Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
44/14.5GAMSF.G1
Relator: ALCINA DA COSTA RIBEIRO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
OMISSÃO
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. O despacho de pronúncia e não pronúncia deve enumerar os factos indiciados e não indiciados.
II. A omissão de falta de enumeração dos factos indiciados e não indiciados num despacho de não pronúncia traduz uma nulidade sanável e dependente de arguição.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

1 – Nestes autos de inquérito-crime em que é participante e assistente, o Município de M.., foi proferido despacho de arquivamento do inquérito por falta de indícios da prática pelo arguido José L., de um crime de subtracção de documento previsto e punido pelo artigo 259º, do Código Penal.

2 – O assistente, inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, requereu a abertura de instrução, visando a sua pronúncia do arguido pelos factos e normas legais que constam no requerimento de abertura de instrução de fls. 82 a 116.

3 – Finda a instrução, foi proferido despacho de não pronúncia do arguido.

4 – Inconformado, dele, recorre, o Assistente, extraindo da respectiva motivação as conclusões que se transcrevem:

«1º) Nos termos do preceituado no artº 308º, nº 2, e 283º, nº 3, al. b), do CPP, o despacho de pronúncia ou não pronúncia contém (deve conter), sob pena de nulidade, a narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou uma medida de segurança.

2º) Sucede que, como flui do despacho recorrido, a Mmª Juiz de Instrução apenas fez constar da decisão ora posta em crise breves considerações genéricas de concordância com o despacho de arquivamento, tendo sido “omitida completamente a decisão fáctica, não se descrevendo nem especificando quais os factos do requerimento instrutório que se consideram suficientemente indiciados, nem os que como tal se não consideram”.

3º) Em consequência, deve o despacho de não pronuncia recorrido ser revogado, o qual deverá ser substituído por outro que supra a omissão consistente na falta da enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, por referência ao requerimento instrutório.

4º) Sem prescindir, os factos descritos na participação de fls., são susceptíveis de integrarem, no mínimo, a prática pelo denunciado/arguido de um crime de subtracção de documento, p. e p. pelo artº 259º do CP.

5º) Ora, dos elementos de prova recolhidos no inquérito, incluindo as declarações prestadas pelo arguido, resulta, além do mais, de forma clara e inequívoca o seguinte:

- O arguido no dia 14 de abril de 2014, pelas 14.30, dirigiu-se aos serviços de Obra da Câmara Municipal de M. a fim de consultar o processo de obras nº 29/2012, em que é requerente António B., id. a fls. 18-19;

- Quando estava a consultar o processo, a determinada altura referiu que a assinatura que constava dos documentos- peças desenhadas - que constituíam, além do mais, um aditamento ao mesmo processo, não era igual à constante dos restantes documentos da autoria de Rui Faria, id. a fls. 53, arquitecto/técnico responsável pelo mesmo, insinuando que a assinatura tinha sido falsificada.

- Então, o Engº Luís A., responsável pela Divisão de Obras do Município de M, e que se encontrava junto do arguido, respondeu que se a assinatura tinha sido falsificada só poderia ter sido por ele, dado que foi ele quem procedeu à entrega dos referidos documentos (participação de fls 5, autos de inquirição de testemunhas de fls. 17, 19, 21 e 23)

- Ato contínuo e brusco, o arguido pegou nos referidos documentos e saiu do local (serviço de obras da Câmara Municipal de M.), levando-os consigo.

- Por sua vez, o Engº Luís A. tentou impedir que o arguido levasse consigo os documentos - requerimento/aditamento, desenhos dos alçados e corte do edifício, informação técnica e aprovação, despacho e notificação ao requerente - o que não conseguiu.

- Além dos desenhos dos alçados e corte do edifício, cuja autenticidade da assinatura foi posta em causa pelo arguido, o mesmo também retirou do processo administrativo um requerimento assinado pela testemunha id. a fls. 18-19, na qualidade de requerente do respetivo processo de obras, documento que tinha aposto dois pareceres/informações técnicas, sendo uma delas de aprovação subscrita pelo id. Engº Luís A., e, ainda, o respetivo despacho e notificação.

- O arguido não procedeu à devolução dos referidos documentos junto da Câmara Municipal de M, nomeadamente da Divisão de Obras.

- Não se encontrando, assim, juntos ao aludido processo de obras os documentos a que se fez referência (requerimento/aditamento, desenhos dos alçados e corte do edifício, informação técnica e aprovação, despacho e notificação ao requerente), e que determinaram o deferimento da pretensão do requerente (do processo de obras).

6º) Não obstante, a Exma. Senhora Procuradora Adjunta, concluindo pela não verificação dos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal do referido crime, proferiu o competente despacho de arquivamento.

7º) Não se conformando, o aqui recorrente, por considerar que a factualidade em causa e a prova constante dos autos, impunham, isso sim, que fosse deduzida a competente acusação, requereu a abertura da instrução, conforme requerimento de fls. 96 e segs. que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.

8º) Porém, a douta decisão em análise concluiu que o despacho do “MP de arquivamento dos presentes autos não merece qualquer censura uma vez que não se apuraram indícios suficientes de que o arguido tenha praticado o crime em causa (ou qualquer outro)”

9º) Ora, como se escreveu no requerimento de abertura de instrução, não é minimamente aceitável que alguém, como o arguido, e sob qualquer pretenso pretexto, possa dirigir-se a um serviço ou repartição pública, subtrair dum processo que corra termos nesse mesmo serviço ou repartição determinados documentos, abandonar o local, não os devolver, e não ver essa conduta devidamente censurada do ponto de vista penal…!

10º) A verdade é que o artº 259º, nº 1 do CP, preceitua que “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, destruir, danificar, tornar não utilizável, fizer desaparecer, dissimular ou subtrair documento ou notação técnica, de que não pode ou não pode exclusivamente dispor, ou de que outra pessoa pode legalmente exigir a entrega ou apresentação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”

11º) Porém, não obstante haver aqui uma intenção típica reportada a um certo resultado (causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo), o crime previsto naquela norma visa proteger a integridade, a manutenção e a disponibilidade dos documentos ou notações técnicas, enquanto meios de prova, e não diretamente o prejuízo resultante da sua subtracção ou destruição. (Ac. STJ de 19.01.1994 – SASTJ, nº 27, 76)

12º) Ora, no caso em apreço, e no que respeita ao benefício ilegítimo, é o próprio arguido que se elege ao declarar, a fls. 47-47vº, que resistiu á tentativa do Engº Luís A. lhe retirar os documentos e que “só sairia daquele local na presença da GNR”, que “com medo que lhe retirassem os documentos trouxe-os consigo, de forma a salvaguardar a posição do processo”.

13º) Por outro lado, é apodíctico que a mesma conduta causou um prejuízo ao assistente, aqui recorrente, ao requerente do respetivo processo de obras, a todos aqueles que, por qualquer motivo legítimo, tenham/teriam interesse na obtenção de uma certidão dos documentos subtraídos.

14º) Sublinhe-se que o arguido além de ter subtraído uns documentos - desenhos dos alçados e corte do edifício – cuja assinatura referiu ter sido falsificada, também retirou do processo administrativo um requerimento assinado pela testemunha id. a fls. 18-19, na qualidade de requerente do respetivo processo de obras, que tinha aposto dois pareceres/informações técnicas, sendo uma delas de aprovação, e, ainda, o respetivo despacho e notificação.

15º) Assim, a situação em apreço também respeita a documentos cuja validade e autenticidade não é, nem pode ser, posta em causa e, seguramente, não são da responsabilidade e/ou autoria do arguido ou do arquitecto para quem trabalha.

16º) O arguido, como pessoa esclarecida que é, não podia, nem pode, desconhecer que a sua conduta era e foi apta a causar um prejuízo ao aqui recorrente.

17º)E o prejuízo manifesta-se, repete-se, no facto de não se encontrar junto ao aludido processo administrativo os documentos a que se fez referência, bem como os desenhos que determinaram o deferimento da pretensão do requerente (do processo de obras).

18º) Vale isto por dizer que o arguido pôs em causa a manutenção e a disponibilidade dos referidos documentos – ainda que se exclua os de autenticidade duvidosa - enquanto meios de prova que constavam do processo de obras.

19º) De resto, não deixa de ser curioso que o arguido com a sua conduta comprometeu irremediavelmente a possibilidade de se apurar em sede própria, a única, que é a judicial, se efectivamente a assinatura dos documentos juntos ao processo administrativo foi, ou não, falsificada.

20º) Deste modo, também pôs em causa a manutenção e a disponibilidade dos referidos documentos enquanto meios de prova de uma pretensa falsificação…

21º) Finalmente, quanto à verificação de qualquer ato ardiloso, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem, de modo a obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo, é por demais evidente que também está presente.

22º) Na verdade, o arguido não era o técnico responsável pelo projecto, sendo apenas um estudante de arquitectura, o que era do conhecimento dos funcionários da Câmara Municipal, em particular dos da Divisão de Obras, e tratando-se de um meio pequeno, em que todos se conhecem, não é de estranhar que lhe tenham confiado o discutido processo a fim de o examinar.

23º) Ora, o arguido aproveitando-se dessa facilidade subtraiu os referidos documentos e fugiu porta fora, de nada valendo os apelos do responsável pelo serviço, o id. Engº Luís A..

24º) Destarte, sem mais e maiores considerações, também nesta parte a conduta do arguido preenche o aludido requisito.

25º) Sendo certo que o arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, com o propósito concretizado de subtrair documentos e notações técnicas de que não podia, sem mais, dispor, conformando-se com esse resultado que representou, e conhecendo a proibição legal da sua conduta.

26º) Atento o exposto, e salvo melhor opinião, a Mmª Juiz de Instrução deveria ter concluído pela verificação de indícios suficientes, consubstanciados na factualidade alegada, quanto aos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal do crime em causa, e, em consequência proferir a competente decisão de pronúncia em relação ao arguido José L..

27º) Assim, a douta decisão em mérito, também violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto, entre outros, no citado artº 259º do CP, e no artº308º, nº 1, 1ª parte, do CPP».

5 – A Ex.ma Senhora Magistrada do Ministério Público, em primeira instância, defende a manutenção da decisão recorrida, pelos motivos que melhor constam a fls. 188 a 203.

6 - Nesta Relação, a Digna Procuradora – Geral Adjunta pronuncia-se pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso

7 - Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II – THEMA DECIDENDUM

Sabido que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas Conclusões do recorrente, as questões a decidir consistem em saber se:

1) O despacho de não pronúncia é nulo;
2) Os autos contêm indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de subtracção de documento.

III – A DECISÃO RECORRIDA

A decisão instrutória objecto deste recurso tem o seguinte teor:

«Luís A. apresentou participação criminal contra José L., melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de subtracção de documento, p.p. pelo artigo 259.ºdo CP.

Aberto o competente inquérito veio o mesmo a ser arquivado nos termos do despacho de fls. 73 e segs..

Inconformado, o assistente Município de M. requereu a abertura da instrução (fls. 96 e segs.), não tendo requerido quaisquer diligências de prova.

A abertura da instrução foi admitida (despacho de fls. 146).

Foi realizado o necessário debate instrutório.


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O Tribunal é competente, inexistem nulidades, incidentes ou questões prévias de que importe conhecer.

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Nos termos do artigo 286º do CPP a instrução visa, designadamente, a comprovação judicial de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

De acordo com o art. 308º do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respectivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.

Por «indícios suficientes» para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a possibilidade razoável de que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal III, 2000, p.179), pronunciar o arguido apenas e só “quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido” .


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No caso dos autos está em questão a subsunção dos factos apurados ao tipo legal do crime de subtracção de documento p.p.pelo artigo 259.º do CP.

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Tendo em atenção os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em causa, importa analisar o caso na perspectiva dos argumentos invocados no requerimento de abertura de instrução para abalar a decisão de arquivamento, tendo em consideração toda a prova produzida, fazendo sobre esta um juízo global. Assim:

Diz o assistente que, ao contrário do que se sustenta no despacho de arquivamento, se verificam, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime em causa visto que resultam dos autos indícios de que o arguido subtraiu documentos do processo de obras que deu entrada na Câmara Municipal de M., os quais posteriormente entregou ao arquitecto da obra, alegando que a assinatura que deles constava não era da autoria deste último, sendo irrelevante se o arguido deles se apropriou definitivamente ou não dos documentos que não lhe pertenciam.

As diligências realizadas no inquérito encontram-se sintetizadas a fls. 73 e 74.


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As questões suscitadas prendem-se, assim, com a crítica aos fundamentos da decisão de arquivamento baseada numa alegada incorrecta interpretação da norma jurídica aplicável aos factos em apreço.

Concluiu o MP pela não verificação de indícios suficientes quanto aos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal do crime em causa, não tendo o arguido deles se apropriado com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou outra pessoa benefício ilegítimo.

Em conformidade com o recorte típico proporcionado pelo art.259.º do Cód. Penal, comete o crime de subtracção de documento «quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, destruir, danificar, tornar não utilizável, fizer desaparecer, dissimular ou subtrair documento ou notação técnica, de que não pode ou não pode exclusivamente dispor, ou de que outra pessoa pode legalmente exigir a entrega ou apresentação».

Através da incriminação jurídico penal em apreço, pretendeu o legislador conferir segurança no tráfico jurídico - probatório em geral, protegendo a integridade e a disponibilidade de meios de prova que se consubstancia, em documentos ou notações técnicas.

Deste modo, apenas se integram na previsão deste tipo legal de crime as condutas descritas que tenham tido por objecto um documento verdadeiro, uma vez que tratando-se de um documento falso nos termos gerais o agente será punido pela falsificação de documento.

Para que determinada conduta possa ser reconduzida à factualidade ora analisada é necessário que o agente do crime se aproprie fraudulentamente do documento que estava em poder de outra pessoa, privando o titular da capacidade de utilização do documento como meio de prova ou no mínimo retendo temporariamente o documento, impedindo deste modo que possa ser utilizado como meio de prova.

A possibilidade de reconduzir determinando comportamento à previsão típica da norma incriminadora suporá, ainda, a existência de uma específica intenção – de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo -, quando o agente não actua com esta intenção não preenche todos os elementos do tipo do ilícito, aqui se distinguindo dos crimes de dano ou de furto.

Analisaremos o caso dos autos com referência aos apontados elementos objectivo e subjectivo do ilícito em causa.

Ora, da análise de toda a prova recolhida nos autos não pode deixar de concordar-se com os fundamentos vertidos no despacho de arquivamento quanto à inexistência de indícios quanto ao preenchimento dos elementos do tipo em referência. É que, se é verdade (como refere o assistente, que não pode o arguido, sob qualquer pretexto, dirigir-se a um serviço ou repartição pública e subtrair documentos de um processo que aí corra termos e não os devolver, tal não significa que baste uma mera subtracção para consubstanciar um crime. É necessário, como atrás se sublinhou, que tenham sido recolhidos «indícios suficientes» no sentido também atrás já exposto. E é isso que se não verifica nos autos quanto à verificação de qualquer acto ardiloso, com intuito de lesar ou ludibriar outrem, de modo a obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo. O que resulta dos autos é que o arguido ao desconfiar da falsidade da assinatura do arquitecto aposta nos documentos que analisou, agrafados a um processo de obras pendente na Câmara M., levou consigo tais documentos com o intuito de os exibir ao referido arquitecto, para quem trabalhava e a quem os entregou para esse efeito.

Ainda, como atrás se referiu, se possa reprovar a conduta do arguido ao subtrair documentos sobre os quais não tinha disponibilidade jurídica, antes a obrigação de respeitar a titularidade de quem os detinha, in casu, o assistente, da sua actuação cujo mote deu a conhecer ao funcionário da Câmara, não se pode extrair a ilicitude ínsita no normativo em referência, porquanto para além de não ter usado de qualquer engano na obtenção dos documentos, não agiu com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, nem de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, antes pretendeu dar a conhecer ao autor do projecto de arquitectura, para quem prestava serviços, situações/anomalias que tais documentos retratavam e que na sua perspectiva interferiam com o trabalho daquele, não obstante não se considerar justificado o comportamento por si adoptado.

Acrescente-se, a propósito, que o próprio participante Luís A. reconheceu que assinatura aposta no documento/aditamento levado pelo arguido e que constava do processo de obras da Câmara era diferente da que resultava de outros documentos, tendo o próprio arquitecto reconhecido não ser da sua autoria.

No caso em apreço, como vimos o que se pretende punir não é a violação do património, mas a faculdade probatória que a titularidade do documento comporta.

Isto posto, conjugada toda a prova produzida em inquérito, não resulta indiciada a prática pelo arguido do crime de subtracção de documento a que alude o art. 259,º ou qualquer outro pelo qual pudesse ser pronunciado, pelo que o despacho de arquivamento não merece qualquer censura.


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Tudo ponderado, entende-se que a decisão do MP de arquivamento dos presentes autos não merece qualquer censura e uma vez que não se apuraram indícios suficientes de que o arguido tenha praticado o crime em causa (ou qualquer outro), e, em conformidade, profere-se a consequente decisão de NÃO PRONÚNCIA».

IV – DO MÉRITO DO RECURSO

1.Nulidade do despacho de não pronúncia

Para o recorrente o despacho de não pronúncia é nulo por não fazer qualquer referência aos factos que o tribunal recorrido julgou como indiciados e não indiciados, devendo, por isso, ser substituído por outro que enumere aquela factualidade.

O Ministério Público, em primeira instância, defende que, ao contrário do que acontece com a sentença, a lei não exige que o despacho de não pronúncia enumere os factos indiciados e não indiciados.

Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta é da opinião que o despacho de não pronúncia deve conter os factos indiciados e não indiciados. A violação deste dever é, no seu entender, cominada com nulidade dependente de arguição, nos termos do artigo 120º, do Código de Processo Penal.

Importa, assim, decidir se a lei impõe que o despacho de não pronúncia enumere os factos indiciados e não indiciados e, na afirmativa, qual a cominação para a sua falta.

A este propósito, salvo o devido respeito pela opinião contrária, reiteramos a posição que já assumimos, como Adjunta, no Acórdão da Relação de Coimbra de 16 de Junho de 2015 (www.dgsi.pt), onde se escreveu:

«É por demais consabido que a decisão de pronúncia, tal com a de não pronúncia, assume a natureza de acto decisório, porquanto assim são definidos os despachos dos juízes, quando, não se tratando de sentenças, puserem termo ao processo, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Além disso, tal como decorre do artigo 308º do CPP, o despacho de não pronúncia (aquele que aqui tem relevo) tem de conter os elementos referidos no artigo 283.º, n.ºs 2 e 3, sem prejuízo da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 307.º, do CPP, em que se consagra que o juiz pode fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.

Com efeito, de modo a permitir que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela decisão de pronúncia ou não pronúncia, torna-se necessário saber qual a base indiciária tida por assente pela 1.ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido.

Por isso, o despacho de não pronúncia há-de elencar, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de prova indiciária».

No caso em apreço, a decisão instrutória – de não pronúncia – omitiu a enunciação dos que factos julgou indiciados e não indiciados, não dando, assim, cumprimento ao determinado no artigo 308º, nº 2, do Código de Processo Penal.

Verificada a inobservância desta imposição legal, vejamos, agora, quais os seus efeitos, não desconhecendo a controvérsia jurisprudencial que, também, esta questão tem suscitado.

Quanto a nós, já o dissemos, assumimos posição no Acórdão da Relação de Coimbra acima referenciado, no sentido de que a falta de narração dos factos indiciados e não indiciados constitui uma nulidade sanável, pelos fundamentos expostos no Acórdão da Relação do Porto de 7 de Julho de 2010, já sobejamente repetidos em vários Arestos que seguem esta orientação, dos quais recordamos:

«É certo que o artigo 308.º, n.º2, do C.P.P., prescreve ser «correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283.º, n.º2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º1 do artigo anterior».

O «despacho referido no número anterior» é o despacho de pronúncia ou de não pronúncia.

A não descrição dos factos acarreta a nulidade do despacho, tendo em vista o disposto no artigo 283.º, n.º3, alínea b).

Esta nulidade não faz parte do elenco de nulidades descritas nas alíneas a) a f) do artigo 119.º do C.P. Penal.

Ainda assim, admitimos que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade – por omissão dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento - seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema.

Realmente, se a falta de narração dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, levando à rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º3, alínea b)], não faria sentido que a falta de factos no despacho de pronúncia não pudesse ser objecto do mesmo tipo de conhecimento em sede de recurso.

Por outras palavras: os casos referidos no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm nas previsões das alíneas do n.º 3 do artigo 283.º reconduzem-se a uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.

Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.

Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição.

E, como tal, deveria ter sido arguida, em local e tempo próprio e não em recurso».

No nosso caso, não tendo o assistente arguido, junto do tribunal recorrido, nos dez dias seguintes à notificação da decisão instrutória (foi lida no dia 28 de Abril de 2015), a nulidade invocada (artigo 105º, do Código de Processo Penal), encontra-se esta sanada.

Naufraga, assim, esta pretensão do recorrente.

2. Indícios suficientes

Para o recorrente, o probatório recolhido no inquérito permite concluir pela existência de indícios suficientes da prática pelo arguido de uma crime de subtracção de documento previsto e punido pelo artigo 259º, do Código de Processo Penal.

Dispõe o artigo 286º, nº1, do Código de Processo Penal que:

«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Por seu turno, estabelece o artigo 308º, nº 1 do Código de Processo Penal:

«Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

A função da instrução destina-se, pois, a apreciar se foram colhidos indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado pelo assistente, no requerimento de abertura de instrução.

Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança (artigos 283º, nº 2 e 308º, nº 2, do Código de Processo Penal).

Trata-se da «(…) probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal…(Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª edição, Verbo 1999, páginas 99 e 100).
Ou, como ensina Figueiredo Dias - Direito Processual Penal, 1.º volume, 1974, pág. 133 - «(…) os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. E mais adiante, «tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase do julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».

Delimitado o conceito de indícios suficientes e subsumido os factos ao direito, somos a concluir que, neste particular, nenhum reparo merece a decisão recorrida.

Ora, estabelece o artigo 425º, n.º 5 do CPP que:

«Os acórdãos absolutórios enunciados no artigo 400º, n.º 1, al. d), que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada».

Este preceito é, a nosso ver, aplicável ao despacho de não pronúncia, porquanto, não obstante as diferenças técnico-jurídicas de um acórdão absolutório, aquele tem o mesmo sentido e efeito que este: a não responsabilização penal do arguido.

Neste sentido, decidiram o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Julho de 2003 (Processo n.º 2304/03 - 5.ª Secção) e o Acórdão da Relação de Lisboa, de 09.04.2013 (Processo nº 1208/11.9TDLSB.L1).

O mesmo é dizer que, se o acórdão do tribunal de recurso confirmar um despacho de não pronúncia, pode limitar-se a negar provimento ao recurso através de remissão para os fundamentos da decisão sindicada.

No caso dos autos, depois de reapreciada a prova indiciária, chegamos à mesma conclusão que o tribunal a quo - não há indícios que o arguido tenha praticado o crime que lhe é imputado pelo assistente – não só pelos fundamentos que melhor constam na decisão recorrida e para a qual remetemos, nos termos do citado artigo 425º, mas também, porque os elementos probatórios vão no sentido de clarificar qual foi a intenção do arguido quando subtraiu os documentos: a de dar conhecimento ao autor do projecto de arquitectura, para quem prestava serviços, as irregularidades que tais documentos espelhavam e que na sua perspectiva, interfeririam com o trabalho daquele.

Ora, o crime imputado pelo assistente ao arguido, previsto e punido pelo artigo 259º, do Código Penal, pune com pena de prisão até 3 anos, ou multa:

«Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, (…) subtrair documento ou notação técnica, de que não pode ou não pode exclusivamente dispor, ou de que outra pessoa pode legalmente exigir a entrega ou apresentação».

A redacção deste preceito não deixa dúvidas de que se trata de um crime intencional, em que o agente tem de actuar com uma específica intenção, a de «causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”.

Logo, se o agente não age com esta intenção, não se preenche, um dos elementos do ilícito.

Donde, bem andou o tribunal a quo, quando julgou não indiciados estes factos.

V - DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao Recurso interposto pelo assistente, Município de M..

Custas pelo Assistente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCS.

Guimarães, 2 de Novembro de 2015

Alcina da Costa Ribeiro

Luís Coimbra