Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1629/13.2TBGMR-B.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO
INSOLVÊNCIA
CUMPRIMENTO COERCIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - As normas dos arts. 783º a 785º do CC estão pensadas em primeira linha para as situações de cumprimento voluntário da obrigação, e não para as situações de cumprimento coercivo.

II - A imputação do cumprimento em crédito comum reconhecido no âmbito de processo de insolvência faz-se por aplicação das regras dos arts. 172.º e segs. do CIRE, diploma que não faz qualquer alusão à aplicação subsidiária dos arts. 783.º a 785.º do CC.

III - Tendo sido pago no processo de insolvência parte de um crédito reclamado pelo seu valor global, mas referente a três créditos parcelares distintos e autónomos, o valor aí recebido tem que ser imputado proporcionalmente a cada um desses três créditos.

IV - Sendo um desses créditos objeto de uma ação executiva em curso, a quantia exequenda tem de ser reduzida na proporção correspondente a tal crédito, não podendo a exequente decidir imputar esse valor proporcional a um crédito distinto.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

… – BANCO ..., S.A., atualmente designado BANCO …, S.A. veio propor contra ... – GESTÃO GERIÁTRICA INTEGRADA …, LDA, CASA DE SAÚDE ..., S.A., A. J. e T. L. ação executiva para pagamento de quantia certa com vista a obter o pagamento da quantia de € 320 758,24.
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Por decisão de 29.10.2015, o Sr. Solicitador de Execução declarou extinta a execução, nos termos do art. 806º, nº 2, do CPC, dada a existência de um acordo de pagamento ente as partes.
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Por requerimento de 24.4.2018 veio a exequente requerer a renovação da execução, ao abrigo do disposto nos artigos 808º e 850º, nº 4, do CPC, alegando que os executados não cumpriram o acordo e que, face aos pagamentos efetuados, o último, realizado em novembro de 2016, a quantia exequenda ficou reduzida, à data de 24 de abril de 2018, a 245.422,03 €, sendo 231.032,31 € de capital e o remanescente de juros e respetivo Imposto de Selo.
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Em 3.5.2018, o Sr. SE proferiu decisão declarando a renovação da instância, com observância do disposto no nº 4 do artigo 850º do CPC, e determinou o prosseguimento da execução pelo valor de € 245.422,03.
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O executado T. L. veio reclamar desta decisão considerando que a quantia indicada para o prosseguimento da execução está incorreta visto que, face aos valores recebidos pela exequente, a execução apenas deve prosseguir pelo valor de € 42.730,27.
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A exequente reconheceu os pagamentos efetuados e referidos pelo executado, com exceção do valor de 174.780,92 €, que sustenta ter sido imputado a outro valor em dívida, que vinha sendo exigido coercivamente nos autos de execução ordinária nº 505/16.1T8GMR. Sustentou a imputação feita ao abrigo dos arts. 783º e 784º do Cód. Civil e concluiu, assim, ser o valor exequendo de €: 217.511,19, acrescido de juros à taxa de 4% desde 06 de junho de 2016.
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O executado sustentou que tendo a exequente recebido no âmbito do processo de insolvência a quantia global de €: 575.576,50, para pagamento parcial do crédito ali reclamado e que englobava além da quantia exequenda nestes autos e no processo nº 505/16.1T8GMR, ainda outro crédito, devia ter feito entre os três créditos parcelares um rateio, assim imputando a dita quantia de 174.780,92 €, ao pagamento parcial destes autos, em conformidade com o regime previsto nos arts. 172º e ss do CIRE como aplicável.
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Sobre esta questão foi proferido despacho que decidiu:

julgar parcialmente procedente a reclamação do ato de solicitador, determinando o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de €: 217.511,19, acrescida de juros à taxa de 4% desde 06 de junho de 2016.
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O executado T. L. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 03/10/2019 (e notificada ao recorrente em 07/10/2019), que julgou parcialmente procedente a reclamação de ato do Agente de Execução (doravante, AE) e determinou o prosseguimento do processo executivo para pagamento da quantia de € 217.511,19.
2. Com a apresentação do recurso, pretende o recorrente impugnar a mencionada decisão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 639.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC), com vista à respetiva revogação, por considerar que o Tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente as normas de direito relevantes para o caso.
3. Embora não se ignore que a decisão recorrida versa sobre a reclamação de ato do agente de execução, e, por isso, é – nos termos do artigo 723.º/1 c) do CPC – aparentemente irrecorrível terá de ser feita, no caso, uma interpretação restritiva da norma vinda de aludir.
4. Das posições assumidas pelas partes e do próprio teor da decisão recorrida resulta inequívoco que a questão em apreço excede a mera dúvida sobre a correção de um cálculo aritmético, revestindo, antes, a natureza de um verdadeiro litígio, de um conflito acerca do alcance económico do poder de agressão do património do executado que cabe à exequente neste processo executivo.
5. Neste caso, deve admitir-se, portanto, o recurso do despacho judicial proferido sobre reclamação apresentada pelo executado contra a decisão do AE de prosseguimento da execução para pagamento de determinado valor, por estar em causa um verdadeiro litígio sobre o montante pelo qual a execução deve prosseguir, consubstanciado numa divergência sobre a forma de imputação de valor (€ 575.576,50) recebido pela exequente, em sede de rateio, no âmbito do processo de insolvência de uma outra executada (a X) em que se mostrava reclamado e reconhecido o mesmo crédito que está na base da presente execução, assim se interpretando restritivamente a alínea c) do n.º 1 do art.º 723.º do CPC, na medida em que uma ideia de irrecorribilidade absoluta colidiria com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (art.º 20.º/1 e 4 da Constituição da República Portuguesa).
6. No referido sentido, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 11/07/2019, no âmbito do processo n.º 13644/12.9YYLSB-C.L1-2.
7. O Tribunal a quo deu como assente, na decisão recorrida, que, “No âmbito do processo de insolvência da executada Casa De Saúde ..., SA a exequente recebeu a quantia global de €: 575.576,50, para pagamento parcial do crédito ali reclamado e que englobava além da quantia exequenda nestes autos e no processo nº 505/16.1T8GMR, ainda outro crédito.”
8. O Tribunal a quo concluiu, e bem, que a única questão controvertida é a de saber se a exequente/recorrida estava obrigada a fazer, entre os créditos parcelares que compunham aquele que globalmente reclamou no processo de insolvência, um rateio para imputação do valor ali globalmente recebido.
9. O recorrente entende ter havido erro na determinação da norma aplicável ao caso e/ou quanto ao sentido em que as normas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas, com influência na decisão do incidente suscitado.
10. Entende o Tribunal a quo que, se é certo que as normas previstas nos artigos 783.º e 784.º do Código Civil estão previstas para ser aplicadas às situações de cumprimento voluntário pelo devedor, não se encontra motivo para não serem aplicáveis nesta situação em que os valores são obtidos fora do âmbito dos respetivos processos, e, bem assim, que por não estarmos no processo de insolvência não é admissível a aplicação das normas dos artigos 172.º e ss do CIRE.
11. Todavia, resulta do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 31/01/2017, no âmbito o processo n.º 519/10.5TYLSB-CE.L1.S1, que “A imputação do cumprimento de crédito reconhecido no âmbito de processo de insolvência faz-se por aplicação das regras dos arts. 172.º e segs. do CIRE, não havendo lugar à supletividade dos artigos 783.º a 785.º do CC”.
12. Os artigos 783º a 785º do Código Civil reportam-se à espontânea ação de cumprimento pelo devedor, ou seja, à realização da prestação a que está vinculado perante o credor.
13. As normas respeitantes à imputação do cumprimento – artigos 783º a 785º do CC – pressupõem a ocorrência de um pagamento voluntário, situação que no caso presente não se verifica.
14. O valor recebido pela exequente/recorrida no PEI da executada X resultou de um rateio parcial levado a cabo na sequência da venda, pela via coerciva, em sede de liquidação do ativo, do património desta.
15. Entender que as regras contidas nos artigos 783.º a 785.º do CC são aplicáveis aos pagamentos realizados a um determinado credor em sede de processo de insolvência é – salvo o devido respeito por melhor opinião – subverter a própria génese das ditas normas.
16. O pagamento efetuado a determinado credor em sede de processo de insolvência de um devedor resulta de rateio levado a cabo, na sequência da venda (por regra), pela via coerciva, em sede de liquidação do ativo, do património do insolvente.
17. Os artigos 783.º a 785.º do CC foram concebidos apenas para as situações de cumprimento voluntário.
18. Basta atentar - por exemplo - no teor do artigo 783.º/1 do CC para perceber que a referida norma não pode ser aplicada a uma situação de pagamento realizado a um credor em sede de processo de insolvência, nomeadamente porque ali é dada a possibilidade ao devedor de escolher as dívidas a que o cumprimento se refere, sendo consabido que lei não concede qualquer prerrogativa a um insolvente – ou aos seus fiadores/avalistas – para, na iminência da realização de um pagamento a determinado credor em sede de processo de insolvência, escolherem as dívidas/obrigações que pretendem cumprir.
19. Também não se mostram aplicáveis as regras supletivas do artigo 784.º/1 do CC, uma vez que elas pressupõem que o devedor pudesse fazer a designação, o que, como já se viu, não acontece no caso que nos ocupa.
20. Entende o recorrente que devem ser aplicadas as normas previstas nos art. 172.º e ss do CIRE, que regem os pagamentos em sede de processo de insolvência, na medida em que o que releva para a aferição da forma de imputação é a natureza do processo em que foi recebida a quantia aqui em causa (€: 575.576,50).
21. Resulta dos documentos juntos aos autos que a recorrida reclamou e viu-lhe reconhecido, no PEI da X, a quantia global de € 1.009.275,15 (que foi a tida em conta para efeitos de realização do rateio parcial no dito PEI).
22. Resulta ainda dos documentos juntos aos autos que o crédito reclamado pela recorrida no PEI tem origem em três operações distintas, a saber: a) Contrato de empréstimo com livrança avalizada celebrado a 6 de junho de 2011 - € 306.478,88; b) Garantia Bancária n.º 79/07.00014 e Aditamento - € 700.000,00; c) Contrato de Depósitos de conta à Ordem com o n.º 79-1937135, datado de 20/08/2007 - € 2.796,27; e que a todos os referidos créditos foi atribuída natureza comum.
23. Estando na base da presente execução o contrato de Empréstimo de 6 de junho de 2011 (ou seja, uma das operações cujo crédito foi reclamado no PEI da Casa da executada X) e tendo a exequente recebido a quantia global de € 575 576,50, em sede de rateio parcial, no âmbito do dito processo, a referida verba tem de ser imputada proporcionalmente às operações que deram origem à sua reclamação de créditos., fazendo-se, entre os créditos parcelares que compunham aquele que a recorrida globalmente reclamou no processo de insolvência, um rateio para imputação do valor ali recebido.
24. Fazendo-se, entre os créditos parcelares que compunham aquele que a recorrida globalmente reclamou no processo de insolvência, um rateio para imputação do valor ali recebido, terá de concluir-se que, tendo a exequente (tal como os demais credores comuns) recebido o valor correspondente a 57% dos créditos reconhecidos e verificando-se que, com referência ao Empréstimo de 6 de junho de 2011, ali (no PEI) reclamou € 306.478,88, a recorrida já recebeu, por conta deste valor, a soma de € 174.780,92, ou seja, pouco mais de 57% de € 306.478,88.
25. Não pode a exequente/recorrido, salvo o devido respeito por melhor opinião, imputar a totalidade do valor recebido no PEI da X à divida emergente de apenas uma operação, ignorando as demais (nomeadamente a que está na origem da presente execução) e o facto de, no PEI, terem sido 3 as operações na base da Reclamação de Créditos.
26. Se a exequente procedeu, internamente, da forma referida na conclusão 25, entende o recorrente que procedeu mal.
27. O que revela para a aferição da forma de imputação dos valores recebidos por um credor é o modo como o pagamento é realizado (de forma voluntária ou involuntária) e não o processo onde possa ter de comunicar-se o pagamento parcial.
28. Uma coisa são as regras de imputação do valor recebido por determinado credor e outra a comunicação, no âmbito de um processo judicial, do modo como o credor decidiu fazer a imputação.
29. Terá de decidir-se que a soma de € 575.576,50 recebida pela exequente/recorrida em sede de rateio parcial do processo de insolvência da executada X (correspondente a 57% dos créditos que lhe foram reconhecidos, todos eles com natureza comum) tem de ser imputada proporcionalmente/rateadamente às 3 operações que deram origem à sua reclamação de créditos naquele processo.
30. Em consequência da referida imputação proporcional/rateada, e tendo a recorrida reclamado € 306.478,88 no PEI da executada X com referência à operação na origem da presente execução, terá de ser deduzida a soma de € 174.780,92 (cerca de 57%) ao capital em dívida, reduzindo o mesmo para € 42.730,27.

Sem prescindir,
31. Caso se entenda que são de aplicar ao caso as normas de imputação do cumprimento previstas no Código Civil (artigos 783.º a 785.º), sempre terá de ser excluída a aplicação do artigos 783.º/1 e 784.º/1.
32. Como já se referiu, o artigo 783.º/1 do CC nunca poderá ser aplicado a uma situação de pagamento realizado a um credor em sede de processo de insolvência, nomeadamente porque ali é dada a possibilidade ao devedor de escolher as dívidas a que o cumprimento se refere, sendo consabido que a lei não concede qualquer prerrogativa a um insolvente – ou aos seus fiadores/avalistas – para, na iminência da realização de um pagamento a determinado credor em sede de processo de insolvência, escolherem as dívidas que pretendem cumprir.
33. Também não se mostram aplicáveis as regras supletivas do artigo 784.º/1 do CC, uma vez que elas pressupõem que o devedor pudesse fazer a designação, o que, como já se viu, não acontece no caso que nos ocupa.
34. Em consequência, terá de ser aplicado, no limite, o artigo 784.º/2 do CC (por impossibilidade de aplicação dos artigos 783.º/1 e 784.º/1), o que conduz a uma solução idêntica à já defendida pelo recorrente.
35. Também por força do artigo 784.º/2 do CC, a soma de € 575.576,50 recebida pela exequente/recorrida em sede de rateio parcial do processo de insolvência da executada X terá de ser imputada proporcionalmente/rateadamente às 3 operações que deram origem à sua reclamação de créditos naquele processo, pelo que tendo a recorrida reclamado € 306.478,88 no PEI da executada X com referência à operação na origem da presente execução, terá de ser deduzida a soma de € 174.780,92 (cerca de 57%) ao capital em dívida, reduzindo o mesmo para € 42.730,27.
36. O argumento de que outra solução – contrária à encontrada pelo Tribunal a quo - se afiguraria contrária à segurança e certeza jurídicas, considerando os atos praticados no processo n.º 505/16.1T8GMR e o estado dos mesmos, sempre se dirá que o recorrente não pode ser prejudicado pelo simples facto de a recorrida ter decidido, mal, imputar todo o valor por si recebido no PEI da executada X à dívida reclamada naquele processo.
37. A redução da dívida exequenda em € 575.576,50 no processo n.º 505/16.1T8GMR resultou de um ato voluntário da recorrida, do qual, de resto, o recorrente só teve conhecimento na sequência da reclamação que apresentou no presente processo, pelo que as eventuais consequências do dito ato só à mesma podem ser imputadas.
38. Deverá ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que decida que € 174.780,92 dos € 575.576,50 recebidos pela recorrida no PEI da executada X terão de considerar-se pagos por conta da dívida exequenda, que deverá ser reduzida no referido montante, e que, em consequência, a execução apenas poderá prosseguir para pagamento da quantia de € 42.730,27 (€ 400.000,00 - € 357.269,73), acrescida de juros, à taxa de 4%, desde 6 de junho de 2016
39. O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 172.º e segs. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, mais concretamente o artigo 176.º do referido diploma.
40. O Tribunal a quo violou ainda o disposto nos artigos 783.º, 784.º e 785.º do Código Civil, tendo interpretado erradamente as referidas normas, relativas à imputação do cumprimento, no sentido de as considerar aplicáveis a pagamento realizado a um credor em sede de processo de insolvência, nomeadamente as regras supletivas contidas no artigo 784.º/1 do CC.
41. Os artigos 783.º, 784.º e 785.º do Código Civil deveriam ter sido interpretados no sentido de não serem aplicáveis à imputação do valor recebido pela recorrida no PEI da executada X, por não estar em causa um pagamento voluntário.
Sem prescidir,
42. Entendendo-se que as normas do Código Civil relativas à imputação do cumprimento (artigos 783.º, 784.º e 785.º) são aplicáveis ao valor recebido pela recorrida no PEI da executada X, deverá considerar-se serem insuscetíveis de aplicar, no caso concreto, os artigos 783.º/1 e 784.º/1, por impossibilidade legal de o devedor e/ou de os seus fiadores/avalistas fazerem a designação das dívidas a que o cumprimento se refere, antes se aplicando o art.º 784.º/2, com as legais consequências.”
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Não foram presentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão relevante a decidir consiste em saber se a exequente/recorrida estava obrigada a fazer, entre os créditos parcelares que compunham o crédito que globalmente reclamou no processo de insolvência da Casa de Saúde ..., S.A., um rateio para imputação do valor de € 575 576,50 ali globalmente recebido.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1) O SE determinou o prosseguimento da execução para pagamento de € 245.422,03, sendo € 231.032,31 de capital e € 14.389,72 de juros e respetivo IS;
2) Exequente e executados celebraram, em 30/09/2014, um acordo de pagamento da quantia exequenda em prestações, tendo fixado o respetivo montante em € 400.000,00;
3) Em cumprimento do acordo, os executados ... e T. L. procederam ao pagamento de uma primeira prestação de € 80.000,00 (na data de assinatura do acordo de pagamento), bem como de 17 prestações de € 4.507,04 cada uma, no montante global de € 156.619,68;
4) A exequente recebeu ainda, por conta da dívida exequenda, em novembro de 2016, a quantia de € 25.869,13 no Processo Especial de Revitalização em que era devedora a executada ....
5) No âmbito do processo de insolvência da executada CASA DE SAÚDE ..., SA a exequente recebeu a quantia global de €: 575.576,50, para pagamento parcial do crédito ali reclamado e que englobava além da quantia exequenda nestes autos e no processo nº 505/16.1T8GMR, ainda outro crédito.
6) A exequente imputou a totalidade do valor recebido no processo de insolvência da executada X, SA ao valor em execução no processo nº 505/16.1T8GMR, requerendo ali a redução da quantia exequenda em conformidade.

Para além destes factos e dos referidos no relatório há ainda a ter em conta o seguinte facto que resulta da certidão junta aos autos:

7) A exequente reclamou no processo de insolvência da executada X, S.A. um crédito no valor global de € 1 009 275,15, sendo:
a) € 306 478,88 relativos ao contrato de empréstimo com livrança avalizada celebrado em 6.6.2011 e que é um dos créditos objeto destes autos;
b) € 700 000,00 referentes à garantia bancária 79/07/00014 e aditamento;
c) € 2 796,27 referentes ao contrato de depósito de conta à ordem nº 79-1937135, data de 20.8.2007.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

Como referido, a questão a decidir consiste em saber se a exequente/recorrida estava obrigada a fazer, entre os créditos parcelares que compunham o crédito que globalmente reclamou no processo de insolvência da Casa de Saúde ..., S.A., um rateio para imputação do valor de € 575 576,50 ali globalmente recebido.
A exequente reclamou no processo de insolvência da CASA DE SAÚDE ... a quantia global de € 1 009 275,15.
Esta quantia referia-se a três créditos parcelares, mais concretamente ao crédito reclamado nestes autos e a outros dois créditos.
A exequente não imputou no crédito destes autos qualquer valor recebido no processo de insolvência. Ao invés, a quantia de € 174 780,92, que é a que se mostra aqui em discussão, foi imputada no processo de execução nº 505/16.1T8GMR.
É quanto a esta imputação que o executado apelante se insurge pois considera que este valor, correspondente à parte proporcional do crédito que foi reclamado na insolvência e que aí obteve pagamento parcial, tinha que ser imputado no crédito desta execução, por força das regras do rateio dos arts. 172º e ss do CIRE. Ao invés, a exequente considera que nos termos dos arts. 783º e 784º, do CC, podia escolher em que crédito deveria imputar o valor recebido, pelo que imputou tal valor ao crédito da execução nº 505/16.1T8GMR.
A decisão recorrida acolheu o entendimento da exequente e considerou lícita a imputação da quantia de € 174 780,92 no crédito da execução 505/16.1T8GMR.
Vejamos então se esta imputação é ou não correta.
Os arts. 783º a 785º do CC integram a subsecção V, com o título Imputação do Cumprimento, da Seção I com o título Cumprimento.
Estas normas referem-se às situações de cumprimento voluntário pois para as situações de realização coativa de prestação através de ação de cumprimento e execução regem as normas dos arts. 817º e ss do CC.
Para além da inserção sistemática das referidas normas dos arts. 783º a 785º do CC apontarem no sentido de se tratar de normas aplicáveis a situações de cumprimento voluntário, também da leitura das mesmas se chega a idêntica conclusão.
O art. 783º refere-se às situações em que o devedor efetua uma prestação ao credor para pagar diversas dívidas da mesma espécie, prestação essa que não chega para extinguir a totalidade das dívidas. Nessa hipótese, o art. 783º, nº 1, do CC, permite que seja o devedor a escolher quais as dívidas a que o cumprimento se refere, respeitando, porém, tal escolha, as limitações referidas no nº 2 do mesmo preceito.
Em idêntica hipótese, mas em que o devedor não faz tal escolha, regula o nº 1 do art. 784º, do CC, em que termos deve ser feita a imputação estabelecendo que o deve ser na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data.
Trata-se, assim, de regras supletivas que operam sempre que o devedor não tenha designado a dívida que pretendia cumprir, nos termos do nº 1 do art. 783º, ou que tenha feito tal designação, mas sem respeito pelas limitações introduzidas pelo nº 2, do mesmo normativo legal.
Caso as regras supletivas não permitam ainda assim solucionar a questão, determina o nº 2 do art. 784º, do CC, que a prestação se presumirá feita por conta de todas as dívidas, rateadamente.
Como se disse, estas normas estão pensadas em primeira linha para as situações de cumprimento voluntário da obrigação, e não para as situações de cumprimento coercivo.
A exequente obteve na insolvência da CASA DE SAÚDE ..., S.A. a quantia de € 575 576,50 para pagamento dos três créditos parcelares descritos em 7) que reclamou e cujo valor global era de € 1 009 275,15.
O crédito da exequente era um crédito comum, como resulta do mapa junto aos autos.
Dispõe o art. 176º, do CIRE, que o pagamento aos credores comuns tem lugar na proporção dos seus créditos, se a massa for insuficiente para a respetiva satisfação integral.
Tal é a situação dos créditos reclamados na insolvência pois, tendo os mesmos o valor global de € 1 009 275,15, a exequente só recebeu parte do crédito, no valor de € 575 576,50, por a massa insolvente não ser suficiente para pagamento de todos os créditos reclamados.
Tendo o pagamento sido efetuado no âmbito do processo de insolvência, a norma que tem que ser aplicada é a do art. 176º do CIRE e não o regime dos arts. 783º e 784º do CC, como pretende a exequente.
E isto porque, em primeiro lugar, se o pagamento foi feito no processo de insolvência o regime aplicável tem de ser o do CIRE, mais concretamente o disposto no art. 176º. Nesse diploma não é feita nenhuma remissão para os arts. 783º e 784º, do CC e os mesmos, como se viu, são primordialmente aplicáveis a situações de cumprimento voluntário e não de cumprimento coercivo.
No sentido de inaplicabilidade do regime dos arts. 783º e 784º do CC a situações de cumprimento coercivo, veja-se o Acórdão do STJ, de 31.1.2017, (in www.dgsi.pt) onde se entendeu que “as normas respeitantes à imputação do cumprimento – artºs 783º a 785º do CC – pressupõem a ocorrência de um pagamento voluntário, situação que no caso presente não se verifica, pois o imóvel ajuizado foi vendido em execução fiscal. Independentemente disso, e com carácter decisivo, deve dizer-se que a pretensão do recorrente colide com as normas aplicáveis do CIRE, quer quanto à graduação de créditos, quer quanto ao respetivo pagamento. Não sofre dúvida, com efeito, que o artº 785º do CC não tem aplicação relativamente a crédito a reconhecer em sede de verificação e graduação de créditos no âmbito de um processo de liquidação judicial de instituição de crédito. Em tal caso, as regras aplicáveis são as próprias do regime de insolvência, previstas nos artºs 172.º e seguintes do CIRE, que em parte alguma remete supletivamente para as normas do Código Civil.”

Verifica-se que no mapa de pagamento do processo de insolvência o crédito da exequente figura como um crédito de € 1 009 275,15. Porém, tal sucede por razões meramente formais decorrentes do facto de a exequente aí ter reclamado o valor global dos três créditos. No entanto, do ponto de vista substancial, trata-se de três créditos distintos e autónomos, os quais não perdem tais caraterísticas por a exequente ter reclamado um valor global em vez de ter reclamado três créditos individuais.
Essa opção, que até nos parece correta do ponto de vista da simplificação processual, em nada afeta ou altera o facto de se tratar de três créditos que como tal devem ser tratados e analisados.
Daí que seja absolutamente irrelevante que no mapa figure um único crédito daí não se podendo retirar nenhum argumento no sentido de que “em sede de insolvência – como resulta do mapa de rateio parcial junto ao requerimento do executado de 17/Maio/2019 – nada foi determinado quanto à imputação do pagamento“ para concluir, como o faz a decisão recorrida, que a exequente podia fazer livremente a imputação no cumprimento.
Nada foi dito no mapa sobre a imputação nem tinha que o ser. Trata-se de três créditos, o valor da massa insolvente não permitia satisfazer os mesmos na íntegra, pelo que foi feito o pagamento rateadamente, ou seja, na proporção dos créditos, em conformidade com o que consta do art. 176º do CIRE. A determinação do valor a pagar foi feita relativamente a um único valor correspondente à totalidade do valor reclamado apenas porque a exequente aí reclamante apresentou uma reclamação global.
Todavia, o valor global recebido na insolvência referente ao crédito global reclamado tem correspondência com cada um dos três créditos reclamados, na proporção dos mesmos. Por isso, a quantia de € 174 780,92 é correspondente proporcionalmente ao crédito descrito em 7) a) que é um dos créditos objeto destes autos.
A exequente não podia socorrer-se das normas dos arts. 783º e 784º do CC e decidir ela própria que valores imputava a cada um dos três créditos reclamados porque a imputação tinha que respeitar a regra da proporcionalidade estabelecida no art. 176º do CIRE, aplicável ao processo de insolvência no qual a exequente obteve o pagamento.
Assim sendo, a quantia de € 174 780,92, que é referente ao crédito destes autos em função do pagamento proporcional obtido na insolvência, não podia ter sido imputada no crédito objeto da execução nº 505/16.1T8GMR, sob pena de violação do disposto no art. 176º, do CIRE.
E repare-se que não estamos a aplicar as normas dos arts. 172º e ss do CIRE fora do processo de insolvência, como se diz na decisão recorrida. Bem pelo contrário, tais normas são aplicáveis no processo de insolvência pois no mesmo foi obtido o pagamento parcial de cada um dos três créditos. Esse pagamento parcial decorrente da insolvência e com aplicação das normas próprias de tal processo tem depois de se refletir nos processos judiciais em curso que têm tais créditos como objeto.
Pelo que, a exequente, em obediência à regra da proporcionalidade do art. 176º do CIRE, deveria comunicar a cada um dos processos judicias que tinham tais créditos como objeto qual o valor proporcional que recebeu na insolvência referente a cada um deles, reduzindo-os na medida de tal recebimento.
E, assim sendo, conclui-se que o valor de € 174 780,92 que no âmbito do processo de insolvência se referia à parte do crédito reclamado que também é objeto destes autos tem que ser imputado no valor que ainda permanece em dívida nesta execução.
Como tal, sendo o valor acordado de € 400 000 (facto 2), tendo sido feito pagamentos de 156 619,68 (facto 3), tendo sido obtido o pagamento da quantia de € 25 869,18 no âmbito do processo de revitalização da executada ... (facto 4) e havendo que imputar ainda a quantia de € 174 780,982 referente à parte proporcional do crédito obtido no processo de insolvência da X, totalizam tais valores a quantia de € 357 269,73, pelo que resta pagar a quantia de € 42 730,27.
Assim sendo, tem razão o apelante, devendo a execução prosseguir unicamente para pagamento da quantia referida.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida a qual deve ser substituída por outra que determine o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de € 42 730,27, acrescida de juros à taxa de 4% desde 06 de junho de 2016
Custas da apelação pela apelada.
Notifique.
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Guimarães, 23 de janeiro de 2020

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Jorge Santos