Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
657/08.4TABGC.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: PROVA INDICIÁRIA
DESOBEDIÊNCIA
INCUMPRIMENTO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I - Finda a instrução, o juiz tem de proceder a uma análise objectiva e conjunta da credibilidade e da consistência de todos os meios de prova disponíveis, à luz das regras normais da vivência comum e de critérios de lógica e de razoabilidade. Será com base nessa análise ou valoração que o juiz poderá concluir se aqueles elementos de prova recolhidos até ao momento, uma vez produzidos e/ou examinados (“repetidos”) em audiência de julgamento e sujeitos ao contraditório pleno, oralidade e imediação, permitem um juízo de probabilidade séria de condenação do arguido, para lá de toda a dúvida razoável. Vale aqui em toda a sua extensão o princípio da livre apreciação da prova.

II - Sendo caso de desobediência em consequência de desrespeito de uma sentença proferida em providência cautelar, por força do disposto nos artigos 127.º n.º 3 e 159.º n.º 2 alínea a) do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e na alínea a) do artigo 348.º n.º 1 do Código Penal, o preenchimento do elemento típico da regular comunicação da decisão proferida em providencia cautelar não exige uma notificação pessoal, nem a advertência do destinatário da consequência penal decorrente do incumprimento, sendo suficiente que a pessoa visada tenha perfeito conhecimento da ordem.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães,

I - RELATÓRIO

1. No processo nº 657/08.4TABGC.P1 do 2º juízo do Tribunal Judicial de Bragança, procedeu-se a instrução requerida pelo assistente Francisco J..., e, após debate instrutório, o Mmo juiz decidiu pronunciar o arguido João R...pelo cometimento em autoria material de um crime de abuso de poder, previsto e punível pelo art.º 14.º, 26.º e 382.º do Código Penal e o arguido ANTÓNIO N... pelo cometimento em autoria material de um crime de desobediência previsto e punido pelas disposições conjugadas do n.º 3 do art.º 127.º e n.º 2 do art.º 159.º, ambos do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) e ainda pela alínea a) do n.º1 do art.º 348.º do Código Penal e de um crime de abuso de poder previsto e punido pelo art.º 26.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, em concurso aparente com um crime de abuso de poder previsto e punido pelo artigo 382.º do Código Penal.

2. A decisão instrutória, proferida a 20 de Dezembro de 2011, tem o seguinte teor (transcrição de fls. 1072 a 1108, 5.º volume):
No despacho final de encerramento do inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido JOÃO R... imputando-lhe a prática do crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º, do CP.
Em simultâneo, o arguido ANTÓNIO N... viu ser arquivado o inquérito na parte em que era denunciado pela prática do crime de abuso de poder.
Quanto ao crime de desobediência de que vinham denunciados ambos, o arguido JOÃO R... viu ser arquivado o inquérito nesta parte. Já quanto ao arguido ANTÓNIO N..., em síntese, o Ministério Público entendeu que a sentença a proferir nos autos principais e que confirme a providência cautelar decretada configura condição objectiva de punibilidade, sendo inconstitucional a interpretação segundo a qual a conduta de violação da providência cautelar é criminalmente punível sem que a providência tenha sido confirmada nos autos principais. Deste modo, determinou-se que fosse extraída certidão do processado para novo inquérito que aguardaria o trânsito em julgado da decisão final proferida no âmbito do processo que corria termos no TAF de Mirandela.

*
Mais tarde, porém, neste inquérito que veio a ser autonomizado foi proferido despacho final de arquivamento.
*
Depois de incidências várias, e por estarem na mesma fase (foi requerida instrução nos dois processos), foi proferido despacho de conexão dos processos.
Posteriormente, declarou-se aberta a fase de instrução.
*
O assistente Francisco J... inconformado com os dois despachos de arquivamento, veio apresentar requerimento de abertura da instrução, pedindo que o arguido ANTÓNIO N... seja pronunciado pela prática do crime de desobediência simples p. e p. pelo art. 127.º, n.º 3, e 159.º, n.º 2, do CPTA, e art. 348.º, n.º 1, a), do CP.
Mais pede que o arguido ANTÓNIO N... seja pronunciado pela prática do crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 26.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16/7, e em concurso aparente com art. 382.º, do CP, a que acresce a pena acessória de perda do mandato inscrita no art. 29.º, f), da Lei n.º 34/87.
Quanto ao primeiro crime, em síntese, considera que os autos possuem todos os elementos probatórios que permitem inferir a forte indiciação da prática do mencionado crime, mais alegando que deve ser efectuada uma destrinça entre o crime de desobediência legal e o crime de desobediência funcional, sendo que só neste se exige a cominação expressa da prática do crime.
Quanto ao segundo crime, requereu uma serie de diligências probatórias por forma a concluir-se pela autoria do crime.
*
Por sua vez, o arguido JOÃO R... inconformado com o despacho de acusação, veio apresentar requerimento de abertura da instrução, pedindo que não seja pronunciado pela prática do crime de abuso de poder por inexistirem indícios suficientes da prática do mesmo.
Também requereu a produção de prova.
*
Declarada aberta a instrução, o arguido João R... prestou novas declarações procedeu-se à inquirição das pessoas indicadas nos dois requerimentos de abertura de instrução e de outra pessoa mais tarde requerida pelo assistente.
Foi solicitado o envio da certidão do procedimento administrativo que correu termos no Município de Bragança.
*
Afigurando-se desnecessária a realização de outras diligências instrutórias, procedeu-se ao debate instrutório, o qual decorreu com integral observância de todas as formalidades legais.
*
O tribunal é competente.
A instrução foi requerida por quem tem legitimidade.
Inexistem quaisquer nulidades, ilegitimidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
*
Cumpre apreciar e decidir.
*
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, do CPP).
Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia (art. 308.º, n.º 1, do CPP).
Em face destes normativos, verifica-se que o juiz de instrução deve guiar-se pelos mesmos critérios que levam o Ministério Público a acusar ou a arquivar. Assim, é à luz dessa bitola que, na instrução, se pronuncia ou não o arguido.
Deste modo, é essencial e extremamente relevante fazer um apelo à produção doutrinal processual penal relativa ao art. 283.º, n.º 1, do CPP. Este preceito estabelece que só se deduz acusação se forem recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Já o art. 283.º, n.º 2, do CPP, determina que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Como se depreende da redacção deste preceito, o juízo a formular caracteriza-se por ser retrospectivo (juízo em face da prova realizada acerca de factos passados) e, ao mesmo tempo, ser prospectivo (suposição acerca da produção de prova a realizar no julgamento – No entanto, porque virado para algo que ainda não aconteceu, este juízo de prognose deve fundar-se em premissas muito credíveis, a raiarem a certeza, excluindo-se desta sede os dados estatísticos, porquanto este juízo é jurídico-normativo).
Decorre igualmente tratar-se de uma decisão de mérito. Isto é, trata-se, obviamente, de uma decisão de facto e de uma decisão de direito (porque, para o aplicador, eles são hermeneuticamente incindíveis e em círculo) e funcionalmente voltada para a qualificação de um facto como crime e seu futuro sancionamento. Nas palavras de FERNANDA PALMA, “Acusação e pronúncia num direito processual penal de conflito entre a presunção de inocência e a realização da justiça punitiva” in I Congresso de Processo Penal, Almedina, p. 120 e passim, exige-se a antecipação de um juízo de culpa, pelo que se trata de um juízo normativo. Acusa-se ou pronuncia-se porque se considera o arguido culpado e não com base numa qualquer probabilidade sociológica, estatística ou meramente por razões de cautela.
Como se sabe, a leitura daquele preceito tem gerado alguma discórdia no campo da processualística criminal. Por um lado, leva-se o arguido a julgamento quando há possibilidade de o arguido ser condenado – tese mínima –, por outro, leva-se o arguido a julgamento quando é razoável supor que será condenado – tese intermédia (por último na esteira desta corrente PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, 2008, p. 332: indícios suficientes dos factos da acusação são as razões que sustentam e revelam que é mais provável que os ditos factos se tenham verificado do que não se tenham verificado) com reconhecido forte apoio literal no art. 283.º, n.º 2, do CPP – e, para outros ainda, leva-se o arguido a julgamento somente quando há forte possibilidade de a condenação ocorrer – tese forte.
Ora, somos dos que pensam que a autoridade judiciária competente, não se tendo convencido, por inteiro, da prática de um ilícito criminal, não deve levar o arguido a julgamento. Não se vê razões para o levar quando se possui dúvidas insanáveis acerca da sua culpabilidade (Referimo-nos às dúvidas não aceitáveis, pois basta, para o decisor, lograr convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Uma coisa é a verdade processual, outra a verdade absoluta – inalcançável), pois ficar-se-ia, dessa forma, na expectativa, pouco plausível, do julgador, num processo de estrutura acusatória – art. 32.º, n.º 5, da CRP (logo distinto do acusador e tematicamente vinculado), ser persuadido.
Não se considera também despiciendo relembrar o carácter “criminógeno” do julgamento e o próprio princípio da presunção de inocência que também vigora nas fases processuais anteriores ao julgamento, se bem que em termos um tanto ou quanto mitigados (isto é, trata-se de um princípio que vigora em todo o processo penal. Para o TEDH, vale até fora do processo. Disso nos dá conta HENRIQUES GASPAR, “Os novos desafios do processo penal no século XXI e os direitos fundamentais (um difícil equilíbrio)” in RPCC, 15, 2005, p. 264, mas a sua intensidade varia de fase para fase, consoante o fim de cada uma destas, pelo que também se trata de um princípio teleologicamente vinculado).
Todas estas razões, por efeito, levam-nos a optar pela tese que sufraga um entendimento mais exigente quanto ao conceito de indícios suficientes. Tomamos partido por esta corrente pelos motivos invocados, mas também por a considerarmos mais de acordo com os interesses em jogo, com o princípio do processo equitativo, com a estrutura acusatória e com o Estado de direito democrático. Tudo valores e princípios plasmados no nosso ordenamento jurídico-constitucional e, por consequência, no CPP, também solenemente conhecido, mas por vezes olvidado, por ser direito constitucional aplicado.
Deste modo, deve concluir-se que a decisão de levar o arguido a julgamento partilha, deve partilhar, do mesmo juízo de verdade, da mesma convicção probatória que incumbe ao julgador (Seguindo a lição de CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, p. 39, deve defender-se para a acusação “a mesma exigência de prova e de convicção probatória, a mesma exigência de «verdade» requerida pelo julgamento final”. “Deverá sim exigir-se aquele tão alto grau de probabilidade prática quanto possa oferecer a aplicação esgotante e exacta dos meios utilizáveis para o esclarecimento da situação – um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção)”. Também no sentido da tese mais exigente, NORONHA E SILVEIRA, idem, p. 155-181, e CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA, “Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar” in Revista do CEJ, n.º 1, p. 151-190). Além disto, acresce que a verificação provável dos factos é aquela que exibe a potencialidade de ultrapassar a barreira do in dubio pro reo na fase do julgamento (FERNANDA PALMA, idem, p. 126).
Somente os indícios necessariamente graves ou fortes no sentido de serem factos que permitem uma inferência de tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável. Só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de possibilidade razoável de condenação (Idem, p. 121-122). Neste sentido parece aderir o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23-11-2011, processo n.º 18/09.8TATMC.P1, in www.dgsi.pt, ao decidir que: I - O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubio pro reo. II - O juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases: (i) um juízo de indiciação da prática de um crime, resultante dos elementos probatórios produzidos; (ii) um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido; e (iii) um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir que predomina uma possibilidade razoável de o arguido vir a ser condenado por esses factos ou vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento (sublinhado nosso).
Todas as considerações anteriores entendem-se, como se defendeu supra, ser, mutatis mutandis, aplicáveis em toda e qualquer instrução, aquando da decisão de pronúncia ou não pronúncia, estando o juiz de instrução vinculado àqueles critérios.
*
Ao arguido ANTÓNIO N... pretende imputar-se a prática de um crime desobediência simples p. e p. pelo art. 127.º, n.º 3, e 159.º, n.º 2, do CPTA, e art. 348.º, n.º 1, a), do CP.
Vejamos a redacção de cada uma daquelas normas:
Reza assim o art. 127.º, do CPTA (Garantia da providência):

1 - A pronúncia judicial que decrete uma providência cautelar pode ser objecto de execução forçada pelas formas previstas neste Código para o processo executivo.
2 - Quando a providência decretada exija da Administração a adopção de providências infungíveis, de conteúdo positivo ou negativo, o tribunal pode condenar de imediato o titular do órgão competente ao pagamento da sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada a assegurar a efectividade da providência decretada, sendo, para o efeito, aplicável o disposto no artigo 169.º
3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, os órgãos ou agentes que infrinjam a providência cautelar decretada ficam sujeitos à responsabilidade prevista no artigo 159.º.

Por sua vez, e face a esta remissão, o art. 159.º, do CPTA (Inexecução ilícita das decisões judiciais), estabelece o seguinte:

1 - Para além dos casos em que, por acordo do interessado ou declaração judicial, nos termos previstos no presente título, seja considerada justificada por causa legítima, a inexecução, por parte da Administração, de sentença proferida por um tribunal administrativo envolve:
a) Responsabilidade civil, nos termos gerais, quer da Administração quer das pessoas que nela desempenhem funções;
b) Responsabilidade disciplinar, também nos termos gerais, dessas mesmas pessoas.
2 - A inexecução também importa a pena de desobediência, sem prejuízo de outro procedimento especialmente fixado na lei, quando, tendo a Administração sido notificada para o efeito, o órgão administrativo competente:
a) Manifeste a inequívoca intenção de não dar execução à sentença, sem invocar a existência de causa legítima de inexecução;
b) Não proceda à execução nos termos que a sentença tinha estabelecido ou que o tribunal venha a definir no âmbito do processo de execução.
Por fim, é do seguinte teor o crime previsto no art. 348.º, n.º 1, do CP:
Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

Face a estes normativos, importa realizar uma análise perfunctória ao crime matriz da desobediência estabelecido no actual CP.
Desde logo se depreende que nos encontramos perante um crime público que visa punir a desobediência em si, desligada da ocorrência de qualquer resultado ou de quaisquer consequências.
A doutrina é unânime em afirmar que a infracção criminal sub iudice tem como bem jurídico tutelado a autonomia intencional do Estado (isto é, a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos), sendo qualificado de crime de dano (neste sentido, CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, Coimbra editora, 2001, p. 350, Autora que seguiremos de perto nas considerações relativas ao supra citado ilícito criminal. Todavia, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, p. 825, entende que se tutela a autonomia intencional do funcionário).
Relativamente ao tipo objectivo, constata-se uma subdivisão quanto à desobediência simples (a desobediência qualificada consta do art. 348.º, n.º 2): por um lado, há crime de desobediência por força de cominação legal (cfr. alínea a)); por outro, verifica-se o crime de desobediência em razão da não observância de uma cominação funcional (cfr. alínea b). Autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado conferem à conduta transgressora o carácter de desobediência simples).
Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, p. 825, o tipo objectivo consiste, em síntese, no não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados ao destinatário e provenientes de autoridade ou funcionário competente. O crime consuma-se com a prática do acto cuja omissão foi ordenada ou a omissão do acto cuja prática foi ordenada.
Quanto aos elementos objectivos do tipo comuns às duas alíneas, eles são:
· A ordem ou o mandado;
· Legalidade substancial (quanto à alínea a) deve ter atrás de si disposição legal que autorize a sua emissão) e formal da ordem ou mandado (regularidade da comunicação);
· Competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão (legitimidade);
· Regularidade da sua transmissão ao destinatário;
· Não acatamento dessa ordem ou mandado (neste sentido SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Código Penal Anotado, 2.º volume, 3.ª edição, Rei dos Livros, 2000, p. 1503).
Apesar da clareza dos mesmos, deve sublinhar-se que se deve exigir uma autêntica comunicação: não basta que a mesma seja formalmente irrepreensível (absoluta observância das formalidades que a lei estipula para a sua emissão), é necessário também que o agente se tenha inteirado, previamente, de facto do seu conteúdo integral. Os destinatários têm que ter também conhecimento da ordem ou mandado a que ficam sujeitos, pelo que se exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido (SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Código Penal Anotado, 2.º volume, 3.ª edição, Rei dos Livros, 2000, p. 1504).
Porém, entre a desobediência legal e a desobediência funcional, esta comunicação diverge. Melhor, se na desobediência basta a comunicação da ordem, já na desobediência funcional há que, além de comunicar a ordem, explicar e advertir para a prática do crime de desobediência caso a ordem não seja cumprida. Isto é, na desobediência funcional exige-se a cominação expressa do crime (a nosso ver, as fórmulas não são sacramentais: o destinatário deve ficar, isso sim, esclarecido que comete um crime caso não cumpra com o que lhe é ordenado). Neste sentido CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, Coimbra editora, 2001, p. 355, que, a propósito da providência cautelar, refere que se discute se se deve advertir o destinatário de que incorre em crime de desobediência se a não acatar. A resposta só pode ser negativa. Com efeito, trata-se de uma cominação legal e não funcional e a lei incriminadora não exige essa advertência. O eventual desconhecimento da ilicitude penal do seu acto por parte de quem não cumpre a providência cautelar convoca as regras próprias do erro. E, neste caso, dificilmente se tratará de erro não censurável.
PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, p. 827, sustenta o mesmo ao escrever que nos casos em que a própria lei prevê a cominação da desobediência com a sanção do crime de desobediência simples ou qualificada, a autoridade pública e o funcionário não têm de fazer menção da cominação legal, quando dão a ordem ou emitem o mandado.
É certo que na doutrina civil se constata posição divergente a propósito do disposto no art. 391.º, do CPC (Incorre na pena do crime de desobediência qualificada todo aquele que infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva). Assim, LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª edição, Almedina, 2004, p. 361, para quem o requerido deve ser pessoalmente notificado que, se a infringir dolosamente, incorrerá no crime de desobediência qualificada. ABRANTES GERALDES, Temas da reforma do processo civil, III, 3.ª edição, Almedina, 2004, p. 327, refere que há consumação do crime independentemente de haver ou não transitado em julgado a decisão desde que ao recurso seja atribuído efeito meramente devolutivo. Sendo necessário que o requerido seja pessoalmente notificado, não bastando a notificação do respectivo mandatário (p. 328. Já LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra editora, 2001, p. 64, sustenta uma interpretação restritiva do tipo que redunda numa solução ab-rogante).
Contudo, a nosso ver, deve aderir-se à doutrina penalista. Não é só o elemento gramatical que leva a concluir assim. Caso propugnássemos a tese civilista não se percebe porque é que a exigência da cominação não deveria ser estendida a outro tipo de crimes. Acresce que a alteração legislativa produzida em 1995, através da introdução do crime de desobediência no art. 391.º, do CPC, tem de ser entendida como vontade expressa do legislador em criar um marco no nosso ordenamento, necessariamente distinto do até aí existente.
Na jurisprudência pode ver-se, no sentido a que aderimos, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24-01-2005, processo n.º 2028/04-2 , in www.dgsi.pt: I - A violação do dever de obediência é punível se existir disposição legal que comine expressamente a pena de desobediência. II - É igualmente punível se, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. III - Tratando-se de embargo, e da aplicação dos indicados dispositivos que cominam expressamente o desrespeito do embargo com o crime de desobediência do artigo 348º (nº 1, alínea a)) — não é exigível como pressuposto da aplicação do preceito que se faça a comunicação admonitória em termos discursivos, pelo funcionário que teve a diligência a seu cargo (sublinhado nosso).
Neste aresto argumenta-se do seguinte modo: O recorrente não foi informado da consequência penal da sua conduta, mas tratando-se de embargo, e da aplicação dos indicados dispositivos que cominam expressamente o desrespeito do embargo com o crime de desobediência do artigo 348º (nº 1, alínea a)) — não era exigível como pressuposto da aplicação do preceito que se lhe tivesse feito a comunicação em termos discursivos, pelo funcionário que teve a diligência a seu cargo. (…) As situações são claramente diferenciadas até mesmo na sua expressão valorativa. No caso do fiel depositário o que releva é a falta, a ausência dos bens penhorados no dia, hora e local designados para a sua apresentação, admitindo-se até que essa falta seja justificada nos termos gerais, fazendo valer qualquer meio de prova. Quando alguém viola um embargo, prosseguindo com as obras que lhe estavam proibidas, porque nisso tem qualquer tipo de empenho, de ordem financeira, afectiva, ou outra, já não pode valer-se do mesmo tipo de justificação para se livrar das consequências penais.
Defendendo a mesma tese, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-06-2004, processo n.º 04P1266, in www.dgsi.pt: I - Resulta com meridiana clareza do disposto no artigo 348º, nº. 1, a), do Código Penal, que basta, para tipificação do crime de desobediência, que a ordem seja legal, regularmente comunicada, emanada de autoridade competente, e «uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples». Já na alínea b), se estatui a exigência de «na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fazerem a correspondente cominação». II - Em ambos os casos existe um dever qualificado de obedecer, com a diferença de que, no primeiro [alínea a)], a imposição da norma de conduta é feita por lei geral e abstracta, anterior à prática do facto; enquanto no segundo, a norma de conduta penalmente relevante resulta de um acto de vontade da autoridade ou do funcionário, contemporâneo da actuação do agente. Portanto, se faz sentido a exigência de cominação expressa neste segundo caso, não o fará, assim, no primeiro, em que a norma de conduta está tipificada na lei, com carácter geral e abstracto e a sua ignorância não pode ser triunfantemente invocada, ao menos para efeitos de afastar a incriminação (sublinhado nosso).
Contudo, o art. 159.º, n.º 2, do CPTA, ao remeter para a pena de desobediência estabelece outros elementos típicos. Volte a citar-se que a inexecução também importa a pena de desobediência, sem prejuízo de outro procedimento especialmente fixado na lei, quando, tendo a Administração sido notificada para o efeito, o órgão administrativo competente: a) Manifeste a inequívoca intenção de não dar execução à sentença, sem invocar a existência de causa legítima de inexecução; b) Não proceda à execução nos termos que a sentença tinha estabelecido ou que o tribunal venha a definir no âmbito do processo de execução.
Ora, constata-se que a administração tem de ser notificada para o efeito. Mas tal pretende querer dizer que tem de ser notificada para a pena de desobediência ou que tem de ser notificada da decisão judicial?
A nosso ver, a notificação que aí se menciona é a notificação da decisão. E para que cometa o crime a lei processual administrativa estabelece mais dois requisitos: não observe a decisão e manifeste de modo inequívoco a sua não observância sem invocar uma causa legítima de inexecução.
Vejamos o que resulta dos autos:
A 17-9-2008, foi expedida notificação da decisão judicial proferida no âmbito de um processo administrativo que correu termos no TAF de Mirandela na qual se deferia a providência cautelar requerida com a consequente manutenção da situação até aí existente que se traduz na hangaragem da aeronave do requerente no hangar do Aeródromo Municipal de Bragança.
É de mencionar que na própria decisão, antes do dispositivo, se menciona a responsabilidade criminal no caso de se infringir a providência decretada – cfr. f. 219-220.
O advogado do requerente (aqui assistente), no dia 7-10-2008, envia um fax ao advogado do arguido e ao próprio arguido onde menciona o carácter obrigatório da decisão e que pretendia hangarar a aeronave no dia seguinte (o director foi advertido para responsabilidade penal, caso não cumprisse com a decisão judicial) – cfr. f. 313-315.
O arguido confirma a recepção do fax. E refere que, de imediato, contactou o seu advogado o qual lhe transmitiu que tinha sido interposto recurso onde se pedia o efeito suspensivo do mesmo.
Porém, se pedia tal efeito é porque a decisão era para cumprir. Isto é, se não havia efeito suspensivo, a decisão era para cumprir. Ademais, se sabia do recurso, naturalmente conhecia que a decisão foi desfavorável. Nem se imagina outra coisa. Aquando da notificação da decisão efectuada pelo tribunal, o arguido passou logo a conhecer a decisão desfavorável. As regras da experiência dizem-nos isso. E que a tinha de cumprir. Mal ou bem. Mas sabia que havia de a cumprir. Tal resulta de forma fortemente indiciada.
E, face ao seu depoimento e ao do outro arguido, fácil é de ver que este, o director do aeródromo limitou-se a cumprir o que aquele decidiu: não deixar hangarar a aeronave. Quanto ao teor da conversa com o seu advogado, há que referir, desde logo, que o mesmo não foi inquirido como testemunha, nem se pode presumir, muito pelo contrário, que o mesmo tenha aconselhado o arguido a impedir a hangaragem com base no recurso e no pedido de efeito suspensivo do mesmo, pois sem despacho nesse sentido a decisão tinha de ser cumprida. A legislação administrativa não permite inferir outra coisa senão essa.
Aliás, o prazo da resposta ao seu recurso ainda decorria e o efeito do recurso foi apreciado em 29-10-2008 – cfr. f. 302. Nesta sequência, o requerente viu-se obrigado a requerer a execução da decisão, vendo a sua pretensão deferida a 13-10-2008. Nesse mesmo dia foram notificados os mandatários de que a Câmara tinha 20 dias para executar a sentença ou deduzir oposição. Mais alertava para o facto de a oposição não suspender a execução dado que a decisão é de cumprimento imediato – cfr. f. 319.
A 12-11-2008, o TAF é informado que a decisão ainda não foi cumprida – cfr. f. 325. E só a 14-11-2008, na presença da GNR, é que foi observada a decisão judicial.
Note-se que resultam fortes indícios de que ocorreu desobediência na forma omissiva (modalidade que este crime pode naturalmente assumir). Face àquela notificação apenas restava ao Município informar o assistente de que podia aparcar a aeronave quando aí comparecesse. Nada nos autos demonstra isso.
Deste modo, resulta fortemente indiciado que, devidamente notificado (pelo tribunal e pelo assistente), o arguido decidiu não cumprir com a decisão judicial e que sabia que a tinha de cumprir. Mais demonstrou inequivocamente que não pretendia cumprir (decorreram quase 2 meses entre a decisão e o cumprimento da mesma a qual exigiu o auxílio da força policial) invocando para o efeito uma justificação que não foi concretizada (a não ser ele, ninguém corroborou esta tese, designadamente o seu mandatário o qual não podia indicar como testemunha pois na certeza de que conhecia o carácter obrigatório da decisão) e que não era legítima.
Naturalmente que o desconhecimento da lei, não é admissível, nem justificável (o Ministério Público refere isto mesmo). Mais a mais, perante o quadro supra apurado, pensamos que resulta, isso sim, conhecimento da obrigatoriedade de cumprir essa decisão sob pena de incorrer na prática de um crime ao desobedecer a uma ordem judicial.
A restante prova vertida no requerimento de abertura de instrução apenas contextualiza as ocorrências havidas no dia 8-10-2008 e no dia 14-11-2008.
Por fim, uma breve menção à inconstitucionalidade suscitada pelo Ministério Público. Olvidando o facto de não caber ao Ministério Público suscitar a inconstitucionalidade das leis no âmbito de processos criminais na fase de inquérito, sob pena de, por exemplo, em sede de processos em que se investiga um crime público onde não seja admissível a constituição de assistente a inconstitucionalidade apenas ser apreciada em exclusivo e sem possibilidade de recurso pelo Ministério Público, isto é, pela única autoridade que dirige o inquérito, o que, de todo, não se compagina com o nosso ordenamento jurídico constitucional (cfr. o art. 280.º, da CRP), aparte isto, pensamos que não assiste razão do ponto de vista substancial. É que a tutela acrescida das providências justifica-se pela natureza das providências cautelares. Senão vejamos:
As sentenças são, in limine, executadas. As providências cautelares visam salvaguardar os efeitos das sentenças, sob pena de a execução não as valer. Como é sabido, as providências cautelares têm em vista impedir que a sentença não vire, como soe dizer-se, uma sentença para encaixilhar. Ou, numa perspectiva ainda mais metafórica, as providências cautelares têm como finalidade evitar que a sentença tenha apenas efeitos meramente platónicos. O carácter acessório das providências cautelares propõe-se a acautelar os efeitos úteis da sentença, a qual, como é por todos sabido, pode ser proferida num momento em que o seu efeito já não pode ser efectivado, designadamente através da comummente designada teoria do facto consumado.
Por isso que discordamos daqueles que consideram contraditório o sistema em que a decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar, necessariamente provisória, é mais tutelada do que uma sentença proferida nos autos principais, necessariamente definitiva.
Mais, alcandorar a prática do crime no trânsito da decisão final proferida nos autos principais, para lá de legitimar o acto de resistência e de desobediência de decisões judiciais, é sustentar a tipificação de um crime quase impossível, pois não se vislumbra como poderia existir dolo quando o arguido ao desobedecer a uma decisão estaria sempre convicto de que teria um desfecho favorável no âmbito dos autos principais ou, pelo menos, era o que argumentaria, coisa que, à partida, não se vê como qualificar de destituída de credibilidade. Aliás, são por estes motivos que os conflitos de vizinhança acerca de delimitações prediais denunciados criminalmente redundam, na sua grande maioria, e bem, no arquivamento dos inquéritos por inexistência de dolo, já que, na grande parte dos casos, não existe sentença transitada em julgado a delimitar os terrenos. E, note-se, relativamente ao tipo subjectivo do crime de desobediência, destaca-se que a desobediência negligente não é punível por lei penal. Concluímos, assim, sem mais, pela constitucionalidade da norma incriminadora vinda de analisar.
Atento o que vimos discorrendo, analisada toda a prova documental, as declarações produzidas pelos dois arguidos, o tribunal entende existir prova que possibilita formular um juízo de indiciação necessariamente forte no sentido da prática do crime de desobediência e que permite estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável tal como descrito na acusação inserta no requerimento de abertura de instrução.
*
Ao arguido ANTÓNIO N... pretende imputar-se também a prática de um crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 26.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16/7, e em concurso aparente com art. 382.º, do CP, a que acresce a pena acessória de perda do mandato inscrita no art. 29.º, f), da Lei n.º 34/87.
Por sua vez, o arguido João R...pretende que não seja pronunciado da prática daquele crime de que vem acusado por parte do Ministério Público.
Comecemos por analisar o tipo.
O art. 26.º, da Lei n.º 34/87, de 16/7 (Abuso de poderes), reza assim:
1 - O titular de cargo político que abusar dos poderes ou violar os deveres inerentes às suas funções, com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um benefício ilegítimo ou de causar um prejuízo a outrem, será punido com prisão de seis meses a três anos ou multa de 50 a 100 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Incorre nas penas previstas no número anterior o titular de cargo político que efectuar fraudulentamente concessões ou celebrar contratos em benefício de terceiro ou em prejuízo do Estado.
Por sua vez, o art. 382º (Abuso de poder), estabelece que:
O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
As normas são idênticas, apenas se dirigindo a agentes diferentes. Deste modo, é útil tudo o que se escreveu a propósito do crime previsto no CP, pelo que faremos uma exposição sucinta do tipo tendo em conta os comentários efectuados ao crime genérico de abuso de poder.
Para PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, Coimbra editora, 2001, p. 774, o bem jurídico tutelado é a autoridade e credibilidade da administração do Estado ao ser afectada a imparcialidade e eficácia dos seus serviços.
Os cidadãos têm direito a que a administração prossiga as suas finalidades dentro da lei de um modo objectivo e não subjectivo. Daí que esta Autora mencione a credibilidade que é claramente afectada quando as decisões são tomadas designadamente viciadas no denominado fulanismo.
Quanto ao conceito, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, p. 905, propugna que o abuso de poder é uma acção ou decisão do funcionário que padece de um dos seguintes vícios: violação de lei substantiva ou processual; desvio de poder; incompetência relativa ou absoluta; usurpação do poder jurisdicional ou do poder administrativo.
Já MAIA GONÇALVES, Código Penal Português Anotado, 18.ª edição, Almedina, 2007, p. 1114, escreve que abusar dos poderes é fazer deles uso para um fim diferente daquele para que a lei os concedeu ao funcionário. Também abusa dos poderes o funcionário que excede os poderes que lhe são legalmente conferidos ou que desrespeita formalidades essenciais na sua actuação.
Quando aqui se menciona poderes ou deveres, naturalmente que só podemos estar a falar dos poderes e deveres inerentes à sua função, sob pena de estarmos no âmbito designadamente da usurpação de poderes.
No que aqui nos interessa, PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, III, Coimbra editora, 2001, p. 775, descreve o abuso de poderes como a instrumentalização de poderes (inerentes à função), para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo (ou melhor dizendo, ilegítimas). Sendo que fazendo uso dos seus poderes para um fim diverso daquele para o qual eles lhe foram conferidos existe um desvio de poder.
Acresce que releva a modalidade extrema do desvio do poder, ou seja, a hipótese em que o interesse público é preterido em nome de fins ou interesses de natureza meramente particular (a p. 777, dá como exemplo o funcionário camarário que não concede uma licença de obras para prejudicar o requerente).
Da prova recolhida e da inquirição das testemunhas (na instrução revelou-se muito estranho o depoimento de António L... que se afigurou, no final, totalmente imprestável, respondendo às perguntas de modo defensivo, por vezes respondia outra coisa, doutras de modo desconexo, demonstrando assim uma parcialidade evidente no sentido de proteger os arguidos), saiu fortemente indiciado (quase por unanimidade e de forma congruente) que a aeronave em causa, esteve, largo tempo, durante vários anos, aparcada no aeródromo municipal. E com autorização do arguido João R... de modo verbal, como fazia com todas as outras (este arguido quis fazer crer que ia dando autorizações temporárias e casuísticas o que não foi corroborado por nenhum dos pilotos. O vice-director Serafim P... veio, neste e noutros pontos, contradizer o arguido e revelar a sua intenção de prejudicar o assistente, coisa que resulta totalmente consentânea com a produção de prova até agora realizada nestes autos).
Das testemunhas depreendeu-se também que no hangar se fazia a distinção entre aeronaves residentes/fixas e as não residentes. A dos autos, resulta unânime pertencer à do primeiro grupo (apenas o arguido João R... tentou obnubilar esta situação). Mais, o aparcamento das aeronaves nunca esteve dependente de qualquer autorização por escrito – cfr. desde logo f. 552, coisa corroborada pelos pilotos ouvidos (Nuno V..., Álvaro B..., Horácio S..., testemunhas essenciais que prestaram depoimentos congruentes entre si e que se mostraram isentos). A hangaragem sempre havia sido realizada na tentativa de optimização do espaço aí existente, pelo que, muitas vezes, aparcar ou retirar uma aeronave implicava deslocar uma ou mais aeronaves aí existentes e/ou casar os de asa alta com os de asa baixa.
Dos pilotos ouvidos, nenhum mencionou que houvesse existido no passado, mesmo que por negligência, um toque entre aeronaves quando procediam ao aparcamento ou à retirada de uma delas (o arguido João R... referiu isso, mas ninguém o corroborou). Sucede que, sem que a propriedade da aeronave estivesse formalmente transmitida, mas já com a transmissão material (traditio das chaves – Álvaro B... declarou isso), no regresso de um voo com o anterior proprietário, um funcionário dirige-se ao assistente dizendo-lhe que não podia estacionar a aeronave porque não tinha autorização e que tinha de a requerer por escrito. O que não se pode deixar de estranhar, já que daqui se pode desde já concluir pela subjectivização desta questão pois formalmente, apesar da entrega das chaves, a aeronave ainda estava em nome do anterior proprietário. Pode também concluir-se pela estranheza da aeronave escolhida, a qual de manhã sai e à tarde já não pode entrar (o facto de o hangar estar fechado e ninguém ter tido a possibilidade de o avistar nesse momento nada releva. Pior, atentas as regras da experiência revela, isso sim, uma decisão já anteriormente tomada no sentido de impedir que a aeronave regressasse ao local donde tinha saído).
Posteriormente, o assistente vê-se na contingência de fazer um pedido por escrito no qual pede a autorização para aparcar a aeronave no aeródromo.
Todavia, esse pedido vem a ser indeferido depois de ter ocorrido uma reunião a três entre os dois arguidos e outro engenheiro camarário na qual decidiram que tinham de indeferir a autorização (é o arguido João R... que transmitiu isto em sede de declarações na fase de instrução e Orlando G... confirma a existência desta reunião).
Mais tarde, um dos pilotos (Luís C...) que possuía aeronave fixa vem a falecer quando realizava um voo. Todavia, nessa altura, com o lugar vago, o município continuou a não autorizar o aparcamento. Resultou até unânime que esta aeronave possuía dimensões superiores às demais.
Deste modo, inexistindo eventos pretéritos de falta de segurança ou de conflitos entre os pilotos (nada, nem um toque apenas que tenha havido entre aeronaves), e face ao modo como o hangar era aproveitado ao nível do espaço, é de questionar qual o verdadeiro fundamento que esteve na base da decisão do arguido João R... e da decisão do arguido António N....
A meu ver, o critério a utilizar nesta sede só pode ser o objectivo. Como supra referi, as decisões não podem ser tomadas com base em razões subjectivas. Devem ser fundamentadas em critérios necessariamente objectivos. Afinal, estamos a lidar com o bem público o qual não pode ser afectado de modo subjectivo e de forma infundada e não sustentada em critérios necessariamente genéricos e abstractos. Por todos é sabido isto, pelo que o tribunal dispensa-se de fazer mais considerandos acerca das decisões administrativas que, de todo, não se podem basear na política comummente designada do quero, posso e mando.
Ora, resulta fortemente indiciada a ausência total da utilização de um critério objectivo. Não diríamos até que as decisões foram tomadas de forma arbitrária se com isso se quer transmitir aleatoriedade da mesma, já que, se pode concluir, depois de produzida toda a prova testemunhal e documental, conjugada com as regras da experiência, resulta fortemente indiciado que os dois arguidos agiram com o intuito de prejudicar o assistente. A nosso ver, isto resulta inequívoco. Como explicar que uma aeronave, anteriormente autorizada, saia pela manhã de um aeródromo para mais tarde, já não estar autorizada para hangarar, sendo que no indeferimento se alega a segurança e falta de espaço. O espaço sempre foi gerido como supra se mencionou. E esta aeronave era daquelas que os pilotos designam por fixas. Problemas de segurança muito menos. Não se pode confundir o tribunal, como quis o arguido João R..., com problemas no telhado por força de uma tempestade querendo com isso dizer que houve no passado problemas de segurança (Orlando G... falou nisso, mas esta tese é muito pouco consistente atentas as regras da experiência e do bom senso). E nenhum piloto se apercebeu de qualquer tipo de insegurança até aí.
Mais, mesmo que não existisse espaço, com a trágica ocorrência supra mencionada (é de realçar que esta aeronave, além de fixa, era a de maior porte) o espaço passou a existir. E nada foi demonstrado que ele não existisse. Não pode ser agora um regulamento que tem em vista uma ocupação de espaço não optimizada como no passado que pode corroborar a tese dos arguidos. O regulamento não pode eximi-los das suas anteriores decisões. E o que resulta é, de forma inequívoca, que estes dois arguidos decidiram retirar ao assistente a autorização para hangarar aquela aeronave. Foi o próprio arguido João R... que mencionou uma reunião para o efeito. A autoria é manifesta e não pode o arguido António N... alegar que essa área era técnica e que não possuía conhecimentos para tal e que se limitou a seguir o sugerido por aquele. O incidente da providência cautelar mostra precisamente o contrário. Isto é, ao desobedecer, ao actuar do modo supra mencionado pode concluir-se que existem fortes indícios de que, após a actuação do arguido João R..., quem passou a liderar todo este processo foi precisamente o Presidente do Município no sentido de confirmar a decisão anterior e de a defender até às últimas consequências.
Mais argumentos se podem esgrimir contra a tese da simples aposição de concordo com a informação do arguido João R..., isto é, a tese de sobrevalorização do papel do director e desvalorização do papel do Presidente da Câmara Municipal de Bragança: afinal, não era esta a primeira vez que se dirigiam ao Presidente por escrito para hangarar aeronaves? Isso desde logo não chamaria a atenção para uma situação anómala? E porque é que o assistente não foi ouvido no procedimento administrativo? Não resultava surpreendente que uma aeronave saísse e já não pudesse entrar? No requerimento do assistente é referida a autorização anterior, pelo que não seria de averiguar melhor a situação? Desconhecia que alguma aeronave deste tipo alguma vez estivesse na rua? Acresce que o requerimento era dirigido pelo seu anterior adversário político: isso não deveria fazer com que averiguasse a situação de modo mais cuidado a fim de não ser acusado de tratamento discriminatório? Porquê a demora na decisão quando se limitou a um simples concordo e tendo em conta a reunião a três supra referida? Conhecendo a morte trágica de Luís C... (ocorrida a 27-7-2008), porque se manteve irredutível quando o espaço, que não existia, passou a existir? A nosso ver, toda esta argumentação implica, atentas as regras da experiência, que existem fortes indícios de que o arguido ANTÓNIO N... agiu com a intenção de prejudicar o assistente, bem sabendo que inexistiam motivos legítimos, fundamentação objectiva e tratamento equitativo daquele. Sabendo precisamente o contrário: a decisão foi subjectiva em sentido desfavorável para com o assistente por desentendimentos político-partidários.
Por fim, não se vislumbra que esta questão seja assim tão técnica. Durante o inquérito não foi pedido nenhum parecer ao INAC, e bem, como nesta fase se considerou tal irrelevante. É que este tema não assume foros de grande tecnicidade. Afinal, estamos a falar de um simples estacionamento de aeronaves. De salientar que o assistente na altura, no requerimento escrito, alerta para o facto de a aeronave sempre ter sido aí aparcada. Isto é, não pode desconhecer este arguido o que aconteceu no passado. Para finalizar, faz-se a última questão: porquê a aeronave que o assistente veio a adquirir e não outra?
Assim, somente se pode concluir que existem indícios suficientes de que esta decisão não se guiou por critérios objectivos, mas sim por questões subjectivas relacionadas com a pessoa do assistente (necessariamente negativas), visando-o assim prejudicar. O comportamento posterior, designadamente a aprovação do regulamento por coincidência veio a estabelecer, de forma definitiva e absoluta, a impossibilidade de o assistente poder hangarar, facto que também não abona a favor do arguido ANTÓNIO N... (este regulamento leva a que o número de aeronaves no hangar tenha sido reduzido drasticamente sem razão aparente).
Mutatis mutandis para o outro arguido.
Atento o que vimos dizendo, o tribunal entende existir prova que possibilita formular um juízo de indiciação necessariamente forte no sentido da prática do crime de abuso de poder e que permite estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável tal como descrito na acusação inserta no requerimento de abertura de instrução para o arguido Jorge Nunes e descrito na acusação deduzida pelo Ministério Público na sua acusação.
*
Assim, e face aos parâmetros legais e interpretativos acima expendidos, verifica-se a existência de indícios suficientes nos autos a fim de submeter a julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular os arguidos JOÃO R... e ANTÓNIO N... pelo que os pronuncio.
*
Sem custas – a contrario art. 515.º, do CPP.
*
Em face do exposto:
A – Pronuncio o arguido JOÃO R... por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação pública proferida a f. 671-676;
B – Pronuncio o arguido ANTÓNIO N... pelos seguintes factos:
1. O arguido exerce desde, pelo menos 2007, sem qualquer interrupção, as funções de Presidente da Câmara de Bragança;
2. O Aeródromo Municipal de Bragança (AMB) é propriedade da Câmara Municipal de Bragança (CMB).
3. Das infra-estruturas do AMB faz parte um hangar para estacionamento quer permanente quer ocasional de aeronaves.
4. O órgão de Direcção do Aeródromo Municipal de Bragança é o Director de Aeródromo (DA) e ao longo de cerca de 8 anos tal órgão tem vindo a ser ocupado por JOÃO R... por nomeação da CMB.
5. O arguido, no exercício das suas funções de Presidente da Câmara de Bragança, é o máximo superior hierárquico do DA.
6. Em 11 de Maio de 1998 foram aprovadas em sede de Assembleia Municipal as normas de funcionamento do Aeródromo Municipal de Bragança - documento de fls. 637 a 641 - nos termos das quais se fixam, para além do mais, as obrigações do Director de Aeródromo perante a CMB e perante a DGAC e as condições de acesso e utilização das instalações e que constitui ainda o actual Manual de Aeródromo.
7. Entre as obrigações do DA perante a CMB estão as de: resolver as questões decorrentes da aplicação das referidas normas de funcionamento, submetendo à apreciação da CMB as que ultrapassem as suas competências; propor ao Presidente da Câmara as alterações às referidas normas de funcionamento, desde que o julgue conveniente; funcionar como consultor perante a CMB e a DGAC em todos os assuntos relacionados com o Aeródromo, emitindo o seu parecer sobre os assuntos em questão; para o efeito, a CMB, antes de tomar qualquer decisão relativamente às instalações do Aeródromo e sua área de protecção, ouvirá o Director.
8. Entre as condições de acesso e utilização das instalações do Aeródromo fixou-se que: a pedido dos interessados e dentro das possibilidades de espaço, a CMB permitirá a hangaragem permanente de aeronaves e que no caso de recolha eventual de uma aeronave, devem os funcionários permitir e ajudar a recolhê-la no hangar, por forma a minimizar riscos para essa e outras aeronaves que utilizem as instalações do aeródromo.
9. A aeronave de matrícula CS-DBN, então de propriedade da firma AMF e de José B..., estava desde, pelo menos 2001, devidamente autorizada a estacionar no hangar municipal, mercê de decisão genérica então concedida pelo DA, para o que lhe foi reservado determinado espaço, que não era ocupado por outrem.
10. Nunca até 12.02.2008 foi recusado o estacionamento de qualquer aeronave pertencente a cidadãos de Bragança no hangar Municipal.
11. Como nunca, até essa data, o DA havia submetido a decisão de autorização de hangaragem à Câmara Municipal de Bragança.
12. Como nunca houvera proposto alterações relativas às condições de acesso e utilização do hangar do AMB.
13. Como nunca ninguém teve necessidade de requerer à Câmara autorização de hangaragem.
14. Em Fevereiro de 2008 o ora assistente deu início a processo negocial com vista à aquisição da aeronave CS-DBN à AMF e ao José B....
15. No âmbito dessas negociações, no dia 09.02.2008, o ora assistente pilotou aquela aeronave, após o que a estacionou dentro do hangar do AMB, de onde a havia retirado, e no lugar que lhe estava destinado.
16. Em 12.02.2008, cerca das 8 horas, deslocou-se conjuntamente com Álvaro B..., na mesma aeronave, a Saragoça, tendo-a retirado do dito hangar, e do mesmo local.
17. Quando regressaram, cerca das 16 horas, o DA, João R..., convicto de que a aeronave era já do ora assistente, porque tinha relativamente a este grande animosidade resultante do facto de não o ter apoiado nas eleições para o Aero Clube de Bragança, ocorridas há poucos meses, em retaliação por tal facto, decidiu prejudicar o assistente no seu interesse em ver recolhida a referida aeronave no hangar municipal que dirigia.
18. Para tanto, sem qualquer justificação e sem enfrentá-lo, aguardou que o assistente retirasse a aeronave do hangar e instruiu o auxiliar do aeródromo no sentido de não permitir a abertura do portão para nova recolha daquela específica aeronave.
19. Ordem essa que foi transmitida ao ora assistente cerca das 16 horas daquele dia, impedindo a aeronave de regressar ao lugar que lhe estava destinado.
20. Acrescentou o auxiliar que, segundo as ordens do DA, deveria dirigir requerimento à CMB a solicitar autorização de hangaragem.
21. Ainda nesse mesmo dia, o ora assistente dirigiu requerimento escrito ao Presidente da CMB, em seu nome pessoal, na qualidade de futuro comprador da aeronave, e como gestor de negócios do José B..., seu actual comproprietário, que tivera de se deslocar de urgência para Lisboa, a solicitar autorização para estacionar a dita aeronave no hangar do AMB.
22. Por despacho proferido a 19 de Maio de 2008, mais de 3 meses decorridos, o ora arguido indeferiu o pedido de autorização para hangaragem da referida aeronave no hangar do AMB, fundando-se no facto de não existir espaço suficiente para manter as condições de segurança no movimento das aeronaves.
23. Reagindo contra esta decisão, em 28.07.2008 o ora assistente fez distribuir no Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela uma providência cautelar de suspensão de eficácia do referido despacho contra o Município de Bragança, processo que correu termos sob o n° 191/08.2BEMDL-A.
24. Notificado o Município de Bragança, ofereceu a oposição legal.
25. Por sentença proferida a 17.09.2008, no âmbito desses autos, foi decidido deferir a providência cautelar requerida em primeiro lugar, com a consequente manutenção da situação até aí existente, que se traduz na hangaragem da aeronave do requerente no hangar do Aeródromo Municipal de Bragança.
26. Tal decisão, como consta dos autos, foi notificada ao Ilustre Mandatário do Requerido, com observância de todo o legal formalismo.
27. E dela teve conhecimento o arguido.
28. Segundo a lei, a providência é de cumprimento imediato (art.º 126º, n.º 1 do CPTA), o que consta da sentença; e beneficia das garantias previstas no artigo 159°, do CPTA, entre elas de garantia penal.
29. Apesar de bem conhecer quer o conteúdo da sentença, pelo menos a partir dos dias 6 ou 7 de Outubro de 2008, (nesta data soube, segundo o próprio arguido, que a providência peticionada havia sido deferida), quer a lei, o arguido não só não deu execução imediata e de forma voluntária e espontânea à ordem constante da sentença, como era sua obrigação, como, antes, impediu o seu cumprimento.
30. Na verdade, porque haviam decorridos já mais de 10 dias após a prolação da sentença sem que o arguido mandasse franquear os portões do hangar do AMB para que aí fosse estacionada a aeronave CS-DBN, em 7 de Outubro de 2008 o Mandatário do ora assistente enviou ao arguido o FAX de fls. 314, juntando-lhe também cópia do FAX de fls. 313, enviado ao seu Mandatário, no qual se lê: “No âmbito do processo supra identificado, foi deferida, pelo TAF de Mirandela, providência cautelar de suspensão do despacho proferido pelo Ex.mo Senhor Presidente da CM de Bragança, em 19 de Maio de 2008, com a consequente hangaragem da aeronave de que nosso cliente é proprietário no hangar do AMB. Na sequência do assim decidido, é intenção de nosso constituinte proceder à hangaragem da aeronave no hangar do AMB, o que fará amanhã, dia 8 de Outubro de 2008, pelas 14 horas. Solicitamos, desta forma, ao Exmo. Colega diligencie e envide, por obséquio, todos os esforços junto de seu constituinte, para que no dia e hora referidos as portas do hangar existente no AMB se encontrem abertas, com a finalidade de se dar efectivo e integral cumprimento ao ordenado pela instância judicial e ao desiderato de nosso constituinte. Caso o Município e/ou seu legal representante, se recusem ou pratiquem actos que inviabilizem o cumprimento da decisão judicial proferida pelo TAF de Mirandela (que reveste carácter de obrigatoriedade), ver-nos-emos obrigados a tomar as medidas que por adequadas tivermos.”
31. Apesar de saber que devia obediência à ordem constante da sentença, cujo conteúdo bem conhecia, como conhecia o teor do FAX referido, do qual consta que se vai cumprir a ordem constante da sentença, que se traduz na hangaragem imediata da aeronave CS-DBN, propriedade do assistente, o arguido continuou a não mandar abrir as portas do hangar existente no AMB no dia e hora referidos.
32. Em vez disso, recusou cumprir a ordem de hangaragem constante da sentença proferida nos autos de providência cautelar.
33. Com efeito, no dia e hora referidos, o representante do assistente dirigiu-se ao AMB na companhia de quatro pessoas, para recolher a aeronave no hangar municipal.
34. Foram recebidos pelo DA, que aí se encontrava a mando do arguido.
35. O DA não permitiu (e impediu) a recolha da aeronave com a justificação de que só recebia ordens do Presidente da Câmara e este lhas dera no sentido de que não permitisse o estacionamento da aeronave.
36. Porque, segundo palavras do arguido, “o Mandatário do Município havia interposto recurso da decisão da providência cautelar e que nessa sequência deveria aguardar a evolução do processo”.
37. Ou seja, deu-lhe ordens para que não autorizasse a entrada da aeronave no hangar municipal, contra o constante da sentença a que se vem fazendo referência.
38. O DA cumpriu religiosamente as ordens do arguido alegando, repete-se, que só recebia ordens do Presidente da Câmara e que este lhas dera no sentido de não permitir o estacionamento da aeronave.
39. Apesar da ordem do Tribunal, à qual o arguido bem sabia ter de obedecer.
40. A aeronave só cerca de 1 mês depois pôde ser estacionada no hangar municipal em execução forçada da sentença.
41. Com efeito, por decisão judicial proferida em sede de execução da providência, datada de 14.11.08, decidiu-se notificar o Município de. Bragança na pessoa do Presidente, Jorge Nunes, e bem assim, este, pessoalmente, para, em cumprimento a decisão de adopção da providência, no dia 15.11.08. pelas 15 horas, ordenar aos funcionários do aeródromo e ao DA a abertura dos portões do hangar, com a consequente entrada da aeronave.
42. Ainda neste dia, apesar da presença da força da GNR, requisitada pelo TAF de Mirandela para dar cumprimento à ordem constante da sentença, o representante do arguido, o aludido DA, mais uma vez presente no aeródromo, onde se encontravam também elementos da comunicação social, tentou opor-se à dita execução.
43. Pelo que foi necessário recorrer ao auxílio da GNR.
44. Ao agir da forma descrita, o arguido quis não cumprir a ordem constante da sentença proferida nos autos de providência cautelar referidos – com o n.º 191/08.2BEMDL-A, que correu termos no TAF de Mirandela – qual seja a de determinar que a aeronave do assistente, CS-DBN ficasse estacionada no hangar municipal de Bragança, que é material e substancialmente legítima, emanada de quem tinha poderes para a lavrar, devidamente notificada ao Ilustre Mandatário do Requerido Município de Bragança, e da qual o arguido teve perfeito concedimento em 6 ou 7 de Outubro de 2008.
45. Fê-lo com vontade livre e consciente bem sabendo que a dita ordem era de cumprimento imediato por força da lei.
46. E fê-lo com vontade e consciência de não acatar tal ordem, desiderato que logrou alcançar até que o tribunal lhe pôs termo por execução forçada da sentença.
47. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo que cometeu o arguido, em autoria material, um crime de desobediência p. e p. pelas disposições conjugadas do n.º 3 do art.º 127º e n.º 2 do art.º 159º, ambos os preceitos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e ainda pela alínea a) do n.º 1 do art.º 348º do Código Penal;

C – Pronuncio o arguido ANTÓNIO N... pelos seguintes factos:
1. O Aeródromo Municipal de Bragança (AMB) é propriedade da Câmara
Municipal de Bragança (CMB);
2. Nas suas infra-estruturas prevê um hangar para estacionamento / armazenamento, quer permanente, quer ocasional, de aeronaves.
3. O órgão de Direcção do Aeródromo Municipal de Bragança é o Director de Aeródromo (DA), que constitui a Autoridade Aeronáutica local.
4. Desde há mais de 10 anos que o lugar de DA tem vindo a ser ocupado por João R..., por designação da CMB.
5. O arguido é - e era entre Fevereiro e Novembro de 2008 - o Presidente da Câmara Municipal de Bragança e, por isso, o responsável máximo pelo gestão do AMB.
6. Em 11 de Maio de 1998 foram aprovadas em sede de Assembleia Municipal as normas de funcionamento do Aeródromo Municipal de Bragança nos termos das quais se fixam, para além do mais, as obrigações do Director de Aeródromo perante a CMB e perante a DGAC e as condições de acesso e utilização das instalações e que constituía até, pelo menos, Maio de 2009, o Manual de Aeródromo.
7. Entre as obrigações do DA perante a CMB estão as de resolver as questões decorrentes da aplicação das referidas normas de funcionamento, submetendo à apreciação da CMB as que ultrapassem as suas competências; propor ao Presidente da Câmara as alterações às referidas normas de funcionamento, desde que o julgue conveniente; funcionar como consultor perante a CMB e a DGAC em todos os assuntos relacionados com o Aeródromo, emitindo o seu parecer sobre os assuntos em questão.
8. Entre as condições de acesso e utilização das instalações do Aeródromo Municipal fixou-se que, a pedido dos interessados e dentro das possibilidades de espaço, a CMB permitirá a hangaragem permanente de aeronaves; e que no caso de recolha eventual de uma aeronave, devem os funcionários permitir e ajudar a recolhê-la no hangar, por forma a minimizar riscos para essa e outras aeronaves que utilizem as instalações do aeródromo.
9. Ao longo de, pelo menos, os últimos 10 anos, qualquer pedido de hangaragem, permanente ou ocasional, dos proprietários ou possuidores legítimos de qualquer aeronave, designadamente das abaixo indicadas, esteve sempre sujeito à directa apreciação e decisão do Director do Aeródromo, João R....
10. Quando a hangaragem era para efeitos permanentes ou de duração prolongada, o deferimento da autorização era-o dado ab initio, de forma genérica.
11. Ao longo de tal período, e até ao dia 12 de Fevereiro de 2008, no hangar Municipal ficaram estacionadas, pelo menos, as seguintes aeronaves:
• Um asa-delta de propriedade de Ermelindo D...;
• Um ultraleve da pertença de Nuno V...;
• A aeronave CS-AUE, propriedade de Luís C... (entretanto desaparecido), mas registada em nome do Aero Clube de Bragança;
• Dois planadores, sendo um - D-0073 – pertencente a Bodan S...;
• Três aeronaves do Aero Clube de Bragança, sendo um deles 1 ultra ligeiro, hoje acidentado pelo DA;
• Duas aeronaves pertencentes ao Aero Clube Asas do Nordeste;
• A aeronave CS-DBN.
12. A aeronave CS-DBN era, desde o ano de 2001, propriedade do Sr. Álvaro B... e da empresa AMF, com sede em Vila Real.
13. Sendo aeronave ligeira, era utilizada para uso particular dos seus proprietários.
14. Podendo fazer também trabalhos aéreos.
15. Esta aeronave estava devidamente autorizada pelo DA a estacionar no hangar Municipal, a solicitação verbal daqueles proprietários.
16. Com efeito, logo na data da aquisição, em 2001, o Álvaro B..., verbalmente, pediu ao DA autorização para estacionar a aeronave dentro do hangar Municipal.
17. E logo, também verbalmente, lhe foi concedida.
18. A aeronave estava permanentemente estacionada em Bragança e, ocasionalmente, em Vila Real ou onde o Barreira tivesse de prestar serviço.
19. Este deferimento nunca foi revogado e nunca sofreu qualquer alteração nos seus termos até ao dia 12 de Fevereiro de 2008.
20. Porque sempre houve no hangar Municipal espaço disponível para o estacionamento não só desta aeronave, como das que são dos Aero Clubes de Bragança e dos proprietários de Bragança, bem como, ainda, de outras que, esporadicamente, vêm a Bragança, como sucede com a do Sr. Arlindo de Viseu, que reboca planadores.
21. Em Fevereiro de 2008 o ora assistente iniciou processo negocial para aquisição da aeronave CS-DBN, que veio a concluir-se no fim-de-semana de 16 de Fevereiro de 2008, depois de ter efectuado, com êxito, os necessários voos de adaptação.
22. Para poder concluir o processo de adaptação ao avião, no dia 12 de Fevereiro de 2008, o ora assistente voou até Saragoça – Espanha, sendo acompanhado pelo Sr. Barreira, co-proprietário da aeronave e piloto de linha aérea, com muitas horas de voo.
23. Para tanto, às 7,30 horas da manhã desse dia, dirigiram-se ao aeródromo Municipal, entraram no hangar Municipal, e retiraram a aeronave do hangar, do local onde sempre ficava estacionada.
24. Voaram até Saragoça e regressaram cerca das 16 horas e 30 minutos.
25. O DA, inimigo do ora assistente, conhecedor que foi do processo negocial encetado entre o assistente e os proprietários do CS-DBN, estava convencido que a aeronave, nesse dia, seria já do ora assistente.
26. Porque tivesse decidido impedir a aeronave CS-DBN de estacionar no hangar Municipal, o que fez para satisfazer o seu ódio e em prejuízo do assistente, especialmente do seu património, que seria depreciado, deu ordens ao funcionário do AM, Sr. António L..., de serviço nesse mesmo dia.
27. A ordem consistia em no sentido de “não deixar entrar no hangar o avião do Dr. Marcolino”.
28. O Sr. Lopes acolheu a ordem porque se tratava do superior hierárquico.
29. Mais acrescentou que, para poder estacionar a aeronave no hangar Municipal, o assistente teria de fazer requerimento à CMB a pedir autorização de hangaragem.
30. Nunca antes qualquer autorização de estacionamento fora levada ao conhecimento deste Presidente da Câmara Municipal, ora arguido.
31. Como nunca antes fora exigido qualquer pedido de autorização de estacionamento, por escrito.
32. Não sendo ainda proprietário da aeronave porque o negócio não estava ainda concluído, o assistente minutou requerimento que dirigiu ao arguido, na sua qualidade de Presidente da Câmara Municipal de Bragança, mediante o qual requeria autorização para estacionamento da aeronave no hangar Municipal.
33. Fez o requerimento na qualidade de gestor de negócios do Sr. Barreira, co-proprietário da aeronave, e em seu nome na sua qualidade de potencial (e quase certo) comprador da aeronave.
34. O requerimento foi entregue no dia seguinte, às 8,30 horas, em mão, ao arguido ANTÓNIO N... pelo Sr. Serafim P..., Subdirector do Aeródromo, que estava indignado com a conduta do João R....
35. Já o arguido havia, nesta altura, tomado a resolução de não permitir o estacionamento da aeronave no hangar Municipal pois que, ainda no dia anterior, soubera da pretensão do assistente.
36. Precisamente porque sabia que a aeronave iria ser de propriedade do assistente, o que aconteceu no fim de semana seguinte ao dia 12 de Fevereiro de 2008, e porque com este tinha e tem uma relação de inimizade já que, perante as câmaras da RTP, o assistente leu relatório da auditoria do Tribunal de Contas onde se afirma que o arguido fez negócio de “contornos difusos, com falta de transparência”, o que passou a ser do conhecimento de todo o País, o arguido resolveu também vingar-se, impedindo o assistente de estacionar a aeronave no lugar que sempre lhe estivera destinado, dentro do hangar Municipal.
37. Com as consequência danosas que dele era bem conhecidas.
38. Para tanto, ratificou e deu cobertura à proibição de estacionar, decisão tomada pelo DA, João R....
39. Primeiro, durante mais de três meses, obrigou a que a aeronave ficasse na rua, a deteriorar-se, já que nem sequer se dignou deferir ou indeferir ao requerido, fazendo com que ficasse exposta às intempéries e a todos os fenómenos meteorológicos, causadores de danos estruturais e nos instrumentos, agravando substancialmente o risco de acidente.
40. Desta forma “suspendendo” e tacitamente “revogando”, sem qualquer explicação ou fundamento, isto é, de forma arbitrária, o acto administrativo anteriormente praticado pelo DA no uso das competências que lhe foram delegadas pela CMB.
41. Na verdade, a aeronave CS-DBN estava autorizada a estacionar no hangar Municipal há mais de 8 anos.
42. O acto administrativo de autorização de estacionamento estava em vigor e era legal porque nunca tinha sido alterado ou revogado.
43. Depois, porque permitiu que uma aeronave entretanto comprada pelo Aero Clube de Bragança, do qual o DA é Presidente da Direcção, fosse ocupar o lugar onde estacionava o CS-DBN, permanecendo esta aeronave na rua.
44. Depois ainda porque, em Maio de 2008, indeferiu a requerida autorização de estacionamento com o fundamento de que não havia no hangar espaço disponível para a segurança aeronáutica.
45. O arguido bem sabia que no hangar Municipal existia espaço disponível, e em segurança, para estacionar a aeronave CS-DBN, que aí permanecera durante cerca de 7 anos.
46. Na verdade, quando a aeronave era do Sr. Barreira e da AMF nunca se colocou a questão do espaço disponível com segurança.
47. De resto, o DA sempre reconheceu que havia espaço disponível no hangar para estacionar todas as aeronaves.
48. E nunca colocou este a questão da segurança.
49. No exercício das funções que lhe estão cometidas, nunca sentiu necessidade de fazer qualquer proposta à CMB no sentido de alterar o estado de coisas, isto é, a forma como era gerido o espaço dentro do hangar Municipal.
50. E a esta alegação adere o arguido ANTÓNIO N....
51. De resto, a questão do espaço em segurança surgiu apenas e tão-só quando o CS-DBN era já do assistente Francisco Marcolino.
52. Serviu para justificar a proibição de estacionar, antes tomada, a pretexto de o assistente ter de fazer requerimento à CMB.
53. Aliás, o espaço deixado pelo CS-DBN, que foi ocupado pela aeronave ultra leve do Aero Clube de Bragança, continuou a ter espaço disponível, com segurança, se ocupada por esta.
54. Ponto é que aí fique o ultra leve do Aero Clube e não a aeronave do assistente porque assim, dizem, há espaço com segurança.
55. O que revela a atitude discriminatória do arguido.
56. Ademais, porque, quando já não conseguiria justificar a não autorização de estacionamento por falta de espaço disponível, com segurança, face à decisão do TAF de Mirandela, o arguido sem que se justificasse face a situações, que não surgiram, e sempre com a finalidade última de impedir o estacionamento da aeronave do assistente, fez aprovar na Assembleia Municipal um Regulamento Municipal de hangaragem.
57. Regulamento em que, em qualquer dos critérios constantes da Proposta por si apresentada, deixaria a aeronave do assistente – e só a ela – fora do hangar.
58. Toda a conduta do arguido se orientou no sentido de prejudicar o assistente pois que, como bem sabia, a aeronave ficaria desvalorizada no preço de venda pelo facto de estacionar ao “ar livre”; como ainda, a médio prazo, ficaria com danos estruturais e nos aviónicos, que causam, necessariamente, acidentes aeronáuticos.
59. Aliás, enquanto proibia a aeronave do assistente de estacionar no hangar Municipal, o arguido, por intermédio do DA, permitiu que a aeronave de um Sr. Advogado de Coimbra entrasse no hangar e aí ficasse estacionada.
60. Quando a CS-DBN estava na rua, proibida de entrar por falta de espaço disponível.
61. Como permitiu que a de um Sr. de Espinho aí estacionasse nas mesmas circunstâncias.
62. Como permitiu que a do Sr. Arlindo de Viseu também ai hangarasse.
63. O fundamento encontrado pelo arguido para indeferir o requerido estacionamento do CS-DBN no hangar Municipal mais não é do que a roupagem encontrada para dar cobertura a uma situação de ilegalidade e de arbítrio, no sentido de prejudicar o ora assistente.
64. De resto, o arguido, que bem sabia que havia espaço disponível no hangar Municipal para estacionar a aeronave do assistente, porque tinha de indeferir ao requerido unicamente para prejudicar o assistente, não deu a este a possibilidade de, como é de lei, contraditar os fundamentos da decisão de indeferimento.
65. Precisamente para que não pudesse demonstrar, com factos e com provas, como demonstrou em Tribunal, que, na realidade, havia espaço mais do que disponível para o estacionamento da aeronave, em segurança.
66. Ao agir da forma descrita o arguido quis e conseguiu prejudicar o assistente no seu património, concretamente na sua aeronave, fazendo com que a mesma ficasse desvalorizada, como qualquer veículo automóvel, pela circunstância de estar exposta à intempérie durante mais de 8 meses.
67. Agiu ainda com conhecimento de que a sua conduta era contrária à lei, lei essa que quis violar, bem sabendo que a sua conduta era penalmente punida.
68. O acto administrativo que praticou, no exercício das suas funções, de proibição de estacionamento de aeronave que antes estava autorizada a estacionar, foi tomado com violação dos princípios da legalidade, da imparcialidade, da igualdade e da justiça a que, por força das suas funções de Presidente da Câmara, que exercia à data e exerce, está obrigado a respeitar.
69. Agiu com vontade e conhecimento de que assim procedia, sendo tal conduta proibida por lei.
70. De forma livre e consciente.
71. A sua conduta é censurável porque adoptou um comportamento arbitrário.
Pelo que cometeu como autor da conduta referida um crime de abuso de poder p. e p. pelo n.º 1 do art.º 26º da Lei 34/87, de 16 de Julho, em concurso aparente com um crime de abuso de poder p. e p. pelo art.º 382º do C. Penal.
O crime é ainda passível de aplicação a pena acessória de perda de mandato prevista na alínea f) do art.º 29º da citada Lei 34/87, de 16 de Julho.
*
Prova:
a constante nas acusações – cfr. f. 676, 751 e 847 (esta do apenso D);
João Rocha Aragão – cfr. f. 950;
f. 972-981.

3. O Ministério Público, representado pela Exmª procuradora adjunta no Tribunal Judicial de Bragança, interpôs recurso desta decisão dirigido ao Tribunal da Relação do Porto e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição de fls. 1171 a 1174, 5.º volume):

a) Vícios da decisão (na fundamentação e pronúncia ‘stricto sensu’):
1. omissão do exame crítico das provas
1.1. da decisão não resulta qualquer análise nem confronto critico sobre os meios de prova em que diz basear a pronuncia do arguido ANTÓNIO N..., nem entre si nem com os demais (meios de prova);
1.2. apoia a sua decisão nas declarações dos arguidos (cujo teor até leva a uma decisão onde só devem constar factos);
1.3. a restante prova serviu “apenas para contextualizar as ocorrências havidas no dia 8/10/2008 e 14-11-2008”;
1.4. omitiu a análise, apreciação e elaboração de provas documentais absolutamente essenciais à decisão da causa;
1.5. faz assentar a sua decisão em puras conclusões.
2. contradição insanável e tentativa impossível:
2.1 se o Juiz de Instrução não omitisse aquele exame crítico das provas e se fosse coerente com as asserções legais e doutrinárias de que parte, não poderia concluir:
a) nem pela notificação regular da sentença de providência cautelar à Câmara e ao arguido ANTÓNIO N... nem pelo conhecimento efectivo; e,
b) que este arguido, à data dos factos que na pronuncia se imputam ao arguido como consubstanciando o crime de abuso de poder, visou prejudicar o assistente;
2.2. porém, tais conclusões tirou, incorrendo em contradição insanável na própria fundamentação e entre esta e a decisão;
2.3. tendo o Juiz de Instrução asseverado que:
a) o crime de abuso de poder é um crime de dano; e,
b) que a aeronave não era ainda do assistente, á data dos factos que na pronuncia se imputam ao arguido como consubstanciando esse crime, impunha-se daí retirar a seguinte consequência: inexistência do objecto essencial à consumação.
3. vício na pronúncia stricto sensu
3.1 a pronúncia ‘stricto sens — pelos crimes de desobediência e de abuso de poder — assenta em meras conclusões e conjecturas ou está em frontal contradição com as provas registadas nos autos (maxime, a certidão da providência cautelar, o Acórdão do TCAN e dos faxes);
3.2. é o que sucede designadamente com o teor dos pontos 5, 8, 21, 27, 28, 29, 31, 32, 34, 36, 37, 43, 46 da pronúncia pelo crime de desobediência; e é o que sucede com o teor dos pontos 6, 11, 12, 20, 33, 35, 36, 37, 38, 39, 40,, 45, 46, 47, 50, 51, 52, 54, 55, 57, 58, 59, 61, 62, 63 e 65 da pronúncia pelo crime de abuso de poder;
3.3. Para o juízo de alta probabilidade de futura condenação do arguido, necessário para a pronúncia e para a acusação, não bastam inferências, suposições, presunções e meras interpretações; «a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de fritura condenação, tem de aferir-se no plano fáctico e não no tJano jurídico (...), Ac. datado de 27-01-2010, no Proc. 321/07.PSPFT.P1.
Erro na aplicação do Direito:
erro na apreciação do regime legal das notificações:
1.1. as disposições conjugadas dos artigos 228.°, n.°3, 229.°, 231.°, n°1, 233.°, n.°2, 239.°, 245.°, n.°1, 253.°, e 256.°, do Código de Processo Civil, que fixam o regime legal das notificações das sentenças e despachos dos tribunais não podem jamais consentir a conclusão que o Juiz de Instrução asseverou de que o arguido foi notificado da sentença de providência cautelar pelo mandatário do requerente (aqui assistente) e assim consolidar a exigível ‘regular transmissão da ordem ao seu destinatário’.
2. a doutrina e jurisprudência erige a ‘notificação pessoal e formalmente válida da ordem’ como elemento objectivo típico da ‘regular transmissão da ordem por imposição do principio da culpa:
2.1. a posição interpretativa do Juiz de Instrução é, quanto ao crime de desobediência qualificada, manifestamente insubsistente e frontalmente contrariada quer pela doutrina quer pela jurisprudência:
2.1.1. «Para que o destinatário saiba se está ou não perante uma ordem ou mandado desse tipo (legitima) torna-se indispensável que este chegue ao seu conhecimento e pelas vias normais utilizadas —que lhe seja regularmente comunicado (...) A comunicação — que o artigo exige seja regular - há-de começar por constituir autêntica comunicação. Isto é: não basta que o meio de fazer chegar a ordem ao conhecimento do seu destinatário se mostre (de acordo com a lei) formalmente irrepreensível torna-se necessário que aquele se tenha inteirado. de facto, do seu conteúdo – Tomo III, pag 351 e 356/357, do Comentário Conimbricense; utilizando esta fundamentação doutrinária, assim conclui o Ac. TRL de 3-12-2002, Proc. 5831/02-5, 5 sec.ª.
2.1.2. “(...) não basta o mero cumprimento, (...) dos requisitos formais impostos por lei (...). Se a ordem se exprimir de um modo que dificulte de forma intolerável a possibilidade de conhecimento do seu conteúdo por parte do agente, desde logo se nega o preenchimento do próprio tipo objectivo (...). É conveniente, por imposição do constitucionalmente consagrado princípio da culpa que a lei penal atribua desde logo um ónus de comunicação eficaz ao autor da ordem. - FRANCISCO BORGES na recente (2011) obra ‘O Crime de Desobediência à Luz da Constituição’.
2.1.3. «A decisão da providência cautelar foi proferida por entidade legalmente competente», mas “não se demonstrou qualquer regularidade da transmissão da ordem ao arguido, por forma a garantir que aquele tivesse conhecimento do que lhe era imposto ou exigido (...) não resulta verificada a validade formal da notificação da ordem” concluindo “pelo não preenchimento do tipo objectivo do crime” de desobediência qualificada, conclui-se no Ac. TRG de 26-01-2009 Proc. 2589/08-1; ainda o recente Ac. TRP dc 23-03-2011, no Processo n.° 3755/05.2TDPRT.P1.
3. a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 159.°, n.º 2, do CPTA, aplicável ‘ex vi’ do artigo 127.ºn.º3 do mesmo diploma:
3.1. A interpretação segundo a qual a conduta de inexecução ilícita das decisões relativas á adopção de providências cautelares, constitui, desde logo, um ilícito penal punível - á margem da ponderação da possibilidade de caducidade, alteração e até revogação da providência, e as suas consequências na ordem jurídica — portanto, substrato material bastante para se prosseguir pena por crime de desobediência, é inconstitucional, por violadora dos princípios consignados na constituição, quais sejam o princípio do Estado de Direito Democrático, princípio da necessidade de pena, princípio do respeito pela dignidade humana, princípio da humanidade, plasmados nos artigos 1.°, 2.°, 29.°, 30.°, da CRP (cfr. ainda artigos 204.°, 219°, n°1 e 277.°, n.°1, da CRP), violadora dos princípios consignados na constituição quais sejam o princípio do Estado de Direito Democrático, princípio da necessidade de pena, princípio do respeito pela dignidade humana, princípio da humanidade, plasmados nos artigos 1. 2.°, 29.°, 30.°, da CRP (cfr. ainda artigos 204.°, 219.°, e 277.°, n.°1, da CRP).
4. o crime de abuso de poder: a tentativa impossível e a não demonstração da intenção específica do agente:
4.1. reafirma-se a tentativa impossível deste crime - a manifesta ineptidão do meio empregue para conseguir o resultado visado (vd. supra, ponto 2., 2.3. da conclusão a));
4.2. ponderando que:
a) o TCAN firmou no seu acórdão que: - não havia um direito permanente de hangaragem da aeronave do assistente -compete ao Director do AMB a atribuição da licença pontual de parqueamento no referido hangar (a quem nenhum pedido foi feito);
b) que a definição do direito e do acto administrativo compete materialmente aos tribunais administrativos;
c) que a definição dada pelo TCAN é, atenta a natureza da providência cautelar, provisória, não pode o Juiz de Instrução considerar definitivamente consubstanciado o abuso de poder pelo arguido Jorge Nunes, na abusiva interpretação e aplicação do direito ao respectivo acto administrativo;
4.3. O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos da categoria dogmática dos crimes de intenção ou de resultado cortado e esta espécie de crimes supõe, para além do dolo do tipo, uma intenção específica, a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo — a intenção de obter beneficio ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
E tal, nem a prova indiciária produzida nem a pronúncia o demonstra minimamente.
A pronúncia apoia-se numa sequência de actos e decisão administrativa e nas conjecturas do assistente, meramente subjectivas e situadas apenas ao nível dos processos de intenção, que não constituem, por si só, índice suficiente pelo qual se possa apreender a manifestação da atitude interna do agente patente na intenção específica que o tipo legal convoca.

4. O assistente apresentou resposta concluindo que o recurso deve ser rejeitado por falta de interesse do recorrente ou, caso assim não seja entendido, deve ser negado provimento.

O recurso foi admitido, com o efeito devido, por despacho proferido a 19 de Março de 2012.

5. No Tribunal da Relação do Porto, o desembargador relator teve em conta que o assistente exerce funções como desembargador naquele tribunal e, com fundamento no disposto no artigo 23.º do Código de Processo Penal, determinou a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães, por ser o competente para os ulteriores termos.

6. Neste Tribunal de Guimarães, onde o processo deu entrada a 24-05-2012, o Ministério Público, representado pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer em 18-06-2012, concluindo que (transcrição parcial de fls. 1296 a 1309):

Ao contrário do que entende e defende o Assistente afigura-se-nos, tal como foi decidido pelo Mm.° Juiz da Primeira Instância, que o M.°P.° tem legitimidade para recorrer mesmo e exclusivamente no interesse do arguido, até pelo facto de estarem em causa a imputação de factos que no seu entender não preenchem os elementos constitutivos do crime imputado.
Relativamente ao crime de desobediência pelo qual veio a ser pronunciado o arguido ANTÓNIO N... entendemos que a Ilustre Recorrente tem razão naquilo que alega, na medida em que em nenhum facto da pronúncia se refere que o arguido foi notificado dessa decisão, apenas se referindo que teve dela conhecimento por fax. Efectivamente tomar conhecimento é uma coisa muito diferente de interiorizar que determinada conduta é passível de se não for observada, diminuir os direitos e liberdades de uma pessoa, quer do ponto de vista criminal, quer disciplinar. Com efeito e como se defende no douto acórdão proferido pela Relação do Porto em 8 de Julho de 2009, no Proc. n.°: 4840/07.1TAVNG.P1, não foi dado como provado na matéria imputada que o arguido teve conhecimento do teor da decisão da providência cautelar e que essa notificação era efectuada em cumprimento dessa providência cautelar decretada, bem como dos efeitos do seu não cumprimento. Ora, no caso em apreço nem sequer é dado como provado que o arguido foi notificado pessoalmente do conteúdo da decisão, quanto mais que o seu não acatamento o faria incorrer em crime de desobediência.
Tem sido essa a preocupação da Jurisprudência quando esteja em causa a possibilidade de decisões que diminuam direitos e liberdades. E que essa preocupação existe efectivamente basta verificar o que se refere no n.° 9 do art.° 113.° do C.P.P., quando se impõe que a notificação não seja efectuada apenas na pessoa do Mandatário ou Defensor, mas também na pessoa visada com a decisão proferida.
Tendo, em conta a argumentação da nossa Colega, que aqui damos por inteiramente reproduzida, e o acima referido, somos de parecer que efectivamente por não se encontrarem preenchidos os elementos constitutivos do imputado crime de desobediência ao arguido ANTÓNIO N..., deve ser lavrado douto despacho de não pronúncia, e consequentemente, nesta parte ser concedido provimento ao recurso por si interposto.
Quanto ao crime de abuso de poder apesar de estar em causa a autoridade e credibilidade da Administração do Estado ao ser afectada o seu dever de imparcialidade, isenção e eficácia dos seu serviços, não se pode esquecer que o agente com a sua conduta ao violar os seus deveres tem como finalidade obter para si um benefício ilegítimo ou causar a outrem um prejuízo, com consciência de que está efectivamente a causar esse prejuízo e com vontade livre de o causar, sabendo perfeitamente que não está de acordo com o que está obrigado pelo exercício das suas funções.
No douto acórdão proferido no STJ em 23 de Janeiro de 200E, pelo Exm.° Sr. Conselheiro Henriques Gaspar foi decidido o seguinte:
« No crime de abuso de poder, que constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
Mas o mau uso de poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, tem antes de ser determinado por uma intenção especifica que, enquanto fim ou motivo, faz parte do próprio tipo legal. Esta intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza.
A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertence ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo.
Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe, para além do dolo de tipo, a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal.».
Na matéria imputada na pronúncia, que ao contrário do que defende a ilustre Recorrente, se encontra assente em elementos de prova obtidos quer durante a realização das diligências de inquérito, quer das diligências de instrução e da documentação junta, constata-se que o arguido por inerência de funções, pelo facto de ser o Presidente da Câmara e responsável máximo pela gestão do AMB, que é propriedade da Câmara Municipal de Bragança tinha perfeito conhecimento da Manual do Aeródromo que continha as normas de funcionamento do mesmo, que no seu ponto 6.8 refere relativamente à hangaragem de aeronaves, que a CMB permitirá a hangaragem permanente de aeronaves a pedido dos interessados e dentro das possibilidades de espaço, verificando-se que, pelo menos, ao longo dos últimos 10 anos ali estiveram estacionadas diversas aeronaves, sendo uma delas, aquela que pertencia a Álvaro B... e à empresa AME e posteriormente foi adquirida pelo Assistente em Fevereiro de 2008 , um ultraleve e um asa-delta, dois planadores, os quais ali se encontravam não só por haver espaço suficiente para estarem hangarados, mas também porque para isso estavam autorizados, verificando-se nomeadamente, no caso da aeronave pertencente a Álvaro B..., que a autorização foi dada verbalmente. Ora, só após se ter tido conhecimento da existência de negociações para aquisição daquela aeronave, por parte do Assistente, é que o deferimento que existia de hangaragem foi alterado, tendo sido ainda na qualidade de gestor de negócios do Álvaro B... que no dia 12 de Fevereiro de 2008 foi apresentado pelo Assistente, na Câmara Municipal de Bragança pedido de hangaragem, pedido esse que só foi despachado em Maio de 2008, com o fundamento que não havia no hangar espaço disponível para a segurança aeronáutica, facto que o arguido tinha obrigação de saber que não correspondia à verdade e tendo perfeito conhecimento que a aeronave em questão, enquanto propriedade do anterior dono sempre ali tinha estado, só passando a não caber quando passou a ser propriedade do Assistente, sendo certo ter sido posteriormente no hangar e no espaço que se dizia inexistente hangarado um ultraleve do Aero Clube de Bragança, bem como, se verificou a existência de espaço quando a aeronave do Assistente, ali leve de ser hangarada, em obediência à decisão do TAF de Mirandela, bem sabendo que com essa atitude que violava os princípios da legalidade, da imparcialidade, da igualdade e da justiça a que devia observar por força do exercício da suas funções de Presidente da Câmara e Responsável máximo do AMB, conduta que teve como única finalidade a de prejudicar os interesses dci Assistente, provocando uma desvalorização naquela aeronave, bem como danos estruturais e nos aviónicos que seriam passíveis de colocar em causa a segurança daquele aparelho, bem como a possibilidade de provocar um acidente aéreo, pelo facto de ter estado mais de 8 meses estacionada ao ar livre sujeita a todo o tipo de intempéries.
E tendo em conta esta matéria que se encontra devidamente assente nos factos que foram considerados como indiciados e, por isso, imputados ao arguido, os quais estão assentes nas provas existentes nos autos, cp somos de parecer que deve, tendo-se em conta, o defendido pelo Assistente, na sua Resposta, bem como nos fundamentos constantes na douta Decisão de Pronúncia, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, nesta parte ser confirmada a douta decisão de pronúncia do arguido ANTÓNIO N... pela prática de um crime de abuso de poder previsto e punido nas disposições constantes daquela douta decisão, ora recorrida, e, consequentemente ser negado provimento ao recurso interposto pela nossa Exm.a Cole quanto a este crime.
Assim, e em face do exposto, somos de parecer que deve ser confirmada a douta decisão de pronúncia quanto ao crime de abuso de poder imputado ao arguido ANTÓNIO N... e substituída a decisão de pronúncia por decisão de não pronúncia relativamente ao imputado crime de desobediência ao mesmo arguido, concedendo-se dessa forma parcial provimento ao recurso sendo certo que assim se decidindo se fará a habitual Justiça.

O arguido ANTÓNIO N... apresentou resposta, subscrevendo a argumentação exposta no parecer do Ministério Público quanto ao crime de desobediência mas insistindo pela não pronúncia quanto ao crime de abuso de poder, uma vez que “os elementos probatórios carreados não resultam indícios suficientes que a actuação do arguido Eng.º Jorge Nunes tivesse sido norteada pela intenção de retirar quaisquer benefícios ou causar prejuízos ao assistente Sr. Dr. Juiz Desembargador Francisco Marcolino.”

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto, cumpre decidir em conferência.

II – FUNDAMENTOS

7. Tendo em conta o texto da decisão recorrida e as conclusões da motivação, que delimitam o âmbito do recurso, impõe-se apreciar em primeiro lugar a questão prévia referente ao interesse em agir do Ministério Público.

Seguidamente, por conveniência de exposição e de sequência lógica de análise, dever-se-á distinguir os seguintes problemas:

1- Vícios decisórios de omissão do exame crítico das provas e de contradição insanável da fundamentação;

2- Quanto ao crime de abuso de poder : ocorrência de indícios suficientes da verificação do elemento do dolo do tipo que se traduz no conhecimento e vontade de prejudicar outrem (que no caso vertente seria a pessoa do assistente);

3- No que se relaciona com o crime de desobediência:

a) Verificação nos autos de indícios suficientes de factos susceptíveis do preenchimento do elemento típico objectivo da “regular transmissão da ordem”;

b) Inconstitucionalidade do art.º 159.º n.º 2 do CPTA;

8. O assistente suscitou a verificação de falta de interesse do Ministério Público no recurso, porquanto o despacho recorrido traduz apenas o recebimento da acusação do assistente, com a qual se conformou o arguido e que poderá ser julgada improcedente em sede de julgamento pelo que não existe um qualquer direito ou interesse ameaçado que necessite de tutela e só pela via do recurso se possa obter (o julgamento confere-lhe essa tutela, de forma até mais solene).

Apreciando e decidindo:

Como se sabe, o Ministério Público tem legitimidade para recorrer de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido (artigo 401.º, n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal) e o interesse em agir, como pressuposto de recurso, radica fundamentalmente na imprescindibilidade de utilização dessa via para assegurar um direito ameaçado que necessite de tutela judicial.

Segundo escreve Germano Marques da Silva, seria desnecessária a referencia ao interesse exclusivo do arguido pois “sendo o Ministério Público um órgão de administração da justiça, o interesse em agir da sua parte existe sempre que o recurso vise obter a correcta aplicação da lei, independentemente das consequências que daí possam advir para o arguido” (Curso, III, Verbo, 1994, p.317).

No caso vertente, intui-se facilmente o interesse, conveniência ou vantagem do arguido ANTÓNIO N... de ver o processo criminal extinto sem ter de se submeter à lesividade própria de uma audiência de julgamento pública. Esse o interesse concreto que a lei tutela ao permitir genericamente o recurso do despacho de pronúncia e consequente submissão da decisão a uma outra instância de julgamento, quando o juiz de instrução pronuncie por factos em que houve abstenção de acusar pelo Ministério Público (artigos 399.º e 310.º, ambos do Código de Processo Penal) .

Sem necessidade de mais considerandos, improcede a questão prévia.

9. A recorrente censura a decisão instrutória, invocando em primeiro lugar a ocorrência de um vício decisório que qualifica de omissão do exame crítico das provas.

O dever de fundamentação das decisões penais num Estado de Direito, além de constituir uma das fontes de legitimidade da jurisdição em geral, constitui um direito e garantia fundamental do cidadão contra a arbitrariedade no exercício do poder público.

A invalidade suscitada constitui o desrespeito do segmento do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, onde se impõe que, na sentença, a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, inclua não só a indicação mas também o exame crítico das provas que serviram para firmar a convicção do tribunal”.

Como tem sido salientado, exige-se um exame, ou seja uma observação atenciosa ou cuidada, efectuada de um modo crítico, isto é, sob um juízo de censura. O exame crítico das provas há-de consistir por isso numa análise que permita compreender a opção por um meio probatório, sendo imprescindível que a fundamentação, como base do juízo decisório, seja exteriorizada em termos de permitir desvelar o iter «cognoscitivo» e «valorativo» justificante da concreta decisão jurisdicional (acórdão TC nº 281/05, DR, II, de 06-07-2005), assumindo relevo a indicação, v. g. da razão de ciência de cada pessoa cujo depoimento o tribunal tomou em consideração, bem como a indicação dos motivos de credibilidade (Acórdão do STJ de 12-2-1998, BMJ, 474, pag. 321 e Acórdão do STJ de 14.1.1999, citados por Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário, 3ª edição, pag. 945), por forma a permitir uma perfeita compreensão da decisão pelos destinatários, aqui aferidos considerando um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas.

Cumpre notar em primeiro lugar que a conformação como nulidade processual da omissão do exame crítico das provas se encontra prevista para a sentença (artigos 374.º n.º 2, e 379.º n.º1 do C.P.P.), sendo certo que, vigorando o princípio da tipicidade das nulidades processuais, em nenhum lugar se encontra prevista a aplicação deste regime aos despachos de pronúncia. Para as decisões instrutórias, vale certamente o disposto no art. 283.º n.º 3 (exigível para toda a acusação pública), por remissão do art.º 308.º n.º 2, ambos do C.P.P.. Este preceito impõe neste âmbito, sob pena de nulidade, não o exame crítico mas (apenas) a narração ainda que sintética dos factos e das provas a produzir ou a requerer.

A recorrente não indica e também não vislumbramos o fundamento legal, o alcance e as consequências pretendidas com a alegação deste “vicio decisório”. Sendo inquestionável que a existir essa falha ou inobservância do modelo previsto na lei, deveria ter sido suscitado em tempo útil perante o tribunal que proferiu a decisão instrutória e agora sempre se encontraria sanada (artigo 123.º Código de Processo Penal e no entendimento que o regime do artigo 379º, n.º 1 al. c) só tem aplicação na sentença).

Ainda assim sempre se dirá o seguinte:

Na decisão em crise consta, não só enumeração dos factos indiciados e a enunciação dos elementos probatórios que os sustentam, como uma análise dos diversos meios de prova, contrapondo elementos de sentido contraditório, revelando que se procedeu a uma observação cuidada e permitindo compreender o raciocínio que, na perspectiva do juiz de instrução, conduziu ao juízo de indiciação exigível para a pronúncia . Assim acontece, designadamente no segmento da decisão constante de fls. 1084 a 1086 O segmento da decisão que destacamos é o seguinte: “A 17-9-2008, foi expedida notificação da decisão judicial proferida no âmbito de um processo administrativo que correu termos no TAF de Mirandela na qual se deferia a providência cautelar requerida com a consequente manutenção da situação até aí existente que se traduz na hangaragem da aeronave do requerente no hangar do Aeródromo Municipal de Bragança.

É de mencionar que na própria decisão, antes do dispositivo, se menciona a responsabilidade criminal no caso de se infringir a providência decretada – cfr. f. 219-220.
O advogado do requerente (aqui assistente), no dia 7-10-2008, envia um fax ao advogado do arguido e ao próprio arguido onde menciona o carácter obrigatório da decisão e que pretendia hangarar a aeronave no dia seguinte (o director foi advertido para responsabilidade penal, caso não cumprisse com a decisão judicial) – cfr. f. 313-315.
O arguido confirma a recepção do fax. E refere que, de imediato, contactou o seu advogado o qual lhe transmitiu que tinha sido interposto recurso onde se pedia o efeito suspensivo do mesmo.
Porém, se pedia tal efeito é porque a decisão era para cumprir. Isto é, se não havia efeito suspensivo, a decisão era para cumprir. Ademais, se sabia do recurso, naturalmente conhecia que a decisão foi desfavorável. Nem se imagina outra coisa. Aquando da notificação da decisão efectuada pelo tribunal, o arguido passou logo a conhecer a decisão desfavorável. As regras da experiência dizem-nos isso. E que a tinha de cumprir. Mal ou bem. Mas sabia que havia de a cumprir. Tal resulta de forma fortemente indiciada.
E, face ao seu depoimento e ao do outro arguido, fácil é de ver que este, o director do aeródromo limitou-se a cumprir o que aquele decidiu: não deixar hangarar a aeronave. Quanto ao teor da conversa com o seu advogado, há que referir, desde logo, que o mesmo não foi inquirido como testemunha, nem se pode presumir, muito pelo contrário, que o mesmo tenha aconselhado o arguido a impedir a hangaragem com base no recurso e no pedido de efeito suspensivo do mesmo, pois sem despacho nesse sentido a decisão tinha de ser cumprida. A legislação administrativa não permite inferir outra coisa senão essa.
Aliás, o prazo da resposta ao seu recurso ainda decorria e o efeito do recurso foi apreciado em 29-10-2008 – cfr. f. 302. Nesta sequência, o requerente viu-se obrigado a requerer a execução da decisão, vendo a sua pretensão deferida a 13-10-2008. Nesse mesmo dia foram notificados os mandatários de que a Câmara tinha 20 dias para executar a sentença ou deduzir oposição. Mais alertava para o facto de a oposição não suspender a execução dado que a decisão é de cumprimento imediato – cfr. f. 319.A 12-11-2008, o TAF é informado que a decisão ainda não foi cumprida – cfr. f. 325. E só a 14-11-2008, na presença da GNR, é que foi observada a decisão judicial.(…)
Mais demonstrou inequivocamente que não pretendia cumprir (decorreram quase 2 meses entre a decisão e o cumprimento da mesma a qual exigiu o auxílio da força policial) invocando para o efeito uma justificação que não foi concretizada (a não ser ele, ninguém corroborou esta tese, designadamente o seu mandatário o qual não podia indicar como testemunha pois na certeza de que conhecia o carácter obrigatório da decisão) e que não era legítima.(…)
A restante prova vertida no requerimento de abertura de instrução apenas contextualiza as ocorrências havidas no dia 8-10-2008 e no dia 14-11-2008.

, onde se refere a expedição e recebimento da notificação da decisão administrativa do TAF de Mirandela, se expõe o raciocínio que permite indiciar o conhecimento pelo arguido do teor da decisão e da obrigatoriedade do seu cumprimento e da cominação legal, a partir não só das declarações dos próprios arguidos, mas também de prova documental com recurso a regras normais de experiência comum. Questão naturalmente diferente, que aqui não releva, é a discordância da magistrada recorrente com a valoração ou apreciação da prova pelo juiz de instrução.

A apreciação da prova é um juízo valorativo, de raciocínio objectivo, de ponderação do que é revelado por cada prova produzida, e em conjugação com as demais, e eventual erro que daqui derive é um erro de julgamento na credibilidade de determinada prova.

Em face do exposto, julga-se insubsistente a arguição de omissão de exame crítico das provas.

10. O vício decisório da contradição insanável da fundamentação, previsto na al. b), do nº 2, do art. 410º do C.P.P. existe quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal. Ac. do S.T.J de 13-10-1999, rel. Cons. Armando Leandro, Colectânea, III e jurisprudência aí citada).

Aplicando o preceito legal e o entendimento jurisprudencial ao despacho proferido finda a instrução, existirá vício decisório relevante quando no próprio texto da decisão instrutória, considerado isoladamente ou relacionado com máximas da vivência comum, se encontrem afirmações antagónicas e inconciliáveis na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão quanto aos eventos ou factos materiais indiciados e não indiciados.

No caso presente, a magistrada recorrente, enfatizando a divergência entre a sua própria análise e a apreciação da prova feita pelo tribunal, afirma a existência de uma contradição entre segmentos da decisão retirados do seu contexto: Neste particular, é sintomático (e censurável) que a recorrente tenha invocado um parágrafo (3.º de fls. 1080) “escondendo” o parágrafo seguinte, onde se procura distinguir os requisitos entre “desobediência legal” e “desobediência funcional”, ou invocado outro parágrafo (fls. 1083 in fine) sem citar o que logo se lhe segue e permite compreender o sentido do texto anterior.

A argumentação da recorrente neste âmbito revela que a discordância se traduz, não na valoração ou apreciação da prova por declarações e testemunhos, mas na subsunção dos elementos de prova recolhidos em conceito ou instituto normativo. Ou seja, a questão de saber se a prova produzida permite concluir pela “notificação regular da sentença cautelar” e pela “verificação dolo do tipo de abuso de poder” constituem inequivocamente questões de direito, dependentes da interpretação e aplicação de normas jurídicas ao caso concreto, sem que se vislumbre contradição entre a fundamentação probatória e a decisão sobre a matéria de facto.

Serão por isso essas questões apreciadas mais à frente, depois de eventualmente “estabilizada” a decisão em sede de matéria de facto indiciada, improcedendo a arguição de uma relevante contradição na fundamentação enquanto “vício decisório”.

11. Em formulação doutrinalmente bem marcada, ainda no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, os indícios só serão suficientes para a pronúncia quando, já em face deles, seja de considerar como razoável a probabilidade da futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.

Na elaboração jurisprudencial posterior, este juízo de possibilidade razoável surge frequentemente traduzido em termos comparativos entre condenação e absolvição, como será exemplo o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 7-10-1992 (www.dgsi.pt,processo 040528), no Acórdão de 28-06-2006, relator Conselheiro Pereira Madeira www.dgsi.pt processo 06P23125, ou nos Acórdãos de 21-05-2008, de 18-06-2006 e de 08-10-2008, todos relatados pelo Conselheiro Soreto de Barros. Neste último, in www.dgsi.pt, processo 06P2050 consta que “Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a «possibilidade razoável» de condenação é mais positiva que negativa: «o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”. A aplicação do princípio constitucional da presunção de inocência a todo o processo penal impõe uma especial exigência ao juízo de probabilidade: neste âmbito, só serão suficientes para a acusação ou para a pronúncia os indícios que permitam a formulação de uma verdadeira convicção de uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação do arguido. Silveira, Jorge Noronha, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pp 155 a 181.

Finda a instrução, o juiz tem de proceder a uma análise objectiva e conjunta da credibilidade e da consistência de todos os meios de prova disponíveis, à luz das regras normais da vivência comum e de critérios de lógica e de razoabilidade. Será com base nessa análise ou valoração que o juiz poderá concluir se aqueles elementos de prova recolhidos até ao momento, uma vez produzidos e/ou examinados (“repetidos”) em audiência de julgamento e sujeitos ao contraditório pleno, oralidade e imediação, permitem um juízo de probabilidade séria de condenação do arguido, para lá de toda a dúvida razoável.

Vale aqui em toda a sua extensão o princípio da livre apreciação da prova Vide, a propósito da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, ou da “íntima convicção”, a todas as fases do processo, incluindo a instrução, Paulo Saragoça da Mata, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença” in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, paginas 221 a 279 e, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-10-2009, Cons. Souto Moura processo 1/08.0TRLSB.L1 in www.dgsi.pt em que se escreveu, a propósito de uma decisão instrutória, que “não podemos olvidar que estamos no âmbito da livre apreciação da prova e o Tribunal é soberano neste aspecto. A prova é apreciada de harmonia com as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente, tendo como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio. É o tribunal que faz a análise das provas produzidas e delas extrai livremente as suas conclusões segundo as regras da experiência. É ao tribunal que julga que compete livremente apreciar se um só depoimento, ou documento é decisivo para formar a sua convicção, tanto mais que "testium fides diligenter examinanda est" (cfr. Vaz Serra, in Excertos da Exposição de Motivos, com referência ao artigo 396.°, do C. Civil). (…). O que é necessário é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique "os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto".

.

Regressemos ao caso concreto. No seu recurso, a magistrada do Ministério Público no Tribunal Judicial de Bragança censura a decisão sobre a matéria de facto enunciando um extenso rol de pontos da decisão que considera errados ou deficientemente formulados, mas omite completamente a indicação dos concretos meios de prova que impõem solução diversa.

No campo da impugnação em matéria de facto, afigura-se-nos completamente insubsistente a mera alegação de uma divergência de análise ou de convicção e as enunciadas omissões na motivação e nas conclusões do recurso impossibilitam de todo a reapreciação da matéria de facto indiciada.

Ainda assim, sempre se dirá que a decisão instrutória, na sua globalidade, quer quanto aos factos susceptíveis de integrar o cometimento de um crime de desobediência, quer quanto aos factos atinentes ao crime de abuso de poder, contém a enunciação dos elementos de prova e do raciocínio dedutivo que permitem justificar de forma consistente e razoável a globalidade da matéria de facto que se considerou indiciada, a partir das declarações dos próprios arguidos, da prova testemunhal e da prova documental constante dos autos.

Como consta da decisão, que acima transcrevemos, o juiz de instrução considera suficiente indiciado que o arguido ANTÓNIO N... teve conhecimento do teor da sentença proferida na providência cautelar com fundamento na circunstância desse mesmo arguido, como reconhece em declarações nos autos, ter recebido um fax expedido pelo mandatário do assistente, contendo o sentido da decisão e aludindo a subsequente interposição de recurso onde se pedia o efeito suspensivo. Posteriormente seguiram-se outras comunicações em que expressamente se refere a existência da decisão judicial e a obrigatoriedade do cumprimento, bem como a “tentativa” de 8 de Outubro de 2008 de recolha da aeronave no aeródromo (vide pontos 25 a 27 e 30, 31, 33 a 35 de fls. 1097 a 1099). Estes factos têm fundamento em elementos probatórios dos autos e resultam de um raciocínio lógico a partir da vivência comum. Questão naturalmente diferente, que aqui não cabe, reside em saber se esta notificação ou “tomada de conhecimento” pelo arguido do teor da decisão judicial é suficiente para o preenchimento do tipo de crime de desobediência…

No mesmo sentido, a argumentação que justifica a motivação de toda a restante decisão em matéria de indiciação se nos afigura como razoável e devidamente assente numa pormenorizada análise crítica das declarações de ambos os arguidos, dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos produzidos ao longo do inquérito e na instrução, nestes se salientando os do vice-director do aeródromo Serafim P..., dos pilotos Nuno V..., Álvaro R..., Horácio S....

Como também consta da decisão recorrida e mereceu a concordância da magistrada do Ministério Público neste Tribunal da Relação, o conjunto dos factos indiciados, de onde se intui facilmente a total ausência de um tratamento equitativo, de um critério objectivo ou de um fundamento atendível para a decisão inusitada de não permitir a recolha da aeronave do assistente no hangar municipal, apenas permite concluir que o arguido ANTÓNIO N... agiu enquanto Presidente da Câmara Municipal de Bragança de uma forma esclarecida e informada, violando princípios e deveres funcionais, com a intenção de causar dano a Francisco J....

Em conclusão, não vislumbramos elemento de prova que justifique e muito menos que nos imponha decisão diferente.

Termos em que, sem necessidade de outros considerandos, se mantém toda a decisão da matéria de facto indiciada tal como consta do despacho de pronúncia.

12. Na descrição constante dos factos indiciados, a conduta do arguido ANTÓNIO N... de abuso de poderes ou de violação das funções próprias de funcionário prolongou-se no tempo, iniciando-se numa ocasião em que a aeronave não era pertença formal do assistente, mas prosseguindo em ocasiões posteriores à efectiva aquisição da propriedade pelo mesmo ofendido. Nos termos já expostos, sendo evidente que uma aeronave pode sofrer danos estruturais e se desvaloriza se for mantida durante meses exposta no exterior à acção do tempo e tendo em conta a animosidade e conflitualidade entre ambos, forçoso será concluir que o arguido agiu com a intenção de de afrontar o interesse do assistente em ver o seu avião recolhido e de lhe provocar um prejuízo no património.

Nestes termos e sem necessidade de outros considerandos improcede manifestamente a arguição da recorrente quanto à ocorrência de uma “tentativa impossível” ou quanto à ausência do dolo do tipo ou da intenção específica na conduta indiciada.

13. Cumpre seguidamente apreciar da verificação nos autos de indícios suficientes de factos susceptíveis do preenchimento na desobediência do elemento típico objectivo da “regular transmissão da ordem”;

A este propósito, descortinam-se nos autos dois entendimentos distintos:

Segundo a perspectiva que o assistente exprimiu no recurso do despacho de arquivamento e que terá merecido acolhimento no despacho de pronúncia, sendo caso de desobediência que decorra directamente da lei (“da alínea a) do art.º 348.º Código Penal”) a transmissão da ordem será regular desde que haja notificação da decisão e por essa via o destinatário adquira conhecimento perfeito do conteúdo da ordem emanada da competente autoridade e da obrigação a que está adstrito, independentemente mesmo do meio concreto porque se obteve esse conhecimento.

Numa perspectiva diferente, exposta no recurso pelo Ministério Público, para o efeito de preenchimento do tipo de crime de desobediência, a regular comunicação da decisão proferida em providencia cautelar exige uma notificação pessoal. No parecer, a Exmª magistrada do Ministério Público neste Tribunal da Relação afirma mesmo que no caso seria exigível em todo o caso a comunicação pessoal ao visado das consequências do incumprimento.

Os autos dão conta das diversas posições doutrinárias e referem abundante jurisprudência a este propósito, que aqui nos dispensamos de repetir.

Impõe-se antes de mais notar que a desobediência em apreço nestes autos, se comprovada, decorrerá directamente da lei, em consequência de desrespeito de uma sentença proferida em providência cautelar, por força do disposto nos artigos 127.º n.º 3 e 159.º n.º 2 alínea a) do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e na alínea a) do artigo 348.º n.º 1 do Código Penal, no segmento em que se estabelece que a inexecução da sentença proferida em providência cautelar “importa a pena de desobediência” quando “tendo a administração sido notificada para o efeito, o órgão administrativo competente manifeste a inequívoca intenção de não dar execução à sentença sem invocar a existência de causa legítima de inexecução” .

Assim, tratando-se de um caso de cominação legal, e não de cominação funcional, não se tornava necessário que da comunicação ao arguido na qualidade de Presidente da Câmara constasse expressamente a advertência da consequência penal. Como salienta Cristina Lima Monteiro a propósito da providência cautelar, a lei incriminadora não exige a advertência do destinatário de que incorre na pena de desobediência pelo que “o eventual desconhecimento da ilicitude penal do seu acto por parte de quem não cumpre a providência cautelar convoca as regras próprias do erro. E, neste caso, dificilmente se tratará erro não censurável” Monteiro, Cristina Líbano, Comentário Conimbricense, Coimbra, 2011, III, p. 355.

Cumpre salientar que o elemento típico em análise se destina a garantir ou acautelar que o destinatário fique ciente do conteúdo da ordem e do comportamento devido. Nesta ordem de ideias, o cumprimento do pressuposto da regularidade da comunicação depende fundamentalmente do respeito pelas pertinentes normas do respectivo regime das notificações dos actos processuais. Como expressivamente escreveu José Luís Lopes da Mota, “o requisito relativo à regularidade da comunicação da ordem deve ser interpretado em conformidade com a regra geral de exigência de notificação ao seu destinatário dos actos que impõem deveres (art.º 268.º da Constituição e 132.º do Código de Procedimento Administrativo), visando salvaguardar que o destinatário tenha perfeito conhecimento do acto, independentemente da forma que possa revestir, sem prejuízo do regime próprio dos actos orais (art. 126.º do Código de Procedimento administrativo, como são algumas das ordens ou proibições dos agentes da administração” Mota, José Luís Lopes, Crimes Contra a Autoridade Pública, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, Lisboa, 1998, II, p. 432 e 433. ou, como assevera Cristina Líbano Monteiro, “a comunicação – que o artigo exige que seja regular – há-de começar por constituir autentica comunicação. Isto é : não basta que o meio de fazer chegar a ordem ao conhecimento do destinatário se mostre de acordo com a lei formalmente irrepreensível; torna-se necessário que aquele se tenha inteirado, de facto, do seu conteúdo.” Monteiro, Cristina Líbano, loc. cit, p. 356.

A este propósito, interessa ter presente que são aplicáveis por remissão as normas do Código de Processo Civil. Não é obviamente o caso de prática de acto processual em juízo, pelo que não é exigível a notificação por contacto pessoal e, por isso, o Município de Bragança foi regularmente notificado do teor da sentença proferida na providência cautelar na pessoa do ilustre mandatário (artigos 253.º 254.º e 259.º do C.P.C.).

Acresce que os factos referentes ao conhecimento pelo destinatário da ordem e da obrigação de cumprimento podem provar-se por qualquer meio admissível (prova documental mas também confissão, prova por testemunho ou por presunções naturais) e que são inteiramente pertinentes as afirmações constantes da decisão instrutória a este propósito, de onde se pode inferir que o arguido adquiriu conhecimento perfeito e esclarecido do teor da decisão. Segundo aí se escreveu “A 17-9-2008, foi expedida notificação da decisão judicial proferida no âmbito de um processo administrativo que correu termos no TAF de Mirandela na qual se deferia a providência cautelar requerida com a consequente manutenção da situação até aí existente que se traduz na hangaragem da aeronave do requerente no hangar do Aeródromo Municipal de Bragança. É de mencionar que na própria decisão, antes do dispositivo, se menciona a responsabilidade criminal no caso de se infringir a providência decretada – cfr. f. 219-220. O advogado do requerente (aqui assistente), no dia 7-10-2008, envia um fax ao advogado do arguido e ao próprio arguido onde menciona o carácter obrigatório da decisão e que pretendia hangarar a aeronave no dia seguinte (o director foi advertido para responsabilidade penal, caso não cumprisse com a decisão judicial) – cfr. f. 313-315.O arguido confirma a recepção do fax. E refere que, de imediato, contactou o seu advogado o qual lhe transmitiu que tinha sido interposto recurso onde se pedia o efeito suspensivo do mesmo. Porém, se pedia tal efeito é porque a decisão era para cumprir. Isto é, se não havia efeito suspensivo, a decisão era para cumprir. Ademais, se sabia do recurso, naturalmente conhecia que a decisão foi desfavorável. Nem se imagina outra coisa. Aquando da notificação da decisão efectuada pelo tribunal, o arguido passou logo a conhecer a decisão desfavorável. As regras da experiência dizem-nos isso. E que a tinha de cumprir. Mal ou bem. Mas sabia que havia de a cumprir. Tal resulta de forma fortemente indiciada.A 12-11-2008, o TAF é informado que a decisão ainda não foi cumprida – cfr. f. 325. E só a 14-11-2008, na presença da GNR, é que foi observada a decisão judicial.

Em conclusão, os indícios constantes dos autos permitem concluir, com a segurança necessária para a presente fase processual, não só que houve comunicação regular da sentença, pelo tribunal na pessoa do ilustre mandatário do requerido, mas também que o arguido ANTÓNIO N... teve conhecimento dessa decisão e da obrigação de cumprimento.

14. Por ultimo, o recorrente suscitou inconstitucionalidade da norma penal contida no artigo 159.º n.º 2 do CPTA, aplicável ex vi do artigo 127.º n.º 3 do mesmo diploma, numa interpretação segundo a qual a conduta de inexecução das decisões proferidas em providências cautelares constitui um ilícito penal punível, sem cuidar de saber da eventualidade de caducidade, alteração ou mesmo revogação da providência, por ofensa dos princípios do Estado de Direito democrático, principio da necessidade de pena, principio do respeito pela dignidade humana e principio da humanidade.

Não lhe assiste razão.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 577/2011, citado pelo assistente na resposta ao recurso, “O Tribunal Constitucional tem entendido que lhe compete a fiscalização concreta da observância, pelo legislador, do princípio da subsidiariedade do direito penal. Sendo tal princípio enformador da nossa Constituição, decorrendo não só do princípio da proporcionalidade tal como é enquadrado pelo artigo 18.º, n.º 2, ao estabelecer os critérios de validade das leis restritivas de direitos fundamentais, mas também do conceito de Estado de direito democrático, não poderia este parâmetro ser afastado do sistema das garantias judiciais da Constituição. Mas o Tribunal Constitucional tem também afirmado, de modo reiterado, que, na apreciação deste parâmetro, cumpre respeitar a margem de liberdade conformadora que, no plano da definição da política criminal, cabe, nos termos de uma adequada separação de poderes do Estado, ao legislador democrático, isto é, à Assembleia da República, em primeira linha, ou ao Governo, uma vez emitida a correspondente credencial parlamentar (…) A actividade de fiscalização do Tribunal deve ser, portanto, restringida a um controlo de evidência, relegando-se as decisões de inconstitucionalidade para os casos em que, de modo evidente ou manifesto, se excederam os limites à incriminação penal resultantes do princípio da proporcionalidade e da ideia de Estado de direito democrático. (in http://www.tribunalconstitucional.pt).

Ora, a tutela penal acrescida justifica-se pela natureza específica das providências cautelares, enquanto meios processuais próprios para salvaguardar os efeitos úteis das sentenças. Em todo o caso, não se vislumbra que a criminalização da conduta tipificada no artigo 159.º n.º 2 do CPTA exceda os limites razoáveis de conformação do legislador, se apresente como manifestamente excessiva ou possa dar lugar a sanções desproporcionais ou desadequadas.

Nestes termos, sem necessidade de outros considerandos improcede o recurso do Ministério Público.

III - DECISÃO

15. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente improcedente o recurso do Ministério Público, mantendo integralmente a decisão recorrida.

Sem tributação.

Guimarães, 22 de Outubro de 2012