Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1526/09.6TBVRL-G.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO DO PROCESSO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. No domínio da aplicação da lei no tempo, ao abrigo do disposto no artigo 12 do C.Civil, a lei nova, quando o legislador não lhe confira efeitos retroativos, rege para o futuro com a salvaguarda dos efeitos jurídicos produzidos.
2. A al. e) do n.º 1 do artigo 230 do CIRE, introduzida pelo artigo 2º da Lei 16/2012 de 20 de abril permite ao juiz, oficiosamente, o que não acontecia, anteriormente, ordenar o encerramento do processo, em qualquer momento, desde que não haja bens a liquidar.
3. No caso de a cessão ocorrer antes do encerramento do processo, deve ser contado, para efeitos do prazo limite de cinco anos, todo o período de cessão anterior ao encerramento.
Decisão Texto Integral:
A e H não se conformando com a decisão proferida a 9/06/2016, que fixou como início do prazo da cessão do rendimento disponível a partir de 6/06/2013, data da notificação dos insolventes do despacho que remeteu o processo para rateio, quando deveria ter considerado o seu início a 16/03/2011 e proferido despacho final de exoneração do passivo restantes nos termos do artigo 239 e 244 do CIRE, interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
“1 - O Tribunal “a quo”, por sentença de 9 de junho de 2016, determinou que nos ulteriores termos processuais se tenha em consideração como início do período de cessão a notificação aos insolventes do despacho de 6 de junho de 2013.
2 - O douto despacho proferido pelo Tribunal "a quo" considera que a data para o início do período de cessão do rendimento disponível dos insolventes ao fiduciário se conta a partir do encerramento do processo, isto na interpretação que o Tribunal "a quo" faz do art.º 230.º nº.1 do CIRE.
3 -A própria decisão aqui em crise aponta o caminho do presente recurso, pois se a decisão na sua fundamentação, vem invocar a alteração legislativa que veio a introduzir a alínea e) do nº 1 do art.º 230º do CIRE, uma vez que a versão inicial deste artigo desencadeou situações de desigualdade entre os insolventes que detinham património, que necessariamente teria de ser liquidado, empurrando a decisão final para o momento do rateio previsto no art.º 182.º do CIRE, e aqueles que por nada terem em seu nome viam os autos encerrados logo no início, ficando 5 anos depois exonerados do passivo restante, que em bom rigor era todo o passivo.
4 - Esta interpretação do art.º 230 n.º 1 do CIRE, em vigor à data do despacho inicial que admite a exoneração do passivo restante e ordena o início da apreensão pelo fiduciário, em 16/03/2011 e que continua a ocorrer, acaba por ser violadora do princípio da igualdade material, consagrado no artº 13º n.º 1 da CRP, uma vez que autoriza um injustificado desfavor para com os devedores que tivessem algum património, como ocorreu com os apelantes.
5 - Foi esta situação de desfavor para alguns insolventes que a já mencionada alteração legislativa de 2012 no art.º 230.º do CIRE veio colmatar com a introdução da alínea e) ao dispor que" prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento, quando este ainda não haja sido declarado no despacho inicial de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do art.º 237.°,
6- Em nosso entender o tribunal a quo devia ter aplicado o n.º 3 do art.º 10° do Código Civil, e neste caso excepcional a lei nova deveria ser aplicada aos apelantes, ficando deste modo determinado o encerramento do processo após a declaração de insolvência e admissão do pedido de exoneração do passivo restante.
7- Não restam dúvidas de que esta alínea e) do n.º 1 do artº 230.º do CIRE deve neste caso concreto ser aplicada por recurso à integração da lacuna da lei ao tempo e deste modo, seguindo o caminho apontado pelo n.º 3 do art.o 10.º do CC, está autorizada esta aplicação da lei ao caso pretérito, tanto mais que foi o próprio legislador que veio em 2012 a criar a norma em falta dentro do espírito do sistema.
8 - Assim, verificado como se mostra nos autos, a apreensão do rendimento disponível dos apelantes, nos 5 anos posteriores, ao despacho inicial de declaração de insolvência e ao subsequente de admissão da exoneração do passivo restante, deve, ainda que não tenha sido proferido despacho de encerramento, ser aplicado o art.º 230.º n.º 1 e), em vigor, por força do art.º 10.º n.º 3 do CC, e determinado como inicio do período de cessão, a data do despacho que ordenou a apreensão a favor do fiduciário, ou seja desde 16/03/2011.
9- Aplicando, deste modo, ao caso concreto o art.º 230,º n.º 1 e) não pode deixar de se dar provimento ao presente recurso.
10 - Com a presente ação, os aqui Apelantes pretenderam apresentar-se à insolvência de modo a atingir a sua "reabilitação económica com a possibilidade de se libertarem das suas dívidas, através do chamado conceito fresh start' como vem previsto no preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, e para o efeito cumpriram todas as imposições determinadas pelo tribunal.
11 - Assim, deveria ter o tribunal" a quo" ter considerado aplicável o art.º 230.º n.º 1 al. e) do CIRE, por força do art.º 10,º n.º 3 do CC, determinar como inicio do período de cessão a data de 13/03/2011, e nesta data proferir despacho final de exoneração do passivo restante nos termos do art.º 239.º do CIRE.
12 - Portanto, a douta sentença recorrida tem de ser substituída por outra que julgue cumpridos os cinco anos de cessão do rendimento disponível ao fiduciário, considerando o seu inicio em 13/03/2011, e proferir despacho final de exoneração do passivo restante nos termos do art.º 239.º do CIRE, uma vez que ao tribunal se impunha a aplicação do art.º 230.º n.º 1 e) do CIRE, por força do art.º 10º n.º 3 do CC, pelo que a douta sentença aqui em crise violou o art.º 13 n.º 1 da CRP, ao considerar aplicável o art.º 12.º n.º 1 do CC, que impõe a aplicação da lei para o futuro.
Termos em que, e nos melhores de direito que V. (s) Exa. (s) doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, revogada a douta decisão em crise, tudo com as legais consequências”.

Não houve contra-alegações.

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões:

1. Se é de aplicação imediata o aditamento da al. e) ao artigo 230 n.º 1 do CIRE por força do artigo 2.º da Lei 16/2012 de 20/04, que entrou em vigor 30 dias após a data da sua publicação.
2. Se o início do prazo para contagem dos cinco anos da cessão, emergente da admissão liminar da exoneração do passivo restante, se deve fixar por despacho a partir de 16/03/2011, data a partir da qual foi ordenada a apreensão, pelo fiduciário, do rendimento disponível dos insolventes, e se deveria ter sido proferido despacho ao abrigo do disposto no artigo 239 e 244 do CIRE para conhecimento da exoneração do passivo restante.

Com interesse para a decisão do recurso fixamos a seguinte matéria de facto:
1. Extrato da decisão recorrida: “Os presentes autos foram instaurados em 12/l0/2009 (cfr.fls. 29), tendo em 06/11/2009 sido proferida sentença de declaração de insolvência de A e H (confr.fls. 80-85) e, em 19/01/2011, foi proferido despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante (confr. 242-244), aí se concluindo, no que ora releva: "Face ao expendido supra, decide-se admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo não liquidado, o qual se concede uma vez que sejam observadas pelos devedores as condições previstas no art.º 239º do CI.R.E., durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência. Nos termos do disposto no n. º 2 do citado art.º 239º do CI.R.E., mais se determina que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os devedores venham a auferir se considere cedido ao fiduciário aqui nomeado (. .. )”.
2. Cessão dos rendimentos disponíveis a partir de 16/03/2011, (despacho de penhora de vencimento à entidade EDP – Distribuição de Energia SA. – Vila Real (fls. 4).
3. Ainda não foi proferida decisão sobre o encerramento (fls. 4).
4. Os insolventes têm cumprido com o despacho de exoneração do passivo restante.
5. Requerimento da credora reclamante Cofidis S.A (25/05/2016)., notificada do relatório apresentado pelo Senhor Fiduciário vem expor e requerer o seguinte:
“1. De acordo com a informação constante do requerimento apresentado pelo Senhor Fiduciário os insolventes iniciaram o desconto do seu vencimento a 16/03/2011.
2. Sucede que nos termos do artigo 239 n.º 2 do CIRE o período de cessão inicia-se com o encerramento do processo.
3. Sendo que o despacho de encerramento do processo não foi proferido.
4. Pelo que, no entender da aqui Credora só após o despacho de encerramento do processo é que poderá ter início o período de cessão.
Face ao exposto requer-se a V.Exa. se digne determinar que o período de cessão apenas deverá ter início após o despacho de encerramento do processo, considerando os valores entretanto entregues pelo Fiduciário como apreendidos a favor da massa nos termos do artigo 46 n.º 2 do CIRE”.
6. Requerimento dos Insolventes (27/05/2016), notificados do relatório apresentado pelo Sr. Fiduciário e do despacho de V.Ex.a vêm expor e requerer:
“1 No requerimento inicial de insolvência os agora insolventes peticionaram subsidiariamente a concessão da exoneração do passivo restante, nos termos dos artigos 235 a 238 do CIRE.
2. Tal pedido não foi indeferido, nem tão pouco objecto de qualquer recurso ou reclamação;
3. Os insolventes iniciaram, de acordo com a determinação do tribunal e do Sr. Administrador de insolvência em 16/03/2011 o desconto de 1/3 do seu vencimento, a título de cessão do seu rendimento disponível.
4. Quanto ao requerimento apresentado a estes autos pela credora Cofidis S.A. no sentido de ser fixado após o despacho de encerramento do processo o início do período de cessão, com devido respeito, tal não pode ser atendido por falta de fundamento legal e em nosso entender, por partir de uma interpretação literal do n.º 2 do artigo 239.º do Cire, que se mostra conforme com o sentido da lei.
5. Nestes termos, está, no entendimento dos insolventes e ainda com base no relatório do Sr. Fiduciário, o tribunal em condições de proferir decisão final de exoneração do passivo restante, uma vez que se mostram cumpridas todas as imposições legais, cumpridos que se mostram os cinco anos desde o início do período de cessão em 16/03/2011.”

Vamos conhecer das questões enunciadas.

1 e 2. Nelas se destaca a aplicação da lei no tempo e interpretação, mais concretamente da al. e) do n.º 1 do artigo 230 do CIRE, introduzida pelo artigo 2.º da Lei 16/12 de 20 de abril de 2012, que entrou em vigor a 20/05/2012, que refere o seguinte “ Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237º”.

Como normativo novo que é, a sua aplicação faz-se de acordo com o disposto no artigo 12 n.º 1 e 2 do C.Civil. Não tendo o legislador acautelado a sua entrada em vigor, com efeitos retroativos, deve vigorar para o futuro, acautelando-se os efeitos jurídicos entretanto produzidos. No caso tem aplicação para o futuro, isto é, para casos novos, para situações novas, mesmo neste processo, uma vez que é uma norma de cariz procedimental.

No domínio interpretativo, permite ao juiz, oficiosamente, em cada momento do processo de insolvência, com incidente de exoneração do passivo restante, declarar o encerramento do processo desde que não haja bens a liquidar. E, a partir desse despacho, conta-se o prazo de cinco anos para a cessão do rendimento disponível (Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, pag. 875, anotação 6 ao artigo 230).

No caso em apreço, o juiz entendeu que, face à doutrina da norma introduzida na al. e) do artigo 230 do CIRE, uma vez que já não há bens a liquidar, tendo sido remetido o processo para rateio (apesar de a secção o não ter realizado formalmente), considerou-o encerrado, para efeitos da contagem do prazo de cinco anos da cessão, desde a notificação dos insolventes, que ocorreu a 6/6/2013.

Os apelantes não concordam com esta interpretação e consideram que, à luz do artigo 10 n.º 3 do C.Civil, deveria ser fixado o início do prazo da cessão a partir do momento em que esta ocorreu, compulsivamente, através da ordem de penhora do vencimento do insolvente apelante, por razões de igualdade, uma vez que cedeu rendimentos que não podem, na perspetiva da decisão recorrida, integrar a contagem do prazo de cinco anos, ou seja, desde 16/3/2011 até 6/6/2013.

Julgamos que a questão não está ao nível da interpretação da norma da al. e) do n.º 1 do artigo 230 do CIRE. Pois, esta permite ao tribunal declarar o encerramento do processo de insolvência a qualquer momento, oficiosamente, o que não acontecia antes, desde que não haja bens a liquidar. Isto pode acontecer no início do processo, logo no despacho liminar do incidente de exoneração do passivo restante, como noutra fase do processo, desde que ocorra o facto determinante. No caso dos autos havia bens a liquidar, pelo que o tribunal não podia, logo no despacho inicial a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, declarar encerrado o processo, vindo a fazê-lo depois que foi ordenada a sua remessa para o rateio.

A questão incide sobre a execução do despacho que admitiu, liminarmente, o incidente de exoneração do passivo restante. De acordo com este despacho a cessão iniciar-se-ia com o encerramento do processo. Seria a partir deste que os insolventes ficavam obrigados a entregar os rendimentos disponíveis durante cinco anos. O certo é que o administrador executou de imediato o despacho, e iniciou a cessão antes do encerramento, o que julgamos que o fez erradamente, uma vez que contraria o teor do próprio despacho e o espírito da exoneração do passivo restante, que fixa, em cinco anos, o limite máximo de cessão, que devem ser contados a partir do encerramento.

O que quer dizer que há aqui um período de tempo de cessão de rendimentos que violou, expressamente, a ordem do tribunal e a própria lei, que terá de ser corrigida de molde a que o período de tempo, que vai entre 16/3/2011 até 6/06/2013, seja contado para efeitos de cessão de rendimentos, para evitar uma situação de desigualdade de tratamento e de violação da lei .

Assim, julgamos que o tribunal decidiu de acordo com a norma da al. e) do n.º 1 do artigo 230 do CIRE, ao considerar como encerrado o processo a partir da notificação do despacho que ordenou a remessa do processo para rateio. O que terá de haver, agora, é uma correção na contagem do prazo de cinco anos de cessão, em que deve ser integrado o período de tempo de cessão de rendimentos entre 16/3/2011 a 6/06/2013, para evitar que se exceda o prazo de cinco anos imposto pela exoneração do passivo restante (posição idêntica que tomamos na Apelação 398/09.5TBEPS.G1, em que foram adjuntos Henrique Andrade e Eva Alameida).

Sendo o requerimento do apelante de 27/05/2016 e a decisão recorrida de 9/06/2016, e tendo em conta o acima aflorado, julgamos que o prazo de 5 anos para a cessão já se concretizou, levando em conta todo o tempo de cessão de rendimentos desde 16/03/2011 (16/03/2011+5 = 16/03/2016).

Daí que o tribunal recorrido esteja em condições de verificar se se verificam os outros pressupostos da exoneração do passivo restante, decidindo pela sua procedência ou improcedência, ao abrigo do disposto no artigo 239 e 244 do CIRE.

Concluindo: 1. No domínio da aplicação da lei no tempo, ao abrigo do disposto no artigo 12 do C.Civil, a lei nova, quando o legislador não lhe confira efeitos retroativos, rege para o futuro com a salvaguarda dos efeitos jurídicos produzidos.
2. A al. e) do n.º 1 do artigo 230 do CIRE, introduzida pelo artigo 2º da Lei 16/2012 de 20 de abril permite ao juiz, oficiosamente, o que não acontecia, anteriormente, ordenar o encerramento do processo, em qualquer momento, desde que não haja bens a liquidar.
3. No caso de a cessão ocorrer antes do encerramento do processo, deve ser contado, para efeitos do prazo limite de cinco anos, todo o período de cessão anterior ao encerramento.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que, tendo em conta a ocorrência do prazo de cinco anos, conheça dos outros pressupostos da exoneração do passivo restante.

Sem Custas.

Guimarães,

1 - Apelação 1526.09.6TBVRL.G.G1 – 2ª
Insolvência
Tribunal Judicial Comarca Vila Real – JL Cível
Relator Des. Espinheira Baltar
Adjuntos Eva Almeida e Beça Pereira