Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1443/14.8TJVNF.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A eficácia retroactiva da lei processual é admitida desde que não viole a Constituição da República Portuguesa.

II- A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6º, nº3 da Lei nº41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, é inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.

III- Assim, se à data em que tais documentos particulares foram constituídos os mesmos eram dotados de exequibilidade, sendo de esperar alguma constância no ordenamento no âmbito da segurança jurídica constitucionalmente consagrada, a alteração da ordem jurídica não era algo com que se pudesse contar, e daí decore que os titulares de documentos particulares constituídos antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, que tinham a característica da exequibilidade conferida pela alínea c) do nº1 do artigo 46º do velho código, tivessem uma legítima expectativa da manutenção da anterior tutela conferida pelo direito.

IV- Por conseguinte, a aplicação retroactiva do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, a títulos anteriormente tutelados com a característica da exequibilidade, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Nos presentes autos de execução ordinária, em que é Exequente S … Unipessoal, Ldª. e executada J. Rodrigues, veio a exequente intentar a presente execução dando à execução o documento junto a fls. 5 e segts., denominado “ ACORDO DE PAGAMENTOS”.

Por decisão proferida nos autos foi liminarmente indeferido o requerimento executivo, por falta de título executivo, ao abrigo do disposto no art. 726º, nº 2, al. a), do C.P.Civil.

Inconformados com esta decisão, dela interpôs recurso a Exequente, sendo que, das respectivas alegações desses recursos extraiu, em suma, as seguintes conclusões:

a) É fundamento específico da recorribilidade a interpretação da norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013, no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil, porque manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
b) Não se conformando com a douta sentença que determinou o indeferimento liminar da presente execução por inexistência de título executivo, vem a Apelante interpor o presente recurso, atenta errada interpretação e aplicação do art. 703º do novo CPC;
c) A Apelante e a Apelada outorgaram, em 16 de Março de 2012, um acordo de pagamentos, para regularizar uma dívida de € 95.203,34 que a segunda tinha perante a primeira, tendo a assinatura da Apelada sido reconhecida;
d) As partes expressamente manifestaram, nesse documento, a vontade e intenção de lhe conferir força executiva, conforme resulta do teor do n.º 3 da Cláusula 2ª “O presente Acordo reveste carácter de documento de reconhecimento de dívida pecuniária, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 46º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.” – cfr. doc. 1 junto com o Requerimento Executivo;
e) Isto é, à data da outorga desse acordo, e conforme a intenção e vontade das partes, o mesmo, em caso de incumprimento, era título executivo, estando preenchidos todos os requisitos exigidos pela lei à data para esse efeito, maxime, pela al. c), do n.º 1 do art. 46º do CPC de 1961;
f) Estavam por isso as expectativas legitimamente criadas pelas partes devidamente acauteladas e protegidas pela lei, uma vez que o acordo de pagamentos estava incluído no elenco dos títulos executivos presentes no art. 46º CPC de 1961, constituindo assim título executivo na categoria dos documentos particulares, reunindo todos os requisitos legais ali exigidos;
g) Contudo, após a entrada em vigor do novo CPC, foram abolidos do elenco de títulos executivos os documentos particulares, motivo pelo qual, no entendimento, incorrecto, adiante-se, do Tribunal a quo indeferiu a pretensão da Apelante;
h) Nessa sequência cumpre analisar a efectiva aplicabilidade do novo CPC a esta questão, nomeadamente aos títulos executivos devidamente constituídos como documentos particulares no âmbito de legislação anterior nos quais as partes depositaram a sua convicção de exequibilidade de uma pretensão;
i) Estará em causa, nesta sede, considerar se a expectativa que os credores formaram de que estariam devidamente munidos de instrumento que, em caso de incumprimento, os permitiria ver o seu crédito garantido, é legal e suficientemente protegida;
j) Por um lado, parece que tanto o novo CPC como a lei que o aprova pretenderam que a nova lei fosse imediata e retroactivamente aplicável a todos os documentos particulares, mesmo aqueles constituídos antes da sua entrada em vigor;
k) Por outro lado, no entanto, entendemos que tal aplicação da lei nova não poderá ser aceite pois fere injustificadamente as legítimas expectativas criadas aquando da elaboração do documento que formaliza a vontade das partes, ao qual se pretendeu conferir força executória em obediência à lei então em vigor;
l) Com efeito, a retroactividade da lei encontra-se limitada pelos princípios da Segurança Jurídica e o princípio da Confiança do Cidadão, partes integrantes do princípio de Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2º da Constituição da Republica Portuguesa que refere: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.”;
m) Poderá o legislador atribuir eficácia retroactiva a uma lei, em protecção de um interesse comum alegadamente superior;
n) No entanto, não poderá fazê-lo em desconsideração de um qualquer regime jurídico em que o individuo depositou a sua confiança e agiu na expectativa da sua manutenção, sem que essa aplicação retroactiva constitua uma inconstitucionalidade, maxime, em violação do princípio de Estado de Direito Democrático;
o) Não poderá ser exigível a um indivíduo que prescinda, sem mais, dos direitos que anteriormente lhe eram conferidos, e com base nos quais celebrou negócios jurídicos estando convicto de que a sua posição jurídica estaria protegida pela lei;
p) Mas foi, no fundo, esse o entendimento do legislador na determinação da retroactividade da aplicação da lei nova a todos os títulos executivos, determinando a inutilidade dos documentos particulares que servem de base a execuções intentadas depois da entrada em vigor da nova lei, ainda que devidamente constituídos ao abrigo da lei vigente no momento da sua constituição;
q) Com efeito, essa exigência seria contrária à Lei Fundamental, não podendo ser aceite pela ora Apelante, na medida em que o sacrifício que lhe é exigido pelo indeferimento liminar determinado pelo Tribunal a quo é incompatível com o seu direito enquanto credora em executar o seu crédito perante a Apelada, mas também com as suas legítimas expectativas e com a certeza e segurança jurídicas essenciais e fundamentais a um Estado de Direito Democrático;
r) Acontece que, à data da celebração do contrato entre as partes, em 2012, foram cumpridos todos os requisitos exigidos pela lei vigente;
s) Não sendo possível, nem possivelmente exigível, que se previsse esta abolição dos documentos particulares do elenco de títulos executivos, ficando assim, de forma completamente arbitrária, lesado o direito adquirido pela Apelante há cerca de um ano;
t) Sendo cabalmente ignoradas, pela aplicação retroactiva da lei, as legítimas expectativas de ambas as partes, principalmente as da Apelante, que assim vê frustrada a sua intenção de recurso à acção executiva por uma interpretação inconstitucional do art. 703º do novo CPC conjugado com o n.º 3 do art. 6º da Lei 41/2013, de 26 de Junho, que pura e simplesmente eliminou imediata e retroactivamente os documentos particulares do elenco de títulos executivos;
u) Nesta sede e adoptando esta posição importa chamar à colação recente Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 27-02-2014, proferido no âmbito do processo n.º 374/13.3TUEVR.E1, que, no seu sumário, dispõe que “(…) A norma que elimina os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos (artigo 703º do novo CPC), quando conjugada com o artigo 6º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013, e interpretada no sentido de se aplicar a documentos particulares dotados anteriormente da característica da exequibilidade, conferida pela alínea c) do n.º 1 do artigo 46º do anterior Código de Processo Civil é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e protecção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático. (…)” (Sublinhado nosso);
v) No mesmo sentido também já se pronunciou o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão datado de 26-03-2014, proferido no processo n.º 766/13.8TTALM.L1-4, concluindo que “(…) A interpretação das normas do art. 703º do novo CPC e 6º, n.º 3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46º, n.º 1, al. c) do CPC de 1961, é inconstitucional por violação do principio da segurança e protecção da confiança.(…)” (Sublinhado nosso);
w) Pelo exposto, resulta evidente o entendimento jurisprudencial no sentido de que a abolição dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não poderá ser feita contrariamente à Constituição da República Portuguesa em desconsideração dos princípios fundamentais nela consagrados;
x) Pelo que, sendo o acordo de pagamentos, datado de 16 de Março de 2012, ter-se-á de considerar os direitos adquiridos pelas partes desde a emissão desse documento, independentemente da entrada em vigor do novo CPC, que veio abolir os documentos particulares assinados pelo devedor do elenco de títulos executivos;
y) Donde se alcança que se encontram reunidos todos os requisitos para que a presente execução prossiga os seus termos com base no documento particular emitido em data anterior à entrada em vigor do novo CPC, devendo ser considerada inconstitucional a interpretação do art. 703º do novo CPC conjugada com o art. 6º, n.º 3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido de aquele artigo se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à entrada em vigor do novo CPC, que desde já se alega.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, a questão decidenda é, no caso, a seguinte:
- Analisar se contrariamente ao que foi entendido pelo tribunal recorrido, a exequibilidade do documento particular oferecido pela Exequente deve ser aferida à luz do artigo 46º, nº1, alínea c), do CPC anterior, e não dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de Julho, por a sua aplicação imediata afectar o princípio constitucional da protecção da confiança.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.
Fundamentação de facto.

Além dos factos que constam do relatório que antecede, e com relevância para a decisão do recurso, consta da fundamentação de direito da decisão recorrida o que a seguir se transcreve:
(…)
Cumpre apreciar e decidir:
Atento o teor do art. 703º, nº 1, do C.P.Civil, mormente na sua al. b), urge apreciar se o contrato dado à execução reveste força executiva face ao elenco legal dos títulos executivos previsto nesse normativo.
Nesta sede, cumpre, desde logo, atentar na EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA REFORMA que consta da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, onde, a dado passo, no que tange aos títulos executivos, é exposto o seguinte:
“(…) Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respectivo credor poder aceder logo à via executiva…”.
Foi, pois, clara e expressa opção do legislador banir dos títulos executivos os documentos particulares, excepto os títulos de crédito (livranças, letras e cheques), mesmo quando prescritos, desde que alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.
Esta opção do legislador teve nítida tradução na letra do actual art. 703º, nº 1, als. a) a d), do C.P.Civil.
Assim, da alínea c) desse normativo resulta a previsão de apenas os títulos de crédito serem títulos executivos. Ou seja, são os únicos documentos particulares a quem o legislador concedeu a força executiva. Excepto ainda os previstos na alínea d) do mesmo preceito processual que também admite a natureza de título executivo aos «documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva».
Isto é, ainda se admitem outros documentos particulares, para além, dos títulos de crédito, como títulos de créditos mas apenas a que lei especial confira essa executoriedade. São exemplos, entre outros, dessa situação: acta da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio nos termos previstos no art. 6º do D.L. nº 268/94, de 25 de Outubro; o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida – na execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário de harmonia com o art. 14-A do NRAU; os recibos das quotas em dívida relativas ao período de um ano ou aos débitos regularmente vencidos há mais de seis meses ao abrigo do disposto no art. 96º, nº 2, do Estatuto da Ordem dos Médicos.
No entanto, conforme decorre da letra do citado art. 703º, nº 1, al. d), do C.P.Civil, nestes casos a executoriedade é expressamente prevista na lei especial em causa.

Pelo que, contrariamente ao defendido pela exequente nos autos, o documento dado à execução configura um mero documento particular pelo que não tem a natureza de título executivo dado não se enquadrar na previsão contida nas als. b) ou d) do nº 1 do art. 703º, do C.P.Civil. Note-se ainda que a presente execução deu entrada em juízo a 19-12-2013, isto é, após a entrada em vigor do C.P.Civil introduzido pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.

A exequente terá que lançar mão da acção declarativa para obter o pertinente título executivo – sentença judicial – ou da injunção, sendo certo que nesses campos beneficia da dispensa da prova ao abrigo do disposto no art. 458º, do C. Civil – beneficia do reconhecimento da dívida feito no contrato dado à execução pelo aqui embargante e demais outorgantes.

Por outro lado, o documento dado à execução apenas contém o reconhecimento de Advogada da assinatura aí efectuada pela aqui executada (vide fls. 18).

Contudo, essa circunstância não faz com que esse documento seja autenticado, por forma a poder ser subsumido na al. b) do nº 1 do citado art. 703º.

Este preceito exige mais. Na verdade, para ser enquadrado na sua previsão normativa, teremos que estar perante um verdadeiro documento autenticado.
O disposto no art. 703º, nº 1, al. b), do C.P.Civil, exige que se esteja perante um documento autenticado e não por um documento particular cujas assinaturas estejam devidamente reconhecidas por entidade com competência legal para o efeito.
Esse normativo dispõe que podem servir de base à execução:
“ Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”.
Mas para se tratar de documento autenticado têm que se mostrar cumpridos os requisitos previstos no art. 363º, nº 3, do C.Civil, ou seja, o documento particular para ser autenticado tem que ser confirmado pelas partes outorgantes perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais (o mesmo vale perante advogado nos termos legalmente previstos).
Não basta, pois, que as assinaturas que constam do documento particular se mostrem certificadas pela entidade competente para o efeito para o mesmo se transformar em documento autenticado.
Como é sabido, em conformidade com o estatuído no artigo 10º, nº 5, do Código de Processo Civil, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
Em termos gerais, impõe-se desde logo salientar que o elenco dos títulos executivos previstos no citado art. 703º obedece ao princípio da tipicidade, não sendo permitida a criação de outros para além dos ali previstos, razão por que será irrelevante que as partes, em qualquer contrato, tenham convencionado que determinado documento tem natureza executiva ou que pretendem conferir-lhe força executiva.
Para que o documento dado á execução adquirisse força executiva, como vimos, seria necessário que o mesmo tivesse sido autenticado, não bastando o mero reconhecimento das assinaturas (vide o acima citado art. 363º, do C. Civil).
Na parte que agora interessa considerar, resulta do disposto no artigo 38º, nº 1, do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março que as Câmaras de Comércio e Indústria reconhecidas nos termos do Decreto-Lei nº 244/92, de 29 de Dezembro, os conservadores, os oficiais de registo os advogados e os solicitadores dispõem de competência para fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial, conferindo a esses documentos a mesma força probatória que teriam se tais actos tivessem sido realizados com intervenção notarial.
E assim sendo, deverá concluir-se que estas entidades também têm competência para autenticar documentos para efeito do disposto no artigo 363º, nº 3, do Código Civil, devendo este considerar-se tacitamente alterado nessa parte.
De qualquer modo, impõe-se sublinhar que o documento particular apenas poderá ser considerado autenticado se o seu teor tiver sido confirmado pelas partes perante o certificante (o notário, a câmara de comércio e indústria, o conservador, o oficial de registo, o advogado ou o solicitador), nos termos prescritos nas leis notariais; circunstância que terá de constar da respectiva autenticação, não bastando apenas o facto de os mesmos procederem ao reconhecimento das assinaturas.
De facto, em face do que resulta do disposto no artigo 35º, nº 1, do Código do Notariado, os documentos lavrados pelo notário, ou em que ele intervém, podem ser autênticos, autenticados ou ter apenas o reconhecimento notarial, esclarecendo-se nos seus nºs 2 a 4 que são autênticos os documentos exarados pelo notário nos respectivos livros, ou em instrumentos avulsos, e os certificados, certidões e outros documentos análogos por ele expedidos. (…) São autenticados os documentos particulares confirmados pelas partes perante notário (…) Têm reconhecimento notarial os documentos particulares cuja letra e assinatura, ou só assinatura, se mostrem reconhecidas por notário, resultando ainda do seu artigo 36º, nº 4 que os termos de autenticação e os reconhecimentos são lavrados no próprio documento a que respeitam ou em folha anexa.
Analisado o documento apresentado à execução constata-se que no mesmo apenas foi expressa a menção relativa ao reconhecimento da assinatura da executada (cfr. fls.18), nada se dizendo quanto à confirmação do seu teor por parte dos subscritores perante a entidade certificante, pelo que o mesmo não reúne os requisitos legais para que possa ser considerado autenticado e, por essa razão, não dispõe de força executiva.

Chegados aqui, urge apenas apreciar a “eventual” inconstitucionalidade na interpretação do citado art. 703º, do C.P.Civil ao não admitir a força executiva aos documentos particulares exarados em data anterior à data da entrada em vigor do actual C.P.Civil, ou seja, 1 de Setembro de 2013.
A eliminação do elenco dos títulos executivos dos documentos particulares, excepto os títulos de crédito (atenta a segurança de que os mesmos já beneficiam no comércio jurídico) e aqueles em que haja lei especial a atribuir força executiva, foi uma opção clara e assumida pelo legislador.
Ademais, conforme o próprio legislador (que temos sempre que assumir, em sede interpretativa, que conseguiu encontrar as soluções mais acertadas tal como nos ensina o art. 9º, nº 3, do C. Civil) assumiu na Exposição de Motivos da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, os credores não ficam desprotegidos de tutela judicial, devendo optar pela via da injunção ou mesmo da acção declarativa para aí obterem um título executivo. Aliás, pela porta da injunção normalmente a obtenção do título executivo é célere e simples.
Por aqui se verifica que não há qualquer violação de direitos dos credores quando munidos de documentos particulares, com data anterior a 1-09-2013, na medida em que não ficam despidos da tutela judicial para reclamarem os seus direitos de crédito.
Tal como já defendia Baptista Machado (in “ Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág. 22), «há um certo tipo de normas, não se referindo à validade de certos factos nem aos efeitos directamente modelados em função desses factos (nos termos do nº 2 do art. 12º do nosso Código), também não definem, rigorosamente, o conteúdo (os efeitos) verdadeiro e próprio da relação ou situação jurídica constituída com base nesses factos, mas tão somente determinam consequências laterais ou extrínsecas dessa relação jurídica…”.
É o que sucede com a situação em apreço, dado que não está em causa qualquer direito adquirido da exequente à execução mas uma mera expectativa de que o contrato em causa teria força executiva.
Ora, a opção do legislador é perfeitamente admissível e cai na estatuição contida no art. 12º, do C. Civil, quanto à aplicação da lei no tempo.
Da forma pela qual o nosso legislador adjectivo seguiu, não há que apelar a qualquer manutenção dos efeitos da lei antiga, na veste da exequibilidade dos documentos particulares, stricto sensu, dado que o mesmo afastou a exequibilidade dos documentos particulares, pelo que a situação se enquadra na 2ª parte do nº 2 do citado art. 12º.
Nessa medida, a lei adjectiva visou claramente abranger as situações já constituídas que subsistam á data da sua entrada em vigor. Se dúvidas restassem bastaria, mais uma vez, ler com atenção a Exposição de Motivos da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, donde ressalta com meridiana clareza os propósitos do legislador, mormente ao nível da eliminação dos documentos particulares do elenco legal dos títulos executivos, Foi uma opção do legislador e, da forma como foi operada, terá que forçosamente abranger os documentos particulares já criados antes de 1-09-2013.
Assim sendo, não há qualquer juízo de inconstitucionalidade que se possa assacar a essa opção legislativa, mesmo quanto aos documentos particulares constituídos antes de 1-09-2013, sendo certo que sempre a via judicial (acção declarativa) ou da injunção se mantém disponível para os credores, sem que se possa, pois, falar de uma falta de tutela judicial desses seus direitos de crédito.
Temos, pois, de concluir pelo indeferimento liminar do requerimento executivo por manifesta falta de título executivo.
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Decisão:

Pelo exposto, indefiro liminarmente o requerimento executivo por falta de título executivo, ao abrigo do disposto no art. 726º, nº 2, al. a), do C.P.Civil.
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Custas a cargo da exequente (vide art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil).
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Registe e notifique.
(…)

Fundamentação de direito.

Como resulta do supra exposto, na presente situação foi dado à execução um acordo de pagamento celebrado em 16 de Março de 2012, com o objectivo de regularizar uma dívida de € 95.203,34 que a Executada tinha perante a Exequente, tendo a assinatura da primeira sido reconhecida, e tendo ambos expressamente manifestado, nesse documento, a vontade e intenção de lhe conferir força executiva, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 46º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil”, pelo que, as expectativas legitimamente criadas pelas partes estavam devidamente acauteladas e protegidas pela lei, uma vez que o acordo de pagamentos estava incluído no elenco dos títulos executivos presentes no art. 46º CPC de 1961, constituindo assim título executivo na categoria dos documentos particulares, reunindo todos os requisitos legais ali exigidos.

Assim, com linear evidência resulta que, o tribunal recorrido, por entender que o documento dado à execução não reúne os requisitos legais para que possa ser considerado autenticado (dado que nele apenas ter sido expressa a menção relativa ao reconhecimento da assinatura da executada (cfr. fls.18), nada se dizendo quanto à confirmação do seu teor por parte dos subscritores perante a entidade certificante, e que, por decorrência, o mesmo não dispõe de força executiva), indeferiu liminarmente o requerimento executivo, sendo certo que na fundamentação da decisão considerou ainda que inexiste qualquer inconstitucionalidade na interpretação do artigo 703º, do C. P. Civil, ao não admitir a força executiva aos documentos particulares exarados em data anterior à data da entrada em vigor do actual C. P. Civil, ou seja, 1 de Setembro de 2013.

Como é consabido, o Código de Processo Civil deixou de constar do elenco dos títulos executivos os documentos particulares com a ressalva dos títulos de crédito e os documentos, ainda que particulares, a que por disposição especial seja atribuída força executiva (artº 703º do CPC nº 1, alíneas c) e d)).

Dispunha o artigo 46.º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil, na redacção revogada pela Lei n.º 41/2013, o seguinte:
“1 – À execução apenas podem servir de base:

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;”

Ora, como bem expende o Recorrente, tendo sido abolidos do elenco dos títulos executivos os documentos particulares, após a entrada em vigor do novo CPC, cumprirá analisar a efectiva aplicabilidade do novo Código de Processo Civil a esta questão, nomeadamente, aos títulos executivos devidamente constituídos como documentos particulares no âmbito de legislação anterior nos quais as partes depositaram a sua convicção de exequibilidade de uma pretensão, ou, dito de outro modo, e mais concretamente, haverá de indagar-se se a expectativa que os credores formaram de que estariam devidamente munidos de instrumento que, em caso de incumprimento, os permitiria ver o seu crédito garantido, é legal e suficientemente protegida.

E a propósito da aplicação da nova lei processual aos acordos extra judiciais celebrados antes da sua entrada em vigor refere-se no acórdão da Relação de Lisboa de 26/04/2014, o seguinte:
“(…)
Como se sabe, a irretroactividade das normas é um princípio geral do Direito, com assento no art. 12º do C.Civil, e tendencialmente aplicável a toda a Ordem Jurídica.
No que respeita às leis processuais, o fundamento doutrinário genérico que explica este princípio assenta na “… própria natureza das leis de processo e justifica-se … (por elas se referirem) … em última análise ao exercício duma das funções do Estado — a função jurisdicional ou judiciária; quando se publica uma lei nova, isso significa que o Estado considera a lei anterior imperfeita e defeituosa para a administração da justiça ou para o regular funcionamento do poder judicial. Tanto basta para que a lei nova deva aplicar-se imediatamente” (cfr. Alberto dos Reis, Processo Ordinário e Sumário, 1.º vol., 2.ª ed., 1928, p. 32), mas não se olvida que o legislador ordinário pode atribuir às leis eficácia retroactiva, o que não é constitucionalmente proibido.
Em matéria de disposições transitórias, o art. 6º da Lei 41/2013 consagra a regra geral da aplicação imediata da lei nova às execuções pendentes à data da sua entrada em vigor (cfr nº1), com algumas ressalvas, dispondo o nº3 que “O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.” (sic) Ou seja, as disposições transitórias não ressalvam a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 por referência a execuções posteriores a essa data, parecendo ser intenção do legislador a aplicação imediata do novo CPC, nomeadamente e para o que ao caso interessa, “aos documentos particulares constituídos antes da sua entrada em vigor. Outra tivesse sido a sua intenção e decerto tê-la-ia expressado.” (sic Maria João Galvão Teles, in A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos - Julgar on line” de Setembro de 2013). Esta é a linha de interpretação seguida pela decisão recorrida, quanto ao sentido das normas nos art. 703º do CPC e 6º nº3 do Decreto Preambular, afirmando a eficácia retroactiva da primeira relativamente às situações iniciadas em data anterior à sua entrada em vigor, com o entendimento de que a nova lei valora, não só os documentos particulares emitidos posteriormente à sua entrada em vigor, como os factos passados, com aplicação aos documentos particulares emitidos anteriormente, valorados diferentemente pela lei então vigente.
Ora, a ser assim, a nova lei atribui ao destinatário da norma uma consequência diversa e mais gravosa, qual seja a inexequibilidade do título. Ou, como afirma Maria João Telles, “a lei nova estará a ser aplicada a factos jurídicos pré-existentes ou, pelo menos, a efeitos jurídicos pendentes que resultam de tal facto jurídico: os títulos executivos.”, estando-se perante a chamada retroactividade inautêntica, referida no Acórdão do Tribunal Constitucional mencionado pela Autora (Acórdão 287/90, que se pronunciou sobre um caso de contornos semelhantes ao dos presentes autos, com aplicação de uma lei nova quando havia um contexto anterior à ocorrência da sua vigência que criava expectativas jurídicas), e nos seguintes termos: “Embora não haja retroactividade que afecte um direito, estamos perante um daqueles casos em que a lei se aplica para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes não terminadas. Com esta delimitação tem o Tribunal Constitucional Federal alemão falado de «retroactividade inautêntica, retrospectiva», não obstante tivesse esclarecido no início desta jurisprudência, que então «não se levanta o problema da retroactividade».
Relevante é, porém, que aquele Tribunal tem entendido que também na chamada «retroactividade inautêntica» os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, que integram o princípio do Estado de direito, impõem limites que o legislador tem de respeitar, considerando-se ofendida a protecção da confiança, sempre que a lei desvaloriza a posição do indivíduo de modo com que este não deva contar, que não tinha, portanto, que considerar ao dispor da sua vida. Para determinação desses limites constitucionais haveria que ponderar a confiança do indivíduo na manutenção de um certo regime jurídico, por um lado, e a importância do interesse visado pelo legislador para o bem comum, por outro lado …
Em particular, tem o tribunal constitucional alemão entendido que esta doutrina é genericamente aplicável à situação jurídica processual, em que a parte se encontra. Mais precisamente, a segurança jurídica e a protecção da confiança como critérios de avaliação de direito constitucional são também exigíveis quando o legislador produz efeitos numa situação jurídica processual, até então dada, em que o cidadão se encontra. Também o direito processual pode fundamentar posições de confiança, nomeadamente em processos pendentes e em situações processuais concretas. No domínio de processos civis ou administrativos, através de alterações do direito processual, com efeito nos processos pendentes, podem ser reduzidas ou eliminadas posições essenciais do cidadão para uma defesa dos seus direitos, com condições de sucesso. Mesmo se em geral a constituição protege menos a confiança na manutenção de posições jurídicas processuais do que na de posições jurídicas materiais, podem aquelas no caso concreto ter um significado e um peso que as torna tão dignas de protecção como estas. A «situação da vida» regulada pelo direito, relevante para a questão da retroactividade, seria aqui o próprio processo, e não a situação da vida que determina o objecto deste”. (sic)
Volvendo ao presente caso, a interpretação das normas levada a efeito no despacho recorrido permite que o art. 703º do novo CPC aja sobre o passado, sobre factos passados, homologando assim a sua retroactividade. Ora, “no direito os factos provocam vicissitudes ou mutações das situações existentes, e se prolongam em efeitos jurídicos. Podemos mesmo dizer que a disciplina do facto se traduz para o direito na atribuição de relevância jurídica a certos efeitos ou consequências dos factos, que por isso justamente se designam efeitos jurídicos …. é necessário saber quais, dentre esses efeitos ou consequências, são regidos pela lei antiga, e quais pela lei nova.” (sic Prof Oliveira Ascensão – Direito – Introdução e Teoria Geral – 3ª edição, pág. 391)
Excluída que está a retroactividade extrema, que é aquela que não respeita o caso julgado, por inconstitucional, a cessação operada pela nova lei “não pode ser entendida como um completo apagamento, para o futuro, dos efeitos que nessa lei antiga se baseiam”(cfr. mesmo Autor e obra, pág. 383). No geral, o passado é respeitado, continuando a norma anterior a fundar a jurisdicidade de certas situações, mesmo após a entrada em vigor da nova lei.
Existe, ademais, uma reserva implícita à constitucionalidade da retroactividade permitida pela lei ordinária. Como bem assinala o insigne Professor, “nenhuma situação que o legislador ordinário esteja inibido de atingir directamente pode ser também atingida por via retroactiva” (sic ob citada, pág. 386), ou seja, “o que o legislador ordinário não pode fazer por via directa, menos o poderá fazer por via retroactiva.” (pág. 387), e isso significa que, caso a caso, cumpre ao julgador avaliar se a norma retroactiva viola ou não um qualquer princípio constitucional.
Nesta linha pronuncia-se também Maria João Galvão Telles, seguida no recente Acórdão da Relação de Évora de 27-02-2014 (Processo 374/13.3 TUEVR.E1), no sentido de que “uma aplicação retroactiva ou retrospectiva da nova lei que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos deve ser declarada inconstitucional com fundamento na violação do princípio da segurança e protecção da confiança ínsito no artigo 2.º da Constituição (CRP).” (sic artigo citado)
Concordamos inteiramente com este entendimento.
De facto, o art. 2º da CRP consagra o Estado Português como um Estado de direito democrático, e este princípio, no dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “ … é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios constitucionais dispersos pelo texto constitucional” (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º edição, 1º volume, pág. 74), abrangendo, entre o demais, limitações à admissibilidade de leis retroactivas.
Estando envolvida, como está, a protecção da confiança dos particulares relativamente ao Estado legislador, deparamo-nos com um confronto entre dois valores igualmente acolhidos na Constituição: por um lado, a protecção da confiança dos particulares em não verem frustradas expectativas legítimas quanto à manutenção de um determinado quadro legislativo; e, por outro, a exigência de que o legislador, democraticamente eleito, disponha de uma ampla margem de conformação (e revisibilidade) da ordem jurídica infraconstitucional, com vista à prossecução do interesse público a que está vinculado (neste sentido, v. Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, 263-264).
Sobre estas importantes questões, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, nos seguintes moldes: “Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que «apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio de protecção da confiança, ínsito na ideia do Estado de direito democrático …. A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:

a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).

Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
Os dois critérios completam-se, como é, de resto, sugerido pelo regime dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Para julgar da existência de excesso na «onerosidade», isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.
Não há, com efeito, um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados … Cabe saber se se justifica ou não na hipótese da parte dos sujeitos de direito ou dos agentes, um «investimento na confiança» na manutenção do regime legal — para usar uma expressão da jurisprudência constitucional alemã atrás referida. ” – cfr Ac. Tribunal Constitucional 287/90 e jurisprudência ai citada.
Sobre a jurisprudência deste acórdão, referiu-se no Acórdão do TC 128/2009, de contornos e decisão semelhante, que “Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:

Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.” (sic).
Ou seja, o princípio da confiança traduz-se na protecção da confiança dos cidadãos na actuação do Estado, que não pode legislar alterando, para além de direitos adquiridos, expectativas legitimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas (cfr- Ac TC 786/96).
Não temos dúvidas de que a interpretação das normas conjugadas do art. 703º do novo CPC - que elimina do elenco dos títulos executivos, os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias – e 6º nº3 do diploma preambular - que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 - no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança, acompanhando-se aquela que é a posição do citado Acórdão da Relação de Évora e de Maria João Galvão Telles, no estudo citado.
Estamos com efeito, perante uma alteração legislativa com que, razoavelmente, os destinatários da norma não podiam contar, na medida em que essa alteração implica ter em consideração factos já realizados antes da entrada em vigor da nova lei. Note-se, aliás, que o projecto inicial de reforma do CPC, não eliminava os documentos particulares do elenco dos títulos executivos, apenas exigindo que o reconhecimento da obrigação exequenda resultasse de forma expressa e inequívoca do documento particular assinado pelo devedor (cfr. art. 46º nº1 d) in www.portugal.gov.pt/pt/os.ministerios/ministeriodajustica/documentos-oficiais/20111218-revisao-codigo-processo-civil.aspx).
Os credores que viram reconhecido o seu crédito mediante documentos particulares, constituídos em data anterior à entrada em vigor do novo CPC, e que eram então dotados de exequibilidade, ganharam a legítima expectativa da tutela desses créditos, tutela essa conferida pelo CPC de 1961, daí que a aplicação retroactiva do disposto no art. 703º do CPC “constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas (cfr citado Ac Rel. Évora).
Prossegue Maria João Galvão Telles, que se cita, dispensando-nos de considerações, “Se, à data da celebração do negócio ou da constituição da relação jurídica, aquele documento não revestisse a força de título executivo, o credor não teria porventura formado a sua vontade nos termos em que a formou, podendo presumir-se que só não requereu a autenticação do documento particular porque tal formalidade não era necessária para que aquele documento fosse um título executivo.
Se a nova lei se aplicar aos documentos particulares validamente constituídos antes da data da sua entrada em vigor, existirão certamente situações em que o credor, mesmo sabendo que a partir de 31 de Agosto de 2013 já não pode utilizar aquele documento para intentar a respectiva acção executiva, nada poderá fazer porque o cumprimento da obrigação está, por exemplo, fixado para um momento posterior à data de entrada em vigor da nova lei.
Pode ainda dar-se o caso de, mesmo já tendo havido incumprimento do devedor, o credor não estar, por motivos de ordem pessoal, em condições de intentar imediatamente a respectiva acção executiva. Também nestes casos, a imposição da imediata propositura da acção executiva não é compatível com imperativos de ordem constitucional.
Do exposto resulta claro que as expectativas dos credores (de que os documentos particulares com que se muniram eram já ou poderiam ser títulos executivos) não eram simples expectativas futuras, mas verdadeiros interesses legítimos dignos de tutela.” (sic)
De facto, o princípio da protecção da confiança, retirado do artigo 2º da CRP, censura normas dotadas de eficácia retroactiva, autêntica e inautêntica, que, sacrificando interesses legalmente protegidos (e direitos fundamentais), não sejam previsíveis e sejam portadoras de uma oneração excessiva que frustre legítimas expectativas dos seus titulares na continuidade dos regimes onde se sustentou a constituição desses direitos e interesses. E a finalidade do legislador ao abolir os documentos particulares, constitutivos de obrigações, assinados pelo devedor, como títulos executivos, não teve como causa a salvaguarda de qualquer direito ou interesse constitucionalmente salvaguardado. Senão vejamos. Lê-se na Proposta de Lei nº 113/XII, na Exposição de Motivos, no que respeita à acção executiva, o seguinte:
«Relativamente à acção executiva, mantendo-se o figurino introduzido pela reforma de 2003, assente na figura do agente de execução, a intervenção legislativa é feita em diversos planos.
Desde logo, é revisto do elenco dos títulos executivos. É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respectivo portador o imediato acesso à acção executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de acções declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório.
Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de acções executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na acção declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução.
Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.
Considerando que, neste momento, funciona adequadamente o procedimento de injunção, entende-se que os pretensos créditos suportados em meros documentos particulares devem passar pelo crivo da injunção, com a dupla vantagem de logo assegurar o contraditório e de, caso não haja oposição do requerido, tornar mais segura a subsequente execução, instaurada com base no título executivo assim formado.
Como é evidente, se houver oposição do requerido, isso implicará a conversão do procedimento de injunção numa acção declarativa, que culminará numa sentença, nos termos gerais. Deste modo, relativamente ao regime que tem vigorado, opta-se por retirar exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem. Ressalvam-se os títulos de crédito, dotados de segurança e fiabilidade no comércio jurídico em termos de justificar a possibilidade de o respectivo credor poder aceder logo à via executiva. Ainda dentro dos títulos de crédito, consagra-se a sua exequibilidade como meros quirógrafos, desde que sejam alegados no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente.” (sic)

Ou seja, o objectivo prosseguido foi - proteger os executados de “execuções injustas”, potenciadas pelo facto de “a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório” e pelo “funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo”;
- diminuir o número de acções executivas.
E, mais uma vez em linha com Maria João Galvão Telles e com o referido acórdão da Relação de Évora, entendemos que tais interesses não prevalecem sobre as legítimas expectativas dos credores, que confiaram nos documentos de que eram detentores, subscritos em data anterior à data entrada em vigor do novo CPC, a tal é assim, não só porque os executados não ficam desprovidos dos meios de defesa, já que podem opor-se à execução e à penhora, como “obrigar um credor que já detinha um título executivo a recorrer à propositura de um requerimento de injunção ou de uma acção declarativa para que volte a ficar munido de um título executivo (que já detinha) implica não só uma injustificada e onerosa dificuldade de acesso aos tribunais como uma verdadeira medida de descongestionamento dos tribunais” (sic citada Julgar on line, pág. 8)
Do exposto resulta que estamos perante uma situação de confiança legítima, cuja afectação por uma alteração legislativa provoca consequências gravosas na esfera do cidadão confiante, sendo certo que a análise dos interesses em confronto, por um lado, o interesse particular, desfavoravelmente afectado pela alteração do quadro normativo que o regula e, por outro, o interesse público que justifica essa alteração, leva-nos a concluir que bastaria a emissão de uma disposição transitória, quiçá ínsita no art. 6º do diploma preambular, que ressalvasse da aplicação da lei nova os documentos particulares já emitidos ao abrigo da lei antiga, para vermos que a tutela do investimento de confiança não comprometeria significativamente o propósito prosseguido pela mudança do regime dos títulos executivos, e que não nos cabe avaliar.
Só uma premência absoluta do interesse público, que não se descortina neste caso, poderia justificar a aplicação imediata e universal do regime resultante do art. 703º do CPC. Ou como se afirma no Acórdão da Relação de Évora “Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão de ser perante a inevitabilidade de razões de maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do colectivo.

Ora, os fins que se visam alcançar com a eliminação dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos não constituem razões de tal forma ponderosas para o bem comum colectivo que justifiquem o sacrifício das legítimas expectativas de, muito provavelmente, um número significativo de cidadãos que se limitou a agir de acordo com a lei vigente, na altura, confiando que a sua actuação estaria protegida pelo Estado de Direito Democrático.”

Tudo ponderado, é de concluir que o interesse geral subjacente à alteração legislativa questionada deve ceder nos casos e na medida acima delimitados, sob pena de se frustrarem, em violação do princípio da segurança e da protecção da confiança, expectativas legitimamente fundadas.
Em conclusão, entendemos que a interpretação das normas do art. 703º do novo CPC e 6º nº3 da Lei 41/2013 de 26 de Junho, no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, e então exequíveis por força do art. 46º nº1 c) do CPC de 1961, é inconstitucional por violação do principio da segurança e protecção da confiança, e, nessa medida, entendemos ser o mesmo inaplicável ao presente caso, o que equivale a dizer que se mantém o regime anteriormente previsto, mantendo o auto de conciliação em causa a sua natureza de título executivo, pelo que deve ser aceite, prosseguindo a execução os seus termos”.(1)
E se havia já este entendimento na jurisprudência antes de o tribunal Constitucional se ter pronunciado sobre o assunto, posteriormente à prolação do mencionado acórdão veio também este Tribunal no acórdão nº 847/2014, de 03.12.2014, julgar a norma do artº 6º 3º do diploma que aprovou o actual Código de Processo Civil – Lei 41/2013, de 26/06, conjugada com o artº 703º do CPC, na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do CPC de 1961, inconstitucional por violação do princípio constitucional da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático do artigo 2.º da Constituição.

Entendeu-se no referido acórdão que “a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703.º do CPC e 6.º, n.º 3 da Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, de que decorre a perda de valor de título executivo dos documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem um disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afecta o princípio constitucional da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.”.

Posteriormente, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 23 de Setembro de 2015, tirado no processo nº.340/2015, publicado no DR nº.201/2015, I Série, de 14.10.2015, do qual foi relatora Maria de Fátima Mata-Mouros, também ela relatora do acórdão nº 847/2014, foi declarado com força obrigatória geral “a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703º do Código de Processo Civil, e 6º, nº 3, da Lei nº.41/2013, de 26 de Junho, por violação do princípio da protecção da confiança (artigo 2º da Constituição)”.

Como se pode ler no referido acórdão “A questão de constitucionalidade que integra o objecto do processo surge, assim, da sucessão no tempo de leis processuais, resultando da conjugação do novo CPC com o regime transitório vertido no artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013. Tendo em conta a exclusão dos documentos particulares elencados no artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do anterior CPC da lista de títulos executivos constante do artigo 703.º do CPC e a aplicabilidade deste a todas as execuções iniciadas após a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, nos termos do seu artigo 6.º, n.º 3, terá de concluir -se que é retirada força executiva a documentos particulares que anteriormente a detinham, se ainda não accionados.
É esta afectação, a nível processual, da posição creditória, ocasionada pela alteração legislativa, que configura a questão de constitucionalidade aqui em causa.
O problema não se prende, portanto, com a solução material contida no artigo 703.º do CPC, ou seja, com o novo elenco de títulos executivos, a sua maior ou menor extensão ou a integração ou não de determinado documento.
As decisões legislativas neste domínio têm incidência directa nos interesses particulares contrapostos, encabeçados por duas categorias distintas de sujeitos privados: credores e devedores (cf. M. Teixeira de Sousa, “Anotação ao Ac. do Tribunal Constitucional n.º 847/2014, de 3.12.2014”, in Cadernos de direito privado, n.º 48, 2014, pp. 12 ss.). Não há qualquer critério constitucional que imponha a preferência por um desses interesses, pelo que nos encontramos no domínio de uma livre opção legislativa.
Não é esse, no entanto, como se referiu, o objecto do presente processo.
A norma objecto do presente processo deve ser, por isso, submetida ao teste do princípio da confiança, analisando -se se o comportamento do legislador nesta matéria foi de molde a criar nos cidadãos expectativas legítimas, justificadas e fundadas de continuidade, em que estes se basearam ao formular planos de vida.
Ao longo das últimas décadas tem-se assistido a sucessivas iniciativas legislativas de alargamento do rol de títulos executivos.

Destaca -se, neste capítulo, o Decreto–Lei n.º 533/77, de 30 de Dezembro, que subtraiu a exigência de reconhecimento notarial de assinatura do devedor nos títulos cambiários (letras, livranças e cheques) quando o montante da dívida constante do título fosse inferior à alçada da Relação, e, mais tarde, o Decreto -Lei n.º 242/85, de 9 de Julho, que estendeu aquela eliminação a todos os títulos de crédito, independentemente do seu valor.
A reforma de 1995/96, introduzida pelo Decreto -Lei n.º 329 -A/95, de 12 de Dezembro, ao consagrar a exequibilidade de documentos comprovativos de um leque muito alargado de obrigações, com dispensa generalizada de reconhecimento notarial da assinatura do devedor, foi o momento culminante deste progressivo alargamento. Assim, através de sucessivas reformas na acção executiva, o legislador tinha vindo a ampliar a exequibilidade dos documentos particulares, associando tal ampliação ao desiderato constitucionalmente admitido de evitar o recurso desnecessário a acções declarativas de condenação, sobretudo naquelas situações em que sobre o direito do credor não recai verdadeira controvérsia.
Uma tal orientação legislativa veio todavia a ser invertida com a aprovação do novo CPC, que restringe essa exequibilidade, pretendendo reagir aos riscos de proliferação de acções executivas injustas. Existia, portanto, um comportamento consistente do legislador num determinado sentido, face ao qual a presente norma representa um volte -face. Ora, apesar de o título executivo não se confundir com o documento que o materializa, a sua função probatória constitui pressuposto da sua função executiva.”
E, mais adiante: “A norma em apreciação não influi na existência ou inexistência do direito de crédito ou da obrigação exequenda, mas altera o valor probatório para fins executivos de documentos já emitidos mas ainda não accionados, implicando, assim, uma inevitável reavaliação de factos passados, recusando -lhes a virtualidade de produção de certos efeitos. Documentos que antes admitiam a imediata instauração da acção executiva, agora perderam aquele atributo. Assim, decisões passadas tomadas pelos cidadãos com base num determinado quadro normativo, relativamente estável, tiveram as suas consequências actuais e futuras afectadas negativamente pela presente alteração legislativa. De facto, o reconhecimento da exequibilidade imediata dos documentos que titulavam os seus créditos é susceptível de ter tido influência sobre a conduta dos credores, os quais, assumindo que já dispunham da “chave” de acesso ao processo executivo, se abstiveram de realizar outras diligências ao seu alcance como, por exemplo, diligenciar pela autenticação do documento que titulava o seu crédito.
(…)

Ao suprimir a ligação que antes se estabelecia entre o valor probatório dos documentos particulares e a exequibilidade extrínseca da pretensão neles materializada, a norma sob escrutínio introduziu uma modificação que era imprevisível.
Se a lei nova estivesse vigente ao tempo em que se produziu o facto a provar, poderiam os credores ter adoptado outras diligências ou precauções no sentido de se munirem de um título executivo, o que significa que a base da confiança gerou, nesta hipótese, uma situação de “uso da confiança” por inactividade (cf. Sylvia Calmes, Du principe de protection da la confiance légitime en droits allemand, communautaire et français, Dalloz, 2001, pp. 392 ss.).
Sendo assim, pode concluir-se que os credores desses títulos depositaram uma confiança legítima na sua exequibilidade, criada e alimentada pelo legislador, representando o novo regime uma imprevisível opção legislativa defraudadora dessa confiança. Nada fazia prever, pela anterior conduta legislativa, que fosse retirada a esses documentos, ex abrupto, a força executiva. Estas são razões suficientes para conferir legitimidade, consistência e validade às expectativas dos credores na imediata exequibilidade do seu título. As situações jurídicas afectadas pela alteração introduzida pela norma em análise apresentam-se como dignas de protecção. O que torna inevitável um exercício de ponderação que tem, num dos seus polos, o interesse dos credores em ver protegida a confiança que legitimamente depositaram na não alteração do ordenamento jurídico, e no outro, o interesse público que subjaz à alteração”.
E, como também se refere no acórdão do T.C. que acabamos de citar “Na presente situação, do regime transitório constante do artigo 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013 não decorre uma acomodação ajustada dos interesses em presença, pois dele resulta uma lesão particularmente intensa da confiança legítima do particular — que perde o título executivo que possuía e de acordo com o qual tinha feito planos de vida, com base na lei — para prosseguir um interesse público que, embora relevante, poderia ser igualmente alcançado de forma eficaz através de meios menos lesivos.
(…)

Contudo, a evolução legislativa quanto a esta matéria descrita supra foi susceptível de fundar uma confiança particularmente forte na constância do regime ou, pelo menos, na não supressão do valor de título executivo a documentos que já o possuíam.

Por outro lado, o juízo quanto à excessiva amplitude do elenco dos títulos executivos, se justifica uma intervenção ablativa de uma das categorias anteriormente previstas, não impõe uma aplicação imediata e praticamente sem qualquer ressalva do novo regime, sem dar qualquer possibilidade aos titulares dos documentos que perdem a natureza de títulos executivos de instaurarem, após a publicação da nova lei, execuções com base neles. Assim, o interesse público subjacente àquele regime não demonstra ter um contrapeso suficientemente intenso face à medida da afectação da confiança legítima dos credores. Tendo em conta o grau de relevância atribuível a este interesse público (e à urgência da aplicação do novo regime), não se afigura que «a previsão de um regime transitório adequado», tal como propugnado no Acórdão n.º 847/2014, n.º 16, afectasse de modo incomportável ou irrazoável a sua realização, a ponto de justificar o sacrifício total da posição de confiança. Nessa medida, a norma objecto do pedido afecta excessivamente as expectativas dos particulares que se mostram legítimas e fundadas em boas razões, com ofensa do princípio constitucional da protecção da confiança dos cidadãos, ínsito no princípio do Estado de Direito, que se encontra consagrado no artigo 2.º da Constituição”.

Ora, como decorre de tudo o acabado de expender a posição jurisprudencial exposta tem plena aplicação ao caso dos autos, em que está em causa um documento que à data da sua subscrição – 16 de Março de 2012 – reunia as condições para, face ao artº 46º nº 1 alínea c) na redacção revogada pela Lei 41/2013, constituir título executivo, por se encontrar subscrito pelos devedores e conter o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, pelo que não se lhe aplica o disposto no artº 703º do CPC.

E assim sendo, em consequência da inconstitucionalidade da norma declarada com força obrigatória geral da interpretação defendida na decisão recorrida, na procedência da presente apelação, deve tal decisão ser revogada e, mantendo o documento dado à execução a sua natureza de título executivo, deve o mesmo ser aceite, prosseguindo a execução os seus normais e ulteriores termos.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da acção executiva.
Sem custas.

Guimarães, 01/ 02/ 2018.

Jorge Alberto Martins Teixeira
José Fernando Cardoso Amaral.
Helena Gomes de Melo.

1. Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 26/03/2014, proferido no processo nº 66/13.8TTALM.L1-4, in www.dgsi.pt.