Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
564/17.0T8VVD.G1
Relator: ANIZABEL PEREIRA
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- A diferença de quilómetros, para quase o dobro, no veículo, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pelo vendedor quando o publicitou na internet, estando, assim, afetado de defeito, para efeitos do disposto no artigo 913.º do Código Civil;
- Um dos meios de tutela do comprador é o direito de anular o contrato ( cfr. Art. 905º ex vi art. 913º do CC): consegue reaver o preço que pagou pela coisa e, ao mesmo tempo, fica libertado de ter de suportar a não conformidade daquela com o seu interesse;
- Este direito de anular tem uma natureza distinta do direito de anulação por erro propriamente dito, sendo considerado por alguma doutrina um direito contratual;
- Na venda de coisas defeituosas, não havendo dolo, o comprador deve:
. Denunciar o vício ao vendedor no prazo de 30 dias após o conhecimento do defeito, mas nunca decorridos mais de 6 meses depois da entrega da coisa;
. Propor a ação de anulação até seis meses após a denúncia, mas a todo o tempo enquanto o negócio não estiver cumprido ( art. 916 e 917º do CC).
- A não observância destes requisitos implica a caducidade do direito.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I. Relatório:

J. M. intentou contra D. G. e R. M. a presente acção declarativa sob a forma comum na qual pede que:
a) Seja declarado anulado o contrato de compra e venda celebrado entre o Autor e o Réus, com as legais consequências;
b) Sejam os Réus condenados, solidariamente, a restituírem o valor pago pela aquisição do veículo;
c) Sejam os Réus condenados procederem à restituição de todas as quantias pagas e que venham a ser pagas pelo Autor, quer em reparações, quer em despesas obrigatórias, designadamente o alegado nos artigos 22.º, 23.º, 24.º, 28.º e 29.º;
d) Sejam os Réus condenados a colocarem o Autor na situação em que estaria, caso não tivesse celebrado o presente negócio;
e) Sejam os Réus condenados a pagar, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €1.000,00.

Alega, em síntese, que:

- Por contrato de compra e venda, celebrado entre o Autor e os Réus, no dia 19 de Julho de 2016, aquele adquiriu a estes o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca MERCEDES-BENZ, com a matrícula OE;
- O Autor teve conhecimento do veículo em questão através de publicidade na internet;
- No anúncio eram publicitadas as condições de venda, designadamente, o preço, a quilometragem e demais características do veículo;
- Na referida informação constava que o veículo automóvel em questão possuía a quilometragem de 167.000km, o que, aliado à demais informação, agradou ao Autor, razão pela qual decidiu adquirir o referido veículo, o que fez pelo preço de €12.900,00;
- No dia 19 de Julho de 2016, os Réus deslocaram-se a Acos de Valdevez, mais concretamente à residência do Autor, para procederem à entrega do veículo;
- O pagamento do preço acordado efetuou-se nesse mesmo dia e da seguinte forma: Autor e Réus deslocaram-se ao balcão do Banco ... de Arcos de Valdevez, tendo o Autor procedido à entrega ao Réu D. G. do montante de € 6.000,00 em dinheiro e, simultaneamente, procedeu à transferência da quantia de € 6.900,00 para a conta titulada pelo Réu R. M.;
- Aquando da sua entrega ao Autor, os Réus intitularam-se sócios, solicitando o pagamento da forma descrita e efetuado aos dois;
- O Autor adquiriu o veículo em questão pois teve necessidade de substituir um outro veículo de sua pertença e, atentas as características do veículo em questão, designadamente e essencialmente o modelo, a quilometragem e o preço solicitado, decidiu adquiri-lo;
- Caso o veículo não possuísse as características anunciadas, designadamente, a quilometragem, jamais o Autor o teria adquirido;
- Sucede que, posteriormente, e por circunstâncias alheias à presente situação, o Autor, veio a tomar conhecimento que o referido veículo tinha dado entrada em território nacional, em 2013, com 304.859 Km, tal como consta da Declaração Aduaneira de Veículo;
- O Autor formou a sua vontade negocial atentas as características publicitadas, designadamente o facto que o veículo automóvel possuir a quilometragem em questão, o que foi essencial para decidir adquirir o veículo;
- Ora, tendo em conta que o veículo, há cerca de 4 anos tinha o dobro de quilometragem com que lhe foi vendido, considera-se enganado pelos vendedores;
- Sentindo-se completamente defraudado e enganado, pois que o veículo em questão possui uma quilometragem muito superior à anunciada, desconhecendo em absoluto a mesma;
- Sucede ainda que, após a entrega do veículo em questão e em virtude de, à data, o Autor se encontrar com problemas de saúde, apenas pegou no veículo no mês seguinte;
- Mal começou a circular com o mesmo, detectou-lhe inúmeros problemas, desde logo, teve de substituir dois pneus, pastilhas e alinhar a direção, despendendo, para o efeito, de € 130,00;
- Logo após isto, e em virtude de diversos ruídos no motor, teve de o colocar numa oficina para reparação, tendo procedido à substituição da junta da caixa de velocidades, um filtro da caixa, o óleo da caixa, à lavagem do filtro de partículas, à descarbonização das borboletas da admissão, do tubo, despendido a quantia de € 850,00 e teve, ainda, de substituir a bateria, despendendo a quantia de € 125,00;
- Sucede, ainda, que só agora o Autor tomou conhecimento que o Réu D. G. é proprietário de um Stand automóvel, sem que tenha assegurado a devida garantia pela venda, como lhe competia, razão pela qual não emitiu qualquer fatura ou declaração de garantia, sendo tais encargos, suportados pelo Autor, da responsabilidade do vendedor;
- O Autor pagou, ainda, a título de IUC, a quantia de € 250,61 e de seguro automóvel a quantia de € 233,17;
- Sucede, ainda, que o comprador sofre de problemas nervosos há vários anos, fazendo medicação diária e crónica, pelo que a presente situação em muito agrava o seu estado de saúde ao ponto de nem a própria medicação fazer o devido efeito;
- Sentindo-se profundamente revoltado, nervosos e ansioso, por ter sido enganado e completamente defraudado nas suas expectativas, pois considerava ter adquirido um veículo com relativa pouca quilometragem, vindo a apurar que o mesmo há quatro anos atras já tinha o dobro da mesma, situação que interfere e altera a sua qualidade de vida, agravando o seu estado clínico;
- Danos estes de natureza não patrimonial que merecem a tutela do direito e que deverão ser quantificados em quantia nunca inferior a € 1.000,00.
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Contestaram os Réus, impugnando parcialmente os fundamentos da acção e excepcionando a caducidade do direito invocado pelo Autor, alegando, em síntese, que:

- Conforme resulta da matéria alegada pelo Autor, na sua petição inicial, no caso em análise estamos perante um contrato de compra e venda de um veículo automóvel;
- Ora, não obstante os Réus não aceitarem como reais os factos alegados pelo Autor, quando refere os defeitos ou erro no automóvel que adquiriu, a verdade é que, em qualquer circunstância, e salvo melhor opinião, o direito de aquele fazer valer, em juízo, a sua pretensão, já caducou;
- Resulta dos Autos que o contrato de compra e venda em apreço foi celebrado entre Autor e Réu, no dia 19 de Julho de 2016, tendo-se verificado, nessa mesma data, a entrega do veículo pelo Réu ao Autor e este procedido ao pagamento do respectivo preço;
- Por sua vez, a “denúncia” por parte do Autor aos Réus, relativa ao pretenso defeito ou erro na compra da viatura em questão – denúncia essa que os Réus prontamente rejeitaram – ocorreu no dia 23 de Setembro de 2016;
- Ora, a denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa deve ser efectuada até trinta dias depois de conhecido o defeito;
- Como confessa o Autor na sua petição teve conhecimento dos alegados defeitos logo a seguir à aquisição do veículo, que ocorreu em 19 de Julho de 2016, sendo que, os devia ter denunciado pelo menos até final e Agosto de 2016 e que apenas efectuou a referida denúncia a 23.09.2016;
- Logo, o seu direito de acção caducou, uma vez que a denúncia não foi efectuada dentro dos prazos legalmente previstos;
- Acresce que a presente acção só deu entrada em juízo no dia 13 de Julho do corrente ano de 2017, quando já tinham decorrido mais de seis meses sobre a data da denuncia, prazo esse que a lei prevê para o exercício do seu direito;
- Cumpre esclarecer que não celebrou o Réu D. G. qualquer negócio com o aqui Autor, sendo, por isso, totalmente falso que este lhe tenha entregado qualquer montante a título de pagamento do preço supostamente entre ambos acordado;
- Assim como, não podia nem tinha que prestar qualquer tipo de garantia ou assistência ao Autor por não ter com ele celebrado qualquer negócio;
- Este Réu adquiriu o veículo em questão, em 7 de Dezembro de 2015, a “X Comércio Automóvel, Lda.”, tendo-o posteriormente vendido ao aqui segundo Réu, que, por sua vez, o vendeu ao Autor;
- Note-se que, já em data anterior à aquisição do veiculo pelo Réu D. G. em 7.12.2015, aquele era publicitado no site da X como tendo 166.000 Kms;
- Mas, já em 9.10.2014, aquando da inspecção efectuada ao OE, da documentação com ele relacionada, constava a quilometragem de 158.298;
- Pelo que não podiam, ou mesmo, tinham os Réus motivos para desconfiar que existisse alguma adulteração nos quilómetros do veículo;
- Acontece que, desde que o veículo foi legalizado em Portugal, ou seja, 18.11.2013 até 7.12.2015, existiram quatro proprietários distintos antes dos Réus;
- Sendo que um deles terá, possivelmente, adulterado a quilometragem, não podendo os Réus ser responsabilizados por tal adulteração, uma vez que, aquando da sua aquisição, tal adulteração já existia;
- Logo, qualquer adulteração à quilometragem do veiculo em questão ocorreu muito antes da aquisição do veiculo pelos aqui Réus, que jamais agiram com dolo, má-fé ou qualquer segunda intenção ao negociar a venda do veículo sub judice, antes tendo agido com toda a lealdade e correcção próprias de um bom pai de família;
- Por outro lado, quem celebrou o negócio de compra e venda com o Autor foi o segundo Réu, mas, ao contrário do que foi pelo Autor alegado o preço da mencionada venda foi de € 6.900,00 (seis mil e novecentos euros) e não outro;
- Em momento algum foi referido ao Autor a existência de uma suposta sociedade entre os Réus, sendo que o Primeiro Réu e o Autor não trocaram uma única palavra entre si;
- O Primeiro Réu apenas acompanhou o segundo à moradia do Autor para que aquele tivesse meio de transporte de regresso a Vila Verde;
- Foi o Segundo Réu quem se deslocou ao encontro do Autor a fim de proceder à entrega do veículo, necessitando, desta feita de meio de transporte de regresso a casa, tendo sido essa a única intervenção do Primeiro Réu em todo este negócio;
- Por outro lado, aproveita o Autor esta situação para tentar “arrancar” dos Réus quantias indemnizatórias que não lhe são de todo devidas;
- Na verdade, agradado com o bom estado em que se encontrava o carro, apesar de ser usado, o Autor decidiu comprá-lo, sabendo não estar a comprar um carro novo, um carro a estrear, pelo que não poderia esperar e, tendo em conta o diminuto preço pago, um automóvel com peças novas em folha, pois, se o veículo é usado, as suas peças serão, obviamente usadas;
- O Autor tinha toda a legitimidade, essa sim, de esperar um carro totalmente funcional, o que era o caso, tendo cada um dos Réus procedido a um check-up ao veículo antes de o decidirem vender e verificado que o mesmo estava em perfeitas condições;
- Por fim, as peças objecto de supostas reparações são peças de desgaste, não podendo nunca estar a coberto por qualquer garantia.
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O Autor exerceu o contraditório relativamente à excepção invocada pelos Réus, alegando, em síntese, que:

- A presente ação não se trata da discussão dos defeitos do veículo, sua denúncia ou eventual reparação;
- Trata-se, sim, de uma ação de anulação do negócio celebrado pelo erro a que foi induzido o comprador;
- E, consequentemente, reposição da situação do comprador, tal qual estaria caso não tivesse celebrado o negócio;
- O Autor não denunciou os defeitos, mas, tendo conhecimento efetivo da quilometragem real do veículo, solicitou a anulação do negócio, o que faz tempestiva e oportunamente;
- O Autor apenas tomou conhecimento da quilometragem real, característica fundamental para decisão de aquisição, com a informação da Alfândega;
- O Autor não tem forma ou sequer pretende saber quem viciou o referido veículo automóvel, apenas sabendo com quem e em que moldes contratou;
- Além do mais, toda a negociação foi conduzida pelo primeiro Réu e foi este que apresentou o segundo Réu como seu sócio, impondo as condições de pagamento;
- Os Réus litigam contra a verdade que bem sabem e conhecem, devendo, por isso, ser condenados em multa e indemnização, a favor do Autor, em quantia nunca inferior a €1.000,00.
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Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

a) Anulo o contrato de compra e venda celebrado entre o Autor, J. M., e o Réu R. M., identificado no ponto 1 dos Factos Provados;
b) Condeno o Réu R. M. a restituir ao Autor a quantia de € 12.900,00, correspondente ao valor pago pela aquisição do veículo referido no ponto 1 dos Factos Provados;
c) Condeno o Réu R. M. a pagar ao Autor a quantia de € 1.247,78, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais;
d) Absolvo o Réu D. G. dos pedidos contra si formulados.
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Inconformado com esta decisão, veio o R R. M. interpor recurso, e formula as seguintes conclusões (que se transcrevem):

- Fez o Tribunal a quo uma errada aplicação do direito quando no caso vertente entendeu que se aplicaria o regime jurídico “Falta e Vícios de vontade” legalmente previsto nos artigos.º 240 e ss. do Código Civil, alegando que haveria erro-vicio sobre a declaração de vontade.

O tribunal a quo fez uma errada interpretação quando entendeu que a quilometragem que o veículo em questão possuía, os 166,000 quilómetros, era característica essencial e fundamental na celebração deste negócio.

3ª- O autor nunca se pronunciou, como ficou provado, que se o objecto do negócio não tivesse aqueles quilómetros de origem, não teria interesse na celebração do contrato.

4ª- Assim sendo, nunca estaríamos perante o regime no erro-vicio no objeto, mas sim no regime da venda de coisas defeituosas, que no nosso modesto entendimento e, atendendo ao caso concreto, seria o aplicável.

5ª- O regime jurídico da venda de coisas defeituosas tem assento legal nos arts. 913º e segs. do C.Civil, onde são especificados os direitos que, nessa situação, assistem ao comprador e onde se determina o modo e o prazo de exercício desses direitos.

6ª- O regime jurídico da venda de coisas defeituosas tem assento legal nos arts. 913º e segs. do C.Civil, onde são especificados os direitos que, nessa situação, assistem ao comprador e onde se determina o modo e o prazo de exercício desses direitos.

7ª- No que toca aos prazos, ali se dispõe que, ressalvando o caso de existência de dolo por parte do vendedor, o comprador, tratando-se de coisa móvel (como aqui acontece) deve denunciar o vício ou defeito ao vendedor no prazo de trinta dias após o respetivo conhecimento e dentro de seis meses após a entrega da coisa (art. 916º), sendo que, como dispõe o art. 917º, a ação de anulação por simples erro caduca se a denúncia não for efetuada dentro dos prazos fixados no artigo anterior ou se a ação não for instaurada no prazo de seis meses após a denúncia.

8ª- Atendendo ao caso concreto, o negócio jurídico foi celebrado entre Autor e Réu, no dia 19 de Julho de 2016, tendo-se verificado, nessa mesma data, a entrega do veículo.
Por sua vez a denúncia ocorreu no dia 23 de Setembro de 2016, já passado 30 dias.

9ª- Acresce, que a acção só deu entrada em juízo no dia 13 de Julho do ano de 2017, já tinham decorridos mais de seis meses sobre a data de denúncia.

10ª- Desta feita, verificada que está a caducidade deveria lo tribunal a quo declarar a Acão completamente improcedente.

11ª- Na eventualidade de se entender que andou bem o Tribunal a quo quando aplicou o regime, erro vicio no objecto, deve ter-se presente que nem todo o erro é considerado juridicamente relevante e origina a anulação do negócio realizado.

12ª- As necessidades de segurança e estabilidade do tráfico jurídico exigem que a relevância do erro como fundamento da anulação do negócio dependa de determinados pressupostos, ou seja, é necessário que «concorram certos requisitos».

13ª- Com efeito, dispõe o art.º 251.º do Cód. Civil que «o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira …..ao objecto do negócio, torna este anulável, nos termos do art.º 247.º, que, por seu turno, exige para a respectiva relevância anulatória dois requisitos ou pressupostos: a essencialidade e a cognoscibilidade.

14ª- Resulta destes normativos que o negócio jurídico só é anulável por erro sobre o objecto se esse erro for tal que sem ele a parte não teria celebrado o negócio, ou não o teria celebrado com aquele conteúdo.
É esse o sentido da essencialidade a que se refere o art.º 247º do Cód. Civil e, concluindo-se que a parte teria celebrado o negócio do mesmo modo, ainda que não tivesse incorrido em erro, não haverá já fundamento para o anular.

15ª- Ainda que necessária a essencialidade não é, todavia, suficiente para fazer desencadear o efeito anulatório. Para além da essencialidade é também necessário que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.

16ª- A parte que errou tem, pois, para obter a anulação do negócio «o ónus de demonstrar este duplo requisito: que se não tivesse ocorrido o erro, não o teria celebrado ou não o teria celebrado desse modo, e que a outra parte sabia ou não devia desconhecer que assim era».

17ª- Se o negócio jurídico pudesse ser anulado por erro sobre uma qualquer qualidade do objecto, que fosse essencial para a parte que errou, mas cuja essencialidade fosse surpreendente ou imprevisível, a contraparte no negócio ficaria injusta e excessivamente desprotegida e daí que o art.º 247º do Cód. Civil imponha à parte que invoca o erro o ónus de alegar e demonstrar que, nas circunstâncias do negócio, a outra parte conhecia, ou não devia ignorar, que o quid sobre o qual o erro incidiu era para ela essencial»

18ª- Desta feita, o autor não cumpriu com o ónus da prova que lhe incumbia para se valer deste regime e pedir anulação do contrato, assim como nunca se pronunciou ou declarou, que se o objecto do negócio não tivesse aqueles quilómetros de origem, não teria interesse na celebração do negócio.

19ª- No entanto, perfilhando o douto tribunal a quo o entendimento de que se encontram reunidos os requisitos para a resolução do contrato, não se afigura adequado e proporcional que o R. tenha de devolver ao A. na íntegra o valor recebido.

20ª- Tal restituição configura um enriquecimento injustificado, porquanto o A. circulou com o veículo e deu-lhe destino que se desconhece durante cerca de 3 anos, pelo que é evidente a desvalorização do mesmo, matéria sobre a qual o tribunal a quo devia pelo menos ter-se pronunciado.

21ª - Também andou mal o tribunal a quo na valoração da prova atenta na suposta essencialidade da existência de uma determinada quilometragem para o Autor.

22ª- Note-se que não basta alegar-se em sede de julgamento que tal característica revestia natureza essencial para a decisão de contratar é imperioso provar que tal característica foi previamente comunicada ao Réu.

23ª- Facto que não resulta da matéria dada como provada.

24ª- Por outro lado, dá o Tribunal a quo como provado que o Autor entregou ao Réu R. M. a quantia de 6.000 € em numerário – vide artº 9 dos factos provados.

25ª- Na realidade nenhuma das testemunhas presenciou ou sequer viu a forma de pagamento.

26ª- Na verdade, quando as mesmas são confrontadas com a pergunta se viram o pagamento desse valor apenas respondem com o que lhes foi dito mas nunca por si presenciado.

27ª- Para além de que a única e verdadeira prova que aqui se faz valer é o pagamento que foi feito por transferência bancária ao aqui Réu R. M., no valor de € 6,900.

28ª- Não existe portanto prova suficiente para dar como provado aquele facto do artigo 9 dos factos provados, que deve passar a constar dos factos não provados,

29ª- Obrigando consequentemente a que o artigo 1º dos factos provados tenha uma redacção diferebte quanto ao valor do preço donde deve ficar a constar que o preço foi de 6.900 €.

30ª- Em suma, não se entende como é que o douto tribunal a quo criou uma convicção sem prova bastante, apenas valorando o que as testemunhas dizem ter ouvido, mas que na realidade nunca presneciaram

31ª- Nenhuma das testemunhas arroladas e ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento afirmou ter visto ou mesmo ter conhecimento directo da forma de pagamento.”
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O A não apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1. Da impugnação da matéria de facto (nomeadamente da utilidade do seu conhecimento).
2. Da reapreciação da matéria de direito, no sentido de se considerar a caducidade do direito de ação, como pretendem as recorrentes, por estarmos no âmbito de uma compra e venda defeituosa ( com referência ao pedido de anulação por erro sobre o objeto-qualidades da coisa)ou antes, como considerou ( pelo menos implicitamente) a decisão recorrida, estarmos perante uma mera ação de anulação por erro-vício e que segue os termos do disposto no art. 287º do CC.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

a) Factos provados.

1- Por contrato celebrado entre o Autor e o Réu R. M., no dia 19 de Julho de 2016, aquele declarou comprar a este, que declarou vender, o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca MERCEDES-BENZ, com a matrícula OE, pelo preço de €12.900,00.
2- O Autor teve conhecimento do veículo em questão através de publicidade na internet.
3- No anúncio eram publicitadas as condições de venda, designadamente, o preço, a quilometragem e demais características do veículo.
4- Na referida informação constava que o veículo automóvel em questão possuía a quilometragem de 167.000km.
5- O que, aliado à demais informação, agradou ao Autor.
6- No dia 19 de Julho de 2016, os Réus deslocaram-se a Arcos de Valdevez, mais concretamente à residência do Autor, para procederem à entrega do veículo.
7- O pagamento do preço acordado efetuou-se nesse mesmo dia.
8- O Autor e os Réu R. M. deslocaram-se ao balcão do Banco ... de Arcos de Valdevez.
9- Tendo o Autor procedido à entrega ao Réu R. M. do montante de € 6.000,00 em dinheiro.
10- E, simultaneamente, procedeu à transferência da quantia de € 6.900,00 para a conta titulada pelo Réu R. M..
11- O Autor decidiu adquirir o veículo referido em 1, atentas as características do mesmo, designadamente o modelo e a quilometragem, e o preço solicitado.
12- Caso o veículo não possuísse as características anunciadas, designadamente, a quilometragem, jamais o Autor o teria adquirido.
13- Posteriormente isto, o Autor veio a tomar conhecimento que o referido veículo tinha dado entrada em território nacional, em 2013, com 304.859 Km.
14- O Autor sentiu-se defraudado e enganado, pois que o veículo em questão possui uma quilometragem superior à anunciada.
15- Caso tivesse conhecimento da verdadeira quilometragem do veículo, jamais teria celebrado o negócio referido em 1.
16- Após a entrega do veículo referido em 1 e em virtude de, à data, o Autor se encontrar com problemas de saúde, apenas conduziu o mesmo no mês seguinte.
17- Em 24.08.2016, o Autor substituiu dois pneus e alinhou a direção, despendendo, para o efeito, de € 130,00.
18- Em 5.11.2016, o Autor substituiu a bateria, despendendo a quantia de € 125,00.
19- O Réu D. G. é proprietário de um estabelecimento de venda de automóveis.
20- O Autor pagou, a título de IUC, a quantia de € 250,61.
21- E de seguro automóvel a quantia de € 233,17.
22- O Autor sente-se revoltado, nervosos, ansioso e defraudado nas suas expectativas, pois considerava ter adquirido um veículo com a quilometragem referida em 4, vindo a apurar que o mesmo, há quatro anos atras, já tinha a quilometragem referida em 13.
23- O Autor, por intermédio da sua Advogada, 23 de Setembro de 2016, enviou ao Réu D. G. a missiva junta a fls. 22, na qual se refere, entre o mais, o seguinte:
“Sucede que, o meu constituinte veio agora a tomar conhecimento pelas Autoridades Alfandegárias de que o referido veículo deu entrada em Portugal, há cerca de 3 anos com cerca de 300.000kms.
Ora o veículo foi-lhe vendido como tendo apenas cerca de 167.000kms.
Tal situação, além de ser muito grave, altera completamente as condições do negócio em causa.
Por tal motivo o meu cliente, sentindo-se enganado, pretende anular o negócio celebrado.
Desta forma sou a comunicar que, no prazo máximo de 5 dias, deverão proceder à restituição do montante pago (acrescido da despesas que o cliente entretanto teve com o mesmo) e ao levantamento do veículo.
Decorrido o referido prazo recorreremos há via judicial e às entidades competentes para defesa dos seus direitos”.
24- A presente acção deu entrada em juízo no dia 13 de Julho do corrente ano de 2017.
25- O Réu D. G. adquiriu o veículo em questão, em 7 de Dezembro de 2015, a “X Comércio Automóvel, Lda.”.
26- Em data anterior à aquisição do veiculo pelo Réu D. G., aquele era publicitado no site da “X” como tendo 166.000 Kms.
27- Em 9.10.2014, aquando da inspecção efectuada ao OE, da documentação com ele relacionada constava a quilometragem de 158.298.
28- Desde que o veículo entrou em Portugal e até à data referida em 24, o mesmo teve a sua propriedade, sucessivamente, inscrita em nome de P. T., de F. T., de A. J. e de “X Comércio Automóvel, Lda.”.
29- A adulteração da quilometragem do veículo referido em 1 já existia em data anterior à referida em 24.
30- Na ocasião referida em 6, o Réu D. G. acompanhou o Réu R. M. à moradia do Autor e transportou-o de regresso a Vila Verde.
31- O Autor sabia que o veículo referido em 1 não era um carro novo.
32- As peças referidas em 17 e 18 são peças de desgaste.

b) Factos não provados.

Artigo 1.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 1 dos Factos Provados.
Artigo 9.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta dos pontos 7 a 10 dos Factos Provados.
Artigos 10.º e 11.º da Petição Inicial.
Artigo 22.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 17 dos Factos Provados.
Artigo 23.º da Petição Inicial.
Artigo 24.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 18 dos Factos Provados.
Artigos 25.º e 26.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 19 dos Factos Provados.
Artigos 30.º a 32.º da Petição Inicial.
Artigo 35.º da Petição Inicial.
Artigo 5.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 23 dos Factos Provados.
Artigo 8.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 23 dos Factos Provados.
Artigo 9.º da Contestação.
Artigos 28.º e 29.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 29 dos Factos Provados.
Artigos 30.º e 31.º da Contestação.
Artigos 36.º a 38.º da Contestação, salvo na parte que resulta do ponto 30 dos Factos Provados.
Artigo 46.º da Contestação.
*
A restante matéria alegada pelas partes nos respectivos articulados e não vertida nos “Factos provados” ou referida nos “Factos não provados” é meramente conclusiva ou de Direito.”
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IV. Do objecto do recurso.

1. Da impugnação da matéria de facto ( o R apenas impugnou o facto nº9 dado como provado e que pretende que seja dado como não provado e em consequência retificado o facto nº1 em relação ao preço passando a constar “6.900 euros”).

Tem vindo a ser entendido de forma maioritária pelos Tribunais Superiores (1) que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal da Relação não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos objeto da impugnação não forem suscetíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).
Nessa medida, e seguindo esse entendimento, temos que, no caso em concreto, somos de entender que não se mostra necessária a reapreciação da matéria de facto impugnada, pois que, o presente recurso, ainda que não apreciada tal questão, será sempre de proceder.
De facto, e no que respeita à matéria que o réu/recorrente pretende que seja alterada, a mesma não relevará para a decisão a proferir, como a seguir veremos, porquanto questão prévia de caducidade do direito de ação se impõe apreciar ( em face da restante matéria de facto dada como provada a respeito e não posta em causa por qualquer das partes).
Face a tal, por se tratar de ato inútil, não se reapreciaria a matéria de facto impugnada.
Ainda assim e para outros entendimentos, dir-se-á que a pretendida alteração do ponto 9º dos factos provados para matéria não provada ( e retificação do ponto 1º dos factos provados), conforme pretendido pelo recorrente não tem base que a sustente. O recorrente entende que não se deveria dar como provada a entrega em dinheiro como pagamento do preço da compra no valor de 6.000 euros por nenhuma das testemunhas inquiridas ter presenciado ou sequer visto tal pagamento e apenas respondem com o que lhes foi dito.

Contudo, sem razão.

A respeito na sentença lê-se o seguinte: “ Apreciando criticamente o conjunto da prova produzida, cumpre referir que, no que concerne aos pontos 1, 2, 5, 8, 9 e 10 dos Factos Provados, a convicção do Tribunal assentou nos depoimentos das testemunhas M. F. e A. V., conjugados com as declarações de parte do Autor e com o documento junto a fls.7 dos autos, já acima referido.
Assim, a testemunha M. F. e o Autor relatam, de forma coerente entre si, os termos em que se encontrava anunciada a venda do veículo, nomeadamente, quanto ao respectivo preço, descrevendo com pormenor os termos da negociação havida com o Réu R. M..
Por sua vez, a testemunha A. V. assistiu à conversa entre o Autor e o Réu R. M., havida na agência bancária, na qual foi discutido o modo de pagamento, tendo presenciado o depósito da quantia referida no documento junto a fls. 7 dos autos, mais referindo que viu que o Autor tinha um outro volume idêntico de notas consigo.
Muito embora não tenha visto entregar essas notas ao Réu, ouviu as partes combinar que as mesmas lhe seriam entregues. Por outro lado, se é certo que diz não poder garantir que as mesmas ascendiam ao valor de € 6.000,00, certo é que refere ter ouvido falar no pagamento de € 12.900,00, o que corrobora o relato da testemunha M. F. e do Autor, no que tange ao pagamento do preço.”

Com efeito, revisto aqueles depoimentos testemunhais, ambas as testemunhas prestaram um depoimento coincidente e coerente e, por outro lado, corroboraram as declarações de parte do autor.
Se é bem certo que a testemunha M. F. vive em união de facto com o autor e, nessa medida, aparentemente poderia ter prestado um depoimento parcial, a verdade é que o seu relato coincide com o depoimento da testemunha A. V., testemunha que nenhum interesse demonstra no desfecho da presente ação.
Por estas testemunhas foi relatado terem ouvido A e R a combinar e a falarem abertamente sobre o preço do negócio da compra e venda do veículo: 12.900 euros. A testemunha M. F. ainda pormenorizou a razão de ser desse preço: o preço publicitado na internet era de 13.000 euros e o R retirou 100 euros para compensar o problema de um farol.
A testemunha A. V., enquanto funcionário bancário, foi quem intermediou a operação bancária constante de fls. 7 (transferência de 6.900 euros da conta do autor para o R R. M.). Igualmente, esta testemunha confirmou ter ouvido o autor a dizer ao Réu que tinha o dinheiro todo do negócio e para fazer o pagamento de 12.900 euros, tendo ainda visto o autor com dinheiro na mão. Como assistiu à transferência da conta bancária no valor de 6.900 euros e viu dinheiro na mão do autor, tendo este referido que tinha o dinheiro todo do negócio de 12.900 euros, e tendo-lhe sido entregue o carro pelo réu, então e sem grande apelo às regras da experiência comum apenas uma hipótese se perfila: a quantia entregue em dinheiro apenas poderia cifrar-se na diferença entre 12.900 euros e 6.900 euros, ou seja, em 6000 euros. Ou seja, o dinheiro visto pela testemunha A. V. nas mãos do autor na mesma ocasião em que está a ter lugar o negócio de compra e venda do carro no valor de 12.900 euros, tendo sido transferido da conta 6.900 euros, e tendo sido dito pelo autor “tenho o dinheiro todo”, apenas poderia cifrar-se em 6.000 euros.
Toda a conjugação desta prova torna inverosímil a versão do Réu, em declarações de parte, quando afirma que o negócio foi apenas no valor total do que ressuma do documento ( fls.7- de 6.900 euros). Por outro lado, esta versão não foi confirmada por qualquer outro meio de prova, nomeadamente, o Réu, quem publicitou o veículo, não juntou sequer aos autos o dito anúncio donde se poderia constatar o valor publicitado(!).

No caso sub judicio, o juiz a quo depreciou as declarações dos co-demandados RR e fez bem, nomeadamente em face da conjugação da restante prova produzida e coincidente e coerente e verosímil dentro das regras da experiência comum e lógica dos comportamentos normais.
Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando sequer a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido.
A fundamentação exarada na sentença recorrida é clara e consistente, tendo valorado a prova de forma objetiva, ponderada e crítica.
Nesta conformidade, indefere-se a impugnação de todos os pontos fácticos.
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Considerando que não houve nenhuma alteração introduzida na decisão relativa à matéria de facto, a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III.
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2. Reapreciação de direito.

Perante a manutenção dos factos dados como provados e não provados, cumpre apreciar e decidir se deve ser revogada a sentença proferida em 1.ª Instância, em conformidade com o defendido pelo recorrente.
O recorrente entende que no caso vertente dever-se-ia aplicar o regime da venda de coisas defeituosas e, nessa medida, atenta a matéria de facto dada como provada ocorreu a caducidade do direito de ação, nos termos do art. 917º do CC.
A sentença entendeu que ao caso se aplicaria o regime do erro-designadamente quanto ao prazo de caducidade- e, nessa medida, afastada que estaria a caducidade, declarou a anulação do contrato.

Vejamos.

É pacífico que no caso sub judicio estamos perante um contrato de compra e venda, que a lei qualifica como sendo aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, nos termos do estipulado pelo artigo 874º, do Código Civil (CC).
A questão fundamental em discussão, no presente recurso, traduz-se em saber se ocorre o prazo de caducidade do direito da propositura da ação.

Para aferir de tal questão importa saber como enquadrar o caso vertente:

a) num simples caso de erro-vício e sujeito ao prazo do art. 287º do CC ( conforme analisado na sentença e de acordo com os termos da propositura da ação e decorrentes da petição inicial);
b) ou será antes um caso de venda de coisa defeituosa e sujeito ao prazo dos arts. 916º e 917º do CC;
c) Ou será um caso em que verificados a cumulação de vários regimes, o regime do incumprimento terá aplicação, prejudicando o erro-vício ( no caso de as características ou qualidades do negócio sejam assumidas no próprio negócio, assumindo uma das partes a responsabilidade pela respetiva verificação).

Não se refere poder tratar-se de um caso sujeito ao regime do DL 67/2003 por não se ter provado que se tratou de venda de bens ao consumo por um profissional.

Sem embargo, desde já, diremos que entendemos, no caso vertente, estarmos perante um contrato de compra e venda de coisa móvel que, conforme os factos provados, padece de defeito.
E, embora o A. tenha feito, na formulação do pedido, expresso simples apelo ao erro-vício, o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, apesar de só se poder servir-se dos factos por elas articulados - art.5.º do CPC .

Antes, porém de analisarmos o caso concreto com mais pormenor, para melhor entendermos esta problemática, importa fazer uma incursão sobre algumas noções gerais para se distinguir as situações de erro e incumprimento.

O critério que permite distinguir as situações de erro das situações de incumprimento é o da adequação do negócio efectivamente celebrado entre comprador e vendedor à vontade que cada um quis manifestar em ordem à prossecução do seu interesse respectivo.

O Prof. Carneiro da Frada (2) disserta de modo impressivo sobre esta temática e na perspectiva do comprador, nos seguintes termos:

“… Se o negócio tem um conteúdo correspondente à vontade que o comprador quis emitir , então a sua correcta execução permitirá a satisfação do interesse que o comprador teve em vista ao contratar; quando a coisa efectivamente entregue é inidónea à satisfação dos interesses do comprador, o problema é de incorrecta execução do acordado, isto é, incumprimento.

Ao invés, quando o negócio, no seu conteúdo objectivamente válido, não corresponde ao interesse que o comprador quis prosseguir ( compra de uma coisa com certas qualidades), está claro que a sua execução nunca permitirá a satisfação desse interesse; neste caso, o negócio celebrado pelo comprador é, sem dúvida, inidóneo à prossecução do seu interesse e o problema é de erro.

O que é determinante, pois, para apartar as hipóteses de incumprimento das de erro é ver o modo como se relacionam entre si o ponto subjectivo do comprador e o próprio negócio… O erro, sendo como é exterior ao negócio, nunca pode obter tutela através das normas negociais. O direito de anular o negócio é, para o errante, um verdadeiro direito de arrependimento ( um contra-direito, uma “ exceptio”), concedido contra a validade de um conteúdo negocial objectivamente válido por normas de “regulamentação directa” do ordenamento jurídico, isto é, por normas que se reportam directamente à divergência entre a vontade real do declarante e o sentido juridicamente válido da sua declaração. Ao invés, a tutela do negócio efectua-se através de normas que atribuem à regulamentação privada dos interesses uma relevância jurídica negocial: essa regulamentação é recebida por essas normas, que operam assim como normas de reconhecimento jurídico daquela”.

Saliente-se que uma das implicações deste ponto de vista é o de que o regime do erro nunca poder ser atingido ou modificado em si mesmo, por convenção das partes. (3)

Naquele citado trabalho, dá-se exemplo de erro sobre as qualidades: “ A, por se ter erroneamente convencido de que a aguardente vínica, que ele aliás sabia bem o que era, tinha as qualidades e préstimos próprios da bagaceira para o consumo das noites gélidas de Inverno, comprou 5 l daquela”. Trata-se de uma divergência clara entre a vontade e declaração.

Ainda o regime aplicável aos casos de erro é o que consta dos arts. 247º,248º, 251º e 252º do CC. Adverte ainda o mesmo autor que já não pode o comprador-errante socorrer-se da ação do art. 905º ex vi art. 913, pois este visa tutelar um interesse contratualmente assegurado pelo comprador.

Já não é exemplo de erro o seguinte caso tratado naquele trabalho: “ A entra num stand de venda de automóveis e compra um carro determinado que aí está em exposição. Verificou depois que o carro apresentava defeitos de fabrico do motor”. Aqui o negócio mostra-se perfeitamente idóneo à prossecução da finalidade do comprador em comprar uma coisa sem defeito. Contudo, e para o enquadramento dogmático do caso, e seguindo aquele citado trabalho, a questão que se coloca é a seguinte: mesmo quando o comprador deu ao negócio um conteúdo tal que a sua correta execução permite satisfazer o interesse que o levou a contratar, mesmo quando a coisa entregue não é um aliud, pode o seu programa de aproveitamento das utilidades vir a falhar se a coisa entregue é defeituosa, isto é, apresenta vícios ou falta de qualidades.

Nestes casos está-se no domínio dos casos referidos no art. 913º,nº1 do CC.

As divergências na doutrina cingem-se ao verdadeiro fundamento da tutela que o direito dispensa ao comprador nestes casos.

Para uns ( como o autor supra citado) o fundamento é o contrato, pois que o interesse do comprador em adquirir uma coisa isenta de vícios e com os préstimos devidos se refletiu no próprio negócio, para outros o problema continuaria a ser de erro ( tradicionalmente considerado nos motivos) e isto reportado aos exemplos acima citados: não se poderá dizer que o objeto do acordo de vontades foi apenas a transação daquela aguardente concreta ou daquele carro concreto e que o comprador errara simplesmente na avaliação das qualidades da coisa que comprou?
Trata-se no fundo da questão de saber se se podem incluir ( e se se devem ter por incluídas) as qualidades do objeto a adquirir no acordo negocial.
Se na venda genérica a doutrina tradicional está de acordo na sua resolução ( é a solução do nosso art. 918º do CC), já quanto às hipóteses de venda específica ( os casos acima referidos e que se inclui o caso vertente), o problema tem sido acesamente debatido, o que atesta bem o melindre da questão.
O entendimento mais corrente é o de que no conteúdo do acordo incide apenas sobre a entidade espácio temporal da coisa ( com abstração das qualidades). A coisa entraria no acordo negocial como aquele objeto concreto (4).

Em suma: entendemos que “o erro sobre o objeto não se confunde com os vícios que afetem uma determinada coisa, atenta a existência de ónus, limitações ou defeitos, inviabilizando ou frustrando a utilização a que se destinaria o objeto: o regime mais adequado é, respetivamente, o da venda de bens onerados ( art. 905º-912ºcc) e o do cumprimento defeituoso da prestação ( cfr. Arts. 913- 922º do CC e Dl 67/2003, de 08.04…o que vem dito não exclui a hipótese de cumulação de vários regimes jurídicos, verificados os pressupostos de cada uma das figuras…deve entender-se que o regime do incumprimento tem aplicação, prejudicando o do erro-vício sempre que as características ou qualidades do objeto do negócio sejam assumidas no próprio negócio, assumindo uma das partes a responsabilidade pela respetiva verificação” (5)

Na jurisprudência a questão da viciação dos quilómetros nos veículos vendidos não é nova e são vários os arestos em que em situações similares à dos presentes autos subsumem o seu enquadramento no regime da venda de coisas defeituosas: por ex: Ac da RP de 14.02.2005, 29.09.2015, 10.02.2016; Ac RL de 17.03.2012; AC RG de 23-02-2017. Aliás alguns dos acórdãos citados na sentença fazem tal enquadramento ( vide Ac. STJ de 24.03.2011 e AC. RC de 17.1.2009).

No caso sub judicio:

Não oferece dúvidas de que a diferença de quilómetros, seguramente para quase o dobro, no veículo, tratando-se de carro usado, configura uma desconformidade face ao contrato de compra e venda, pois não estava conforme com a descrição que dele foi feita pelo vendedor quando o publicitou na internet ( cfr. Pontos 1, 2, 3 e 4, 5, 11º,12º e 13º dos factos provados).
Está, assim, afetado de defeito, para efeitos do disposto no artigo 913.º do Código Civil, o veículo automóvel que, ao invés do que dele consta visualmente, tinha cerca do dobro da quilometragem.
Um dos meios de tutela do comprador é o direito de anular o contrato ( cfr. Art. 905º ex vi art. 913º do CC): consegue reaver o preço que pagou pela coisa e, ao mesmo tempo, fica libertado de ter de suportar a não conformidade daquela com o seu interesse.
Este direito de anular tem uma natureza distinta do direito de anulação por erro propriamente dito, sendo considerado por alguma doutrina um direito contratual.
Deve o adquirente fazer a prova do defeito padecido da coisa e como só tem o direito de anular quando se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade por erro ou dolo, a ele incumbe a sua prova: o direito à anulação do negócio por erro ou dolo (art. 905º) concedido ao comprador, exige que se verifiquem os respectivos requisitos de relevância do erro sobre o objecto do negócio (art. 251º) - quer as condições gerais da essencialidade e da propriedade, quer as condições especiais da essencialidade para o comprador do elemento sobre que incidia o erro e o seu conhecimento ou cognoscibilidade para o vendedor (art. 247º, ex vi do art. 251º) - ou do dolo (art. 254º) - dolus malus, essencial ou determinante, intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o adquirente -, e dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento (art. 287º, n.º 1) ou sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção, enquanto o negócio não estiver cumprido pela não entrega da coisa e/ou não pagamento do preço (art. 287º n.º 2).
Pois, constitui requisito específico da relevância do dolo a dupla causalidade, que se verifica quando o dolo seja causa do erro e este, por seu turno, seja causa do negócio.
Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem (art. 254º, n.º 1).


No caso vertente, não foi provado ( por não ter sido alegado) qualquer conduta consubstanciadora de dolo.

Acresce que ainda que se entenda que atenta a factualidade dada como provada nos pontos 3,4,5, 11, 12, 13, 14 e 15 se trata de um caso em que cumulativamente estaríamos perante vários regimes, a verdade é que enquadrado no art. 913º do CC, em que o regime de incumprimento tem aplicação, então ficaria sempre prejudicado o erro-vício, tudo porque as características ou qualidades do objeto do negócio foram assumidas no próprio negócio, quando os quilómetros foram anunciados pelo vendedor ( o que implicou a assunção da sua parte da responsabilidade pela sua verificação) e pesaram na decisão de contratar pelo comprador.

Por conseguinte, enquadrado o caso no art. 913º do CC e não havendo dolo, o comprador deve:

1) Denunciar o vício ao vendedor no prazo de 30 dias após o conhecimento do defeito, mas nunca decorridos mais de 6 meses depois da entrega da coisa;
2) Propor a ação de anulação até seis meses após a denúncia, mas a todo o tempo enquanto o negócio não estiver cumprido ( art. 916 e 917º do CC).

A não observância destes requisitos implica a caducidade do direito.

Há quem entenda ainda que é sobre o comprador que impende o dever de examinar a coisa, daí que o prazo, de seis meses, deva ser contado, não da data da descoberta efectiva, mas daquela em que o defeito deveria ter sido descoberto, caso o comprador tivesse agido diligentemente (cfr. neste sentido Romano Martinez, in ‘Cumprimento defeituoso’, pg. 375 e segs. e, entre outros, Ac. STJ de 26/1/99, BMJ483, pg. 235). (6)
Contudo, as razões que motivaram os prazos curtos em nome da segurança e em desfavor muitas vezes da justiça só não têm razão de ser face ao dolo – cfr. Ac. do STJ (Pinto Monteiro), de 26.6.2001, na Col. Jur. (STJ), 2001-II-134.
Sob este prisma tem sido entendido que da ressalva do n.º 1, do art. 916º, do Cód. Civil, resulta que «havendo dolo (como se o vendedor insinuou a existência infundada de certa qualidade na coisa ou dissimulou o erro em que o adquirente visivelmente se encontrava quanto a determinada propriedade da coisa), o comprador pode intentar a acção de anulação no prazo de um ano a contar do momento em que teve conhecimento do vício ou da falta de qualidade (art. 287º, n.º 1), independentemente de denúncia, na medida em que o art. 917º, do mesmo diploma se refere apenas à acção de anulação fundada no simples erro.

Contudo, não se pode deixar, mesmo nessas situações, de ter em conta que o art. 917.º, do Cód. Civil, fala em caducidade da “acção de anulação”, impondo a unidade do sistema jurídico a sua aplicação a todas as pretensões, tal como defendido por Romano Martinez obra cit., pg. 367 e segs. e no Assento do STJ de 4.2.96, I Série de 30.1.97, entre outros.

Defende-se, assim, que esse prazo de caducidade vale ainda que o vendedor tenha agido dolosamente, na medida em que o dolo só torna desnecessária a denúncia, mas não altera os prazos dos arts. 916.º e 917.º, do CC.

Assim, sopesando todos os factos apurados, que se restringem a uma diferente quilometragem entre a aparente e a real, de cerca do dobro, dado que nenhuma outra factualidade logrou o A. provar quanto à concreta atuação do Ré ( quiçá por não ter sido alegada por forma a consubstanciar uma forma de dolo), não é possível afirmar-se ter o mesmo visado induzir em erro o comprador ou dissimular qualquer erro deste, nem ter determinado aquele concreto negócio, pelo que não se pode, assim, concluir integrar dolo relevante, suscetível de fundamentar anulação da declaração negocial do A., como expresso nos art. 253º e 254º do CC.

O facto é que a ação foi proposta ( em 13.07.2017) muito para além dos seis meses contados após a entrega da coisa ( 19.07.2016) e da denúncia em 23.09.2016 ( cfr. Ponto 6, 23 e 24º dos factos provados), na medida em que se considera que esse prazo vale, nos termos do art. 916º e 917º do CC, para efeitos de simples erro, que é a situação que nos interessa e dada como provada ( e para alguma doutrina para efeitos de dolo).
Caducado estaria, assim, sempre o direito de anulação - e os de indemnização que a este direito andam ligados, nos presentes autos igualmente pedidos -, tudo nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 916º, 917º.

Tem, pois, de proceder totalmente o recurso interposto pelo R./recorrente e revogada a sentença porquanto se considera caducado o direito de ação.
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VI. Decisão.

Por tudo o exposto, acordam as Juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, e consequentemente revogar a decisão recorrida, substituindo-se por outra decisão que julgando verificada a exceção de caducidade do direito de ação, em conformidade, absolve o 2º Réu R. M. dos pedidos contra si formulados.
Custas da ação e do recurso pelo autor.
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Guimarães, 7 de Maio de 2020
Assinado electronicamente por:

Anizabel Pereira
Rosália Cunha e
Lígia Venade



1. Vide, por todos, o AC do STJ de 17-05-2017, in dgsi.
2. In “ Erro e incumprimento na não conformidade da coisa com o interesse do comprador”,in revista o Direito”, 1989, Tomo III,p. 463.
3. Por exemplo, não pode ser validamente excluída por acordo a anulação por erro. Vide em sentido contrário Prof. Mota Pinto, “ Teoria Geral do Direito Civil”, 1983, p.506. Quando muito entender-se-á que haveria alteração do conteúdo do contrato por forma a torná-lo aleatório e nada mais.Neste sentido também Batista Machado, in “ Acordo Negocial e erro na venda de coisas defeituosas”, BMJ 215, p.21 e citado no trabalho acima mencionado de Carneiro da Frada.
4. Esta posição dos que têm entendimento de que a venda de coisas defeituosas apresentam um regime de especialização do regime de erro ( Galvão Teles,Menezes Cordeiro e Pires de Lima e A. Varela, citados por Carneiro da Frada).
5. In Comentário ao CC-Parte Geral- UCP, p. 596,597, Ana Filipa Morais Antunes.
6. Isto mesmo expressava o ditado alemão do tempo medieaval, citado por Carneiro da Frada, in ob cit, p. 480, nota 55: “ Augen auf, Kauf ist Kauf”.