Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
537-A/2002.G1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: EXECUÇÃO
PENHORA
PENSÃO
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O que releva para aferir da impenhorabilidade das prestações periódicas pagas ao executado a título de pensões ou de regalia social é o seu valor global e não fraccionado.
II - Assim, se o rendimento anual do devedor, repartido pelos 12 meses do ano, não for inferior ao valor do salário mínimo nacional, nada obsta a que se proceda à penhora do 13º e 14º mês, na parte em que exceda aquele valor.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO
Nos autos de execução a que respeita o presente recurso, veio o exequente A… requerer, por desconhecer a existência de outros bens penhoráveis, a penhora das quantias que o executado B… recebe em Julho e Dezembro de cada ano, que acrescem à pensão que mensalmente lhe é atribuída pelo Centro Nacional de Pensões, no montante de € 479,04, que é também o valor do referido montante adicional em cada um daqueles dois meses, limitando-se a penhora à parte que excede o valor do salário mínimo nacional.
Notificado o executado para se pronunciar, o mesmo nada disse.
Foi então proferido despacho determinativo da requerida penhora, do qual o executado interpôs recurso de agravo.
Seguiu-se despacho em que o Mm.º Juiz a quo ordenou que se informasse o ISS de que o objecto da penhora englobará apenas a parte dos subsídios de Natal e de Férias que, após a soma com o valor mensal da pensão do executado, excede o valor do salário mínimo nacional em vigor à data da penhora, garantindo-se, dessa forma, o princípio da dignidade da pessoa humana, contido no Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do art.º 1.º da alínea a) do n.º 2 do art.º 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do art.º 63.º da CRP.
No mesmo despacho, admitiu-se o recurso, com efeito devolutivo.

Para fundamentar o recurso, o executado apresentou alegações com as seguintes conclusões:
I - O presente recurso de agravo tem por objecto a decisão onde se manda penhorar parte dos subsídios de natal e férias do executado.
II O tribunal a quo, salvo melhor opinião ilegal e inconstitucionalmente entendeu que quando pagos os subsídios de férias e Natal havia de penhorar-se a parte que, após a soma com o valor mensal da pensão, excedesse o valor do salário mínimo nacional.
III- O tribunal a quo não podia considerar a pensão social e os subsídios de natal ou férias pagos em dado momento como uma única prestação.
IV- A circunstância de as mesmas poderem ser pagas no mesmo momento não lhes retira a característica de prestação autónoma de cada uma
V- Tratar-se-ia de uma interpretação inaceitável e uma verdadeira fraude à lei.
VI- Acresce que viola o princípio da dignidade humana, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) e no n.º 2 do art.º 824.º do C.P.C., na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas pagas ao executado que pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou pensão, cujo valor não seja superior ao salário mínimo nacional .
VII- Como viola o princípio da dignidade humana - logo é interpretação inconstitucional - a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do art.º 824.º do CPC, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor não seja superior ao salário mínimo nacional mas que, coincidindo temporalmente o pagamento desta e subsídio de Natal e Férias, se penhore, somando as duas prestações, na parte em que excede aquele montante.
VIII – As prestações em causa são distintas, autónomas não podendo cada uma considerada por si ser penhoradas por inferiores ao salário mínimo.
IX E mesmo que se admitisse – que não se admite – ser aquele valor penhorável, nunca poderia ser de valor superior a 1/3 da prestação subsídio de Natal e Ferias considerada autonomamente de acordo com a sua natureza própria, no caso, não mais de € 159,68.
X Pelo que, salvo melhor opinião, se violou o que dispõe o art.º 824.º n.ºs 1 e 2 do CPC.

O exequente respondeu às alegações pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Objecto do recurso.
Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações, a questão a decidir é a de saber se a penhora das prestações que o executado recebe em cada mês de Julho e Dezembro, (13.º e 14.º mês) do Centro Nacional de Pensões e que têm valor inferior ao do salário mínimo nacional, ofende a Constituição da República Portuguesa.

A factualidade a ter em conta na decisão é a descrita no relatório.

DECIDINDO
Estando em causa nestes autos a penhorabilidade de prestações periódicas auferidas pelo executado que lhe são atribuídas pelo Centro Nacional de Pensões, são aplicáveis as normas do Código de Processo Civil relativas à penhora, particularmente o seu art.º 824.º, na redacção do artigo 1.º do Decreto Lei 180/96 de 25 de Setembro e não a actual redacção desta norma, uma vez que, a acção executiva a que respeita este recurso foi instaurada antes do dia 15 de Setembro de 2003 (cf.art.º 21º n.º 1 do Dec-Lei 38/2003).

Preceitua o art.º 824.º na redacção de 1996:

“Art.º 824.º
1- Não podem ser penhorados:
a)Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2- A parte proporcional dos rendimentos referidos no número anterior é fixado pelo juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente arbítrio, tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado.
3- Pode o juiz, excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o n.º 1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar.”

Este artigo foi objecto do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2002 publicado no DR I Série –A de 2 de Julho de 2002, onde se decidiu, na sequência de outras decisões no mesmo sentido “… declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do art.º 824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até um terço das prestações periódicas pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do art.º 1.º da alínea b) do n.º 2 do art.º 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do art.º 63.º da Constituição.”

Decidiu então o Tribunal Constitucional que a norma em causa permitia a penhora, até um terço, de pensões e salários, mesmo que estes fossem inferiores ao valor do salário mínimo nacional.
Contudo, argumentou: “… o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que, por ter sido concebido como o mínimo dos mínimos”, não pode ser de todo em todo reduzido, qualquer que seja o motivo. Também a pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário.”
Por isso, concluiu-se que, no confronto do direito do credor à satisfação do seu crédito com o direito do devedor á protecção na doença e velhice através de pensão que lhe garanta um mínimo de subsistência, deve prevalecer este último, pois que, a penhora de pensões não superiores ao valor do salário mínimo, “constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na medida em que este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário para a existência com a dignidade humana que a Constituição garante.”
No caso concreto, sucede que o devedor, recebe uma pensão mensal de velhice do Centro Nacional de Pensões, no montante mensal de € 479,04, inferior à remuneração mínima garantida (RMG) nos termos em que foi actualizada pelo Decreto-Lei n.º 143/2010, de 31 de Dezembro, que fixou o seu valor em 485 € mensais, valor esse que ainda se mantém actualmente.
Para além deste montante mensal, o executado e apelante aufere ainda, em Julho e Dezembro, de cada ano, um montante igual ao da pensão mensal, não lhe sendo conhecidos outros bens ou rendimentos.
Ora, ponderando que o devedor auferia, para além da pensão mensal no dito valor, estes montantes - 13.º e 14.º mês -, o Mm.º Juiz a quo, a requerimento do credor, ordenou a penhora da parte dos mesmos que, após a soma com o valor mensal da pensão do executado, excede o valor do salário mínimo nacional em vigor á data da penhora, de forma a garantir que o rendimento anual do devedor, repartido pelos 12 meses do ano, não seja inferior ao valor do salário ou remuneração mínima garantida.

Para o agravante e executado, os montantes relativos ao 13.º e 14.º meses são impenhoráveis, já que, tendo valor inferior ao rendimento mínimo garantido, têm natureza de prestações periódicas autónomas relativamente à pensão mensal auferida.
Para tanto, louva-se na interpretação que faz do art.º 824.º n.ºs 1 e 2 do CPC, na redacção actual, alterada em função do que foi decidido pelo citado Acórdão do Tribunal Constitucional e que tem a seguinte redacção:
ARTIGO 824.º
Bens parcialmente penhoráveis
1 - São impenhoráveis:
a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2 - A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.

Para o exequente e agravado, a ordenada penhora é legal e constitucional, porquanto, os montantes correspondentes aos 13.º e 14.º mês fazem parte integrante da pensão auferida pelo executado e, desse modo, o seu rendimento mensal, tal como se decidiu na primeira instância, excede o valor do RMG.

Dispõe o art.º 41.º do Decreto-Lei 187/2007 de 10 de Maio, que define e regulamenta o regime jurídico de protecção nas eventualidades invalidez e velhice do regime geral de segurança social, sob a epigrafe “Montantes adicionais” que, “Nos meses de Julho e Dezembro de cada ano, os pensionistas têm direito a receber, além da pensão mensal que lhes corresponda, um montante adicional de igual quantitativo.”

Em face da redacção deste artigo e á primeira vista, pode parecer que tais prestações periódicas, que acrescem à pensão mensal, têm alguma autonomia.
Não obstante, da fundamentação do acórdão do TC, concluímos que a natureza destas prestações, não é decisiva para a questão a decidir.
Se se entender que tais prestações não são autónomas, então não restam dúvidas de que o rendimento anual do devedor repartido pelos 12 meses do ano, não é inferior ao RMG.
Mas, se se entender que tais prestações são autónomas, o que releva, como resulta da decisão do TC, é o valor global de todas as prestações auferidas pelo devedor/ executado.
Efectivamente, este Tribunal pronunciou-se concretamente sobre tal questão na fundamentação do seu acórdão, para rebater o entendimento do então primeiro ministro, que, notificado nos termos da lei para se pronunciar, defendeu que o art.º 824.º não enfermava da invocada inconstitucionalidade argumentando, para além do mais, que a eventual impenhorabilidade das prestações em causa, poderia ser prejudicial aos interesses do exequente, como sucederia na hipótese do executado receber duas prestações diferentes de entre as previstas na alínea b) do n.º 1 do Artigo 824.º, mas ambas de valor superior ao do salário mínimo nacional.
Contrariando tal argumento, escreveu o TC :
“Finalmente, também não é exacto que a declaração de inconstitucionalidade se revele injustificadamente lesiva dos interesses, quer do exequente, como aconteceria, por exemplo, se o executado auferisse duas das prestações incluídas na alínea b) do n.º 1 do artigo 824.º, quer do executado, que, dispondo de outros bens penhoráveis (rendimentos ou não), pode ter conveniência em que a penhora antes incida sobre a pensão.
Com efeito, estas objecções não são procedentes. Desde logo porque, como resulta do Acórdão n.º 318/99, os julgamentos de inconstitucionalidade cuja generalização se requer neste processo tiveram como pressuposto necessário a circunstância de o executado não dispor nem de outros rendimentos (incluídas aqui quaisquer outras das prestações referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 824.º do Código de Processo Civil), nem, em geral, de outros bens penhoráveis, suficientes para satisfazer a dívida exequenda.
A declaração de inconstitucionalidade não vai, assim, afectar injustificadamente os interesses do exequente, já que a sua razão de ser leva a que, em casos em que o executado aufira duas ou mais prestações compreendidas naquele preceito, se tenha de considerar, para efeitos de impenhorabilidade, a globalidade das prestações recebidas.”

O entendimento do TC, claramente expresso na parte decisória, vai no sentido de que, o que releva para se aferir da impenhorabilidade é o valor da globalidade das prestações periódicas pagas ao executado a título de pensões ou de regalia social, com vista a assegurar ao mesmo um rendimento não inferior ao RMG.
Como salienta na sua declaração de voto de vencido, o Conselheiro Mota Pinto, “…dentro da própria lógica do aresto…, o critério para a «proibição constitucional de penhora» há-de, com certeza, residir, não tanto na comparação do salário mínimo com o valor (fraccionado ou global) das prestações auferidas pelo devedor, como na comparação com o rendimento que lhe restaria depois da penhora - ou seja, com o seu rendimento remanescente. “
Tal interpretação deve também aplicar-se à actual redacção dada aos n.ºs 1 e 3 art.º 824.º, que teve na sua génese o Acórdão do TC n.º 177/2002.

Nestes termos, e porque o despacho determinativo da penhora ora em causa garante que o executado receba um rendimento mensal não inferior ao RMG, não se vislumbra qualquer ofensa à Constituição da República Portuguesa, designadamente, o princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do art.º 1.º da alínea b) do n.º 2 do art.º 59.º e dos n.ºs 1 e 3 do art.º 63.º da Constituição.”
E, tendo em conta a lógica do Acórdão, é bom de ver que, ao contrário do que defende o apelante, o limite máximo que a lei impõe na penhora das prestações periódicas em causa, deve ter em conta a globalidade do rendimento, não fazendo sentido tal como aquele pretende, que cada uma das prestações adicionais de Julho e Dezembro só possa ser penhorada em 1/3: este limite foi respeitado considerando a totalidade do valor das prestações, pois que a quantia penhorada é muito inferior a 1/3 do valor global que o agravante aufere.
Improcede pois o agravo, confirmando-se o despacho agravado

III – DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os juízes que constituem esta secção cível em negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão agravada.
Custas pelo agravante.
Notifique.

Guimarães, 18 de Abril de 2013
Isabel Rocha
Moisés Silva
Manuel Bargado