Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
838/12.6TBGMR.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA DA CONCESSÃO DA EXONERAÇÃO
INCUMPRIMENTO DA DEVEDORA
NEGLIGÊNCIA GRAVE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Deve ser recusada a exoneração do passivo restante a uma insolvente que não cumpriu, de forma intencional – com negligência grave – a sua obrigação, de entrega ao fiduciário do rendimento disponível que lhe foi determinado pelo tribunal aquando do despacho liminar, impedindo, dessa forma o ressarcimento da credora da insolvente.
Decisão Texto Integral:

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Por sentença datada de 28.06.2012, foi declarada a insolvência de M, melhor identificada nos autos, na sequência da sua apresentação à insolvência.
Ao apresentar-se à insolvência, a devedora requereu a exoneração do passivo restante.
Por despacho datado de 10.09.2012, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência a insolvente deveria ceder mensalmente ao fiduciário a quantia que excedesse o salário mínimo nacional, nomeadamente quaisquer subsídios de férias e de natal que viesse a auferir.
Nesse mesmo dia iniciou-se o período de cessão (em 10.9.2012).
Notificado o Sr. Fiduciário para proceder à junção aos autos do relatório a que alude o art. 61.º nº 1 do CIRE (aplicável ex vi do art. 240.º nº 2), veio o mesmo informar, em 13.11.2013 (cfr. fls. 193) que durante o 1.º ano a insolvente apenas havia efectuado duas cessões, uma em 26.06.2013, no valor de € 300, e outra em 16.08.2013, no valor de €144,44.
Em 11.09.2015 (cfr. fls. 247 e ss) procedeu o Sr. Fiduciário à junção aos autos do 2.º relatório, abrangendo os 2.º e 3.º anos de cessão, informando que a insolvente procedeu em 21.11.2013 ao depósito de € 600 e em 21.07.2014 ao depósito de € 125, não mais tendo efectuado qualquer outro depósito e sem que tenha dado qualquer justificação para essa omissão e que, pese embora notificada para remeter-lhe a declaração de rendimentos reportada ao ano de 2014, não o fez. Posteriormente, veio juntar aos autos a declaração de rendimentos em causa.
Concluiu o Sr. Fiduciário pela violação, por parte da insolvente, da obrigação de entrega do rendimento disponível, já que a mesma terá auferido sempre rendimentos mensais superiores ao salário mínimo nacional.
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Na sequência dessa comunicação veio a credora C (única credora conhecida) requerer a recusa antecipada da exoneração do passivo restante peticionada pela insolvente.
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Notificada a insolvente do teor desse requerimento, veio a mesma justificar as apontadas omissões argumentando que desde 2014 que se viu obrigada a assumir todas as despesas do seu agregado familiar, constituído por si e pela sua filha, Z, que se encontra desempregada e sem auferir qualquer subsídio de desemprego desde 2014, a qual padece ainda de uma doença psiquiátrica, apresentando sintomatologia compatível com provável perturbação estado-limite da personalidade.
Alegou ainda que sofre de doenças crónicas, talqualmente alegado na petição inicial, tendo por isso despesas médicas anuais relevantes.
Por esses motivos, concluiu não apenas pela improcedência da pretensão da C, como peticionou ainda a redução do valor a ceder ao Sr. Fiduciário aos € 30 mensais.
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Procedeu-se à notificação do Sr. Fiduciário nos termos e para os efeitos do disposto no art. 243.º nº 3 do CIRE, nada tendo o mesmo dito.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão:
“…Consequentemente, ao abrigo do disposto no art. 243.º/1/al.a) CIRE, recuso a exoneração do passivo restante requerida por M.
Custas pelo insolvente…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a insolvente interpôr o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:
“1- O presente recurso é interposto da douta sentença proferida, que entendeu ao abrigo do disposto no artigo 243º, nº 1, alínea a) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (ClRE) recusar a exoneração do passivo restante requerido pela insolvente M.
2-A aqui recorrente não se conforma nem aceita a douta Sentença sob recurso, porque entende, com o devido respeito, que o Tribunal "a quo" na sua decisão da matéria de facto dada como assente não apreciou corretamente a prova documental junta pela insolvente na sua resposta de fls. 282 e ss nem valorou factos alegados pela Insolvente nessa mesma resposta quando tais factos estão comprovados por documentos com ela juntos e são relevantes para a boa decisão da causa.
3-Entende, portanto, que houve uma errada fixação da matéria de facto, havendo manifesto erro de julgamento, pelo que a douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 607º, nºs 2, 3 e 4 do Código do Processo Civil.
4-0 artigo 607º do CPC determina como deve ser estruturada uma sentença. E de acordo com o nº 3 desse normativo, " ... 0 juiz deve discriminar os factos que considera provados ... ". E no seu nº 4 determina: " ... 0 juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou regras da experiência."
5-Numa sentença, a valoração dos factos só pode fazer-se após indicação dos factos provados. O que implicaria no caso presente, discriminar, de entre os factos da resposta de fls. 282 e sgs., os julgados provados e não provados e fundamentação dessa decisão.
6-Assim no cumprimento do disposto no nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, a Recorrente vem especificar os pontos de facto que considere incorretamente julgados:
O Tribunal "a quo", na sua decisão de facto deu como não provados os seguintes factos: "Que a filha da Insolvente Z reside consigo; que a filha da insolvente tenha um gasto médio mensal de €40,00 com medicamentos";
7-0ra a aqui Recorrente não aceita tal decisão. Pois estes factos devem ser dados como provados porque foi apresentado a respetiva prova documental e esta encontra-se junta a fls. 282 e ss.
8-Assim face a prova documental produzida nos autos, e face aos documentos juntos a fls. 284, 285 e 294, e ao abrigo do disposto na alínea c), nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, entende a aqui Recorrente que os factos seguintes devem ser dados como provados:
"Que a filha da Recorrente, Z, reside com a Insolvente desde 2009”;
"Que a filha da Insolvente tem um gasto médio mensal de 40,00€ com medicamentos”;
9-Na sua resposta de fls. 282 e ss, a aqui Recorrente alegou factos que comprovou documentalmente que não foram valorados nem dados como provados por erro de julgamento do Tribunal "a quo" e que são relevantes para a boa decisão desta causa e que deverão ser aditados na decisão da matéria de facto.
10- Assim deverão ser aditados a matéria de factos assentes os seguintes factos:
a-Que a filha Z padece de uma doença do foro psiquiátrico apresentando uma sintomatologia compatível com provável perturbação estado-limite da personalidade (D5M-IV¬TR)".Cfr. documento junto a fls 285;
b-Que a filha Zulmira não auferiu qualquer tipo de rendimento no ano de 2014.Cfr. documentos juntos a fls. 292 e 317 e ss;
c-Que a Insolvente tem atualmente 70 anos, tem doenças crónicas e teve em 2015 despesas médicas e medicamentosas no montante de 398,58€.-Cfr.documentos juntos a fls. 15, 18, 272 e 274;
d-A insolvente entregou ao Sr. Fiduciário duas quantias de 30,00€, cada uma, uma em 30.06.2016 e outra em 26.07.2016.- Cfr. documentos juntos a fls. 286 e 286 verso.
l1-Posto isto, entendemos que não foi feita a devida análise crítica da prova (nº 4 do artigo 607º do Código de processo civil).
12-Entende a aqui Recorrente que tal matéria que foi alegada no douto requerimento de fls. 282 e segs. e que foi comprovada documentalmente conforme supra referido deveria ter sido valorado e dada como provada pela Exma. Senhora "a quo". Tal matéria tem a sua relevância para poder aferir do grau de negligência no comportamento da aqui Recorrente no decorrer destes quase 4 anos contados desde 02 Outubro de 2012 (data do trânsito em julgado do despacho inicial que deferiu a exoneração do passivo restante da aqui Insolvente) até 25 de Julho de 2016 (data da apresentação do requerimento da cessação antecipada da exoneração).
13- Acresce ainda que existem factos alegados no requerimento de fls. 282 e segs., que deveriam ter sido apreciados e julgados com base na audição das testemunhas arroladas nesse mesmo requerimento, que não foram ouvidas no processo e que são relevantes para comprovar outros factos alegados e não comprovados documentalmente e que permitem avaliar com objetividade o grau da alegada negligência da aqui Recorrente no cumprimento da sua obrigação de entrega do seu rendimento disponível ao Sr. Fiduciário.
14-Pelo que a douta decisão recorrida enferme de um vício grave - a nulidade.
15-Assim, aquando da apresentação da sua resposta de fls. 282, a aqui Recorrente juntou documentos e ainda requereu a audição de prova testemunhal.
16-0ra, o Tribunal a quo entendeu proferir decisão sem recorrer a audição da prova testemunhal arrolada a fls. 282 e ss. que poderia elucidar e comprovar definitivamente o facto de que a filha Z vive efetivamente com a aqui Recorrente, que a aqui Recorrente assume desde 2014 todas as despesas de alimentação, de medicamentos e despesas correntes da sua filha por a mesma estar desempregada e não ter rendimentos; e que a insolvente tem problemas de saúde e dificuldades financeiras para viver o seu dia a dia.
17- Ao proceder de tal forma, o Tribunal a quo violou o disposto nos artºs 411º, 413º e 607º, nº 5 do CPC, sendo consequentemente nula a decisão, nos termos do disposto no artº 615°, nº1, d) do CPC.
18-Da mesma forma, encontra-se violado o disposto no artº 20º da Constituição da República, nºs 1 e 4;
19-É que, mesmo que considere que a matéria de facto dado como provada não merece reparo - o que não concedemos -, ainda assim não foi feita uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
20-Face aos factos supra exarados que devem ser aditados e por isso dados como assentes na decisão de facto ora em apreço, e face aos factos já dados como assentes na douta decisão, todos devem ser valorados juridicamente, sendo certo que, que mesmo só com os factos dados como assentes na douta sentença, estes últimos são suficientes e concretos para afastar que a Recorrente atuou com negligência grave e que a única credora do processo viu prejudicado de forma relevante a satisfação do seu crédito e por esse motivo não podia ser recusado a exoneração do passivo restante.
21-No caso em apreço, no decurso dos 4 anos contados desde 02/10/2012, data do trânsito em julgado do despacho liminar de exoneração do passivo, a Insolvente, uma pessoa com a idade de 70 anos, com problemas de saúde conforme comprovado nos autos, entregou ao Fiduciário as quantias elencadas na matéria de facto dada como provada e que somam a quantia total de 1169,44€.
A Recorrente, com muito custo entregou ainda em Junho e Julho de 2016 a quantia total de 60,00€ (dr. docs. juntos a fls. 286 e 286 verso).
22-0ra, no decurso desses 4 anos, a aqui Recorrente nunca equacionou que estava a desrespeitar a lei e sequer a prejudicar a única credora dos autos. Pois estava a entregar a quantia que a mesma achava que podia entregar visto que tinha que fazer face as suas despesas correntes (documentadas na sua P.1. a fls.) e ainda às despesas da sua filha.
23-A aqui Recorrente, como mãe, com a idade de 70 anos -com todas as dificuldades inerentes a esta idade quer físicas quer psicológicas- e com o conhecimento que tem, não podia nem conseguia deixar de ajudar a sua filha conforme documentado nos autos. Pelo que não representou corretamente ou tinha consciência da sua vinculação ao dever de entregar o rendimento disponível nos precisos termos que estavam estipulados no despacho inicial da exoneração do passivo restante.
24-Na verdade, a filha, esteve desempregada desde 27.08.2012 (dr. documento de fls. 294). É verdade que recebeu um parco subsídio de desemprego (inferior a vencimento nacional mínimo) até 11/11/2013 (dr. certidão de fls. 317 e ss), mas não auferiu de qualquer tipo de rendimento no ano de 2014 (dr. certidão de fls. 292) e só auferiu no ano de 2015 a quantia total de 826,90€ (dr. certidão de fls. 293), quantia esta nitidamente insuficiente para se sustentar sozinha e de forma digne.
25-Face as graves dificuldades financeiras da Z -que foi por sua vez declarada insolvente em 07.03.2012(dr. certidão a fls. 317 ss)- e que estão devidamente comprovadas nos autos, a aqui Recorrente, como mãe não podia deixar a sua filha "passar fome" daí que viu-se obrigada a utilizar os seus rendimentos para se sustentar e sustentar a sua filha. E face a este imperativo de ordem moral e em nome da dignidade pessoal da sua filha nunca equacionou que ao sustentar a sua filha naquele período de cessão estava a incumprir com a sua obrigação de entrega do rendimento disponível visto que de facto, na sua mente, este rendimento não estava disponível (porque estava a sustentar a sua filha). E ainda, apesar da sua situação financeira precária, a Recorrente, com muito esforço, entregou ao Sr. fiduciário as quantias identificadas nos autos, e como procedeu a tal entrega, mesmo diminuta, na sua mente, a Insolvente não estava a prejudicar a única credora dos autos.
26-Pelo que, face ao supra descrito, devidamente comprovado nos autos, a Recorrente ao não ceder ao Senhor Fiduciário as quantias a que ficou obrigada, não atuou com negligência grave conforme determinado no artigo 243º, nº 1, alínea c) do CIRE.
27-Pelo que não estão preenchidos todos os pressupostos elencados no artigo 243º, nº 1, alínea c) do CIRE e por via disso não se podia recusar a exoneração do passivo restante quanto a aqui Recorrente.
28-0 despacho/decisão ora recorrido violou as disposições conjugadas do artigo 243º, nº 1, alínea a) do CIRE e do artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
29-Nos termos do artigo 243º, nº 1, alínea a) do CIRE, é necessário verificarem-se dois pressupostos cumulativos, para que seja recusada a exoneração por violação das obrigações impostas pelo artigo 239º do CIRE:
a) que o devedor tenha atuado com dolo ou negligência grave;
b) que a sua atuação cause um prejuízo para os credores.
30-A Insolvente enfrentou sérias dificuldades financeiras devido à instabilidade da sua vida pessoal e familiar, e justificou a fls 282 na sua resposta o motivo da não ter entregue as quantias em causa e demonstrou não ter atuado com dolo ou negligencia grave.
31-0 prejuízo para a única Credora, deve, em nosso entendimento, ser um prejuízo relevante, por equiparação com o regime previsto no artigo 246º do CIRE, pois quer a cessação antecipada quer a revogação da exoneração, geram a mesma consequência na esfera jurídica da Insolvente.
32-A atuação da Insolvente não causou um prejuízo relevante, que coloque em causa a satisfação do crédito sobre a insolvência.
33-A relevância desse prejuízo deve ser aferida, como regra, de harmonia com um critério quantitativo, portanto, em função do quantum do pagamento dos créditos sobre a insolvência. Mas a essa aferição não deve ser estranha a natureza do crédito e a qualidade do credor. Na verdade, na valoração da relevância do prejuízo, não há-de ser indiferente, a par do quantum da insatisfação dos credores da insolvência, o facto de o crédito insatisfeito ter, por exemplo, natureza laboral e por titular um trabalhador, ou de se tratar de uma entidade de reconhecida - ou presumida - solvabilidade económica, como, por exemplo, uma instituição bancária ou um segurador, em que os custos do incumprimento são uma variável tomada em linha de conta na estrutura dos preços oferecidos no mercado.
34-A exigência da relevância do prejuízo pode explicar-se por uma ideia ou princípio de proporcionalidade - que possui um claro fundamento constitucional e é, por isso, transversal a toda a ordem jurídica - e que encontra, mesmo no plano estrito do direito privado, inúmeras concretizações, de que são meros exemplos, entre muitos outros, a recusa ao credor do direito potestativo de resolução do contrato com base numa falta leve ou insignificante do devedor, o apelo ao abuso do direito, sempre que se verifique uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências nefastas para o respetivo sujeito passivo ou para terceiros, portanto, em que é patente um desequilíbrio no exercício de posições jurídicas ou o princípio da proporcionalidade da penhora (artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa).
35-A gravidade das consequências para o devedor da revogação da exoneração - com a consequente vinculação à satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência, só detida pelo prazo ordinário da prescrição - impõem, por aplicação de um princípio de proporcionalidade ou razoabilidade, que aquela revogação só possa fundamentar-se numa conduta dolosa do devedor que seja causa de um dano relevante para os seus credores, objetivamente imputável àquela conduta.
36-0 pensamento da lei é, assim, em traços largos, este: o comprometimento da finalidade da exoneração do passivo restante - a concessão ao devedor insolvente de um fresh start, de uma nova oportunidade, a reabilitação económica do devedor e a sua reintegração plena na vida económica, liberto das grilhetas do passivo que sobre ele pesava - só deve ocorrer quando a violação das obrigações a que o insolvente está vinculado durante o período da cessão, cause aos credores um dano relevante, grave ou significante.
37-0 prejuízo para a única Credora, deve, em nosso entendimento, ser um prejuízo relevante, por equiparação com o regime previsto no artigo 246º do CIRE, pois quer a cessação antecipada quer a revogação da exoneração, geram a mesma consequência na esfera jurídica da Insolvente.
38-0ra, face a factualidade que envolve o comportamento da Recorrente e a natureza do único Credor identificado nos autos, verifica-se que o prejuízo causado a esta última não é relevante.
39-Decerto que o incumprimento daquela obrigação por parte da Insolvente - cujo motivo está devidamente alegado, justificado e comprovado nos autos- causa aquela única credora um prejuízo.
40-Mas este dano, se se tiver em conta, o tempo decorrido de quase 4 anos desde a data do inicio da cessão do rendimento disponível até a apresentação em juízo do requerimento da cessação antecipada da exoneração de fls. 277 e ss. (a saber de 02/10/2012 a 25/07/2016), o valor do rendimento que se considera cedido, o montante total da quantia não entregue e a natureza e o valor do único crédito reclamado e reconhecido no montante total de 6191,90€ (sendo o valor em capital de 4487.17€) sobre a insolvência, e a qualidade do credor afetado, (Instituição de Crédito C)- não suporta a qualificação de RELEVANTE.
41-5endo certo e conforme consta da Reclamação de Créditos apresentada a fls. pela supra referida e única Credora, o empréstimo concedido em Junho de 2007 à Insolvente era no montante de 5166,00€. Que tal empréstimo foi amortizado pela insolvente com prestações pagas até 01.08.2011 e que o montante das prestações pagas durante este período perfaziam um total de 7.292,93€(sic .... ) tudo conforme melhor consta da conta corrente junta como Documento nº 2 a douta Reclamação de Créditos junta ao respetivo apenso dos autos principais.
42-Uma pergunta deverá também ser aqui colocada e obviamente sob o prisma do bom senso comum e da equidade, há prejuízo relevante para a Cofidis? ou podemos até perguntar existirá um prejuízo "tout court" para esta única credora? Pois, esta credora fez um empréstimo no montante de 5166,00€, a mesma já recebeu da insolvente (antes da sua declaração de insolvência) a quantia de 7.292,93€ e ainda vai receber as quantias já cedidas no âmbito deste processo de insolvência ...
43-De qualquer forma, só com um prejuízo significante ou grave para aquela única credora se poderia justificar a recusa ou revogação da exoneração, e esse pressuposto não está preenchido no caso em apreço.
44-A decisão do Tribunal a quo tem-se como uma consequência demasiado gravosa para a Insolvente, quando comparada com o prejuízo mínimo causado à única Credora, violando o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente regulado no artigo 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
45-Assim, no caso dos autos, atenta a matéria de facto alegada e provada não estão reunidos os pressupostos do artigo 243º nº 1 al. a) do CIRE para sustentar a decisão de recusa da exoneração do passivo restante (na sua forma antecipada), daí, que, se considera que a sentença recorrida não decidiu bem perante os factos alegados pela requerente e perante a decisão da matéria de facto.
46-Pelo que, entende a Recorrente que a Meritíssima Juiz "a quo" fez uma errada interpretação e aplicação dos preceitos contidos nos artigos 243º, nº 1, al. a), 246º nº 1 do CIRE e artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
47-A douta decisão em recurso fez uma errada apreciação da matéria de facto, que deve ser alterada de acordo com a prova feita por documento, violando as normas do artigo 607º, nºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil.
48-A douta decisão Recorrida é violadora de normas substantivas designadamente os artigos 243º, nº 1, al. a), 246º nº 1 do CIRE e os artigos 18º, nº 2 e 20º nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa e de normas adjetivas designadamente os artigos 411º, 413º e 607º, nºs 2, 3 e 4 do Código de Processo civil.
49-Pelo que a decisão Recorrida deverá ser declarada nula ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d) e pelo consequente reenvio dos autos à 1ª instância para que se produza a prova testemunhal requerida, ou se assim não se entender deverá ser REVOGADA e substituída por outra que mantém o procedimento de exoneração do passivo restante da aqui Recorrente.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência ser a decisão recorrida declarada nula ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, aI. d) do c.P.c. e com todas as consequências legais; ou se assim não se entender deverá ser REVOGADA e substituída por outra que mantém o procedimento de exoneração do passivo restante da aqui Recorrente…”
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Dos autos não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:
- a de saber se a decisão é nula;
- se apresenta utilidade a apreciação do recurso da matéria de facto;
- se deve ser revogada a decisão recorrida, que recusou a exoneração do passivo restante à recorrente.
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:
- Por sentença datada de 28.06.2012, a fls. 93ss, foi declarada a insolvência de M, na sequência da apresentação à insolvência efectuada pela devedora;
- Por despacho datado de 10.09.2012, a fls. 164ss, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência a insolvente deveria ceder mensalmente ao fiduciário a quantia que excedesse o salário mínimo nacional, nomeadamente quaisquer subsídios de férias e de natal que viesse a auferir;
- Durante o 1.º ano a insolvente apenas efectuou duas cessões, uma de € 300 em 26.06.2013 e outra de € 144,44 em 16.08.2013 (dr. fls. 193);
- Durante o 2.º ano a insolvente apenas efectuou duas cessões, uma de € 600 em 21.11.2013 e outra de €125 em 21.07.2014 (dr. fls. 248);
- Durante o 3.º ano a insolvente não efectuou qualquer cessão (dr. fls. 247 e 248);
- Notificada a insolvente para remeter ao Exmo. Sr. Fiduciário a sua declaração de rendimentos reportada ao ano de 2014 a mesma não o fez nem deu qualquer explicação para essa omissão (dr. fls. 247);
- Entre Outubro de 2012 (inclusive) e Setembro de 2015 (inclusive) foram processados e pagos os seguintes valores líquidos à insolvente a título de pensão de sobrevivência e de pensão de velhice (dr. fls. 238 e 256/257):
Ano de 2012:
Outubro (327,42) (303,23) (630,65);
Novembro (227,42) (303,23) (630,65);
Dezembro (454,84) (606,46) (1.061,30);
Ano de 2013:
Janeiro (227,42 (303,23 (530,65
Fevereiro (263,84 (351,79 (615,63
Março (245,63 (327,51 (573,14
Abril (245,63 (327,51 (573,14
Maio (245,63 (327,51 (573,14
Junho (245,63 (327,51 (573,14
Julho (472,36 (629,83 (1.102,19
Agosto (245,63 (327,51 (573,14
Setembro (245,63 (327,51 (573,14
Outubro (345,63 (327,51 (573,14
Novembro (245,63 (327,51 (573,14
Dezembro (245,63 (327,51 (573,14
Ano de 2014:
Janeiro (227,42 (327,51 (554,93
Fevereiro (227,42 (327,51 (554,93
Março (227,42 (327,51 (554,93
Abril (227,42 (327,51 (554,93
Maio (227,42 (327,51 (554,93
Junho (227,42 (629,83 (857,25
Julho (227,42 (327,51 (554,93
Agosto (227,42 (327,51 (554,93
Setembro (227,42 (327,51 (554,93
Outubro (227,42 (327,95 (555,37
Novembro (227,42 (327,95 (555,37
Dezembro (227,42 (327,95 (555,37
Ano de 2015:
Janeiro (227,42 (327,95 (555,37
Fevereiro (227,42 (327,95 (555,37
Março (227,42 (327,95 (555,37
Abril (227,42 (327,95 (555,37
Maio (227,42 (327,95 (555,37
Junho (227,42 (630,66 (858,08
Julho (227,42 (327,95 (555,37
Agosto (227,42 (327,95 (555,37
Setembro (227,42 (327,95 (555,37
- Em Julho de 2015 a insolvente recebeu o reembolso do IRS reportado ao ano de 2014 no valor de f,29,77 (dr. fls. 262 e 264);
- A filha da insolvente, Z, foi declarada insolvente no âmbito do processo que sob o n.º 916/12.1TBGMR que corre termos por este juízo, por sentença datada de 07.03.2012, na sequência da apresentação à insolvência efectuada pela ali devedora em 02.03.2012 (dr. certidão a fls. 31755);
- A filha da insolvente, Z, encontra-se registada junto do ISS desde pelo menos 2015 como residindo na Travessa do Paço, …, lote …, …, Creixomil, Guimarães (dr. certidão a fls. 31755);
- A filha da insolvente auferiu subsídio de desemprego até 11.11.2013 (dr. certidão a fls. 31755);
- A filha da insolvente trabalhou para a Irmandade de N. Sra. Da Consolação e dos Santos Passos nos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2015, tendo auferido, nesses meses, respectivamente, as quantias líquidas de € 148,23, € 457,51 e € 221,16.
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E foram dados como não provados os seguintes:
- Que a filha da insolvente Z resida consigo;
- Que a filha da insolvente tenha um gasto médio mensal de € 40 com medicamentos;
- Que seja a insolvente quem suporta essas despesas.
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Da nulidade da decisão recorrida:
Considera a recorrente nula a decisão recorrida porquanto a mesma não atendeu, segundo afirma, à prova testemunhal por si indicada, tendo proferido decisão sem atender àquela prova. Entre outros preceitos, indica o artº 615°, nº1, d) do CPC, como um dos preceitos violados.
Ora, como é bom de ver, não estamos perante uma nulidade da decisão.
A nulidade da decisão apenas pode ocorrer quando se verifique algum dos vícios formais taxativamente elencados no artº 615º do CPC e o vício apontado á decisão recorrida não se enquadra em nenhuma das situações ali previstas – nem sequer no referente á omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar), como pretende a recorrente.
Poderia tratar-se, a nosso ver, de uma nulidade processual – traduzida numa irregularidade praticada pelo tribunal recorrido, com influência no exame e/ou na decisão da causa – nulidade processual prevista no artº 195º nº 1 do CPC, a demandar a sua arguição, primeiramente, perante o tribunal que a terá proferido – tempestivamente - e só após, do despacho que a tivesse apreciado poderia ser interposto recurso para este tribunal.
As nulidades processuais “são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso - uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Procº Civil 1956, pag. 156).
Das nulidades do processo, umas são principais ou típicas ou nominadas; outras são secundárias, atípicas ou inominadas.
Estas últimas, consistentes na prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produzem, porém, nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (artº 195º do C.P.C.).
Estaria nesta segunda categoria de nulidades a invocada pela recorrente.
Acontece, porém, que a forma de reagir contra essa alegada nulidade é a reclamação para o tribunal que a praticou.
Isto significa que a irregularidade ora invocada pela apelante tinha de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância onde a mesma terá sido (alegadamente) praticada, no prazo - regra de 10 dias (artº 149º do CPC), a contar do seu conhecimento ou da respectiva presunção de conhecimento.
E só depois desse tribunal se pronunciar sobre a pertinente arguição da nulidade poderia a parte interessada, sendo-lhe desfavorável a decisão, interpor recurso da mesma para que este tribunal de 2ª instância.
Mesmo que só tenha tido dela conhecimento após a decisão proferida (como parece resultar das alegações da recorrente), continua a valer a regra geral de julgamento da nulidade pelo tribunal perante o qual a nulidade ocorreu ou a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade foi cometida (Alberto dos Reis, ob. cit., pp. 513-514).
Sempre será de referir ainda que a invocação da nulidade processual neste tribunal, pela 1ª vez, constituiria questão nova, o que nunca seria admissível, pois como é sabido, não é, em regra, admissível a suscitação de questões novas em sede de recurso, na medida em que “aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la”, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 5).
Conclui-se assim do exposto que a questão em apreço (da alegada nulidade processual praticada pelo tribunal da 1ª Instância) que só foi trazida aos autos nas alegações de recurso, sem que a mesma tenha sido suscitada no tribunal a quo, encontra-se necessariamente fora do âmbito do presente recurso, não podendo, por isso, ser aqui apreciada.
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Da impugnação da matéria de facto:
Insurge-se a recorrente contra a decisão da matéria de facto, alegando que a matéria de facto dada como não provada deveria ser dada como provada e que deveria ser dada como provada matéria de facto por si alegada e provada na sua resposta de fls. 282.
Começamos por referir que, conforme temos vindo a defender – e cremos ser essa a posição dominante, quer na doutrina, quer na jurisprudência -, apenas deverá ser considerada na impugnação da matéria de facto aquela que tenha alguma relevância para a decisão da causa; não aquela matéria, ainda que provada, que seja de todo incapaz de alcançar a pretensão jurídica almejada pelo recorrente. Isto porque a apreciação de tal matéria de facto por este tribunal redundaria numa actividade judicial despicienda e de todo irrelevante, levando à prática de atos inúteis, proibidos por lei (artº 130º do CPC).
Ou seja, em obediência ao princípio da limitação dos actos, e porque não é lícito realizarem-se no processo actos inúteis (artº 130º do CPC), também em sede de impugnação da decisão da matéria de facto hão-de os concretos pontos de facto impugnados poderem - segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito suscitadas - contribuir para a boa decisão da causa.
Ou seja, a solicitada modificação há-de minimamente relevar para a pretendida alteração do julgado.
Não se antevendo tal alteração, não haverá necessidade de proceder a uma actividade desnecessária, e, consequentemente, apreciar a matéria de facto impugnada - mesmo que ao tribunal de recurso incumba apreciar todas as questões que lhe sejam colocadas pelos recorrentes (artº 608º,nº2 e 663º,nº2, ambos do CPC).
Em suma, as questões fáticas suscitadas devem estar numa relação directa com aquilo que se pretende obter com o provimento do recurso; tudo o que seja espúrio e desnecessário ao efeito pretendido não pode, nem deve, ser apreciado (cfr. neste sentido Ac. RL, de 14/3/2013 e Acs RP de 17/3/2014 e de 19/5/2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt.).
À luz da posição defendida, a verdade é que, no tocante aos pontos de facto ora em sindicância não se descortina que as alterações preconizadas pela recorrente tenham qualquer relevância para o desfecho da acção, sendo as mesmas de todo irrelevantes para a pretendida modificação do julgado.
Pegando na matéria de facto dada como não provada - “Que a filha da Insolvente Z reside consigo; e “que a filha da insolvente tenha um gasto médio mensal de € 40,00€ com medicamentos" – não se vê como a prova desses factos possa levar a revogar a decisão recorrida.
Aliás, a ser verdade o alegado pela recorrente, de que a sua filha vive consigo desde 2009 – e considerando esse facto relevante em sede de rendimento disponível -, sendo o despacho liminar datado de Fevereiro de 2012, esse facto foi já considerado (se alegado, como deveria) aquando do despacho liminar.
Sempre se dirá ainda que sendo a filha da recorrente adulta já nessa altura (actualmente insolvente), o viver com a mãe, só por si, não tem qualquer consequência a nível sócio - económico, nomeadamente em termos de alterar o seu rendimento disponível e a obrigação de entregar ao fiduciário a quantia que lhe foi determinada pelo tribunal.
E o mesmo se passa com a despesa tida por aquela com os medicamentos, pois não se retira do facto em questão qualquer consequência relevante, desconhecendo-se sobre quem recai o pagamento desses mesmos medicamentos.
Assim sendo, por absolutamente irrelevantes para a decisão da causa, não merecem esses factos ser objecto de apreciação por este tribunal.
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E o mesmo se passa quanto aos factos alegados pela recorrente na sua resposta de fls. 282 e ss.
Relativamente ao facto alegado de - a filha Z padecer de uma doença do foro psiquiátrico apresentando uma sintomatologia compatível com provável perturbação estado-limite da personalidade (DSM-IV-TR) - este facto apresenta-se de todo irrelevante para a decisão da causa.
O mesmo se passando com o facto de - no ano de 2014 a filha Z não ter tido qualquer tipo de rendimento -, pois mesmo que desse facto se pudesse retirar – que não pode – que era a recorrente que sustentava a filha, tal só justificaria a sua falta a partir do ano de 2014 e não nos anos anteriores de incumprimento, ou seja, nos anos de 2012 e 2013.
Igualmente os factos alegados que - a recorrente tem 70 anos; tem doenças crónicas; e em 2015 teve despesas médicas e medicamentosas no montante de 398,58 € - não se antolham relevantes para alterar a decisão da causa, nomeadamente este último facto – que poderia assumir alguma relevância para aferir das dificuldades económicas da recorrente - dado o período considerado, muito posterior àquele em que a recorrente entrou em incumprimento das suas obrigações.
E o mesmo se passa como os demais factos alegados de que - A Insolvente entregou ao Sr. Fiduciário duas quantias de 30,00€, uma em 30.06.2016 e outra em 26.07.2016 - dado o período em causa, muito posterior ao período considerado na decisão recorrida como sendo aquele em que a recorrente deveria ter entregue as quantias em causa ao fiduciário.
Assim sendo, por se mostrarem de todo irrelevantes para a alteração da decisão proferida, não se toma conhecimento dos factos impugnados pela recorrente, pelo que há-de ser perante a matéria de facto dada como provada que se apreciará a última questão colocada no recurso.
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Da exoneração do passivo restante:
Entende a recorrente que mesmo que se considere que a matéria de facto dado como provada não merece reparo, ainda assim não foi feita uma correta interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto.
Diz que só os factos dados como assentes na decisão recorrida são suficientes para afastar a conclusão de que a recorrente atuou com negligência grave e que a única credora do processo viu prejudicado de forma relevante a satisfação do seu crédito e que por esse motivo não podia ser recusada a exoneração do passivo restante.
Mas sem razão, como é bom de ver.
Como bem se refere na decisão recorrida, a exoneração do passivo restante encontra-se especialmente prevista para os insolventes/pessoas singulares e vem regulada nos arts. 235 e ss.º do CIRE, importando a efectiva concessão da exoneração do passivo restante a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que ela é concedida (art. 245.º/1 do CIRE), mesmo que não reclamados e/ou verificados, com excepção dos previstos no art. 245.º/2 do CIRE.
A exoneração do passivo restante proporciona, assim, ao insolvente, findo o período de cessão, um "fresh start", uma possibilidade de recomeçar a sua vida do ponto de vista económico-financeiro, liberto de todas as suas dívidas.
Contudo, pelas consequências que da exoneração do passivo restante advêm para os credores - não incluídos no art. 245.º/2 do CIRE -, o legislador sujeitou a possibilidade da sua concessão à observância de determinadas condições, previstas nos artºs 238º e 239º do CIRE, entre elas a de durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o devedor entregar ao fiduciário o rendimento disponível, fixado judicialmente, integrando o conceito de "rendimento disponível" todos os rendimentos referidos no art. 239.º/3 CIRE.
Conclui-se assim que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão) é exigido ao insolvente um esforço económico-financeiro elevado, para que os seus credores sejam satisfeitos na maior medida possível (até porque nas mais das vezes a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante é efectuada contra vontade expressa dos credores), já que, findo esse período, os créditos que não tiverem logrado pagamento ficarão por liquidar.
Uma das sanções legalmente previstas para o incumprimento das obrigações impostas ao devedor é a prevista no artº 243.º do CIRE – a cessação antecipada do procedimento de exoneração – medida da qual lançou mão a credora da insolvente, no caso em análise.
Prevê-se efectivamente no nº 1 daquele artº que “Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando (…) a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência…”
Resulta assim do preceito em análise que antes de terminado o período de cessão, o juiz deve recusar a exoneração (a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do Al ou do fiduciário) quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo art. 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Ora, uma das obrigações previstas no referido art. 239.º do CIRE é precisamente a de entrega ao fiduciário, por parte do devedor, da parte dos rendimentos objecto de cessão, por si recebida (art. 239.º/4/al. c) do CIRE).
É certo que se exige que essa falta ocorra ou com dolo ou com negligência grave, culpa que a recorrente refuta, aduzindo, na reposta que apresentou em tribunal, várias circunstâncias para justificar o seu comportamento.
Começamos por dizer que a culpa é a imputação subjectiva de determinado comportamento ao agente, em termos de o responsabilizar/censurar pelos atos praticados, podendo a culpa ser ainda qualificada em termos de graduação ou intensidade.
A doutrina costuma distinguir, dentro da culpa stritu sensu, três graus de culpa: a culpa grave, que equivale à negligência grosseira, que só uma pessoa excecionalmente descuidada comete; a culpa leve, considerada a negligência em que um bom pai de família não incorreria; e a culpa levíssima, a negligência que a generalidade das pessoas cometeria e que só alguém excecionalmente cauteloso evitaria.
Correspondendo a negligência grosseira à culpa grave, para que a mesma se verifique é necessário que a conduta do agente se mostre altamente reprovável à luz do mais elementar senso comum. A culpa grave diz respeito a um grau de diligência em que foram ignorados todos os padrões ou todos os devidos deveres de cuidado, correspondendo a uma negligência grosseira, por manifesto desleixo do agente.
Ora, embora nenhuma das qualificações mencionadas venha prevista na norma em análise, estamos em crer que ao qualificar a negligência de grave, o legislador se quer referir à culpa grave, e está a afastar implicitamente a simples imprudência, irreflexão, o impulso leviano, pretendendo referir-se à conduta do agente que se mostre altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum. A culpa grave, como se disse, diz respeito a um grau de diligência em que foram ignorados todos os padrões, todos os devidos deveres de cuidado, correspondendo a uma negligência grosseira, por manifesto desleixo do agente.
Ora, perante a matéria de facto provada, é dessa negligência grave que se trata, quando apreciamos a conduta da recorrente.
Efetivamente, temos como provado que, considerando todo o condicionalismo subjacente à condição sócio-económica da insolvente, por despacho transitado em julgado, foi-lhe fixado o rendimento disponível em montante que excedesse o salário mínimo mensal, o qual, à data em que se iniciou o período de cessão – 19.2.2012 - era de € 485,00 mensais (DL 143/2010, de 31.12), valor que se manteve até 30.09.2014, data em que foi publicado o DL 144/2014, que actualizou o salário mínimo nacional para € 505 mensais, valor que se manteve até 31.12.2015.
Ora, como resulta dos factos provados, desde o início do período de cessão que a insolvente tem rendimentos mensais que variaram entre os € 554,93 e os € 1.102,19, sempre superiores ao valor do SMN.
Assim, durante o primeiro ano de cessão (compreendido entre Outubro de 2012 e Setembro de 2013) a insolvente deveria ter entregue ao Sr. Fiduciário um total de € 2.189,91 (€ 8.009,91- € 5. 820,00).
Contudo, e como resultou provado, apenas fez a entrega de € 444,44, sem que tenha justificado a não entrega das demais quantias.
Já no que respeita ao 2.º ano de cessão (compreendido entre Outubro de 2013 e Setembro de 2014) as cessões deveriam ter ascendido a € 1.196,11 (€ 7.016,11 - € 5.820), mas o certo é que se ficaram pelos € 725.
Relativamente ao 3.º ano de cessão (compreendido entre Outubro de 2014 e Setembro de 2015), a insolvente deveria ter cedido € 936,92 (€ 6.967,15 - € 6.060 + € 29,77) e não o fez.
Ou seja, durante os três primeiros anos do período de cessão a insolvente deveria ter entregue ao Exmo. Sr. Fiduciário € 4.322,94 e apenas entregou um total de € 1.169,44
A justificação apresentada pela insolvente foi a de ter despesas acrescidas com a filha que a impediram de, a partir de 2014, proceder a quaisquer entregas ao Exmo. Sr. Fiduciário; o certo é que, como já acima se referiu, por justificar fica a omissão durante o 1.º ano de cessão e parte do 2º (2012 e 2013).
Mas, como bem se refere na decisão recorrida, ainda que tivesse demonstrado que efectivamente tinha suportado as despesas de farmácia da filha Z, o certo é que a grandeza dessas despesas não é de molde a justificar a omissão verificada nesse ano: a insolvente auferiu sempre rendimentos superiores ao salário mínimo nacional e o seu agregado familiar seria composto somente por duas pessoas, sendo certo que agregados familiares existem no país de dimensão superior e que sobrevivem com rendimentos inferiores.
Aliás, quando notificada do teor do requerimento apresentado pela C em 2016 a insolvente apressou-se a efectuar dois (pequenos) depósitos, curiosamente do montante mensal que segundo o requerimento que apresentou conseguirá suportar. Sendo assim, não se compreende que não tenha efectuado sempre esse pequeno depósito mensal, ao invés de permanecer meses a fio sem efectivar qualquer entrega.
Tal exposição dos factos permite-nos concluir que se a insolvente não cumpriu integralmente a sua obrigação de entrega ao Fiduciário de todos os valores por si recepcionados que ultrapassassem o salário mínimo nacional foi opção sua, pois que teria condições económicas para o efeito.
E deixou de o fazer sem razão justificativa, bem sabendo que era seu dever o de contribuir, com pouco que fosse, para satisfazer, ainda que parcialmente, os credores, durante o período que lhe foi imposto. Por isso se diz que a conduta da recorrente se mostra altamente reprovável, à luz do mais elementar dever ser jurídico, tendo a mesma ignorado, com desleixo, os deveres de cuidado que lhe eram impostos e que ela bem conhecia.
Daqui resulta a existência de negligência grave na violação dessa obrigação de entrega.
Acresce que a não entrega ao Fiduciário das quantias devidas, por parte da recorrente, impossibilitou aquele de dar cumprimento ao disposto no art. 241.º/1 CIRE, mormente de distribuir pelo credor reconhecido os valores que lhe deveriam ter sido entregues, com evidente prejuizo para este, que nem sequer parcialmente viu satisfeito o seu crédito (algo que estaria subjacente à exoneração do passivo restante).
Mostra-se assim verificado o segundo pressuposto da recusa antecipada da exoneração, prevista no artº 243º do CIRE (e não no artº 246º, como invoca a recorrente): que a conduta da insolvente tenha prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Consequentemente, ao abrigo do disposto no art. 243.º/1/al.a) CIRE, foi bem recusada a exoneração do passivo restante requerida pela insolvente.
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Sumário do acórdão:
Deve ser recusada a exoneração do passivo restante a uma insolvente que não cumpriu, de forma intencional – com negligência grave – a sua obrigação, de entrega ao fiduciário do rendimento disponível que lhe foi determinado pelo tribunal aquando do despacho liminar, impedindo, dessa forma o ressarcimento da credora da insolvente.
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DECISÃO:
Pelo exposto Julga-se improcedente a Apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) pela recorrente.
Notifique
Guimarães, 4-4-2017.
Maria Amália Pereira dos Santos
Ana Cristina Duarte (que acompanha a declaração de voto)
João Diogo Rodrigues (com declaração de voto)

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Voto a decisão, mas não a fundamentação na parte em que se refere que a alegada nulidade decorrente da falta de produção da prova testemunhal, não pode ser conhecida em sede de recurso.
Embora não se trate de uma nulidade da sentença, mas processual, entendo que a mesma, por ser implícita, podia ser conhecida em sede de recurso. Só que, neste caso concreto, não a julgaria verificada, por ser irrelevante a factualidade sobre a qual incidiria aquela atividade instrutória.
João Diogo Rodrigues (2º Adjunto)