Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
729/07-1
Relator: CARVALHO MARTINS
Descritores: COMPETÊNCIA
TRIBUNAL
GESTÃO PÚBLICA
MÉDICO
HOSPITAL
ESTADO
ENTE NÃO PERSONALIZADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Gestão pública é a praticada no exercício de uma função pública para fins de direito público da pessoa colectiva e gestão privada é toda a actividade da Administração que se traduz no exercício da sua capacidade do direito privado. Os serviços hospitalares oficiais desenvolvem uma actividade de gestão pública. A responsabilidade civil da Administração resultante de danos causados aos utentes de tais serviços assume natureza extra-contratual. Assim, se um órgão ou agente da administração, no exercício de uma função pública dotada de poderes de autoridade e por causa desse exercício, pratica um acto ilícito ofensivo de direitos de terceiros ou de uma disposição legal destinada à protecção de interesses de terceiro, o acto entra no âmbito dos actos de gestão pública. Para o conhecimento da responsabilidade emergente desse acto ilícito são competentes os tribunais administrativos. Quer isto dizer que prática de actos médicos em hospitais do Estado ou de outros entes públicos integra-se no âmbito da gestão pública. Para conhecer de eventual responsabilidade civil deles resultante é competente em razão da matéria o tribunal administrativo de círculo.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na Secção Cível no Tribunal da Relação de Guimarães:


I. A Causa:


Aurora S..., nos autos identificados em epigrafe, não se conformando com a decisão, de fls. 202-204, que julgou incompetente em razão da matéria, o presente tribunal, dela veio interpor recurso de agravo, alegando e formulando as seguintes conclusões:

1) Salvo melhor opinião e o devido respeito, não andou bem o Mmo. Juiz a quo, ao julgar que o presente Tribunal é incompetente para julgar esta causa, remetendo-o para os Tribunais administrativos e fiscais.
2) Cumpre desde logo referir que contrariamente ao constante no douto despacho estamos na presença de actos de gestão privada e não de gestão pública.
3) De facto Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado 1 Volume, 4 Edição, pág 510, refere que “(...) os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares. São actos em que o Estado ou a pessoa colectiva pública intervém como um simples particular, despido do seu poder público (...) “.
4) Ora, salvo melhor opinião, a prática médica não apresenta qualquer diferença quando exercido em estabelecimento publico ou a titulo particular ou privado.
5) A ser assim, não se concebe que o Mmo. Juiz a quo, considere que exista um conjunto de deveres (ainda que de carácter funcional) e que no seu Douto despacho não especifica, bem como a existência de um nexo de vínculos estabelecidos nas relações utente/Administração da saúde/funcionário, para justificar a qualificação de que estaríamos na presença de um acto administrativo e não de um acto privado sujeito às normas civis.
6) No âmbito do exercício em estabelecimentos públicos de saúde, ainda existe hoje alguma indefinição, “discutindo-se ainda se os actos aí praticados devam ser class em actos de gestão privada ou actos de gestão pública “. Autores como Freitas do Amaral entendem que deve ser considerado de gestão pública e o art. 22 da Constituição Portuguesa, refere que “O Estado e demais entidades públicas são civilmente responsáveis, de forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo de outro.”
7) Num Hospital público, os médicos no desempenho das suas funções, estabelecem relações jurídicas de diversa índole. O Hospital tem para com o doente internado um contrato hospitalar, assume a responsabilidade de meios, pelo que fornece serviços de hotelaria, presta serviços, instalações, internamento, pessoal médico, enfermagem, etc.
8) Ao fornecer serviços de medicina, fá-lo através de funcionários especializados, integrados num serviço com autonomia a vários níveis: técnica, administrativa e por vezes financeira. Estes Serviços estão organizados e hierarquizados através do Director, nomeado de acordo com a lei do País e escolhido entre os médicos mais diferenciados — Chefes de Serviço. Resulta desta organização que o acto do médico é “destacável” como vimos atrás, mas também individualizado quando se trata de o Hospital assumir a responsabilidade por uma reparação civil.
9) Há contudo que se saber se, com estas condições, a doutrina se inclina ou não para a independência do médico, conduzindo à responsabilidade individualizada, em que cada um responde pelos seus actos. Aceita-se que entre os médicos do mesmo Serviço, exista uma relação de subordinação, onde não é possível extrair a responsabilidade individual. Se um Serviço está organizado com obrigatoriedade de cumprimento de “Guide Lines” e protocolos e embora o médico os cumprisse, sempre que haja necessidade de atribuir responsabilidade, haverá que indagar sobre a boa ou insuficiente fundamentação, de tais regras Standerizadas. Se o médico aplica o princípio da autonomia como médico, responde ele perante os actos.
10) Os Hospitais do SNS têm vários estatutos jurídicos (SPS, EPE, SA, PPP). Vamos localizarmo-nos apenas nos Hospitais do Sector Público. Estes hospitais estão sujeitos a um regime jurídico das leis do trabalho especial, com Serviços hierarquizados, sendo que, como atrás foi referido, o Director é um médico provido em Chefe de Serviço, com o grau de Assistente Hospitalar graduado, o que confere aos Serviços garantia de boa prática médica.
11) A jurisprudência Portuguesa adopta o princípio segundo o qual cabe ao Estado o dever de indemnizar sempre que demonstrada a existência do facto, praticado pelo agente do Serviço que, nessa qualidade, causar dano.
12) No entanto a responsabilidade do Estado, no âmbito do SNS, deriva do facto de o Estado dever organizar os Serviços de Saúde, atribuir-lhes financiamento adequado para estruturas, equipamentos e funcionamento, nomear os gestores de acordo com critérios legalmente definidos, definir regulamentos, exigências e critérios de selecção de funcionários, aprovar planos de acção para a actividade assistencial.
13) Em suma, ter assumido um contrato com os cidadãos, através do qual estes têm possibilidade de aceder, mediante as condições do “contrato” (estatuto do SNS, Legislação base, etc.) à intervenção médica mesmo tendo em consideração as limitações admitidas pela Lei de Bases da Saúde.
14) In casú, salvo melhor opinião, estamos na presença de responsabilidade em relação aos actos dos órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividade de gestão privada — vide neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra, 20-10-1978, in Colectânea de Jurisprudência, 4° - 1162.
15) Pelo que deve ser julgada improcedente a incompetência das Varas, devendo o processo prosseguir os seus ulteriores termos processuais.
16) A Douta sentença violou o disposto no artigo 5010 do Código de Processo Civil.

Não foram proferidas contra alegações.

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

São ocorrências materiais, com interesse para a decisão da causa que:

A A veio alegar a realização de cirurgia de transplante de córnea do olho direito, ocorrida em 1996, que teria tido como consequência a perda da visão do olho direito.
Nestes termos, e nos mais que invoca, sustenta dever a presente acção ser julgada procedente por provada, e, em consequência, a Ré condenada a pagar à A., a articulada quantia de Euros 55000, 00, acrescida dos juros vincendos desde a citação até efectivo pagamento, à taxa legal referida, bem como nas custas e condigna procuradoria.
O Hospital Geral de Santo António veio a fls. 155 invocar a excepção de incompetência em razão da matéria deste tribunal por serem competentes os tribunais administrativos.
Para tal alega que a competência se afere em função da relação material controvertida e com a presente acção a A visa a efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Hospital Geral de Santo António EPE, por prejuízos que alega ter sofrido em consequência de actos médicos que nele lhe foram prestados.
Oportunamente, foi proferida a seguinte decisão:

(…) no caso vertente, o acto material de cirurgia prestado à A enquanto utente do R, constitui um acto de gestão pública pelo “ conjunto de deveres (mesmo de carácter funcional) a cuja observação o médico (enquanto funcionário) se encontra adstrito, a par do nexo de vínculos estabelecidos nas relações utente/Administração da saúde/ funcionário, o que justifica, que, não abandonando embora a distinção entre actos de gestão pública/ actos de gestão privado, complementemos a mesma com o enquadramento institucional que a habilita a integrar as meras operações materiais ocorridas no âmbito de uma relação com uma entidade dotada de força pública, no âmbito das relações jurídicas sujeitas à jurisdição administrativa.
Nestes termos, dúvidas não nos restam de que este tribunal é incompetente para julgar esta causa, bem como todos os tribunais comuns, uma vez que a competência pertence aos tribunais administrativos e fiscais.
Pelo exposto, determino, após trânsito, a remessa dos presentes autos aos tribunais administrativos e fiscais.

O Senhor Juiz manteve a decisão recorrida.

Nos termos do art. 684°, n°3 e 690º, n°1, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n°2 do art. 669°, do mesmo Código.

As questões suscitadas consistem em apreciar se:

1.No caso, estamos na presença de responsabilidade em relação aos actos dos órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividade de gestão privada, pelo que deve ser julgada improcedente a incompetência das Varas, devendo o processo prosseguir os seus ulteriores termos processuais?

2) A decisão violou o disposto no artigo 501º do Código Civil?

Respondendo, pela ordem elencada, com estes elementos, aprecia-se que:

Introduzido pelo DL 329-A195, o preceito, idêntico ao do art. 18-1 LOFTJ, estabelece a competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as restantes ordens de tribunais constitucionalmente consagradas (art. 209-1 CRP) (José Lebre de Freitas, CPC, Anotado, Vol. 1º, pág. 137).

O art. 66.° do Cód. Proc. Civil enuncia o critério geral de orientação para a solução do problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria. E o critério pode resumir-se no seguinte: todas as causas que não forem pela lei atribuídas a alguma jurisdição especial, são da competência do tribunal comum. O critério de atribuição de competência material funciona, assim, por duas vias: uma primeira determinação directa, em que se vai ver, de acordo com a lei orgânica de um dado tribunal, qual a espécie ou espécies de acções que podem ser submetidas ao seu conhecimento, a outra via funciona por exclusão de partes: verificado que a causa de que em concreto se trata não cabe na competência de nenhum tribunal especial, concluísse que para ela é competente o tribunal comum. O tribunal comum é, como diz a lei (art. 67°, nº 1, do Cód. Proc. Civil), o civil.
De facto, ao criar e organizar os vários tribunais «especiais», a lei delimita, também, a sua zona de competência. Fazendo-o de forma que somente as questões expressamente incluídas nessa zona de competência podem ser validamente apreciadas por cada um desses tribunais. Pelo contrário, todas as causas que por lei se incluem na competência de algum tribunal especial pertencem ao foro comum.
Questão prévia a toda esta verificação e determinação é a natureza da matéria que fundamenta ou estrutura a acção. A acção no sentido de direito de acção judicial consiste no direito de uma pessoa recorrer ao tribunal pedindo solução para um litígio (concreto) em que se ache envolvida. Na generalidade dos casos, o direito de acção judicial pretende fazer valer um determinado direito substantivo. Existe, por isso, uma relação muito íntima entre o direito de acção judicial e o direito substantivo de que serve de meio de tutela. Não significa isto, como já se considerou em doutrina ultrapassada, que a acção é um mero elemento ou fase do direito substantivo a acção como o «direito em movimento» ou o «direito em estado de luta» — para se entender como uma faculdade jurídica com autonomia, que cabe a quem de boa fé invocar a razão de um direito, ainda que a não tenha.
Como o nosso processo civil se rege pelo princípio dispositivo — o processo só se inicia se uma das partes [autor] o instaurar, através do exercício da acção judicial —, fácil é de entender que é a matéria de facto invocada por essa parte que estrutura e fundamenta o direito de acção e delimita a pretensão ou pedido» (Ac. STJ, de 20.5.1998: BMJ, 477.°-393).

Palma Carlos (Código de Processo Civil Anotado, pág. 230), depois de salientar que «são da competência do tribunal comum todas as causas que não foram atribuídas por lei a qualquer jurisdição especial», recomendava: «por consequência, ao intentar-se qualquer acção, deve proceder-se a um prévio trabalho de pesquisa: há alguma lei que estabeleça jurisdição especial para a acção que vai propor-se?
Se tal lei existir, a acção deverá ser intentada ante essa jurisdição especial.
No caso contrário, deverá a causa ser proposta perante o tribunal comum que é, normalmente, o tribunal da comarca».

Os factores constantes da competência necessária podem referir-se ou ao modo de ser da lide ou ao modo de ser do processo) daí duas espécies de competência material (respeitante ao modo de ser da lide) funcional (respeitante ao modo de ser do processo).
A competência material apresenta três modalidades: competência em razão da matéria (determina-se pelo conteúdo da lide), competência em razão do valor, competência em razão do território (determinada pela sede da lide)» (Alberto dos Reis, Com., 1.º-110).
Este mesmo Mestre (Anot.,1 .°-201) concluía, formulando a seguinte regra prática: «Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição de lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial».

São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjacentes (identidade das partes). A competência do tribunal — ensina Redenti (vol. 1, pág. 265), afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1 .°- 88).

A competência do tribunal em razão da matéria fixa-se em face da natureza da relação material em debate, segundo a versão apresentada em juízo. É competente, em razão da matéria, o foro administrativo quando, além da qualidade da pessoa responsável, exista um facto que seja característico da actividade administrativa, ou seja, da gestão pública. O que acontece, circunstancialmente.

Tanto assim que o nº3 do art. 212º CRP (anteriormente era o art. 214º) define a função jurídico-constitucional da jurisdição administrativa e fiscal. Esta «competência funcional» consiste em julgar as acções e recursos contenciosos destinados a dirimir litígios emergentes de relações administrativas e fiscais.
Os conceitos de acções e recursos contenciosos são aqui recebidos seguramente com o sentido que lhes é atribuído pela doutrina administrativista e processualista e que se encontra plasmado na legislação e jurisprudência portuguesas. Tipicamente, os recursos contenciosos consistem na impugnação, com fundamento em ilegalidade, de actos administrativos lesivos de direitos e interesses dos particulares; as acções consistem na apresentação de uma pretensão, dirigida a um tribunal administrativo, no sentido de este conhecer e decidir sobre a existência e conteúdo de uma relação jurídico-administrativa (contratos administrativos, responsabilidade civil da Administração, e todas as demais decorrentes da tutela de direitos e interesses protegidos dos cidadãos, nos termos dos art.s 267º e 268º.
Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP, Anotada, 3ª Edição Revista, pp.814-815).

Servem as considerações precedentes para reconduzir a questão à sua formulação originária e noemática, a saber:

- A alegada conduta da ré caracterizar-se-á como gestão pública ou privada?

Apreciando, também, impõe-se referir revestir a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração e das demais pessoas colectivas públicas que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício e organize os meios necessários para esse efeito e, como tal, é regulada pelo Direito Público, enquanto que, por seu turno, assumirá a natureza de gestão privada toda a actividade de Administração ou daquelas outras pessoas colectivas que se traduz no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qual quer outra pessoa, como mero particular, no uso das suas faculdades reguladas por tal direito.
Portanto, os actos de gestão pública são os prestados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva.
Se um funcionário no exercício das suas funções públicas e por causa desse exercício para os fins do direito público desta, pratica um acto ilícito ofensivo de direitos de terceiro, o acto é praticado no domínio dos actos de gestão pública.
Se, ao invés, o agente, fora do exercício da sua função pública, ou, dentro dela, mas para um fim estranho à função pública, pratica um acto ilícito violador dos direitos de terceiro, o acto é praticado no domínio dos actos da gestão privada, podendo ser um acto puramente pessoal do funcionário, um acto que, embora realizado por ele, o é no exercício de uma actividade que a pessoa colectiva lhe conferiu como o poderia ter feito a um particular.


Ora, não restam dúvidas que a actividade hospitalar desenvolvida pelos nossos estabelecimentos ou serviços hospitalares oficiais, se deve considerar como actividade de gestão pública, designadamente, no tocante aos estabelecimentos do tipo do que aqui é visado.

Os arts. 12.º e 45.° do Estatuto Hospitalar e art. 1.º do Regulamento Geral dos Hospitais, aprovados, respectivamente, pelos Decretos-Leis n.° 48357 e 48358 de 27 de Abril de 1968, declaravam, já então, serem de interesse público as actividades exercidas pela organização hospitalar e que o pessoal hospitalar exerce uma função de interesse público e, sobretudo, que os hospitais são serviços de interesse público. Logo, o hospital em causa, integra-se nos serviços oficiais da Administração Pública e os seus servidores, no exercício das suas funções, actuam no desenvolvimento de uma actividade pública, para os fins do direito público da pessoa colectiva e, portanto, no domínio dos actos de gestão pública.
Estas considerações suscitam-nos o problema de saber qual o fundamento jurídico da responsabilidade civil da Administração dos Hospitais Públicos. Essa responsabilidade resultante de danos causados aos respectivos utentes ou terceiros, assume natureza extra-contratual.

Há quem defenda, porém, a natureza quer contratual, nomeadamente, recorrendo à figura do contrato de adesão, quer quase-contratual de tal responsabilidade — na qual existe uma simples modificação do objecto da prestação devida que não prejudica a identidade da relação obrigacional — posição essa que, também, não aceitamos visto que na responsabilidade extra-contratual, diversamente, a obrigação de indemnizar nasce, em regra, da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto que é inteiramente distinto dela.

É o caso. Na verdade, a responsabilidade extra-contratual é a que melhor se adapta aos serviços públicos ou de interesse público. Qualquer pessoa pode utilizá-los nas condições gerais e impessoais do seu regulamento sem a possibilidade de recusa do serviço e, também, sem que ao utente fique reservada a possibilidade de negociar cláusulas particulares.

Todos estes pontos de vista que se adoptaram, foram recolhidos em Vaz Serra, no Bol. Min. da Just., n.° 85, pág. 446 e na Rev. Leg. e Jur., Ano 1 a 3, pág. 331, em Silva Carneiro, na Rev. Direito e Est. Sociais, Ano XIX, pág. 123 e no dito Bol., n.° 237, pág. 136, e Rev. dos Tribunais, Ano 93, pág. 282.

Circunstancialmente, o Réu, Hospital Geral de Santo António, SA, procedeu como agente da Administração, por causa das suas funções e não somente por ocasião delas. O que interessa é que o acto se integre no quadro geral da competência de funcionário, sem o que ficaria praticamente excluída a responsabilidade da pessoa colectiva, visto que todo o facto ilícito contém, em certo sentido, um excesso de competência, não saindo o agente do âmbito das suas funções pelo simples facto de as executar mal.
E não importa que se trate de um funcionário nomeado ou de um contratado ou assalariado, pois a razão é sempre a mesma, motivo porque é indiferente o saber-se em que situação se encontrava o réu, no tocante ao quadro do funcionalismo hospitalar, sabido que ali se exerciam funções profissionais oficiais.
Daí que, em princípio, responda civilmente a Administração, sem prejuízo da admissibilidade de casos em que, a par de uma conduta funcional se verifique, também, uma conduta pessoal do agente, determinante, igualmente, da responsabilidade deste, porque há uma culpa de serviço e porque a culpa pessoal não é desprovida de toda a relação com ele.

Este é, de resto, e diversamente do sentido sustentado em alegações, o alcance decorrente do que se consagra no Ac. RC, 20.10.1978, CJ, 4º,1162 - invocado nas alegações formuladas -, onde, de resto, se consagra em sumário que:

Gestão pública é a praticada no exercício de uma função pública para fins de direito público da pessoa colectiva e gestão privada é toda a actividade da Administração que se traduz no exercício da sua capacidade do direito privado.
Os serviços hospitalares oficiais desenvolvem uma actividade de gestão pública. A responsabilidade civil da Administração resultante de danos causados aos utentes de tais serviços assume natureza extra--contratual.
Se uma médica, por negligência, causa lesões a uma doente, fica obrigada, além da Administração, ao ressarcimento dos danos por ocorrer em responsabilidade civil conexa com a criminal.

O art. 501º, Cód. Civil mostra, por sua vez, que o Estado se pode submeter a responsabilidade civil, de natureza privada: mas nele parece aflorar a distinção entre alteração no uso de autoridade pública e actividade da gestão privada. No exercício de actividade de gestão privada o Estado submete-se ao Cód. Civil, como qualquer particular, quando, no exercício de actividade de gestão pública, se rege por um estatuto especial de direito público (Castro Mendes, Teoria Geral, 1978, 1º-34).

Os actos de gestão pública são praticados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva, isto é, os regidos pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva poderes de autoridade para tais fins. Assim, se um órgão ou agente da administração, no exercício de uma função pública dotada de poderes de autoridade e por causa desse exercício, pratica um acto ilícito ofensivo de direitos de terceiros ou de uma disposição legal destinada à protecção de interesses de terceiro, o acto entra no âmbito dos actos de gestão pública. Para o conhecimento da responsabilidade emergente desse acto ilícito são competentes os tribunais administrativos (Ac. RP. 14-11-1985: BMJ, 351.°- 457).

Quer isto dizer que a prática de actos médicos em hospitais do Estado ou de outros entes públicos integra-se no âmbito da gestão pública. Para conhecer de eventual responsabilidade civil deles resultante é competente, em razão da matéria, efectivamente, o tribunal administrativo de círculo (Ac. RC, 18-10-1988: BMJ. 380-553).

Colhem, deste modo, resposta negativa as questões em 1 e 2 formuladas.


Podendo, assim, concluir-se que:

1. Introduzido pelo DL 329-A195, o art.66º CPC, idêntico ao do art. 18-1 LOFTJ, estabelece a competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as restantes ordens de tribunais constitucionalmente consagradas (art. 209-1 CRP).

2. A competência do tribunal (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum) é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.

3. A competência do tribunal em razão da matéria fixa-se em face da natureza da relação material em debate, segundo a versão apresentada em juízo. É competente, em razão da matéria, o foro administrativo quando, além da qualidade da pessoa responsável, exista um facto que seja característico da actividade administrativa, ou seja, da gestão pública. O que acontece, circunstancialmente.

4. Gestão pública é a praticada no exercício de uma função pública para fins de direito público da pessoa colectiva e gestão privada é toda a actividade da Administração que se traduz no exercício da sua capacidade do direito privado.

5. Os serviços hospitalares oficiais desenvolvem uma actividade de gestão pública. A responsabilidade civil da Administração resultante de danos causados aos utentes de tais serviços assume natureza extra-contratual.

6. Assim, se um órgão ou agente da administração, no exercício de uma função pública dotada de poderes de autoridade e por causa desse exercício, pratica um acto ilícito ofensivo de direitos de terceiros ou de uma disposição legal destinada à protecção de interesses de terceiro, o acto entra no âmbito dos actos de gestão pública. Para o conhecimento da responsabilidade emergente desse acto ilícito são competentes os tribunais administrativos.

7.Quer isto dizer que prática de actos médicos em hospitais do Estado ou de outros entes públicos integra-se no âmbito da gestão pública.

8. Para conhecer de eventual responsabilidade civil deles resultante é competente em razão da matéria o tribunal administrativo de círculo.

III. A Decisão:
Pelas razões expostas, nega-se provimento ao agravo interposto, consequentemente se mantendo a decisão proferida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC.
Guimarães, 10, de Maio de, 2007.