Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ANA CRISTINA DUARTE | ||
Descritores: | ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO CONTRATO-PROMESSA ABUSO DE DIREITO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 02/05/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | 1 - A simples outorga de um contrato promessa de cedência parcial do prédio, sem conversão em contrato definitivo, sem que lhe tenha sido atribuída eficácia real e não assinado por um dos cônjuges (com impossibilidade de execução específica daquele contrato), não constitui uma das hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 1311.º do CC em que pode ser recusada a restituição solicitada pelo proprietário reivindicante. 2 – O abuso de direito pode ser analisado nas vertentes de “suppressio”, “venire contra factum proprium” e desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados. 3 – Em qualquer caso, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO A… intentou contra “C…, Lda.” acção declarativa, pedindo que a ré seja condenada no reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre o prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial, a restituir imediatamente ao autor a parte desse prédio rústico que se encontra a ocupar, livre de pessoas e desembaraçada de coisas e a pagar ao autor a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença, pelo prejuízo produzido pela ocupação ilícita e abusiva da parte do prédio rústico e pela extracção de inertes que está a levar a cabo. Contestou a ré alegando que entre as partes foi celebrado um contrato de cedência da parte do prédio ocupado pela ré, sendo essa a parte que ocupa, tendo sido aí efectuadas construções com o consentimento e colaboração do autor, encontrando-se ainda em fase de recurso o processo 1825/06.9TBBRG, que a ré intentou para exercer o direito de preferência na transmissão do prédio em causa. Replicou o autor, para manter o já articulado na petição inicial e requerer a intervenção provocada de sua mulher L…, a fim de assegurar a legitimidade activa. Aceite o chamamento, contestou a interveniente, no mesmo sentido do autor e alegando desconhecer a invocada cedência de parte do prédio rústico, o que foi contrariado pela ré em tréplica para o efeito deduzida. Dispensada a audiência preliminar, elaborou-se despacho saneador, com definição da matéria de facto assente e base instrutória, que se fixaram sem reclamações. Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, em consequência, condenou a ré a reconhecer que o autor e a chamada são donos e proprietários do prédio rústico descrito no artigo 1.º da petição inicial, a restituir ao autor e à chamada a parte desse prédio rústico que ocupam, livre de pessoas e coisas e a pagar ao autor e à chamada a indemnização que se liquidar pelo prejuízo adveniente da extracção de inertes que aí efectuou. Discordando da sentença, dela interpôs recurso a ré, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes Conclusões: A-Na sua douta sentença o Mmo Sr. Juiz “ a quo “ concluiu pela procedência da acção e consequente condenação da R.. A- 1- Assim, condenou a R. a restituir ao A. e à chamada a parte do prédio desse prédio rústico que ocupam, livre de pessoas e coisas; B- 2- Bem como, a pagar ao A. e à chamada a indemnização que se liquidar pelo prejuízo adveniente da extracção de inertes que aí efectuou. C- 3-Por outro lado, o Mmo juiz a quo pronunciou-se sobre as características, dizeres e consequências do contrato promessa constante dos autos sem que para tal lhe tivesse sido solicitado no pedido que o fizesse. D- Pelo que, com o devido respeito, que é muito, não concorda a R. com tal decisão. F- Desta maneira, quanto ao facto de ter condenado a R. a restituir a parte desse prédio rústico que ocupa, deve referir-se o seguinte: G- O A. e a chamada alegaram e provaram que adquiriram o prédio constante dos autos em 19 de dezembro 2001; ver escritura de compra e venda junta pelo A. na P.I. sob a forma de doc.1 H- por outro lado, foi também dado como provado que o contrato promessa que o A. celebrou com a R. tem a data de 1999. (dois anos antes da aquisição pelos A. e chamada) I- Assim, quando o contrato foi celebrado pelo A. com a R., o prédio ainda pertencia a R…, ver escritura pública de compra e venda junta aos autos pelo A. a fls… sob a forma de doc. 1 da P.I.. J- Por outro lado, conforme resulta provado na resposta à fundamentação da matéria de facto, ver fls… da douta sentença em resposta ao quesito 12 da base instrutória, L- foi dado como provado que a A. edificou o seu escritório e respectiva terraplanagem adjacente M- Tendo-o “…feito com o conhecimento do A. e da chamada e após a celebração do contrato promessa.” sic N- Pelo que, já lá vão 13 anos, ou seja 10 anos após a proposição desta acção, já que o contrato foi celebrado em 1999, doc. De fls 170 e 171. O- Ou seja, quando a R. efectuou as obras em 1999 ainda o A. e a chamada não eram donos do prédio onde aquelas foram efectuadas. P- O dono era a R…, como resulta da referida escritura. CONTUDO, por mera cautela, sempre se dirá que: Q- Pelo que foi dito, nunca o A. ou a chamada impediram tal construção e terraplanagem no prazo de 3 meses, conforme resulta do art. 1343-1c.c. nem até à proposição da presente acção, 13 anos depois da edificação e terraplanagem adjacente. R- Só tendo o A. e a chamada reclamado a entrega da parte do prédio em 1 de junho de 2009, 10 anos após a ocupação e edificação! Através de carta regista com essa data, conforme se mostra provado na resposta ao quesito 7 da fundamentação de facto. S- Assim, sempre se verificaria um abuso do direito, art. 334 C.C., já que, quer o A. quer a chamada, quer a G…, não se opuseram às referidas obras no prazo de 3 meses após ao seu ínicio. T- Desta forma, a verificar-se a destruição do escritório e entrega da terraplanagem adjacente a este, verifica-se para além do referido abuso de direito nos termos referidos, U- um sacrifício desmedido para a R. que neste tempo de crise terá que encerrar as portas e despedir os funcionários que lá trabalham, V- Causando um prejuízo à R. superior ao benefício advindo aos A. e chamada como se deve compreender sem mais, já que sendo os direitos de espécie diferente deve prevalecer aquele que se deva considerar superior: a salvaguarda dos postos de trabalho e viabilidade de uma empresa e a boa-fé nos negócios. X- No fundo A. e R. celebraram o contrato de cedência em 1999, como tudo estava bem, e a R. pagara a totalidade do preço, como foi dado como assente na resposta à fundamentação de facto, Z- a R. começou a construir na parte do prédio, com o conhecimento do A. e chamada, e estes como tudo estava bem, nada disseram nem se opuseram (nem tinham ainda adquirido o prédio). AA- Contudo, nada poderiam dizer já que em 1999, conforme resulta dos autos, o prédio ainda não era propriedade do A. nem da Chamada, já que aquele era propriedade da R…. AB- Por outro lado, nem tão-pouco o Mmo juiz a quo enquadrou a situação nas regras da acessão imobiliária, quer do art. 1340 quer do art. 1343 C.C. AC- Por outro lado, quanto à referida indemnização a pagar pela R. que se liquidar pelo prejuízo adveniente da extracção de inertes que a R. aí efectuou a fim de construir o escritório e terraplanagem adjacente AD- Deve enquadrar-se nos mesmos moldes do abuso de direito, art. 334 e 340 C.C. e por outro lado, declarar-se que os A. e chamada não têm legitimidade para tal, já que o prédio não lhes pertencia nessa data, conforme se referiu. AE- Para além de, tendo a R. realizado tais extracções, as mesmas terem sido feitas com o conhecimento do A. e chamada, e de estes nem a G…, nada terem oposto, há 13 anos! ( embora o prédio ainda nem fosse deles) AF- Por outro lado, uma vez que a R. há mais de 4, 10 anos se apossou dos mesmos, conforme foi referido na douta sentença, estes passaram a pertencer-lhe. Ora, como podem a A. e a chamada exigir que a R. pague o que passou a pertencer-lhe? AG- Com efeito, quer o A. quer a chamada tiveram conhecimento contínuo desde a construção do escritório e da terraplanagem há 13 anos conformou resultou provado na resposta ao art. 12 da base instrutória, ver fls…da douta sentença. AH- Assim, é manifestamente abusador os A. e chamada, tendo consentido e conhecido que a R. procedeu a tais remoções de inertes vir agora passados 10 anos reclamar o que foi tolerado e permitiram que a R. fizesse seu. Arts. 334 e 340 C.C. AI- Quanto à apreciação das características, dizeres e implicações do contrato promessa referido nos autos AF- Nunca o Mmo Juiz a quo se deveria pronunciar sobre tais elementos. AH- Com efeito, não consta do pedido que qualquer das partes solicitasse ao Tribunal a quo que decidisse sobre a validade, eficácia e enquadramento do mesmo. AJ- Assim, tal como refere a douta sentença a fls…página 10 ”No caso, e embora estejamos fora do objecto da nossa acção, não podemos deixar de aflorar a questão relativa à assinatura da promessa só pelo autor… ” AL- Ora, se o próprio Mmo juiz a quo reconhece que tal consideração está fora do objecto da acção, não deveria aflorar essa questão, já que, fica diminuída a possibilidade de a R. ter alegado e defendido o direito que tem, ficando limitado o seu direito ao contraditório, bem como os princípios da adesão e do dispositivo. AM- Não se tendo dado oportunidade à R. de se defender! AN- Desta forma, a douta sentença deve considerar-se nula nessa parte, art. 668-1 C.P.C., já que o Mmo juiz a quo conheceu do que não devia conhecer, conforme, alias refere na própria sentença a fls… página 10 da mesma, já referidas. AO- O que a não se atender a todo o referido constitui uma violação do Principio da Legalidade previsto na Const. Rep.Portuguesa e do Principio do Dispositivo, bem como da Jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu, que se alegam para os devidos efeitos. AP- Assim, nunca poderia a douta sentença concluir pela condenação da R. nem pela apreciação das características do contrato promessa referido nos autos, devendo improceder esses pedidos e considerações. AQ- Porém, resumindo e concluindo, nunca o A. e a chamada teriam qualquer direito: Com efeito, em 1999 ainda o prédio não lhes pertencia, era propriedade de R… nesse ano celebraram o A. e a R. o contrato promessa dos autos. AR- nesse mesmo ano a R. construiu e terraplanou. AS- Ora se o prédio era da R… só esta poderia exigir qualquer indemnização. Pois quando o A. e a chamada adquiriram o prédio em 2001, 3 anos depois, já o escritório e a terraplanagem estavam feitos. AT- É o próprio A. a alegar e confessar na P.I. que a “…R. desde janeiro de 1999 ocupa parte do prédio…” sic Quando este ainda nem era do A.!! AU- Como podem o A. e chamada ser ressarcidos em relação a um bem que não lhes pertencia? AV- Pelo que, na douta sentença foram violadas as seguintes disposições legais: Arts. 334, 340, 1340 e 1343 C.C.; arts 2 e 668-1 C.P.C.; art. 3 Constituição da Rep. Portuguesa e art. 17 Conv.EuropeiaDH, bem como dos Principios do Dispositivo processual, do Contraditório e da Igualdade das Partes, art. 3 e 3-A C.P.C.. Termina pedindo que a sentença seja substituída por outra, nos melhores termos de direito. Nem o autor, nem a chamada contra alegaram. O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata nos autos e efeito meramente devolutivo. Foram colhidos os vistos legais. As questões a resolver traduzem-se em saber: - se os autores podiam intentar a presente acção, tendo em conta que as construções da ré foram efectuadas numa altura em que o prédio ainda não era sua propriedade; - se há abuso de direito; - se devia ter sido considerada a acessão imobiliária; - se a sentença é nula por excesso de pronuncia. II. FUNDAMENTAÇÃO Na sentença foram considerados provados os seguintes factos: 1. O prédio rústico denominado “Bouça do Poço”, com a área de 76.500 m2, sito no lugar do…, freguesia de Santa Lucrécia de Algeriz, do concelho de Braga, descrito na 1ª. Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º…, e inscrito na matriz respectiva sob o artº…., está registado a favor do autor e da chamada por compra através da inscrição 26 de 2005/10/19. 2. O autor adquiriu o prédio referido através de escritura de compra e venda outorgada no 1º. Cartório Notarial de Braga, no dia 19 de Dezembro de 2001, a R…. 3. A ré ocupa parte do prédio rústico referido em A), onde executou construções. 4. O autor e a chamada intentaram contra a ré uma acção declarativa com processo ordinário a qual correu termos nesta vara mista com o n.º 9192/05.1TBBRG, onde foi proferida sentença a 18 de Março de 2009, transitada em julgado a 14 de Abril de 2010, a qual reconheceu o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico. 5. A ré intentou contra o autor e a chamada uma acção declarativa com processo ordinário a qual correu termos por esta vara mista com o n.º 1825/06.9TBBRG, através da qual pretendia exercer o direito de preferência na compra do prédio rústico identificado em A), onde foi proferida sentença a 23 de Setembro de 2008, que julgou a acção improcedente. 6. A ré interpôs recurso de tal sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães, que por acórdão de 30 de Abril de 2009, declarou a ali autora parte ilegítima e absolveu os réus da instância, recorrendo então a ali autora para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual por acórdão proferido a 12 de Novembro de 2009, já transitado em julgado, negou provimento ao recurso, mas alterou a decisão da 2.ª instância, no sentido de julgar improcedente a acção e absolver os ali réus do pedido. 7. O autor solicitou à ré a entrega da parte do seu prédio, designadamente através de carta registada com aviso de recepção, datada de 2009.06.01, cuja cópia se junta e dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais. (alíneas A) a G) da matéria de facto assente) 8. Há mais de 30 e 50 anos que o autor e a chamada, por si e seus antepossuidores, demarcam, defendem, conservam e pagam as contribuições e impostos do prédio referido em 1.. 9. O que fazem à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse, dia após dia, sem interrupção. (resposta aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória) 10. A ré, na parte referida em 3., extraiu inertes que destinou à terraplanagem efectuada para proceder às construções referidas e ainda a parte restante à venda a terceiros. (resposta conjunta aos quesitos 3.º e 4.º da base instrutória) 11. Autor e ré celebraram um contrato-promessa de cedência da parte do prédio referido em 3.. 12. As construções referidas em 3. foram feitas após celebração do aludido contrato-promessa, com conhecimento do autor. (resposta aos quesitos 5.º e 6.º da base instrutória) Sabido como é que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, passaremos, então, a conhecê-las. Em primeiro lugar cabe esclarecer que a apelante não põe em causa a decisão sobre a matéria de facto, pelo que a mesma terá que se considerar assente nos termos em que foi fixada na 1.ª instância. Ora, compulsada a mesma, verifica-se que não foi dado como provado (ao contrário do que refere a apelante nas suas conclusões de recurso) que a chamada tenha tido conhecimento das construções e terraplanagem a que a ré procedeu no prédio em questão, pois apenas foi dado como provado que tais construções foram efectuadas após celebração do contrato promessa de cedência de parte do prédio, com conhecimento do autor – pontos 11 e 12 dos factos provados. O facto de tais construções terem sido efectuadas numa fase em que o prédio não era, ainda dos autores, em nada os impede de virem, hoje, reivindicar a sua propriedade e exigir que a ré restitua a parte que ocupa sem título. Da leitura do “Contrato de Cedência Parcial” junto a fls. 170 dos autos, verifica-se que o autor outorgou como titular de um direito sobre o referido prédio, que, por contrato promessa de compra e venda, outorgado em 14/01/99, o prometeu comprar a R…, que por sua vez lho prometeu vender, tendo acordado com a ré ceder-lhe 50% do mesmo, pagando a ré metade do valor que o autor pagasse à proprietária, nas mesmas datas e, posteriormente, prometendo proceder à sua divisão em espécie. Ora, tal contrato nunca foi convertido em definitivo e o que aconteceu foi que o autor e sua mulher (chamada) vieram a adquirir a totalidade do prédio por escritura pública, em 2001, sendo que lograram provar a aquisição da propriedade, não só por esta forma derivada e com a presunção que lhes adveio do registo da aquisição, como, também, na forma originária, por usucapião, o que lhes era exigível, como reivindicantes, como bem se salienta na sentença sob recurso, com fundamentação exaustiva, que nos dispensamos de repetir. Daí que tal contrato, que foi chamado de “Cedência parcial”, mas que constitui, nos seus termos, um verdadeiro contrato promessa, não possa ser obstáculo à reivindicação da propriedade por parte dos seus legítimos proprietários, quando é certo que a ré, aludindo embora à sua existência, para justificar a sua ocupação de parte do prédio dos autores, não deduz nenhum pedido reconvencional. Assim, para se fazer valer de algum eventual direito obrigacional que lhe assista por incumprimento do contrato promessa (designadamente devolução do sinal ou do preço que tenha pago), terá que intentar acção para esse efeito contra o autor como outorgante de tal contrato. Isto, claro está, provando que houve incumprimento e que houve transferências de dinheiro que, nada disso se sabe nestes autos. Veja-se que, a propósito deste prédio e da relação entre estas partes, já correram duas outras acções – uma de reivindicação do prédio por parte dos autores e pedido de levantamento de um portão aí colocado abusivamente pela ré, que foi julgada procedente, condenando-se a ré a reconhecer a propriedade dos autores sobre o dito prédio e a retirar o portão, e uma outra, interposta pela ré contra os autores, em que aquela pretendia exercer um invocado direito de preferência na aquisição do mesmo terreno e que foi julgada improcedente, por não se reconhecer à aí autora, aqui ré, tal direito de preferência – mas nunca interpôs a ré nenhuma acção com vista a ver defendidos os seus eventuais direitos decorrentes do incumprimento do falado contrato promessa. Assim, nos termos do disposto no artigo 1311.º do Código Civil, estando assente o direito de propriedade dos autores, podem eles, como proprietários, exigir judicialmente, de qualquer possuidor ou detentor da coisa, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhes pertence, só podendo tal restituição ser recusada nos casos previstos na lei. A simples outorga de um contrato promessa de cedência parcial do prédio, sem conversão em contrato definitivo, com mera eficácia obrigacional, sem que lhe tenha sido atribuída eficácia real (cfr. artigo 413.º do CC) e não assinado por um dos cônjuges (o que sempre implicaria a impossibilidade de execução específica daquele contrato), não constitui uma das hipóteses previstas na lei – n.º 2 do artigo 1311.º do CC – em que pode ser recusada a restituição solicitada pelo proprietário. Deve, aliás, dizer-se, conhecendo já da invocada nulidade da sentença por excesso de pronuncia, que as considerações tecidas na sentença sobre o referido contrato promessa, se bem que extensas, não extravasam o âmbito da acção, não só porque foi a própria ré a alegar a existência de tal contrato para justificar a sua ocupação do prédio revindicado, tendo o mesmo sido junto em audiência de julgamento (sem que da acta ficasse a constar quem procedeu à sua junção), como as considerações efectuadas sobre tal contrato, não visam estabelecer qualquer injunção quanto à sua legalidade ou aos efeitos que do mesmo se poderiam extrair quanto aos direitos que o mesmo poderia conferir aos seus outorgantes (o que, como já vimos, terá que ser definido em acção própria), mas apenas, conhecer dos seus efeitos quanto à possível recusa de restituição da parte do prédio ocupada, o que é um dos efeitos essenciais da acção de reivindicação, que compreende sempre o pedido de entrega da coisa. Ora, existindo excesso de pronuncia, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, sempre que o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, por ofender o princípio do dispositivo, condenando além do pedido ou considerando causa de pedir que não tenha sido invocada, teremos que concluir que tal não se verificou nos autos, pois o aludido contrato foi invocado pela ré e fez parte da sua estratégia de defesa, tentando obstar, com a sua alegação, à restituição aos autores da totalidade do prédio reivindicado. Quanto ao invocado enquadramento da situação dos autos nas regras da acessão imobiliária, não iremos conhecer de tal questão, uma vez que nunca foi suscitada na acção. Efectivamente, a ré, apelante, nunca suscitou no processo a questão que ora levanta em sede de recurso. Não o tendo feito em 1.ª instância, está-lhe vedado suscitá-la agora, pois, como é sabido, os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais – artigo 676.º, n.º 1 do Código de processo Civil -, ou seja, os recursos “são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre” – Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, pág. 147. De igual modo, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil - Novo Regime, 3.ª edição revista e actualizada, Almedina, pág. 26, onde se pode ler “os recursos ordinários destinam-se a permitir que o tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas, objectivo que se reflecte na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas (…) na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do tribunal superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior”. Desta regra, excepcionam-se apenas as questões de conhecimento oficioso, o que não é, manifestamente, o caso. Assim, não tendo a ré suscitado na 1.ª instância a questão da acessão imobiliária, está este Tribunal impedido de conhecer da mesma. Também a questão do abuso de direito não foi levantada na 1.ª instância. Trata-se aqui, no entanto, de uma das questões em que há lugar ao conhecimento oficioso, desde que existam nos autos elementos de facto que permitam a sua apreciação. Entende a apelante que, só tendo o autor e a chamada reclamado a entrega do prédio, através de carta datada de 2009, quando a construção levada a cabo pela ré, data de 1999, com o seu conhecimento, incorrem em abuso de direito, até porque irão causar à ré um prejuízo superior ao benefício que alcançarão, designadamente, a salvaguarda dos postos de trabalho e a viabilidade de uma empresa. Vejamos. Segundo o artigo 334º do C. Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não se exige, por parte do titular do direito, a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que, objectivamente, esses limites tenham sido excedidos de forma manifesta e grave – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2010, in www.dgsi.pt/jtrg. O abuso de direito tem sido analisado nas modalidades de “suppressio”, de “venire contra factum proprium” e de “desequilíbrio entre o seu exercício e os efeitos dele derivados” e encontramo-las desenvolvidamente expostas, com referências doutrinárias e jurisprudenciais, pelo Prof. António Meneses Cordeiro, em Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Livraria Almedina, pág. 239 a 346, que, em síntese, caracteriza nos subsequentes termos. A “suppressio” é utilizada para designar a posição do direito subjectivo, ou mais latamente a de qualquer situação jurídica, que, não tendo sido exercida em determinadas circunstâncias e por um certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo, por de outro modo, se contrariar a boa fé. Segundo o acórdão do STJ de 19/10/2000, publicado em CJ, Ano VIII, Tomo III-2000, pág. 83 a 84, citado no Acórdão da Relação de Guimarães de 02/07/2009, in www.dgsi.pt, no seguimento da doutrina de autores alemães citada pelo Prof. António Meneses Cordeiro, em Da Boa Fé no Direito Civil, II, nota da pág. 811, a verificação do abuso de direito, na modalidade de “suppressio”, exige, além do não exercício do direito por um certo lapso de tempo, que o titular do direito se comporte como se o não tivesse ou como se não mais o quisesse exercer, que a contraparte haja confiado em que o direito não mais seria feito valer, que o exercício superveniente do direito acarrete para a contraparte uma desvantagem iníqua. O abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” consiste, ainda na lição do citado Professor, no exercício duma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente ostensivamente violador da boa fé ou da tutela da confiança da contraparte, ficando sempre ressalvada a possibilidade de o venire assentar numa circunstância justificativa e, designadamente, no surgimento ou na consciência de elementos que determinem o agente a mudar de atitude. Finalmente, o abuso de direito na modalidade do desequilíbrio entre o exercício do direito e entre os efeitos dele derivados, abrange subtipos diversificados, nomeadamente o do exercício de direito sem qualquer benefício para o exercente e com dano considerável a outrem, o da actuação dolosa daquele que vem exigir a outrem o que lhe deverá restituir logo a seguir e o da desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem. De todo o modo, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações. Haverá abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu, citado no Acórdão da Relação de Guimarães supra referenciado, "quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrém" (Abuso de Direito, p. 43) . E para que o abuso de direito exista, não basta que o exercício do direito pelo seu titular, cause prejuízo a alguém - a atribuição de um direito traduz deliberadamen¬te a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluentes -, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido . Em qualquer dos casos, a aplicação do regime jurídico do abuso de direito, ressalvado o caso de em litígio estar em causa um direito indisponível, depende de haverem sido alegados e provados factos que o possibilitem e de estarem compreendidos no pedido da parte beneficiária, atento o princípio da vinculação do tribunal ao pedido das partes, os eventuais efeitos jurídicos susceptíveis de serem extraídos desse exercício abusivo do direito. Tal não sucedeu no nosso caso. Com efeito, apesar de o alegar em sede de recurso, em parte nenhuma dos articulados ou em qualquer outra fase dos autos em 1.ª instância, se fez qualquer alusão ao eventual prejuízo que para a ré resultará de ter de abandonar as construções que implantou em parte do terreno dos autores, nem sequer estando alegado o fim a que as mesmas se destinavam. Por outro lado, do singelo facto provado de que as construções foram efectuadas após a celebração do contrato promessa, com o conhecimento do autor, não pode concluir-se que o autor não viria, posteriormente, a exigir a restituição do seu prédio na íntegra, livre de pessoas e coisas, até porque dos autos não resulta, nem foi alegado, nenhum facto que nos permita concluir os motivos pelos quais o contrato promessa não foi convertido em contrato definitivo e de quem foi o incumprimento. De igual modo, nada sabemos quanto à conduta do autor no período temporal que mediou entre a construção da ré e o seu pedido de restituição do prédio, que nos permitisse concluir pela violação da confiança que a ré teria numa actuação contrária. O simples decurso do tempo sem o exercício de um direito não é suficiente, assim, para se poder concluir pelo abuso do direito. Motivo pelo qual improcedem as demais conclusões do recurso da apelante. Sumário: 1 - A simples outorga de um contrato promessa de cedência parcial do prédio, sem conversão em contrato definitivo, sem que lhe tenha sido atribuída eficácia real e não assinado por um dos cônjuges (com impossibilidade de execução específica daquele contrato), não constitui uma das hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 1311.º do CC em que pode ser recusada a restituição solicitada pelo proprietário reivindicante. 2 – O abuso de direito pode ser analisado nas vertentes de “suppressio”, “venire contra factum proprium” e desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados. 3 – Em qualquer caso, para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a ex¬tensas congeminações. III. DECISÃO Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pela apelante. *** Guimarães, 5 de Fevereiro de 2013 Ana Cristina Duarte Fernando Fernandes Freitas Maria da Purificação Carvalho |