Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
435234/09.8YIPRT-A.G1
Nº Convencional: JTRG000
Relator: JOSÉ RAÍNHO
Descritores: PROVA
PROVA GRAVADA
TELEFONE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Área Temática: CÍVEL
Sumário: Por ser ilícita e nula, não pode ser atendida como prova em processo judicial cível uma gravação de conversação telefónica estabelecida entre as partes
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães:

Em acção declarativa corrente pelo Tribunal Judicial de Esposende, em que é Autor RR e é Ré RV, requereu o primeiro que se procedesse à audição de três chamadas telefónicas estabelecidas entre o Autor e a Ré, e que foram gravadas no telemóvel do Autor.
O Tribunal deferiu a produção de tal meio de prova, a ter lugar na audiência de julgamento.
Inconformada com o assim decidido, apela a Ré.

Da sua alegação extrai as seguintes conclusões:

A- Na nossa lei processual civil, ao contrário do que acontece na lei processual penal, não encontramos qualquer disposição que nos diga directa e expressamente o que são e quais são as provas ilícitas ou proibidas.
B- Pois que no artigo 126° do CPP, sob a epigrafe de “métodos proibidos de prova”, se determinou expressamente no n° 3 que “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.
C- O artigo 26°, n. °1, da CRP, dispõe que ‘a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação’.
D- Por sua vez, o artigo 32°, n° 8, da CRP, sob a epígrafe de “garantias de processo criminal, preceitua que ‘são nulas todas provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
E- No sentido da aplicação analógica ao processo civil do citado artigo 32°, n° 8 da Constituição vidé, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto, de 06-01-2009, da Relação de Lisboa, de 03-06-2004 e 07-05- 2009, in www.dgsi.pt.
F- Por sua vez, o Código Penal tipifica, no seu artigo 199º, n°1, alíneas a) e b), como crime, a conduta de quem, sem consentimento gravar palavras proferidas, mesmo que lhe sejam dirigidas ou utilizar ou permitir que se utilizem as gravações mesmo que licitamente produzidas.
G- Nesse âmbito privado ou de intimidade “está englobada a vida pessoal e familiar (o lar ou o domicílio), a relação com outras esferas da privacidade (v.g., a amizade), e bem assim os meios de expressão e comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.”). cfr. acórdãos do TC n° 128/92, in D. Rep. II Série, de 24 de Julho de 1992; n° 456/93 in D. Rep. 1-A Série, de 9 de Setembro de 1993, n° 355/97, de 7 de Maio de 1997, n° 319/95, n° 264/97 e n° 355197, todos in www.tribunalconstitucional.pt.
H- No Acórdão n° 607/2003, do TC, formulou-se a seguinte conclusão, à volta do citado artigo 32°, n° 8, da Constituição: “deve considerar-se que quando a Constituição prescreve, no artº 32° n°8, concretizando, neste piano, o valor da dignidade humana assumido como princípio estruturante no seu artº 1°, que “são nulas” todas as provas obtidas “mediante abusiva intromissão na vida privada”, está a prever não só a imposição de condicionamentos formais ao acesso aos meios de prova que represente uma intromissão na vida privada, como, também, a existência de restrições à valoração de provas, que devem aferir-se, conforme o exposto, pelas exigências do princípio da proporcionalidade, sempre ressalvando a ineliminável dignidade e integridade da pessoa humana”.
Finalmente e num caso idêntico ao destes autos, afirmou o acórdão da Relação do Porto de 15-04-2010, in www. dgsi.pt, que “constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil’.
J- Admitindo-se que os registos fonográficos podem ser meio de prova - tal como se prevê nos artigos 368° do CC e 527° do CPC - só lograrão, todavia, esse estatuto, se demonstrado o consentimento do outro interlocutor na sua obtenção, ou esta tiver sido determinada, na ponderação de outros valores ou interesses comunitariamente superiores segundo o aludido principio da proporcionalidade, pela autoridade pública competente e sempre sem afronta, quanto à sua valoração, do respeito devido á dignidade humana.
K- Trata-se no caso concreto de uma prova nula na sua obtenção e por isso inadmissível, o douto despacho que admitiu a sua audição em sede de audiência de discussão e julgamento deverá forçosamente ser revogado e substituído por outro que não o admite.

Termina dizendo que deve ser o despacho recorrido substituído por outra decisão que indefira a reprodução em sede de audiência de discussão e julgamento das supostas gravações das três conversas telefónicas.

+

A parte contrária não contra-alegou.

+

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Ter-se-á em conta que o teor das conclusões define o âmbito do conhecimento deste tribunal ad quem, e que importa conhecer das questões colocadas e não das razões ou fundamentos que lhes subjazam.


+

A única questão que vem submetida à nossa apreciação é a de saber se é admissível ou não a pretendida audição de chamadas telefónicas estabelecidas entre Autor e Ré, e que terão sido gravadas no telemóvel do primeiro.

+

Plano Factual:

Damos aqui por reproduzidas as incidências fáctico-processuais acima referidas.

+

Plano Jurídico-conclusivo:

Tem óbvia razão a Apelante.
Não é admissível a prova em causa, uma vez que se trata de prova ilícita, proibida e nula.
Justificando:
O art. 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada.
Por intimidade da vida privada entende-se o núcleo vivencial individual que não é exposto publicamente ou socialmente, antes é reduzido (por opção pessoal ou por força das circunstâncias) à esfera circunscrita ou recatada de cada pessoa.
Cai neste âmbito a relação dialógica (conversação) telefónica estabelecida particularmente entre duas pessoas.
Nos termos do nº 8 do art. 32º da CRP, é nula - logo necessariamente ilícita e proibida - a prova obtida mediante abusiva intromissão na vida privada ou nas telecomunicações. Esta norma, conquanto formalmente prevista para o processo penal, deve ser tida como aplicável em todo e qualquer processo, e reporta-se tanto à prova obtida pelas entidades públicas como pelas entidades particulares (v. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, p. 348, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, p. 239). De resto, da al. b) do nº 3 do art. 519º do CPC resulta claramente, embora de forma indirecta, a inadmissibilidade de prova que tal.
Ainda, nos termos do nº 1 do art. 34º da CRP, é inviolável o sigilo dos meios de comunicação privada.
Conforme o também estabelecido na CRP (v. art. 18º nº 1), tais preceitos são directamente aplicáveis (e exequíveis por si mesmos, sem necessitarem pois [e nas palavras de Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, p.313] da intervenção da lei ordinária), e vinculam entidades públicas (a começar pelos tribunais) e privadas.
De outro lado, o art. 199º do CPenal tipifica como crime a gravação, sem consentimento, de palavras proferidas, mesmo que dirigidas ao agente, ou a utilização ou permissão de utilização de gravações mesmo que licitamente produzidas.
E, dentro deste registo, Capelo de Sousa (ob. cit., p. 331) afirma: “No caso das comunicações orais, por telefone ou de viva voz, é proibido, na ausência de consentimento do emitente, gravar as palavras proferidas por outrem e não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem ilicitamente faz a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as mesmas gravações”.
De observar que subjacente a esta proibição não está propriamente o conteúdo (o secretismo) da comunicação, mas sim a palavra falada em si, tratando-se de impedir que aquilo que se pretendeu que fosse apenas uma expressão fugaz e transitória da vida se converta num produto registado e suscetível de ser utilizado a todo o tempo (v. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pp. 245 e sgts.).
Enfim, tudo exatamente como se afirma no acórdão da RP de 15 de Abril de 2010 (acessível em www.dgsi.pt): “Constitui abusiva intromissão na vida privada a gravação de conversas ou contactos telefónicos, sem consentimento do outro interlocutor ou autorização judicial concedida pela forma prevista na lei processual, sendo nulos quanto à sua obtenção os respectivos registos fonográficos e, como tal, inadmissíveis como meio de prova, mesmo no processo civil”.
Vertendo ao caso concreto, vemos que, alegadamente, foram gravadas (no telemóvel do Autor) as conversações estabelecidas entre o Autor e a Ré, e que o primeiro quer que funcionem como prova.
Ora, tais gravações são, nos termos preditos, ilícitas, tratando-se assim de prova proibida e nula.
E, como tal, não pode ser atendida pelo tribunal.
Entretanto, poder-se-ia porventura ser tentado a argumentar, em contrário do que fica dito, que lidamos com direitos que não são absolutos, no sentido de que devem ser compaginados com outros direitos constitucionais, neste caso o direito à realização da justiça (acesso aos tribunais). De facto, não se poderá recusar que o oferecimento de provas faz parte do conteúdo do direito de acesso aos tribunais. Simplesmente, como dão conta Jorge Miranda e Rui Medeiros (v. Constituição Portuguesa Anotada, I, p. 195), um tal direito não implica necessariamente a admissibilidade de todos os meios de prova permitidos em direito em qualquer tipo de processo e independentemente do objecto do litigio, assim como não exclui em absoluto a introdução de limitações na produção de certos meios de prova, posto que não arbitrárias ou desproporcionadas. E, de acordo com a lição de Vieira de Andrade (v. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., p. 277, 278 e 310 e sgts) e de Bacelar Gouveia (v. Manual de Direito Constitucional, II, p. 1085 e sgts), o critério a usar em caso de colisão de direitos conferidos pela Constituição deve passar, em primeira linha, não pela hierarquização abstracta dos bens envolvidos nesses direitos fundamentais, mas por uma ponderação em função das circunstâncias concretas em que se põe o problema, de forma a encontrar a solução mais conforme à ordem constitucional. Pois bem: nada se encontra no caso vertente que autorize a pensar que o recurso probatório em causa seja imperioso e insubstituível em ordem à demonstração dos factos a que se destina e, como assim, que sem ele o direito de acção judicial (rectius, de acesso aos tribunais) do Autor seja posto em causa. Já ao contrário, é a todos os títulos evidente que o direito da Ré à reserva da intimidade da vida privada fica completamente desguarnecido. A ser assim, como é, nunca poderia este último direito ser posto em crise no confronto daquele outro.

++

Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, indeferem a produção da prova em questão (reprodução das três conversações telefónicas).

Regime de custas:

A Ré é condenada nas custas da apelação.

+

Sumário (art. 713º nº 7 do CPC):
Por ser ilícita e nula, não pode ser atendida como prova em processo judicial cível uma gravação de conversação telefónica estabelecida entre as partes.

+

Guimarães, 16 de Fevereiro de 2012
José Rainho
Carlos Guerra
Conceição Bucho