Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
536/07.2TBFAF.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO
MÚTUO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Se para a celebração do contrato de mútuo a lei exige a escritura pública, a falta desta não pode ser sanada através da utilização de um documento particular ou por prova testemunhal.
2. Porém, essa impossibilidade de substituição apenas releva para não permitir que se façam valer os efeitos do negócio, como se fosse válido, mas não já para provar a celebração de um negócio nulo por falta de forma, e pretender os efeitos, justamente, da nulidade.
3. Assim, nada obsta à utilização da prova testemunhal para a demonstração de que foi celebrado um mútuo nulo por falta de forma e, por essa via, fazer operar os efeitos da respectiva nulidade.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
A….., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B….. e C…., pedindo que seja declarado nulo e de nenhum efeito, por falta de forma, o contrato de mútuo verbal celebrado no final de 2004 entre si e os Réus, tendo por objecto a quantia de € 23.000 e, em consequência, que os Réus sejam condenados a restituir-lhe essa quantia, acrescida dos juros legais vencidos desde a data em que tal quantia devia ser restituída até Janeiro de 2007, no valor de € 2.611,29, e dos vincendos, desde esta última data até efectivo pagamento.
Em fundamento da sua pretensão alega, em síntese, que os Réus eram seus amigos e clientes, tendo essa amizade surgido em virtude da sua actividade profissional de dono de uma agência automobilística e da actividade do Réu de comerciante de automóveis, tendo este último com o decorrer do tempo ganho a confiança do Autor, a qual aproveitou para lhe pedir emprestados € 23.000,00.
O Autor acedeu a tal pedido de boa fé, entregando aos Réus no final de 2003, em numerário, a referida quantia de € 23.000,00, sem juros, que estes receberam em mão e ficaram de lhe pagar em Março seguinte, destinando-a à compra de automóveis importados para revenda.
A Ré contestou aceitando apenas que o marido era comerciante de automóveis e contrapondo que se encontra separada do marido há vários anos, desconhecendo o seu paradeiro, além de que sempre viveu da agricultura, garantindo as despesas do agregado familiar com a ajuda de familiares, pois o Réu nunca contribuiu para o sustento da casa.
O Réu foi citado editalmente.
O Ministério Público foi citado em representação do Réu e também não apresentou contestação.
Dispensada a audiência preliminar, foi elaborado despacho saneador o qual concluiu pela existência de todos os pressupostos processuais e pela validade e consistência da instância, com subsequente enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória, sem reclamação.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, com gravação da prova, sendo a matéria de facto controvertida decidida pela forma constante do despacho de 194 a 197, sem reclamação.
Por fim, foi proferida a sentença, que julgando a acção parcialmente provada e procedente:
a) declarou a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre o Autor….. e o Réu …. no final de 2003 no montante de € 23.000, por falta de forma;
b) absolveu a Ré C…. do pedido formulado pelo Autor;
c) condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 23.000, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde 29 de Maio de 2008 até efectivo e integral cumprimento.»
Inconformado com o assim decidido, o Réu, devidamente patrocinado (cfr. procuração de fls. 214), interpôs recurso de apelação da sentença, tendo formulado, a rematar a respectiva alegação, as seguintes conclusões:
1ª - O recorrente considera incorrectamente julgada e, consequentemente, impugna, a decisão sobre a matéria de facto que incidiu sobre os artigos 4°, 5°, 60, 70 80, da Base Instrutória, que se encontra incorrectamente julgada.
1.1 - o Tribunal a quo assentou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas Maria …..; Óscar…… e Elsa ……, ou seja e respectivamente, a esposa do Autor, o cunhado do Autor e a irmã do Autor, O Tribunal a quo não devia valorar positivamente os depoimentos de tais testemunhas, pois, por um lado, os mesmos estão comprometidos com a versão do Autor e, por outro, estão desancorados em qualquer outro elemento probatório, designadamente documental. O modo concertado como as três testemunhas referem a contagem do dinheiro (em maços de notas de 50 sendo um maço aberto ...) oferecem as maiores dúvidas e denotam uma posição comprometida com o Autor e uma notória falta de isenção e credibilidade. Os referidos depoimentos não merecem credibilidade, pois não é de aceitar que tantas pessoas pudessem ter assistido ao pedido de tanto dinheiro, em numerário, alegadamente dirigido pelo apelante ao autor.
1.2 - os referidos depoimentos não foram valorados pelo Tribunal a quo relativamente ao conhecimento que as testemunhas disseram ter relativamente à Ré C…. alusão da sua presença no momento da entrega do dinheiro. Do mesmo modo, tais depoimentos não deviam ser valorados relativamente ao conhecimento que as testemunhas disseram ter relativamente ao pedido do recorrente dos 23 mil euros, à entrega do dinheiro e ao facto de aquele, alegadamente, se ter obrigado a restituir tal importância até final de Março de 2004.
1.3 - O conteúdo das declarações das referidas três testemunhas revelou-se assim suspeito, não tendo o tribunal a quo ponderado bem que têm um relacionamento próximo com o Autor, de índole familiar (esposa, cunhado e irmã) o que contribuiu para abalar a sua credibilidade. O Tribunal a quo baseou assim a decisão de facto ora impugnada em depoimentos totalmente falsos, já que nunca o apelante, oralmente, ou por escrito, pediu qualquer quantia emprestada ao apelado.
1.4 - Os depoimentos das referidas três testemunhas é ainda contraditório no que se refere à quantia exacta que alegadamente foi emprestada. Na verdade, apenas a esposa do Autor refere o valor de 23 mil euros ao passo que o cunhado e a irmã não são precisos.
2ª - Mesmo que assim se não entenda, o que não se concede, mas apenas por hipótese de trabalho se acautela, sempre se diz que a douta sentença violou o disposto no artigo 393°, 1 do Código Civil.
2.1 - Dispõe o n° 1 do artigo 393° do CC que: “1. Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal “. O mútuo é um contrato que consiste no empréstimo de dinheiro ou outra coisa fungível por um contraente ao outro que, por sua vez, fica obrigado a restituir outro tanto, do mesmo género e qualidade - cfr. artigo 1142° do CC. Segundo o artigo 1.143° do CC, na redacção do DL n° 343/98 de 6 de Novembro, é consensual o mútuo até € 2.000 passando a ser obrigatória a assinatura de documento pelo mutuário quanto exceda esta quantia e se quede pelos € 20.000 e a celebração de escritura pública se for superior a este montante.
2.2 - A dar-se por assente - o que não se concede - que no final do ano de 2003, satisfazendo um pedido do Réu, o Autor entregou-lhe a quantia de € 23.000, ficando aquele de lha restituir em Março de 2004, e tendo em atenção a norma que vigora nesse período impunha-se aos contraentes a solenização do negócio por escritura pública.
2.3 - Ora, como se disse, o Tribunal a quo deu por assente que o alegado empréstimo ocorreu apenas com base na prova testemunhal, proibida pelo disposto no n° 1 do artigo 393° do CC, dado que a declaração negocial em causa (mutuo), por disposição da lei (artigo 1143 do CC), deve ser reduzida a escrito.
2.4 - Por isso, dada a falta de documento idóneo para comprovar a celebração do negócio a atestar a sua validade, o Tribunal a quo não podia dar como provado - apenas com base na prova testemunhal - a existência do mútuo. Ao não decidir assim, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 393° 1 do Código Civil.
3ª - Ainda que assim se não entenda, o que não se concede, mas apenas por hipótese de trabalho se acautela, sempre se diz que a matéria de facto provada não permite dar como provado que entre as partes tenha sido celebrado um contrato de mútuo, ainda que inválido por falta de forma. Houve assim erro no julgamento de direito.
3.1 - Afigura-se-nos que o nosso legislador aderiu à tese da natureza real do contrato, sendo a entrega da coisa um elemento essencial e constitutivo do contrato do mútuo, tal como vem ainda hoje constituindo entendimento prevalecente entre nós. Entrega da coisa que, naturalmente e como é bom de ver, não deixará, todavia, de ser tão somente um dos elementos constitutivos do contrato. Na verdade, um contrato mútuo pressupõe, naturalmente, a existência de um acordo de vontades nesse sentido, envolvendo as obrigações (recíprocas) quer da entrega de dinheiro ou de outra coisa fungível ao mutuário, quer da restituição, por este ao mutuante, de outro tanto do mesmo género ou qualidade.
3.2 - Posto isto, basta, a nosso ver, calcorrear a matéria factual que foi dada como assente para verificar, desde logo, que a existência do referido contrato não ficou provada, como provada nem sequer ficou a existência de qualquer um dos aludidos elementos que o constituem. Ónus de prova esse que incumbe a quem invoca tal contrato (art. 342, nº 1). Na verdade, fica-se sempre sem saber a causa (ou a razão de ser) que esteve subjacente ao negócio das partes. Resulta da experiência comum que a quantia de 23 mil euros não é minimamente suficiente para adquirir veículos importados para revenda - como se lê na resposta ao artigo 7° da BI — pois este automóveis são sempre ou pelo menos na grande maioria, de marcas de renome internacional (Mercedes, BMW), muito dispendiosos.
3.3 - Não ficando provado o invocado contrato de mútuo, não se pode sequer falar da sua nulidade, por vício de forma (à luz dos arts 1143 e 294) e, consequentemente, inexiste também o fundamento para o pedido de restituição da referida importância.

O Autor apresentou contra-alegações, defendendo a rejeição liminar do recurso na parte relativa à impugnação da decisão de facto, ou a sua improcedência, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - ÂMBITO DO RECURSO
Sabendo-se que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (arts. 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 3 do CPC, na redacção, aqui aplicável, atenta a data da propositura da acção, anterior à entrada em vigor das alterações introduzidas pelo DL 303/2007, de 24/08), que este Tribunal não pode conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam e que o que há a decidir são questões e não argumentos ou razões invocadas pelas partes, temos como questões essenciais decidendas as seguintes:
- se deve ser alterada a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto;
- se é exigível a forma escrita para demonstrar a existência de um contrato de mútuo que seja nulo;
- se a factualidade dada como provada permite concluir que entre Autor e Réu foi celebrado um contrato de mútuo nulo por falta de forma.

III - FUNDAMENTAÇÃO
A) - OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. O marido da Ré era comerciante de carros [alínea A) dos factos assentes].
2. O Réu era amigo e cliente do Autor [resp. ao artigo 1º da base instrutória].
3. Tal amizade surgiu em virtude das actividades profissionais do Réu referida em 1) e do Autor, dono de uma agência automobilística [resp. ao artigo 2º].
4. Havia entre ambos uma relação de confiança [resp. ao artigo 3º].
5. O Réu pediu ao Autor que lhe emprestasse € 23.000 [resp. ao artigo 4º].
6. O Autor acedeu [resp. ao artigo 5º].
7. No final de 2003 o Autor entregou ao Réu a quantia de € 23.000 em numerário que este recebeu e ficou de lhe pagar até final de Março de 2004 [resp. ao artigo 6º].
8. O Réu destinava a quantia em causa à aquisição de veículos importados para revenda [resp. ao artigo 7º].
9. Artigo 8º: Provado que o Autor instou o Réu a pagar-lhe o montante em causa [resp. ao artigo 8º].
10. A Ré está separada do Réu desde Julho de 2005 [resp. ao artigo 9º].
11. E desconhece o seu actual paradeiro [resp. ao artigo 10º].
12. A Ré cultiva um quintal [resp. ao artigo 11º].
13. Entre 1999 e 2005 a Ré suportava as despesas do agregado familiar com o rendimento social de inserção, bem como com a reforma e pensão de viuvez da progenitora, sendo este o único rendimento desde aquela última data [resp. ao artigo 13º].

B - O DIREITO
Do erro no julgamento da matéria de facto
No que concerne à finalidade e ao regime do recurso em matéria de decisão de facto, é hoje entendimento consensual na doutrina e na jurisprudência que das disposições legais contidas nos artigos 690.º-A, nºs 1 e 2, e 712.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, decorrem estas duas conclusões nucleares:
1ª) que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento realizado na 1.ª instância e a consequente reanálise de todas as provas aí produzidas, mas visa tão só “a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento” (cfr. Lopes do Rego, em Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. I, págs. 468 e 592; e Ac. do STJ de 21.06.2007, Proc. 06S3540, in www.dgsi.pt).
2ª) que não basta ao recorrente atacar a convicção do tribunal recorrido para provocar uma alteração da matéria de facto. É indispensável, “sob pena de rejeição”, que cumpra os ónus de especificação impostos pelos nºs 1 e 2 do art. 690.º-A do Código de Processo Civil, que consistem em:
a) especificar quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
b) indicar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto;
c) desenvolver a análise crítica dessas provas que demonstre que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível ou não é plausível (cfr., entre muitos outros, os Acs. do STJ de 25.09.2006, 10.05.2007 e 30.10.2007, Processos nºs 0654155, 06B1868 e 07A3366, respectivamente, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
In casu, o apelante manifesta a sua discordância com a decisão do tribunal recorrido relativamente aos artigos 4º, 5º, 6º 7º e 8º da base instrutória (nºs 5 a 9 dos factos provados supra).
Porém, como se vê da conclusão 1ª que se subdivide em quatro parágrafos e decorria já do respectivo corpo alegatório, o apelante limita-se a questionar a livre convicção do julgador assente na imediação da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, que decorreu à sua revelia, mas sem que indique quais os meios probatórios que impunham decisão diversa da por si impugnada e qual o sentido dessa decisão.
Parece também esquecer o apelante que no despacho decisório da matéria de facto se encontram devidamente enunciadas as razões que levaram o tribunal a quo a considerar a existência do mútuo, que assentaram nos depoimentos das testemunhas aí referidas.
Mais uma vez se relembra que os depoimentos testemunhais estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art. 655º do CPC, mediante o qual o julgador aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção, a menos que se verifique a situação específica do nº 2 daquele preceito (prova tarifada), o que não é o caso, como adiante melhor se explicitará quando se analisar a 2ª questão objecto do presente recurso.
Porém, mais importante que isso para a decisão a proferir é que, nos termos do disposto no art. 690º-A, do CPC, sob pena de rejeição do recurso, ao recorrente que impugne a matéria de facto caberá indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar nas conclusões), e especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que, em seu entender, impunham decisão diversa quanto a cada um dos factos.
Ora, o que logo verificamos é que a apelante não indica, relativamente a cada ponto em concreto, qual o específico meio probatório que impunha ali decisão diferente, limitando-se a dizer que as testemunhas em causa não merecem credibilidade, alegadamente por serem familiares do Autor.
O apelante mais não faz do que discordar do juízo e da apreciação que o Tribunal a quo fez de todos os depoimentos produzidos. Ou seja, o apelante limita-se a fazer uma interpretação diferente da prova produzida.
Por conseguinte, dada a descrita inobservância ao disposto no art. 690°-A, do CPC, é de rejeitar o recurso relativo à decisão da matéria de facto, o qual, aliás, sempre seria de improceder, já que nenhuma censura merecem as repostas dadas pelo tribunal a quo aos artigos 4º a 8º da base instrutória, as quais encontram o devido suporte nos depoimentos das testemunhas Maria …, Óscar …., Elsa….. e Alberto ……, que se encontram transcritos pelo apelante no corpo das respectivas alegações, sendo que inexistem nos autos quaisquer outros elementos de prova que imponham decisão diversa da recorrida sobre os aludidos artigos da base instrutória.

Da desnecessidade da forma escrita para provar a existência do contrato de mútuo
Afirma o apelante ser exigível a forma escrita para demonstrar a existência do contrato de mútuo.
Dispõe o art. 1143º do Código Civil, na redacção do DL nº 343/98, de 6 de Novembro, que o contrato de mútuo de valor superior a 20.000 euros só é válido se for celebrado por escritura pública e o de valor superior a 2.000 euros se o for por documento assinado pelo mutuário.
Portanto a validade do mútuo dos autos estava dependente de ter sido celebrado por escritura pública, sendo nulo por falta de forma.
Mas, embora o mútuo seja nulo por falta de forma, a entrega pode ser provada, para efeitos de restituição, por qualquer meio (cfr. Ac. da Relação de Lisboa de 11.02.1993, CJ, ano XVIII, tomo I, pág. 141).
Com efeito, como referem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 3ª edição revista e actualizada, 1986, Volume II, pág. 683, em anotação ao art. 1143º, «As razões justificativas do carácter formal do contrato - tiradas da extrema falibilidade da prova testemunhal - levariam, em último termo, a impedir a produção de testemunhas para prova da entrega de dinheiro e sua consequente restituição ao abrigo da nulidade do contrato.
Não se trata, porém, duma consequência forçosa, necessária do regime estabelecido.
Concebe-se perfeitamente que a lei considere bastante a sanção da nulidade do contrato (sem prejuízo da prova testemunhal da entrega da coisa mutuada), para garantir a observância da forma visada.»
Também o Prof. Antunes Varela, RLJ, ano 124º, pág. 251, ensinava que «A ratio legis do preceito – essencialmente fundado no receio de se confiar à prova testemunhal a imposição a alguém de obrigações de valor muito elevado – poderia levar o intérprete a considerar que a lei não admitia, pela mesma razão, o recurso a essa espécie de prova para convencer o tribunal da entrega de quantias superiores às indicadas no artigo 1143º do Código Civil, tendo em vista a simples restituição do objecto da prestação efectuada, ao abrigo da nulidade do contrato.
Mas a doutrina, sem nunca perder de vista os ditames da justiça mesmo perante as mais fortes exigências de segurança do Direito, sempre sofreu mal os efeitos da aplicação radical da ratio destas normas de forma, reagindo contra a injustiça de uma tal aplicação, primeiro, timidamente, através do carro-vassoura do não locupletamento à custa alheia, depois (já mais afoitamente), com o recurso aberto à verdadeira restitutio in integrum contida na nulidade do negócio.»
É também este o entendimento que se colhe dos Acórdãos do STJ de 19.05.2005, Proc. 05B1200, e de 20.09.2007, Proc. 07B1963, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
No último destes arestos escreveu-se o seguinte:
«Se a lei exige determinada forma escrita para a validade de uma declaração negocial, a sua falta não pode ser suprida senão nos termos limitados do disposto no nº 1 do artigo 364º do Código Civil: o documento não pode “ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior”. Isto significa, como se sabe, que a falta de escritura pública não pode ser sanada através da utilização de um documento particular, e muito menos, por exemplo, por prova testemunhal (cfr. ainda o nº 1 do artigo 393º do Código Civil).
Essa impossibilidade de substituição, todavia, apenas releva para não permitir que se façam valer os efeitos do negócio, como se fosse válido; não para, por exemplo, provar a celebração de um negócio nulo por falta de forma – porque não foi reduzido a escritura pública, no caso –, e pretender os efeitos, justamente, da nulidade.
Assim, nada obsta à utilização de documento particular, nem sequer da prova testemunhal ou por presunções judiciais, para a demonstração de que foi celebrado um mútuo nulo por falta de forma e, por essa via, fazer operar os efeitos da respectiva nulidade.»
Não tem, pois, o apelante razão na sua pretensão.

Da existência do contrato de mútuo
Por último afirma o apelante que da matéria de facto dada como assente não resulta provada a existência do contrato de mútuo, pois fica sem se saber a causa que esteve subjacente ao negócio das partes.
Mas não tem razão.
Dispõe o art. 1142º do Código Civil que mútuo é o contrato pela qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto da mesma espécie e qualidade.
Ficaram provados factos que preenchem todos os elementos legais do contrato de mútuo (o empréstimo do apelado ao apelante).
Com efeito, está provado que o Réu pediu ao Autor que lhe emprestasse € 23.000,00, ao que aquele acedeu, tendo-lhe entregue aquele montante em numerário que o Réu recebeu e ficou de lhe pagar até final de Março de 2004.
E, embora a causa do empréstimo não constitua elemento legal do contrato de mútuo, provou-se que aquele se destinou à aquisição pelo Réu de veículos importados para revenda.
Assim, contrariamente ao que sustenta o apelante, estão provados factos suficientes para se dar como demonstrada a celebração, no final do ano de 2003, de um contrato de mútuo no valor de € 23.000,00 entre o Autor, ora apelado, e o Réu, ora apelante, uma vez que está provada a entrega do dinheiro e a assunção da obrigação de o restituir.
Como o mútuo é nulo por falta de forma, por não ter sido feito por escritura pública, nos termos da lei aplicável à data da celebração do contrato (artigos 1143º e 220º do Código Civil), o apelante Réu está obrigada a restituir o que recebeu, acrescido dos juros de mora respectivos, à taxa legal, contados neste caso desde a citação, nos termos do art. 289º, nºs 1 e 3, do Código Civil, como bem se decidiu na sentença recorrida.
Falece, também, neste ponto razão ao apelante.

Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
1. Se para a celebração do contrato de mútuo a lei exige a escritura pública, a falta desta não pode ser sanada através da utilização de um documento particular ou por prova testemunhal.
2. Porém, essa impossibilidade de substituição apenas releva para não permitir que se façam valer os efeitos do negócio, como se fosse válido, mas não já para provar a celebração de um negócio nulo por falta de forma, e pretender os efeitos, justamente, da nulidade.
3. Assim, nada obsta à utilização da prova testemunhal para a demonstração de que foi celebrado um mútuo nulo por falta de forma e, por essa via, fazer operar os efeitos da respectiva nulidade.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
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Guimarães, 18 de Novembro de 2010

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Manuel Bargado

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Helena Gomes de Melo

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Amílcar Andrade