Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
48/16.3T8MLG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CASO DE FORÇA MAIOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: A responsabilidade pelo risco é excluída quando o acidente resulte de caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo, que é o que sucede quando um veículo é embatido por um javali que surge inopinadamente na via, tornando inevitável o embate e, em consequência desse embate, é projectado para a hemi-faixa de rodagem contrária, onde vem a ser embatido por um veículo que aí circulava.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.RELATÓRIO
R deduziu ação declarativa contra “Z” pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe o valor da reparação do veículo FJ, no montante de € 8.289,47 ou, em alternativa, que a ré dê ordem de reparação e pague o valor da mesma, bem como que seja condenada a pagar-lhe o valor despendido inerente ao aluguer de um veículo alternativo, no montante de € 3.520,00, acrescido de juros de mora à taxa legal sobre esta última quantia, contados desde a data em que o autor a pagou (17-02-2016), até efetivo e integral pagamento e, finalmente, que a ré seja condenada a pagar-lhe uma quantia inerente à imobilização do FJ, calculada à razão de € 20,00 diários, desde a data do acidente, até à data em que a ré pague o valor da reparação ou até à data em que o veículo reparado seja restituído ao autor. Alegou que seu veículo ficou danificado em consequência de acidente de viação causado por segurado da ré.
Contestou a ré negando a culpa do seu segurado e imputando a responsabilidade do acidente a um javali que invadiu a via, cortando a linha de trânsito do veículo que veio a embater no veículo do autor. Impugna os danos.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e fixado o objecto do litígio e os temas da prova.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou improcedente a ação, absolvendo a ré dos pedidos.

Discordando da sentença, dela interpôs recurso o autor, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1.º - Por douta decisão, o Autor R viu o Tribunal a quo a julgar “totalmente improcedente, por não provada, a acção movida pelo Autor, e consequentemente: i. Absolver a Z dos pedidos contra si formulados; Custas da acção a cargo do Autor – art. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC.”.
2.º - Salvo o devido respeito, que aliás é muito, não concorda o Autor/Recorrente com a douta sentença proferida e daí o presente Recurso.
3.º - Considera o Autor/Recorrente que é nula a sentença por violação dos requisitos da sentença, nos termos dos artigos 607.º n.ºs 3 e 4 do e 615.º n.º 1 alíneas a), b), c) e d) do CPC
4.º - E isto porque na douta Sentença, que ora se recorre, o Tribunal a quo, a
determinado momento estanca a sua fundamentação, não redigindo mais a mesma, conforme ora se transcreve: “Com efeito, se é certo que dos factos provados resulta que foi ele quem embateu no veículo EO, também é certo que (…).”
5.º - Assim, fica o Autor sem perceber o que exactamente é que o Tribunal a
quo se refere, ficando assim este impossibilitado de reagir contra qualquer linha de pensamento que levou o Tribunal, a final, improceder a pretensão do aqui Autor, o que torna aquela parte da Sentença ininteligível, por inexistir, ficando o Autor sem poder, no caso sub índice, a infirmar.
6.º - Sucede, ainda, que a decisão de facto de dar como provado o ponto 16), conforme consta da Douta Sentença Recorrida, se encontra em contradição com a respectiva “III. Motivação da matéria de facto”.
7.º - E isto porque, por diversas vezes, a fundamentação do próprio Tribunal a quo aponta, precisamente, no sentido de que o Veículo Segurado (EO) pela Ré embateu no dito Javali, e não que foi o Javali que embateu no veículo, como depois dá, inesperadamente, como provado o Tribunal a quo.
8.º - Razões pelas quais deverá o Tribunal ad quem declarar nula a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, nos termos dos artigos 607.º n.º 4 e 615.º n.º 1 alíneas c) e d) do Código do Processo Civil.
9.º - O Tribunal a quo incorreu em erro, ao dar como provado pontos 15), 16) da “3. Fundamentação de Facto / I. Factos provados”, constantes na douta sentença recorrida.
10.º -Igualmente, o Tribunal a quo incorreu em erro, ao dar como não provado os pontos A. e H. da “3. Fundamentação de Facto / II. Factos não provados”, constantes na douta sentença recorrida.
11.º - Deveria o Tribunal a quo ter dado como provado 2 outros pontos, a que infra se mencionarão como 17) e 18) dos factos dados como provados.
12.º -Consta na Douta Sentença recorrida que: “15) O condutor da viatura EO seguia na EN n.º 202 no sentido de trânsito Monção/Melgaço, o mais à direita possível atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade não superior a 50 km/h, fazendo uso das luzes de cruzamento;”.
13.º - Não concorda com tal factualidade dada como provada o Autor e isto porque, desde logo, não existem provas, nos autos, que permitam concluir que o “O condutor da viatura EO seguia (…) o mais à direita possível atento o seu sentido de
marcha”.
14.º - Mais, e relativamente à velocidade, o próprio Condutor do Veículo Segurado (EO) pela Ré (M), no seu depoimento, que afirma que vinha a pelo menos uns “60 quilómetros a... por hora!”.
15.º - Por último, a Testemunha A, que circulava atrás do
Condutor do Veículo Segurado (EO) pela Ré, afirma que a mesma que “não ando muito ligeira”, sendo que vinha distanciada daquele uns 4 metros.
16.º - Face ao exposto, considera-se que deverá o Tribunal ad quem alterar tal factualidade, dando como provado que “15) O condutor da viatura EO seguia na EN n.º 202 no sentido de trânsito Monção/Melgaço, a uma velocidade não inferior a 60 km/h, fazendo uso das luzes de cruzamento;”
17.º - Por conseguinte, deverá o Tribunal ad quem retirar, de tal facto reformulado, as devidas elações de direito que ora se impõe, concluindo, a final, pela procedência total do Recurso.
18.º -Consta na Douta Sentença recorrida que: “16) Ao cruzar o Km 18,200, o condutor do veículo EO viu a sua via da faixa de rodagem invadida de forma inopinada e imediata por um javali, o qual embateu contra o seu veículo, tendo sido
projectado para a outra via da faixa de rodagem, onde sofreu a colisão com o veículoFJ;”
19.º -Considera o Autor/Recorrente que, nos termos dos artigos 3.º n.º 1 e 5.ºn.ºs 1 e 2 do Código do Processo Civil, nunca poderia o Tribunal a quo ter conhecidotal facto, dele retirar conclusões, ou qualquer outro efeito, uma vez que nunca omesmo foi alegado, quer pelo Autor quer pela Ré.
20.º -Não restam, assim, dúvidas que o Tribunal a quo não podia conhecer talfactualidade, devendo, por conseguinte, o facto dado como provado na alínea 17) serrevogado pelo Tribunal ad quem.
21.º - Sem prescindir, mesmo que não se entenda tal facto como essencial, a
verdade é que o mesmo, para ser conhecido oficiosamente pelo Tribunal, este deveriater dado a possibilidade às partes de o contradizer (principio do contraditório), nostermos do artigo 3.º do Código do Processo Civil, sob pena de nulidade, nos termosdos artigos 195.º e seguintes do Código do Processo Civil.
22.º -Não restam, assim, dúvidas que a decisão proferida pelo Tribunal a quo énula, devendo, assim, o facto dado como provado na alínea 17) ser revogado peloTribunal ad quem.
23.º -Sem prescindir, sempre se dirá que, ao contrário do que afirma o Tribunala quo, não há provas que permitam concluir que tenha sido o javali que “embateucontra” o Veículo Segurado (EO) pela Ré.
24.º -Desde logo, é a própria Ré, na sua contestação, que afirma que o Javali“apareceu na supra mencionada via de trânsito, invadindo-a” (vide articulado 5. DaContestação), que o “animal – javali -, que penetrou na via onde o sinistro ocorreu”(vide articulado 11. da Contestação), sendo a via “totalmente invadida” (videarticulado 27. da Contestação).
25.º -Ora, tal consubstanciam alegações de facto que configuram uma confissãoa de factos alegados na acção.
26.º -Mais, por diversas vezes, a fundamentação do próprio Tribunal a quoaponta, precisamente, no sentido de que o referido veículo embateu no dito Javali(através de expressões como “prostrado no meio da estrada”; “viram “um vulto”surgir na estrada” ; “viu um javali invadir a estrada, saído do lado direito”; “no meio
da via”; e ) vindo depois, inexplicavelmente concluir que foi o Javali que embateu no
veículo.
27.º -Sendo certo que as testemunhas M, AB, AX (Guarda n.º 637) e Adepõem, precisamente, nesse sentido.
28.º -Acresce que tal é, igualmente, passível de se retirar da prova documentaljunta aos autos, mormente o Doc. 1 junto com a Petição Inicial (Participação deAcidente de Viação, elaborado pela GNR – Registo n.º 80/15).
29.º -Fica assim claro que o Tribunal a quo percebeu que o Javali terá surgidopela direita, invadido a estrada até atingir o seu meio, onde foi embatido pelo veículoconduzido por M, que deste se tentou esquivar para a suaesquerda.
30.º -Face ao exposto, considera-se que deverá ser tal factualidade alterada peloTribunal ad quem, dando este como provado que “16) Ao cruzar o Km 18,200, ocondutor do veículo EO viu a sua via da faixa de rodagem invadida por um javali, noqual, após ter tentado se esquivar do mesmo para a sua esquerda, acabou por neleembater de frente com o seu veículo, tendo-se despistado para a outra via da faixa derodagem, onde sofreu a colisão com o veículo FJ;”, e, Por conseguinte, deverá oTribunal ad quem retirar, de tal facto reformulado, as devidas elações de direito queora se impõe, concluindo, a final, pela procedência total do Recurso.
31.º - Ainda, deverá ainda o Tribunal ad quem eliminar dos factos dados comonão provados o ponto H., por contrariar directamente o facto que ora se consideraprovado.
32.º -Consta na douta sentença recorrida, nos factos não provados, o seguinte:“A. Que a recta onde ocorreu o acidente tivesse boa visibilidade;---”.
33.º -Ora, ao contrário do que consta naquele facto dado como não provado, averdade é que a recta onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade, já que a mesmaapresenta características muito similares a uma IC, configura uma recta de 250metros (vide facto dado como provado na alínea 2)), não tem árvores em seu redorou outra qualquer vegetação, lombas ou outro qualquer aspecto físico da via e meioenvolvente que impeçam ou diminuam a visibilidade.
34.º -Mais, a Ré sempre alegou e confessou (nos termos já supra referidos à
confissão de factos alegados, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidospor economia processual) que o local onde o acidente se deu tinha característicaspara (atendendo ao facto de que era de noite) ser possível visualizar qualquer tipo deevento que ocorre-se na estrada.
35.º -Note-se que a Ré, na sua contestação, confessou considerar que existiamcondições suficientes para o Autor ver o Veículo Segurado pela Ré, bem como o Javalique se atravessou na estrada, o que significa que o inverso será, igualmente, verdade,ou seja que o Condutor do Veículo Segurado tinha boa visibilidade.
36.º -Mais se diz que as bermas da EN n.º 202, conforme testemunho do Sr.
Agente da GNR AX (Guarda N.º …), são “bastante largas”,betuminosas e com cerca de 1,5 metros, sendo que no fim da berma ainda existem
condutas de escoamento de águas.
37.º -Face ao exposto, deverá o Tribunal ad quem considerar aquelafactualidade como provada, aditando aos Factos Provados uma alínea 17) ondeconste o seguinte: “A recta onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade, atentas ascaracterísticas físicas do local, sendo que o sinistro sucedeu de noite, as bermas daestrada são betuminosas, com mais de 1 metro de largura, e, finda a berma, existemos escoamentos da água;---”, e, por conseguinte, retirar, de tal facto aditado, asdevidas elações de direito que ora se impõe, concluindo, a final, pela procedênciatotal do Recurso.
38.º -Deverá, ainda, o Tribunal ad quem eliminar dos factos dados como não
provados o ponto A..
39.º -Considera o Autor que deveria ter sido dado como provado que “OCondutor do Veículo (30-EO-77) Segurado pela Ré, a saber a testemunha M, é de idade avançada (76 anos), tem problemas de saúde, encontram-sedebilitado, em especial, que tem problemas auditivos, sendo que o mesmo tem noçãodo seu estado fragilizado.”.
40.º -E isto porque, tal como consta na Douta Decisão recorrida, “é certo que osdois ocupantes do veículo se tratavam de pessoas com uma idade avançada, algumadificuldade em se expressar ou compreender as questões (em especial a testemunhaM, fruto de problemas auditivos, e cuja saúde debilitada foipercepcionada directamente pelo Tribunal), ao que acresceu uma visível dor econsternação com que falaram do referido acidente, do qual, aliás, resultaramferimentos para os próprios (relatados por si e por outras testemunhas)…”.
41.º -Tal factualidade “foi percepcionada directamente pelo Tribunal”.
42.º -O Tribunal a quo refere na douta sentença recorrida que “a testemunha
M” está de “saúde debilitada”, em especial, que tem “problemasauditivos”, devido à sua “idade avançada”.
43.º -Mais, através da audição, na íntegra, da gravação do depoimento datestemunha M percebe-se, sem margem para dúvidas, que umapessoa que se encontra no estado desta testemunha não pode assumir a direcção deum veículo e com ele circular na via pública sem por em perigo os restantes utentes.
44.º - Assim, deveria o Tribunal a quo dar como provado uma alínea 18), nos
termos supra. Conforme supra referido, consta na Douta Decisão recorrida que “Ora,se é certo que os dois ocupantes do veículo se tratavam de pessoas com uma idadeavançada, alguma dificuldade em se expressar ou compreender as questões (emespecial a testemunha M, fruto de problemas auditivos, e cujasaúde debilitada foi percepcionada directamente pelo Tribunal), ao que acresceuuma visível dor e consternação com que falaram do referido acidente, do qual, aliás,resultaram ferimentos para os próprios (relatados por si e por outras testemunhas)…”
45.º -Relativamente à Responsabilidade Civil da Ré, dir-se-á o seguinte: atestemunha M é, nada mais, que o Condutor do Veículo (EO) Segurado pela Ré. Ora, se o Veículo 30-EO-77 estava a ser conduzido, nos termospercepcionados pelo Tribunal a quo, por pessoa de “saúde debilitada”, de “idadeavançada”, com “problemas auditivos”, tal significa que esta infringiu as regrasprescritas no Código de Estrada.
46.º -Nos termos dos artigos 11.º n.º 2 e 24.º n.º 1 do Código da Estrada, 483.º n.º1 do Código Civil e 291.º n.º 1 alínea b) do Código Penal que os condutores devem,durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveisde prejudicar o exercício da condução com segurança, recaindo sobre os mesmos umdever acrescido de cuidado no exercício daquela actividade.
47.º -Face ao supra exposto, bem como ao facto de os próprios ocupantes doveículo se terem deslocado ao Hospital para efectuarem exames, é óbvio que os
mesmos sabiam que o Sr. M (incluindo o próprio) não seencontrava em condições para conduzir.
48.º -É sabido, e reconhecido, que, actualmente, a actividade de condução deveículos é considerada de risco e perigosa – vide Acórdão do Tribunal da Relação deLisboa de 08/03/2009, proc. n.º 151/99.2PBCLD.L1-5.
49.º -Daí que a Lei, quando não seja possível determinar culpados (quer por faltade prova quer por não os haver), reconhece a responsabilidade objectiva pela colisãode veículos (razões pelas quais são várias as exigências feitas aos condutores nomomento de assumirem a direcção de um qualquer veículo, com a intenção de comele circular na via pública).
50.º -É obrigação que impende, única e exclusivamente, sobre o própriocondutor a aferição da capacidade da sua pessoa, cada vez que pretende assumir adirecção de um veículo na via pública.
51.º -Conforme referido, o Condutor do Veículo Segurado pela Ré sabia que nãoestava em condições, pelo estado de saúde em que se encontrava, para assumir adirecção de qualquer veículo e com ele circular na via pública.
52.º -É entendimento generalizado que as transgressões daquelas regras de
cuidado (constantes no Código da Estrada, no Código Civil e Código Penal)presumem a culpa do condutor do veículo – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiçade 3 de Marco de 1990, BMJ, 395.°-534.
53.º -Conforme o referido, o Condutor do Veículo (30-EO-77) Segurado pela Réinfringiu várias disposições legais (desde regras de transito a normas civis e penais),pelo que o seu comportamento é passível de lhe atribuir a exclusiva culpa (que, nolimite, se presume) na colisão de veículos que ora nos ocupa.
54.º -Assim, deverá o Tribunal ad quem considerar totalmente procedente opresente recurso e, por conseguinte, revogar a Douta Decisão de AbsolviçãoProferida pelo Tribunal a quo, procedido totalmente o pedido do Autor
55.º -Sem prescindir, sempre se dirá que na douta Sentença recorrida é referidoque acidente aconteceu devido ao aparecimento de um animal (Javali) na faixa derodagem.
56.º -Face a tal surgimento, considera o Autor que o Condutor do VeículoSegurado pela Ré tentou efectuar manobras de esquiva, que se enquadram,legalmente, no mecanismo do Estado de Necessidade, previsto no artigo 339.º do
Código Civil.
57.º -Assim, e face ao exposto, seria lícito ao Condutor do Veículo Segurado
efectuar a referida manobra de evasão se outra hipótese não resultasse da situaçãoem concreto, ou seja, que outra actuação não fosse idónea a remover o perigo actual.
58.º -Contudo, considera o Autor/Recorrente que o Condutor do VeículoSegurado pela Ré teria possibilidade de o fazer, ou seja, se este estivesse na possedas suas faculdades físicas e mentais normais (e não de saúde debilitada), teria tidoa capacidade de parar o Veículo em segurança ou, no limite, de se desviar doobstáculo que lhe surgiu na via sem colocar em perigos os restantes utentes da viapública.
59.º -Sem prescindir, admitindo, por cautela de patrocínio, que outra solução
não teve o Conduto do Veículo Segurado, sempre se dirá que o mesmo, face àsituação eu tinha diante si (e que se veio a verificar) não sacrificou bens jurídicosmanifestamente superiores àqueles que pretendeu salvaguardar (a sua integridade
física e seus bens versus a integridade física e bens do Autor).
60.º -Desta feita é ilícita a actuação do Condutor do Veículo Segurado pela Ré,razões pelas quais, deverá sempre ser indemnizado o Autor, nos termos por si
peticionados, sendo certo que mesmo que fosse lícita, nos termos do artigo 339.º n.º1 do Código Civil, teria sempre de ser indemnizado o aqui Autor/Recorrente, nos
termos do n.º 2 do mesmo artigo.
61.º - Assim, deverá o Tribunal ad quem considerar totalmente procedente o
presente recurso e, por conseguinte, revogar a Douta Decisão de AbsolviçãoProferida pelo Tribunal a quo, procedido totalmente o pedido do Autor.
62.º -Sem prescindir, sempre se dirá que a situação que ora nos ocupa terásempre aplicabilidade no campo da Responsabilidade Objectiva, nos termos doartigo 503.º n.º 1, 505.º e 570.º do Código Civil. 505.º do Código do Processo Civil.
63.º -Causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo será,necessariamente, o que não integrar os riscos próprios dos veículos e/ou tudo que
envolva e integre o seu funcionamento.
64.º - “I - No domínio concreto da colisão de veículos deve considerar-se comorisco próprio do veículo tudo o que tenha a ver com a circulação e neste sentidoconstitui risco próprio do veículo o aparecimento de um animal na estrada queprovoca atrapalhação no condutor.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbrade 11-03-2014, proc. n.º 857/07.4TBLRA.C1.
65.º -Vide, a este respeito ainda, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de18-12-2013, proc. n.º 3186/08.2TBVCT.G1.S1 e do Tribunal da Relação de Coimbra de29-11-2005, proc. n.º 3290/05.
66.º -Posto isto, é patente que o aparecimento de obstáculos na via (nos quais seincluem animais) é um risco próprio da circulação de veículos nas vias públicas.
67.º -Mesmo que o Condutor do Veículo Segurado (EO) pela Ré nãotivesse culpa na produção do acidente, sempre a Ré teria de indemnizar o Autor, já
que este circulava no sentido Melgaço-Monção, pelo lado direito da faixa de rodagem(referido como Veículo 2 no croquis constante na Participação de Acidente de Viaçãoelaborado pela GNR – junto aos autos como Doc. 1 da Petição Inicial – e a via poronde o Autor circulava foi invadida pelo Veículo referido como 1 naqueledocumento), em nada tendo contribuído para a produção do dito sinistro.
68.º -Razões pelas quais, deverá sempre ser indemnizado o Autor, nos termospor si peticionados, devendo, assim, o Tribunal ad quem considerar totalmenteprocedente o presente recurso e, por conseguinte, revogar a Douta Decisão deAbsolvição Proferida pelo Tribunal a quo, procedendo totalmente o pedido do Autor.
Termos em que deverá ser dado total provimento aoRecurso apresentado pelo Autor e, por conseguinte, deverá oTribunal ad quem revogar a Douta sentença proferida peloTribunal a quo, substituindo-a por uma que condene a Ré nopagamento das quantias Peticionadas,
FAZENDO-SE A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!

A ré contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

O Sr. Juiz pronunciou-se quanto às invocadas nulidades e admitiu o recurso, como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com o conhecimento das invocadas nulidades, impugnação da decisão de facto e averiguação da responsabilidade, incluindo eventual responsabilidade objetiva.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Factos provados
1) No dia 21 de Dezembro de 2015, pelas 19h40, ao km 18,200 da Estrada Nacional (EN) n.º 202, freguesia de Alvaredo, concelho de Melgaço ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes.---
a. O quadriciclo de passageiros de matrícula (EO), propriedade de M e por si conduzido;---
b. O veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula 89-FJ-70 (FJ), propriedade do Autor e por si conduzido;---
2) O local onde ocorreu o acidente configura-se numa via em linha recta com duas vias de trânsito, uma em cada sentido, numa distância não inferior a 250 metros;---
3) O Autor conduzia o veículo FJ no sentido Melgaço/ Monção pelo lado direito da faixa de rodagem;---
4) A via por onde o Autor seguia foi invadida pelo veículo EO;---
5) O embate deu-se entre a frente do lado esquerdo do veículo EO e a frente do veículo FJ;---
6) À data do sinistro referido em 1), a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergente de acidentes de viação relativamente ao veículo EO encontrava-se transferida para a Ré, por intermédio em virtude da apólice n.º …;---
7) Como consequência directa do acidente, resultaram danos materiais no veículo FJ, nomeadamente pára-choques dianteiro partido, farolins e faróis dianteiros partidos, capô e guarda-lamas danificados, mecânica e pintura danificadas;---
8) Como o veículo FJ não podia circular, foi transportado de reboque do local onde ocorreu o acidente para a oficina “Filipe Esteves Cordeiro”, sita em Valadares, Monção;---
9) O Autor informou a Ré que não dispunha de veículo alternativo para circular, não tendo esta colocado à disposição do Autor qualquer veículo de substituição;---
10) A Ré procedeu à peritagem dos anos que o veículo FJ apresentava, na data de 23 de Dezembro de 2015, constatando que o valor da reparação orçava em €8.289,47;---
11) A Ré, por carta datada de 19 de Janeiro de 2016, informou o Autor que não assumia qualquer responsabilidade;---
12) O Autor respondeu à Ré por carta datada de 8 de Fevereiro de 2016, nos seguintes termos:---
Sendo que V. Exª apresentou apólice de seguro válida, tutelada pela companhia de seguros Z, usei das ferramentas processuais, em vigor, para reclamar os danos. Em 12 de Janeiro a companhia de seguros Z respondeu-me declinando toda e qualquer responsabilidade no sinistro. Do acidente resultaram danos avultados na viatura (a facultar oportunamente) bem como a imobilização da mesma encontrando-me, à data, no uso de viatura de aluguer. Como sabe a minha viatura, FJ, circulava na sua faixa de rodagem no maior respeito pelas regras de trânsito, e, só o extremo cuidado e respeito pelas mesmas permitiram evitar um choque frontal de consequências fatídicas, logo, foi a sua ação a causadora do sinistro e não posso arcar com os danos infligidos pela sua viatura. Uma vez que a companhia de seguros, para a qual V.Exª transferiu a responsabilidade pelo uso do
automóvel EO, declinou toda e qualquer responsabilidade pelo acidente accionei os meios legais a meu dispor, acção judicial, contra V.Exª e aquela seguradora afim de ver ressarcidos os danos decorrentes do sinistro. Não afasto, porém, a possibilidade na resolução amistosa para cujo efeito me coloco à vossa disposição. Sem mais de momento subscrevo-me, com os melhores cumprimentos, de V.Exaª., atentamente: “R”
13) Entre as datas de 22 de Dezembro de 2015 e 7 de Janeiro de 2016, o Autor procedeu ao aluguer de veículos junto da “Renteo – Vehicle Rental”, tendo despendido um total de €3.520,00;---
14) O Autor efectuava as deslocações familiares e profissionais de que necessitava diariamente com o veículo FJ, não possuindo qualquer outro veículo de que se pudesse socorrer, recorrendo muitas vezes ao empréstimo de veículos de familiares ou amigos, e sujeitando-se a andar em transportes públicos;---
15) O condutor da viatura EO seguia na EN n.º 202 no sentido de trânsito Monção/ Melgaço, omais à direita possível atento o seu sentido de marcha, a uma velocidade não superior a 50km/h, fazendo uso das luzes de cruzamento;---
16) Ao cruzar o Km 18,200, o condutor do veículo EO viu a sua via da faixa de rodagem invadidade forma inopinada e imediata por um javali, o qual embateu contra o seu veículo, tendo sidoprojectado para a outra via da faixa de rodagem, onde sofreu a colisão com o veículo FJ;---
Factos não provados
A. Que a recta onde ocorreu o acidente tivesse boa visibilidade;---
B. Que o Autor circulasse a uma velocidade não superior a 50 km/h;---
C. Que o condutor do veículo EO estivesse a conduzir de forma distraída, imprimindo ao veículouma velocidade não inferior a 90 km/h;---
D. Que o veículo EO tenha entrado em despiste;---
E. Que à data do acidente o veículo FJ tivesse um valor comercial não inferior a €15.000,00;---
F. Que o Autor tenha ficado em casa em virtude de não possuir carro para efectuar as suasdeslocações;---
G. Que o condutor do veículo FJ dever-se-ia ter apercebido com tempo do embate da viatura EOno javali, de forma a poder travar, ou executar qualquer outra manobra de recurso para evitar oacidente;---
H. Que o veículo EO tenha embatido contra o javali;---

Referindo-se, genericamente, a todo o elenco de nulidades da sentença previstas no artigo 615.º do CPC, o apelante acaba por se centrar apenas nas da alínea c) – “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” – e da alínea d) – “o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, ambas para concluir que não poderia ter sido considerado que foi o javali que embateu na viatura, mas sim o contrário, ou seja, que foi a viatura que embateu no javali.
O que se provou foi que o condutor do veículo EO viu a sua faixa de rodagem invadida de forma inopinada e imediata por um javali e que foi o embate com o animal que projetou o veículo para a outra faixa de rodagem onde sofreu a colisão com o veículo do autor. A questão de quem embateu em quem, se o javali na viatura ou se a viatura no javali, é instrumental, face ao facto de o javali ter surgido de forma inopinada e imediata, quando o veículo EO seguia a uma velocidade não superior a 50 km/hora, o mais à direita possível atento o seu sentido de marcha, fazendo uso das luzes de cruzamento e sem possibilidade de evitar o embate. Trata-se de facto instrumental, que resultou da instrução da causa e que, como tal, podia ser considerado pelo juiz – artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do CPC – como, aliás, foi por este referido na sua fundamentação, não se tratando, portanto, de uma questão cujo conhecimento estava vedado ao juiz da causa.
A forma como tal facto foi alegado, no artigo 6.º da contestação “…após ter provocado o embate na viatura de matrícula EO…, a projetou para a outra hemi-faixa de rodagem…” sempre permitiria, aliás, a conclusão reflectida na matéria de facto, pese embora, mais à frente se diga que foi a viatura que embateu contra o javali “que invadiu de forma inopinada e imediata a sua hemi-faixa…sem que nada pudesse fazer para o evitar”.

A obscuridade ou ininteligibilidade que resultaria do facto de, na motivação, se ter deixado incompleta uma frase, foi oportunamente considerada no despacho que se pronunciou sobre as nulidades, nos seguintes termos:
“Compulsados os autos, constata-se que, efectivamente, o raciocínio iniciado pelo Tribunal, por lapso pelo qual me penitencio, não foi devidamente desenvolvido, assim gerando uma lacuna na fundamentação de facto e de direito, que é susceptível de impedir o correcto conhecimento e compreensão, em toda a sua extensão, do percurso lógico-cognitivo efectuado pelo Tribunal que culminou na decisão proferida, o que, por sua vez, fere de nulidade a sentença ora posta em crise.---
Impõe-se, em conformidade, suprir a arguida nulidade, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 617.º do CPC.---
Em face do exposto, decide-se complementar o referido trecho da sentença nos seguintes termos:---
«Com efeito, se é certo que dos factos provados resulta que foi ele quem embateu no veículo EO, também é certo que tal se deveu ao facto deste veículo ter sido projectado para a sua via da faixa de rodagem, pelo que nenhuma responsabilidade pode ser assacada ao Autor pela colisão verificada entre os veículos FJ e EO».---
Mais se consigna que o parágrafo acima indicado passa a constituir parte integrante da sentença proferida – art. 617.º, n.º 2 do CPC”. Tal nulidade ficou, assim, suprida.

Quanto ao facto de a fundamentação estar em oposição com a decisão, também não tem razão o apelante, uma vez que é referido na motivação que as testemunhas do acidente, para além do próprio autor, relataram o embate do javali na viatura, apenas não tendo podido esclarecer em que parte da viatura se deu o embate, o que foi considerado plausível, atenta a posição na estrada de uma das testemunhas (que seguia na viatura imediatamente atrás) e a natural confusão do momento sentida pelo condutor e passageira do veículo embatido.
Não se verificam, portanto, as invocadas nulidades, improcedendo o recurso, nessa parte.

Passemos, agora, à impugnação da decisão de facto.
O apelante discorda dos pontos 15 e 16 dos factos provados e das alíneas A) e H) dos factos não provados e considera que deveriam ser aditados os pontos 17 e 18 aos factos provados, com a seguinte redação: “A recta onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade, atentas as características físicas do local, sendo que o sinistro sucedeu de noite as bermas da estrada são betuminosas, com mais de 1 metro de largura, e, finda a berma, existem os escoamentos da água;”; “O Condutor do Veículo (EO) Segurado pela Ré, a saber a testemunha M, é de idade avançada, tem problemas de saúde, encontra-se debilitado, em especial, que tem problemas auditivos, sendo que o mesmo tem noção do seu estado fragilizado.”.
Também nesta parte do seu recurso não tem razão.

O pequeno veículo segurado na ré, identificado como “quadriciclo de passageiros”, não é mais do que um veículo habitualmente designado por “papa-reformas”, como salientou o militar da GNR que tomou conta da ocorrência, que não alcança velocidades elevadas e que era conduzido por pessoa idosa que regressava com a esposa de Monção onde tinham ido a consulta médica. No local não ficou qualquer rasto de travagem, apesar do veículo se ter imobilizado de imediato, na faixa contrária. A condutora que seguia atrás, refere que costuma sempre andar devagar, e que já vinha atrás desse veículo há algum tempo, sempre dentro das regras estradais. Não há qualquer motivo para não dar credibilidade a estes depoimentos, que se afiguram sérios, apesar de algum nervosismo por parte do condutor idoso, que é perfeitamente natural, por ter de se lembrar de um acontecimento doloroso para si e sua esposa e que lhe traz más recordações. Os extratos dos depoimentos destas pessoas referidos pelo apelante, não são de molde a contrariar esta convicção, porque desinseridos do contexto total dos seus depoimentos.
Quanto ao facto provado n.º 16, remete-se para o que acima se disse quanto à consideração pelo juiz de factos instrumentais. A prova é inequívoca no sentido de que foi o javali que embateu no carro e não o carro que embateu no javali. Este facto foi repetidas vezes assinalado durante os depoimentos ouvidos em audiência de julgamento, tendo o mandatário do autor tido todas as oportunidade de fazer a contra instância que entendeu, sendo certo que, como já salientámos, o mesmo cabe na alegação efetuada pela ré no artigo 6.º da sua contestação. Não há, portanto, qualquer violação do princípio do contraditório, nem se aplica, aqui, a alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC, referida na jurisprudência citada pelo apelante.
De novo, os extratos dos depoimentos citados, não são de molde a alterar esta convicção. Veja-se, por exemplo, que o condutor do veículo diz “…via a estrada, mas não vi nada. Depara-se aquele vulto, na minha frente. Não o vi, só senti o bater…parece que era uma coisa morta”. A testemunha A, que conduzia uma viatura atrás da segura na ré disse, claramente: “Eu vinha atrás não é, entretanto vejo o javali a sair da berma, não é, e embater do lado direito, portanto, o javali sai da berma e vai prontos contra o carro pequeno e manda o carro para a outra via, o carro fez ali umas piruetas e prontos e ficou na estrada, na outra via e entretanto eu até disse, ai meu Deus, Deus queira que não venha um carro de cima agora se não é uma desgraça, entretanto lá vem esse mesmo carro e embate no carro pequeno”.
O apelante tenta concluir diversamente, usando uma só palavra ou um pequeno extrato. Da audição da prova, contudo, resulta o acerto da convicção formada pelo juiz de 1.ª instância, a que nada há a acrescentar.
Quanto à visibilidade da via, também nada há a acrescentar ao decidido, uma vez que está provado que o acidente se deu numa via em linha reta, numa distância não inferior a 250 metros. Contudo, o acidente deu-se em dezembro, às 19h40m, ou seja, de noite e num local onde não existe iluminação pública, pelo que a visibilidade é apenas fornecida pelos faróis das viaturas. Daí a alínea A) dos factos não provados. O autor teria a mesma visibilidade do outro condutor e, provavelmente, por causa da fraca visibilidade é que não conseguiu parar o seu veículo sem embater no veículo que tinha sido atirado para a sua hemi-faixa.
Já as dificuldades auditivas e de compreensão da testemunha Manuel Elias de Sousa, foram consideradas na motivação da decisão, pelo tribunal recorrido – “Ora, se é certo que os dois ocupantes do veículo se tratavam de pessoas com uma idade avançada, alguma dificuldade em se expressar ou compreender as questões (em especial a testemunha M, fruto de problemas auditivos, e cuja saúde debilitada foi percepcionada directamente pelo Tribunal), ao que acresceu uma visível dor e consternação com que falaram do referido acidente, do qual, aliás, resultaram ferimentos para os próprios (relatados por si e por outras testemunhas), nem por essas razões tais depoimentos mereceram algum tipo de reserva…” – mas não têm qualquer relevo no sentido de serem aditadas à matéria de facto, pois nenhuma prova se fez, nem tal estava alegado, que o acidente se tenha ficado a dever a esses problemas físicos do condutor do veículo.

E, assim, entramos na questão jurídica.
O problema da saúde física e mental (e repare-se que, quanto a esta última, nenhuma prova se fez) do condutor do veículo seguro na ré e a forma como a mesma eventualmente poderia ser a causa do acidente, é uma questão nova, nunca anteriormente levantada pelo autor e só agora trazida a este Tribunal da Relação.
Como é sabido, “a demanda do tribunal superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior”, “na fase de recurso, as partes e o tribunal superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação” – Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª edição revista e atualizada, Almedina, 2010, pág. 26.
Esta questão nunca foi colocada nos autos, pelo que não pode este Tribunal pronunciar-se quanto à mesma. Aliás, diga-se que, se os problemas físicos do condutor do veículo resultaram do seu depoimento (não porque vinha de realizar exames em Monção!!!, porque qualquer pessoa jovem e em pleno domínio das suas capacidades físicas, pode realizar exames médicos), nenhuma prova se fez quanto à influência dos mesmos na sua condução, nem ficou provada, ou sequer aflorada, nenhuma causalidade entre aqueles e a eclosão do acidente, pelo que, para além de não se poder conhecer desta questão, sempre a mesma estaria votada ao insucesso.

Os considerandos seguintes do apelante quanto ao cuidado que é necessário ter em vias que podem ser atravessadas por animais e quanto à velocidade “excessiva” que o condutor imprimia ao veículo caem por terra se atentarmos que ficou provado que o animal surgiu de forma inopinada e imediata, impossibilitando, portanto, qualquer manobra de recurso, que impedisse o embate. Nem tal pode ser posto em causa pelo facto de a condutora que seguia na retaguarda ter afirmado que viu o javali, pois, como é óbvio, se seguia na retaguarda, viu o que se passou à sua frente, viu o embate e, por isso, se desviou para a berma (uma vez que o veículo embatido foi projectado para o centro, para a faixa contrária, e o primeiro impulso de um condutor é desviar-se em sentido oposto).
Ou seja, como bem se decidiu na sentença recorrida, pese embora a violação da regra estradal consistente na invasão da hemi-faixa contrária, por parte do condutor do veículo seguro na ré, não se provou qualquer conduta dolosa ou negligente do mesmo, uma vez que “não há um dever de cuidado adequado a evitar eventos súbitos e imprevisíveis”, pelo que não pode ser-lhe assacada qualquer culpa.

Finalmente importa analisar a questão da possível responsabilidade objetiva, não se desconhecendo a interpretação que alguma jurisprudência vem fazendo das normas do Código Civil que regulam esta matéria, quanto ao despiste de veículo provocado pela intrusão de animal na via, de que é exemplo o Acórdão do STJ, de 18/12/2013, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, citado pelo apelante e disponível em www.dgsi.pt.
De acordo com o disposto no artigo 503.º, n.º 1 do CC, aquele que tiver a direcção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, sendo esta responsabilidade excluída, nos termos do artigo 505.º do CC, quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
A questão que aqui se coloca é a de saber se o embate do javali que provocou a deslocação do veículo para o outro lado da via, onde veio a ser embatido pelo veículo do autor, pode ou não considerar-se um caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Defendeu-se naquele Acórdão do STJ que a derrapagem do veículo é um facto inerente ao funcionamento do mesmo e que a manobra de emergência do desvio causador do despiste e capotamento do veículo e as suas consequências, que o condutor teve de fazer ante a imprevisível intrusão na via de um cão, e para evitar o seu atropelamento, se deve considerar como risco próprio da circulação automóvel, ou seja, um risco inerente à circulação estradal, configurando um caso de responsabilidade objectiva. Mais se acrescenta que o capotamento e despiste, sendo consequências reflexas de manobras de emergência, são inerentes ao risco de funcionamento e circulação do veículo e não eventos passíveis de serem considerados casos de força maior. “Tal como o despiste e o capotamento, em circunstâncias como as que se provaram na acção de onde emerge o recurso, também a derrapagem, sem culpa do condutor, por não ser estranha ao funcionamento do veículo mas inerente ao seu risco de funcionamento e circulação, não constitui caso de força maior – cfr. Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, de 28.5.2002, Proc.02A185, in www.dgsi.pt”.

Ora, o nosso caso tem uma particularidade que o afasta deste relatado no acórdão citado, uma vez que o veículo não se despistou porque o seu condutor se viu obrigado a fazer uma manobra de emergência, deixando de controlar o veículo (o que se traduziria num risco inerente à circulação do veículo), mas foi catapultado para a faixa contrária em virtude do embate do javali.
Como bem se diz nesse citado Acórdão: “O caso de força maior como excludente da culpa e até da responsabilidade civil lato sensu, tem ínsita uma ideia de inevitabilidade, ligada a uma acção do homem ou de terceiro e, em muitos casos, a fenómenos da natureza que por serem incontroláveis e nem sequer previsíveis pela vontade do agente, não são passíveis de imputação pelas suas consequências, configurando-se como evento contra o qual nada pôde fazer por maior que tivesse sido a sua diligência. Já o caso fortuito se liga uma ideia de imprevisibilidade do evento, que se tivesse sido previsto, poderia ter sido evitado”
É exatamente o nosso caso, em que o aparecimento do javali de forma inopinada e o seu embate no veículo, ocorreram de forma inevitável e incontrolável, nada podendo fazer o condutor, que viu o seu carro arrastado para a outra faixa.
Assim, o embate do javali na viatura constituiu-se numa causa de força maior, estranha ao funcionamento do veículo e que, por isso mesmo, exclui a responsabilidade pelo risco.
Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

Sumário:
A responsabilidade pelo risco é excluída quando o acidente resulte de caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo, que é o que sucede quando um veículo é embatido por um javali que surge inopinadamente na via, tornando inevitável o embate e, em consequência desse embate, é projectado para a hemi-faixa de rodagem contrária, onde vem a ser embatido por um veículo que aí circulava.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
***
Guimarães, 11 de maio de 2017


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Ana Cristina Duarte


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João Diogo Rodrigues


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Anabela Tenreiro