos ao não identificarem a fractura e não imobilizarem o punho revelaram uma atitude menos cuidada e contrária às leges artis a que estavam por dever de ofício obrigados, podendo e devendo actuar em conformidade com as mesmas.
Consideraram-se as declarações dos arguidos quanto à situação sócio- económica.
Valoraram-se os CRC juntos aos autos.
Foram tomadas em consideração os depoimentos das testemunhas que se pronunciaram sobre a personalidade dos arguidos e sobre a sua consideração profissional.
A factualidade não provada decorre de não ter sido produzida prova segura e credível da sua verificação, de ter sido equívoca ou contraditória a prova produzida ou de terem sido apurados factos em manifesta contradição com os mesmos.
Assim, desde logo o tribunal deu como não provado que foi a suspeita de fractura no punho esquerdo que determinou que assistente tivesse sido encaminhada para Viana do Castelo por essa factualidade ter sido peremptoriamente negada pela Drª Maria G., que não só não fez constar essa informação do processo clínico, como seria de esperar caso assim tivesse acontecido, como afirmou que enviou a paciente para ser vista por especialistas em Viana do Castelo “para descartar essa possibilidade” (e ainda hoje, confrontada com o raio x, não vê nenhuma fractura, ou suspeita da existência de fractura no raio x em causa).
De onde resultou infirmada a versão da assistente, que consequentemente também não logrou convencer o tribunal de que já em Viana do Castelo informou os arguidos que “os ossos do seu punho esquerdo se encontravam fracturados” (informação que só lhe poderia ter sido transmitida pela médica de Ponte de Lima, já que ademais a assistente não tem conhecimentos que lhe permitam “auto diagnosticar-se”), o que os arguidos de forma coerente negaram (e ninguém mais presenciou o atendimento à assistente quer em Ponte de Lima, quer em Viana do Castelo, nomeadamente os seus familiares cujos depoimentos pouco relevaram, pois só sabem o que ouviram à assistente).
Sendo ademais de referir ser pouco verosímil que, com um diagnóstico inicial de fractura, a assistente se conformasse com o diagnóstico posterior de traumatismo do punho (sem clínica de fractura), sobretudo considerando o atendimento que referiu que os arguidos lhe prestaram, sem sequer ver os exames, e comportando-se de forma muito pouco profissional (se bem percebemos, a assistente insinuou que os arguidos estariam sexualmente envolvidos durante o próprio atendimento- “a roçar um no outro”).
Quanto às consequências directas e necessárias que da omissão e prescrição do tratamento médico adequado advieram para a assistente, logo se constata, da sua indicação como prova e da descrição efectuada, que se pretendem suportadas pela perícia de avaliação do dano corporal cujo relatório consta de fls. 268 a 271 (cfr. fls. 299 e fls. 584).
Contudo, como decorre de forma cristalina do mencionado relatório, as consequências ali descritas relacionam-se não com a concreta actuação dos arguidos (acto médico), mas com o evento que foi a queda da ofendida (acto acidental prévio), à qual, dúvidas não existem, os arguidos são totalmente alheios, não sendo possível afirmar-se em face da prova produzida que “a actuação em causa foi causa adequada e condição sem a qual este resultado não se teria verificado, ou pelo menos não se teria verificado nos moldes em que se verificou”, e que “tal resultado poderia ter sido evitado”, o que não foi sustentado por qualquer meio de prova, salientando-se, mais uma vez, que estão em causa factos cuja percepção exige especiais conhecimentos científicos, os quais só foram trazidos aos autos na fase de julgamento através do parecer constante de fls. 1093 solicitado ao IML onde, em resposta aos quesitos formulados pelo tribunal se respondeu que não é possível garantir em absoluto que a fractura consolidava sem intervenção cirúrgica (embora essa possibilidade fosse claramente maior caso a imobilização tivesse acontecido); que é claramente especulativo estar a supor se teria havido qualquer incapacidade caso tivesse havido imobilização e que nessa circunstância a fractura poderia ter consolidado sem sequelas com um período de incapacidade temporária estimável em no mínimo três meses, já incluindo o período de recuperação funcional e que mesmo com a imobilização efectuada a 25 de Abril de 2008 a fractura poderia ter evoluído para uma não consolidação e vir a necessitar de uma cirurgia.
De onde resultaram não provadas as consequências que se imputavam na acusação e na pronúncia, por estarem em causa meras probabilidades entendendo-se que a simples possibilidade de diminuição do risco não é suficiente para determinar o nexo de causalidade, não se tendo apurado quaisquer outras consequências (o que só poderia fazer-se dando um “ salto no desconhecido”- cfr. também ponto 5. da factualidade não provada), salientando-se, a propósito da dor que a ofendida sentiu e sente que lhe foram prescritos anti- inflamatórios (o Arthrotec ajuda a aliviar a dor- cfr. folheto informativo, Infarmed, declarações do arguido e declarações da assistente) e lhe foi indicado que deveria haver reavaliação no médico assistente se houvesse persistência ou agravamento das queixas, dores que a ofendida referiu terem persistido sem que incompreensivelmente, durante um mês tivesse recorrido a nova assistência hospitalar, de onde sempre terá contribuído para o retardar do diagnóstico e do tratamento, sendo-lhe assim parcialmente imputáveis as dores sofridas e quaisquer outras consequências que hipoteticamente tenham decorrido da conduta dos arguidos.
Por último, quanto à factualidade constante do ponto 15. da acusação para que remete a pronúncia o tribunal deu como não provada essa factualidade por estar em causa a imputação de um crime a título negligente, sendo a mesma elemento do dolo (tipo de culpa).”

5. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Segundo matéria fáctica incontroversa, os arguidos podiam e deviam ter identificado a fractura e determinado a imobilização inicial do punho da assistente Susana M., pelo que o diagnóstico de simples traumatismo, sem recurso a exames complementares, revela uma atitude descuidada, contrária à legis artis e ao comportamento esperado de um médico medianamente competente e prudente perante aquele circunstancialismo concreto.

Deve sublinhar-se que o problema a resolver se restringe a saber houve erro no julgamento de facto por valoração indevida de elementos de prova mas restrito à matéria de facto susceptível de abranger as consequências desse comportamento descuidado no corpo e na saúde da ofendida-assistente.

A recorrente invoca discordância sobre a apreciação do tribunal no de segmentos das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas Manuel J., Miguel A., António J., Orlando P. e José M., que transcreve na motivação, bem como dos pareceres de fls. 171, 172, 190 e 1093, os relatórios de exame médico de fls. 1053 a 1054 e das fichas de urgência de fls. 37 e 39.

Serão estas as concretas provas que este tribunal de recurso deve analisar, juntamente com outras que entenda relevantes (artigos 412.º n.ºs 3, 4 e 6 do Código do Processo Penal), sem esquecer os limites próprios da apreciação em segunda instância Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-07-2009, Rel. Cons. Raul Borges, proc 103/09, 3ª secção: “ (…) Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento parcelar, de via reduzida.

IX - A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
X - A jusante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.” (acessível in http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2009.pdf)

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Sobre este concreto problema das consequências que advieram para a ofendida da conduta imputada aos arguidos, traduzida na omissão de diagnóstico da fractura e da consequente omissão de imobilização, o tribunal solicitou a elaboração de perícia médico legal de consulta técnico cientifica.

Na resposta aos quesitos, constante de fls. 1093, o Conselho Médico Legal considera por unanimidade que prevendo a eventualidade e ter sido caso tivesse sido efectuado a imobilização do punho esquerdo da assistente, não é possível garantir em absoluto que a fratura consolidava sem intervenção cirúrgica, porém essa possibilidade seria claramente maior se esse gesto (imobilização) tivesse acontecido.

À pergunta sobre quais as incapacidades temporárias e permanentes, gerais e para o trabalho, que a assistente apresentaria caso tivesse sido efectuada a imobilização da fractura no dia 25 de Abril de 2008, os peritos responderam que é claramente especulativo estar a pressupor se teria havido lugar a qualquer incapacidade se a doente tivesse ad inicium sido tratado corretamente com a imobilização. Nesta circunstância, a fratura poderia ter consolidado sem sequelas com um período de incapacidade temporária estimável em no mínimo 3 (três) meses já aqui incluindo o período de recuperação funcional. Mesmo com a imobilização efetuada a 25 de Abril de 2008 a fratura poderia ter evoluído para uma não consolidação e vir a necessitar de uma cirurgia. Segundo o mesmo parecer, estas considerações também não permitem afirmar que caso a fractura tivesse sido imobilizada, as consequências seriam diversas das constantes do relatório pericial de fls. 268 e 271 e referidas no ponto 10° da acusação.

Numa apreciação global dos pareceres e consultas perícias constantes do processo, com articular relevo para a consulta técnico cientifica, deve extrair-se a conclusão que uma vez esgotados todos os meios de exame e estudo disponíveis, não é possível aos peritos médicos afirmarem que o erro de diagnóstico e consequente omissão de imobilização da fractura logo em 25 de Abril de 2008 tenham causado a necessidade de se efectuarem as intervenções cirúrgicas, ou tenham agravado os períodos de dor, de doença e de afectação da capacidade para o trabalho.

Como é sabido e em conformidade com o disposto no artigo 163º n.º 1 e n.º 2 do Código do Processo Penal, “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador», o qual, se dele divergir, deve fundamentar a sua discordância”.

Em princípio, deve o tribunal acatar o juízo pericial, sem prejuízo da possibilidade de apreciar livremente os factos subjacentes ao juízo científico, de controlar a metodologia utilizada e de aferir da presença de um nexo lógico entre as premissas de facto e as conclusões. Admite-se o dissentimento em relação aos factos subjacentes à avaliação pericial, nomeadamente em casos inequívocos de erro, mas a divergência do tribunal tem de ser devidamente fundamentada em argumentos de natureza técnica ou científica. Desta forma se encontra afastada a livre apreciação baseada apenas em regras de experiência comum ou na convicção pessoal do juiz (vide neste âmbito Ferreira Dias, Direito Processual Penal, I, 1981, p. 208 a 210, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, p. 152 a 154 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2004, Armindo Monteiro, proc. 250/04, Colectânea de Jurisprudência, I, 204).

Em nossa apreciação do teor das declarações e depoimentos indicados pela recorrente, podemos extrair o entendimento que se tivesse sido inicialmente diagnosticada a fractura, seria obrigatória a imobilização da fractura com o objectivo de retirar ou atenuar a dor e de facilitar o processo de estabilização. Assim como se poderá extrair da opinião das testemunhas indicadas que, se tivesse havido imobilização imediata, a fractura poderia ter consolidado. As testemunhas não coincidiram na estimativa do período necessário para essa consolidação, entre um mínimo que tanto poderia ser de oito semanas (arguido e testemunha Abel T.), como de quatro meses (testemunha Manuel F.) e um máximo entre doze semanas (arguido) e seis meses (testemunha Orlando S.).

Dever-se-á aqui notar desde logo a manifesta imprecisão da argumentação da assistente que refere o prazo de três meses como período mínimo (por um cálculo que faz a partir das declarações divergentes do arguido e dos depoimentos de testemunhas), apela ao parecer de fls. 1093, apenas no segmento em que aí se refere aquele período como estimado para uma possível consolidação sem sequelas, para logo de seguida já afirmar que o tribunal recorrido deveria ter considerado esse mesmo lapso de tempo, mas já como o período normal de recuperação funcional.

Dos depoimentos das testemunhas indicadas no recurso apenas se pode extrair que em princípio a imobilização imediata da fractura tem efeitos atenuantes das dores.

Em nossa apreciação, os elementos de prova indicados pela recorrente têm subjacentes apenas considerações vagas e imprecisas de probabilidades e não permitem afastar ou infirmar o juízo pericial, nem nos impõem uma decisão diferente da constante na sentença recorrida sobre a matéria constante que constava dos pontos 10 e 15 da acusação, pelo que improcede o recurso neste âmbito.

6. São elementos do tipo de ilícito negligente um comportamento voluntário, ou seja, um comportamento dominado ou dominável pela vontade, a produção de um certo resultado, a omissão de um dever objectivo de cuidado Para outros autores como ROXIN, como sabemos, o elemento que confere especificidade ao tipo negligente consiste antes na criação pelo agente de um perigo não permitido cfr. ROXIN, Claus, Strafrecht. Allgemeiner Teil, Band I: Grundlagen Der Aufbau der Verbrechenslehre, 2ª edição, tradução espanhola, Derecho Penal Parte General, Civitas, 1997, § 24, pp. 999-1001. e, um nexo de causalidade entre a conduta ou omissão do agente e o resultado típico, necessariamente previsível e evitável para um homem medianamente prudente.

Ao mesmo tempo, integram os elementos do tipo subjectivo ou do tipo de culpa realidades referentes à omissão de deveres de cuidado e de diligência a que o agente estava obrigado, segundo as circunstâncias, os seus conhecimentos e capacidades pessoais, omissão esta que determinou o agente, apesar de ter previsto a possibilidade de realização do facto ilícito, a confiar que ele não teria lugar (negligência consciente) ou, apesar de ser previsível a realização do facto ilícito, a não prever a realização do mesmo (negligência inconsciente).

Frise-se, ainda, que quanto ao nexo de imputação objectiva de um resultado à conduta do agente, a situação não se processa da mesma forma que nos crimes dolosos, uma vez que nos crimes negligentes há que estabelecer uma dupla relação causal, que a doutrina tem vindo a apelidar de doutrina do duplo grau.

No fundo, a comprovação da negligência tem de fazer-se tanto no tipo de ilícito, como no tipo de culpa. Trata-se de uma análise em dois graus. Assim, num primeiro momento há que fixar uma relação entre a conduta do agente e o resultado concreto verificado. Num segundo momento, deverá estabelecer-se uma relação entre o dever objectivo de cuidado que recai sobre o agente e o resultado concreto.

Daqui resulta que pode haver nexo causal entre o comportamento do agente e o resultado concreto mas, mesmo assim, este último não poder ser imputado àquele dado ter-se demonstrado que tal resultado se teria produzido independentemente da observância ou não do dever de cuidado imposto ao agente. Tem aqui relevância a chamada causalidade hipotética ou virtual. Neste sentido refere Teresa Beleza in Direito Penal, vol. II, pág. 575., que o resultado tem de ser não só imputável à pessoa, mas tem de derivar justamente da violação do dever de cuidado, que é outro elemento essencial do crime negligente.

Como se escreveu na sentença recorrida, não se comprova que a conduta (omissiva) dos arguidos tenha sido causa do resultado dores/ lesões/ incapacidade para a ofendida, ou sequer se apurou que a conduta dos arguidos tinha alta probabilidade de o evitar, ou seja que era altamente provável, com um grau de quase certeza, que uma conduta diversa da adoptada pelos agentes teria evitado determinado resultado, sendo de referir que quanto às dores, único resultado que de alguma forma se considera relacionado com a omissão dos arguidos, posto que não imobilizaram o punho da ofendida o que lhe diminuiria as dores, sempre lhe foram receitados anti-inflamatórios para diminuição das mesmas, desconhecendo-se o diferencial de dor em face da diferente terapêutica utilizada e bem assim da sua relevância e possibilidade de imputação aos arguidos, sobretudo atendendo a que a ofendida não acatou a indicação de reavaliação no médico assistente se houvesse persistência ou agravamento das queixas, de onde sempre contribuiu para a manutenção das dores de que padeceu .

Assim sendo, não existe matéria de facto provada susceptível de permitir o estabelecimento de um nexo de causalidade entre a violação do dever objectivo de cuidado que recaía sobre os arguidos e as consequências sofridas pela paciente, nem mesmo entre o comportamento dos arguidos e um concreto resultado no corpo ou na saúde da ofendida-assistente, pelo que não se encontram preenchidos todos os elementos do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência do artigo 148º do Código Penal.

Termos em que improcede na íntegra o recurso da assistente, devendo manter-se a sentença recorrida.

7. A assistente decaiu nos recursos que interpôs e deve ser responsabilizada pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que deu causa (artigo 515.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal e artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

8. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento aos recursos e em confirmar na íntegra o despacho e a sentença recorridos.

Custas pela assistente, com três UC de taxa de justiça quanto ao recurso que incidiu sobre o despacho de 17-04-2015 e cinco UC de taxa de justiça quanto ao recurso da sentença, sem prejuízo da protecção jurídica de que beneficie.

Guimarães, 4 de Abril de 2016.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.