Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
286/09.5TCGMR.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
PARTICIPAÇÃO DO SINISTRO
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE
CONFISSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A presunção legal contida no artº 35º, nº 3, do Dec.Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, pressupõe, como emerge do próprio texto desse normativo, que a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os condutores envolvidos no sinistro.
2. Logo, a assinatura da participação de sinistro apenas por um único condutor não faz inverter o ónus de prova, de modo a dispensar o segurado de provar o facto a que a presunção conduz, ou seja, o sinistro, circunstâncias, moldes e consequências do mesmo.
3. Tal declaração equivaleria a dar relevância jurídica probatória a factos confessórios, quando estes eram favoráveis ao confitente, ao arrepio do disposto no artº 352º, do Código Civil, nos casos em que o condutor é o segurado e/ou dono do veículo.
Decisão Texto Integral: I – Relatório;

Recorrente: Adão …Pereira (Autor);
Recorrida: “L…, Companhia de Seguros, S.A.”;
*****

Adão … Pereira demandou na presente acção de condenação a “L…, Companhia de Seguros, S.A.”, reclamando desta o pagamento da quantia de € 41.132,42, acrescida de juros moratórios.

Alegou, em síntese, que ocorreu um embate com o veículo, de que é dono, de matrícula ...-AD-..., teve danos causados neste veículo seguro na ré, pedindo o seu pagamento.
A Ré contestou, concluindo pela improcedência da acção, aduzindo em sua defesa que o aludido embate não se verificou nas circunstâncias de tempo, modo e lugar relatadas na petição inicial.
Realizada a audiência de julgamento, o tribunal recorrido proferiu decisão a julgar improcedente, por não provada, a acção, absolvendo a ré do pedido.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso o autor, de cujas alegações se extraem as seguintes conclusões:
a) É imperioso que se alterem as respostas dadas aos quesitos 1 a 8 da Base Instrutória, pois dar-se tais factos como não provados redunda numa sentença injusta, porque assenta na errada apreciação da prova, pois nenhuma foi produzida, que permitisse ao Tribunal dar tais factos como não provados daquele modo.
b) O Tribunal não valorou devidamente o depoimento das testemunhas arroladas pelo Autor (pois que se limitou a censurá-lo), ignorando as suas razões de ciência relativamente à matéria controvertida, como se pode comprovar pelo depoimento das mesmas.
c) O Tribunal sustentou a resposta negativa em factos que não foram alegados por nenhuma das partes, que não são instrumentais, nem complementares dos alegados. Para tais factos, nenhuma parte interessada manifestou de forma clara e inequívoca a intenção de deles se aproveitar.
d) O Tribunal a quo utilizou factos não constantes dos articulados, designadamente especulações, desconfianças, comentários e possibilidades remotas, testemunhos de pessoas sem conhecimento directo dos factos, e nessa medida, os mesmos não podem servir para justificar uma resposta negativa aos factos.
e) Os factos não provados de 1 a 8 da Base Instrutória e supra referidos, não deverão manter-se como negativos, visto que a justificação dada pelo Tribunal não é suficiente (cfr. depoimentos transcrito e documentos supra referidos) e deverá ter-se por não escrita e substituída por outra que dê os referidos quesitos por provados em conformidade com a prova produzida e a lei.
f) Os documentos, quer particulares, quer autênticos, assumem especial importância como meios de prova.
g) No caso dos autos, a sua existência assenta em todos os depoimentos supra referidos, sendo certo que nenhuma prova foi proferida em relação à sua validade.
h) Todo o vertido na Contestação não resultou provado, pois o alegado pela Ré é baseado em conjecturas, sem qualquer suporte documental, sendo meramente conclusiva e fruto da fértil imaginação dos seus autores, baseou-se em alegadas incompatibilidades dos estragos resultarem do embate num penedo tipo bola e na alegação de que entre o sinistro em crise e outros os danos serem semelhantes.
i) Contudo, não considerou as datas posteriores dos alegados embates e as divergências evidentes entre todos.
j) O Tribunal não está habilitado a aferir da tipologia dos danos, pois que para esse efeito teria que se socorrer de perícia por técnico habilitado e não das conjecturas alegadas pela Ré.
k) O Tribunal desconfia das coincidências e das divergências dos depoimentos, para a partir daí construir teses infundadas, baseia-se num relatório da SGS, desmentido pelo averiguador em audiência de julgamento conforme demonstra o seu depoimento que se encontra supra transcrito e por brevidade se dá por reproduzido;
l) Os factos alegados pela Ré (relativos ao sinistro) não se provaram e os demais não são relevantes para a boa decisão da causa.
m) A versão apresentada pela Ré não é credível e é absolutamente destituída de credibilidade, pois basicamente assenta em desconfianças e suposições relativas ao A.
n) Todos os documentos supra referidos são reprodutivos do sucedido e não foi produzida prova em audiência de julgamento susceptível de os pôr em causa.
o) Considerando que a Ré pôs em causa que a viatura circulasse, o Autor fez a prova possível, ou seja, ouviu a mediadora de seguros que referiu que a viatura estava intacta quando fez o contrato de seguro, juntou um relatório de alinhamento antes do sinistro e um auto de contra-ordenação na cidade de Felgueiras. Contudo, o Tribunal não se convenceu da veracidade de tal depoimento e dos referidos documentos, que sendo emitidos por entidades sem qualquer interesse na causa deveriam ser suficientes para ilidir as infindáveis dúvidas do tribunal.
p) A perícia tem força probatória vinculativa e o Tribunal apenas podia decidir contra o alegado pelo Autor se dos autos existisse documento com força probatória maior.
q) As alegadas desconfianças do tribunal quanto aos factos passarem no domínio das relações pessoais do autor não são suficientes, para sem qualquer facto concreto ilidir a presunção de que o sinistro ocorreu conforme participado (cfr. participação do sinistro junta a fls 12 dos autos).
r) Ignora o Tribunal a quo que, a força probatória dos documentos impõe-se em relação a terceiros, só podendo ser posta em causa com base na falsidade de documentos (cfr. art. 35º do Decreto-Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto).
s) De facto, o artigo 35º nº 3 (presume-se que o sinistro se verificou nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências constantes da mesma, salvo prova em contrário por parte da empresa de seguros) e 92º (para o caso de seguros de danos próprios como é o caso dos autos) do referido DL refere que “quando a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os condutores envolvidos no sinistro, presume-se que o sinistro se verificou nas circunstâncias, nos moldes e com as consequências constantes da mesma, salvo prova em contrário por parte da empresa de seguros”.
t) Verificando-se a aplicabilidade dos referidos art.s 35 e 92 do Decreto-Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto, estamos no âmbito de uma presunção legal, que nos termos do art. 350º do CC, dispensa o A. de provar o facto a que a presunção conduz, ou seja, o sinistro, circunstâncias, moldes e consequências do mesmo.
u) Estamos, também, no âmbito do artigo 344º do Código Civil, inversão do ónus da prova, ou seja o Autor está libertado do ónus da prova quando a lei o determine, o que é o caso dos
autos, atendo o dispor dos artigos supra referidos.
v) Com a publicação do supra referido Decreto-Lei passou a ser admitida a supra referida presunção.
w) A valoração da prova para a convicção de condenação ou de absolvição tem que levar em conta a presunção (art. 344º e 350º do CC) supra referida.
x) O juízo crítico e rigoroso sobre a prova (alheado de suposições ou conjecturas), baseado na regra/presunção supra referida e a sua ligação a cada facto a provar, sendo a tarefa mais difícil do julgador, é o momento determinante para termos uma decisão de qualidade.
y) Impunha-se que o tribunal respondesse «provado» aos factos supra referidos tanto mais que, as testemunhas confirmam o sinistro, a participação do acidente atesta os vestígios no local, o sentido de marcha e o local do embate e a Ré quantificou os danos.
z) Contudo, lida e relida a decisão, não se vislumbram quaisquer factos, mas apenas suposições e conjecturas que nada provam, daí que não tenham gerado convicção, mas sim
apenas a duvida sobre o julgador, o que invalida totalmente a decisão absolutória, porque violou uma presunção legal que não foi ilidida e consta expressamente do os art.s 35 e 92 do
Decreto-Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto.
aa) Ao alicerçar toda a sua decisão na dúvida erra de todo nas regras que devem seguir os Tribunais, visto que não é livre a decisão do tribunal a quo, pois não lhe basta desconsiderar os meios de prova que lhe são apresentados.
ll) O A. alegou na PI que a presente acção emergia de contrato
celebrado com a Ré, onde estavam incluídos os danos da
própria viatura.
bb) Tal facto foi aceite pela Ré na sua contestação, o que equivale a confissão expressa.
cc) Da sentença não se vislumbra que os factos tenham sido apreciados à luz dos artigos 427 do C. Comercial e 762 e ss do CC.
dd) De facto, a acção fundou-se no incumprimento do contrato celebrado entre A. e Ré, ou seja, a mesma é originada na falta de cumprimento da obrigação por parte da Ré, em virtude da Apólice de Seguro celebrado com a mesma, com cobertura de danos próprios (responsabilidade contratual), pelo que, apenas caberia ao A. alegar e provar o nascimento da obrigação (facto constitutivo), facto do qual até está dispensado em virtude da redacção do art. 35 e 92 do DL nº 291/2007 de 21 de Agosto, em vigor à data do sinistro.
ee) Ou seja, esta acção apenas tinha por finalidade exigir a responsabilidade civil emergente da falta de cumprimento do contrato – responsabilidade contratual. Na conformidade do alegado, ao A. somente compete provar o nascimento da obrigação.
ff) Na petição inicial apresentada pela A., a mesma alega factos que integram a falta de cumprimento do contrato por parte da Ré e não a Responsabilidade civil extracontratual.
gg) O A. peticiona que a Ré lhe pague a quantia devida pela reparação da sua viatura.
hh) Visto que, gozava à data do sinistro da cobertura de danos próprios (choque, colisão e capotamento).
ii) Assim, verificando-se o facto e as suas consequências, a Ré teria que ser condenada em face do contrato que celebrou com a A., nos moldes peticionados.
jj) Mostram-se assim violados entre outros os artigos 35º e 92 do DL 291/2007 de 21 de Agosto, art.s 344º, 350º, 362º, 376º e 762º e ss do CC, 158º, 653º, 655º, 659º, 664º e 712º do CPC, artigo 427º do C. Comercial e 208º da CRP.

Apresentou a recorrida as respectivas contra-alegações, pugnando pelo decidido.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 685º-B, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).


As questões suscitadas pelo Recorrente prendem-se com a impugnação da matéria de facto, com a inversão do ónus da prova e com o incumprimento do contrato de seguro de danos próprios.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;


1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:

1. Em 12 de Dezembro de 2007, entre o A. e a Ré foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela Apólice nº.310000144344001 e com referência ao veículo ...-AD-..., com cobertura de danos próprios, abrangendo choque, colisão e capotamento (cfr. fls.32 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) – alínea A. do Factos Assentes (F.A.).
2 A Ré, apesar de ter agendado dia para a peritagem, não a concluiu – alínea B. dos F.A..
3. Dado o avançar do tempo e a recusa da Ré em concluir a peritagem, o Autor mandou reparar o ...-AD-... – alínea C. dos F.A..
4. O ...-AD-... é da marca Mercedes, modelo SLK 200, 1796 de cilindrada, do ano de 2005, a gasolina – alínea D. dos F.A..
5. O ...-AD-... apresentava estragos cuja reparação foi estimada pela SGS em € 30.989,43 (trinta mil, novecentos e oitenta e nove euros e quarenta e três cêntimos) – resposta aos artigos 9º e 10º da Base Instrutória (B.I.).
6. À data, o ...-AD-... não valia mais de € 33.840,00 – resposta ao artigo 18º da B.I..


*****

2. De direito;


a) Impugnação da matéria de facto;
b) Inversão do ónus da prova;
c) Incumprimento do contrato de seguro de danos próprios.

Pretende o autor a modificação da matéria de facto no que respeita à verificação do alegado embate, dando-se assim como provados os factos atinentes à ocorrência do despiste e consequente condenação da ré no pagamento da indemnização reclamada nos autos.

A reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação obedece a regras e limites que importa a priori enunciar.
O art. 655º do CPC consagra o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

Segundo este princípio, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.

“O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração (...): é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.

Representando, tal como os outros princípios referidos, uma conquista que se tem vindo a desenvolver desde a Revolução Francesa, a livre apreciação implantou-se historicamente em substituição dum sistema de prova legal em que os próprios depoimentos testemunhais eram valorados em função de factores meramente quantitativos. Hoje, a liberdade de apreciação da prova pelo julgador constitui a regra, sendo excepção os casos em que a lei lhe impõe a conclusão a tirar de certo meio de prova.” (J. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., 2008, pág. 668, em anotação ao art. 655).

Por outro lado, quanto ao recurso da matéria de facto afirma-se no preâmbulo do DL 39/95, de 15.02, que veio a prever e a regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, que: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento (sublinhado nosso), incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso” e, ainda, “... o objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova ...”.

Deste modo, a ratio legis ínsita à alteração dos factos pela via do recurso plasmada no artº 712º, do CPC, pauta-se por uma reapreciação pontual da matéria de facto justificada por manifesto e excepcional erro de julgamento, contrário à evidência das provas, não pela leitura e convicção que estas geram no julgador – que é livre, não sendo determinada por qualquer hierarquização das provas – mas pela clara desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Assim, os poderes do tribunal da Relação de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto deverá restringir-se aos casos de flagrante desadequação entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, não podendo confundir-se com um novo julgamento, destinando-se essencialmente à sanação de manifestos erros de julgamento, de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova “ (v. Ac. STJ, de 14/3/2006, in CJ, XIV, I, pg. 130; Ac. STJ, de 19/6/2007,www.dgsi.pt; Ac. TRL, de 9/2/2005, www.pgdlisboa.pt), e sendo entendimento dominante na jurisprudência que a convicção do julgador, firmada no principio da livre apreciação da prova (artº 655º do CPC), só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando fundamentada em provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum.

Este entendimento é perfilhado no Ac. do STJ de 10.5.07 (Proc. 06B1868, relatado pelo Conselheiro J. Pires da Rosa), no qual se escreveu o seguinte: “O tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova) mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Claro – repete-se – que por mais sugestiva ou adequada que seja ou pareça a fundamentação do tribunal recorrido, o tribunal tem de conhecer as provas produzidas, tem de ouvir as cassetes (nos pontos indicados, ao menos) sempre, porque só a partir dessa audição – e do confronto dela com as mais provas - pode aferir dessa adequação ou razoabilidade. Mas se esta existe não há que alterar o que quer que seja, não há que substituir a razoabilidade afirmada por uma outra razoabilidade à qual necessariamente faltariam alguns elementos de suporte – já se falou nisso acima - que ajudaram a estruturar a primeira. Estaria a substituir-se uma razoabilidade por uma outra, todavia mais débil.”

Tecidas estas considerações, cumpre então apreciar o caso concreto.

Desde logo, como sublinha a recorrida, na sua impugnação da matéria de facto, o recorrente parece mais sindicar a convicção do julgador quanto ao modo como não se verificou o embate e consequentes danos do que indicar fundamentos credíveis que pudessem consubstanciar um erro manifesto, flagrante, na forma de analisar o articulado despiste em causa.

Com efeito, alicerça a sua impugnação da matéria de facto numa transcrição básica e parcial dos depoimentos testemunhais, com o fundamento que se trata de ora de testemunhas presenciais, ora de testemunhas envolvidas na dinâmica do alegado despiste.

Todavia, como se alcança das respostas dadas aos quesitos, o que é posto em crise pelo tribunal recorrido é a coerência, a consistência e a credibilidade desse relato, face aos outros elementos de prova, nomeadamente documentais, como a participação do sinistro, as fotografias de fls. 105 e sgs., 113 e sgs., 128 e sgs., 164 e sgs., do local do dito embate (fls 171 a 174), do tipo de danos e sua incompatibilidade com a aludida dinâmica do despiste e embate.

E, em abono da verdade, o recorrente nem sequer refuta em si os elementos de prova e as premissas que fundam a convicção formada pelo julgador e na qual se baseou para considerar incongruente a versão trazida pelas aludidas testemunhas na produção dos danos reclamados. O que o recorrente defende é que o julgador não devia duvidar, quando a dúvida sobre a realidade dum facto – neste caso de um embate e alegados danos – é mais do que justificada.

Aliás, diga-se, desde logo, que o circunstancialismo atinente ao dito despiste e embate plasmado na petição inicial nem sequer corresponde, sintomaticamente, ao narrado pelo condutor em audiência, já que naquela se articula como causa um mero despiste do próprio condutor, enquanto que este, em julgamento, é peremptório em afirmar que a origem desse despiste não se deve a conduta sua mas de um condutor terceiro, que não identificou e que lhe “cortou a curva à direita “ (segundo as suas palavras), obrigando-o a desviar-se.

É a seguinte a matéria quesitada e não provada que o recorrente impugna:

« 1º No dia 08 de Maio de 2008, pelas 21h30m, o Luís … Castro conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...-AD-...?
2º Circulando na Estrada Municipal que liga a freguesia de Santo Amaro com a freguesia de Creixomil em Guimarães, no sentido St.º Amaro – Creixomil?
3º Na faixa mais à direita atento o seu sentido de marcha?
4º O ...-AD-... despistou-se e raspou com a lateral direita do veículo?
5º Indo, depois, embater frontalmente num penedo que se encontrava no seu lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha?
6º No local, a faixa de rodagem tem duas vias?
7º No local, a faixa de rodagem tem cerca de 4 metros de largura?
8º E forma uma curva à direita, atento o seu sentido de marcha?»

Ora, ouvidas e analisadas as declarações das testemunhas indicadas na sua alegação de recurso, no seu confronto com a demais prova produzida, designadamente os documentos juntos aos autos, podemos concluir que a decisão da matéria de facto levada a cabo pelo tribunal recorrido se mostra acertada, não havendo razões para a alteração pretendida.

Assim, não obstante as doutas alegações, entende-se que o tribunal a quo apreciou a prova, inclusive testemunhal, escrutinando o conteúdo dos diversos depoimentos, analisando a sua razão de ciência e fazendo, enfim, um exame crítico da mesma, com especificação ex abundantis dos fundamentos que foram decisivos para formar a sua convicção, como preceitua o artº 653º nº 2, do CPC, e se alcança da motivação da matéria de facto.

Além disso, mesmo nas respostas negativas, alicerçou-as em factos articulados pelas partes, sendo certo que a invocada alegação de despiste e embate, como causa do danos sofridos, foi desde logo questionada pela parte contrária, na sua contestação, como se infere dos seus artigos 2º a 5º.

Tão pouco o esgrimido unanimismo, coerência e fiabilidade dos depoimentos das assinaladas testemunhas Francisco Martinez, Luís Castro, Maria do Céu, Magda Patrícia, José Carlos ou José Martins se coaduna com a versão dos factos de cada uma delas e no confronto entre si, o que põe em causa a relatada dinâmica do embate, bem como a origem, a natureza e extensão dos danos produzidos no veículo seguro.

Desde logo, aquilatando-se do relato das testemunhas Francisco e Luís, sobrinho do autor, (sendo que aquele teria presenciado o embate e este seria o condutor do veículo sinistrado) são patentes e relevantes as contradições quanto à dinâmica que envolveu esse sinistro: enquanto que o dito Francisco diz que viu o carro no momento em que bate no penedo, o referido Luís, condutor, afirma que aquele Francisco chegou passado 1 a 2 minutos de ter batido e “que viu o carro lá esbarrado”. Ou seja, enquanto que um diz que viu o acto de embate em si, o outro afirma que aqueloutro chegou 1 a 2 minutos após ter ocorrido esse esbarramento. Além de que o mencionado condutor refere, como causa do despiste e subsequente embate, a manobra infractora (de invasão da sua metade da faixa de rodagem) de um veículo terceiro (que não foi identificado nem o seu condutor), mas tal circunstancialismo não foi referenciado sequer nem pela testemunha Francisco (sendo que esse veículo teria que circular praticamente à frente e no mesmo sentido do do Francisco) nem consta da declaração do acidente de viação de fls. 12 e 13 apresentada na companhia seguradora pelo aqui autor, dono do veículo.

Ora, não é dada qualquer explicação plausível para a omissão de tal circunstancialismo fáctico (intervenção de terceiro como causa do despiste seguido de embate), assim como a não chamada da autoridade policial ao local, uma vez que o autor, além de ter experiência de tal tipo de situações e dos procedimentos a seguir, dois dias antes (10.12.2007) havia feito uma reclamação (a fls. 131 a 138) de sinistro automóvel junto do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros Automóvel, reclamando precisamente uma indemnização de €: 45.690,96, junto da seguradora “ Victória Seguros”, por despiste, em 18.07.07 do mesmo veículo – reclamação, na sequência da carta de fls. 139 em que tal seguradora se recusava a pagar porque punha em causa as circunstâncias que envolveram tal sinistro (?).

Ademais, o apontado condutor Luís, embora sem ter a certeza (o que torna pouco consistente o seu testemunho), quando perguntado se estava dentro ou fora do carro, quando o Sr. Francisco chegou, respondeu de forma titubeante: “Não tenho a certeza, mas acho que estava fora do carro”.

Em resumo, o conteúdo discrepante e contraditório das declarações dos alegados condutor do veículo e testemunha presencial do embate, quanto à descrição deste, (cujo depoimento se reveste de primordial importância para se aferir da ocorrência ou não do embate e danos nos termos descritos pelo autor), é de molde a concluir-se que o juízo do tribunal a quo sobre a matéria de facto vertido naqueles quesitos 1ª a 8º, no sentido de não se provar, se mostra acertado.

Por outro lado, também o depoimento das testemunhas Maria do Céu e Magda Patrícia, esta sobrinha do autor e esposa do mencionado Luís, condutor da viatura) evidencia notória contradição, quanto à vistoria ao veículo, para efeitos de feitura do seguro, afirmando uma (a Maria do Céu) que não viu o veículo no dia em que fez o seu seguro de danos próprios, observando-o após uma semana, enquanto a outra afirma o contrário: que aquela não só o viu, no dia de elaboração do contrato de seguro, como andou nele com a depoente – o que é susceptível de abalar a credibilidade do seu relato, mormente no que tange ao estado de conservação e de funcionamento do veículo em causa, no momento de efectivação do contrato de seguro de danos próprios.

Já no tocante ao teor do depoimento da testemunha José Carlos, o mesmo é inócuo.

Por seu turno, o relato da testemunha José Martins mostrou-se algo incipiente e inconclusivo, no que concerne ao apuramento do modo como ocorreu o despiste e embate, segundo a caracterização articulada pelo autor, tanto mais que observou o respectivo veículo “AD” já depois de desmontado e confirmou não lhe ter sido entregue qualquer factura da aquisição das peças aplicadas no “AD” após o anterior alegado embate.

Por seu turno, no que concerne à análise da peritagem (fls. 813 e sgs.) e dos documentos carreados para os autos, nomeadamente fotografias do local, do veículo, das peças desmontadas, das diversas participações de sinistro que envolveram o “AD”, da “nota de entrega” de fls. 565, das facturas, em conjugação com os depoimentos das demais testemunhas, inclusive Carlos Alberto Alves, mostra-se a mesma objectiva, pormenorizada e fundamentada, como se pode, aliás, extrair de toda a motivação da matéria de facto do tribunal a quo.

É obvio que em toda essa fundamentação é feita uma valoração crítica dos meios de prova, se explicita o iter formativo da convicção do julgador, ao invés de ser amorfa.

Discorda-se, pois, que essa apreciação se paute por pura subjectividade, preconceito ou suposição.

E mesmo em relação à peritagem (vide fls. 813 e seguintes), são especificados os fundamentos que estão na base da sua criteriosa valoração, sendo que a sua força probatória é fixada livremente pelo tribunal, nos termos do artº 389º, do CC.


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Estriba-se ainda o apelante na presunção legal contida no artº 35º, nº 3, do Dec.Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, para argumentar que houve o enunciado erro de apreciação da matéria de facto, uma vez que está dispensado de provar o facto a que o a presunção conduz, ou seja, o sinistro, circunstâncias, moldes e consequências do mesmo.
Dito de outro modo, uma vez que, por via dessa presunção, se inverteu o ónus da prova, a empresa seguradora não alegou nem demonstrou quaisquer factos que refutassem a caracterização do sinistro e danos causados que o autor articulou, como se impunha aquela.
Como é elementar, não se pode concordar com tal argumentação, já que conduziria, salvo o devido respeito, a uma situação jurídica aberrante e constituiria um claro apelo à fraude.
É que, com tal entendimento, bastaria ao único condutor preencher (“à sua maneira”) a participação do sinistro, para fazer inverter, desde logo, a prova da verificação do mesmo, fazendo recair sobre a seguradora a demonstração de que o mesmo ocorreu de forma diferente.
Mais: tal declaração equivaleria a dar relevância jurídica probatória a factos confessórios, quando estes eram favoráveis ao confitente, ao arrepio do disposto no artº 352º, do CC, nos casos em que o condutor é o segurado e/ou dono do veículo.
Ora, o citado artº 35º nº3, do Dec.Lei nº 291/2007, de 21.08, prescreve expressamente que a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os condutores envolvidos no sinistro.
Além disso, tratando-se duma ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido [cfr. art.º 349º, do (CC)], a ratio legis de tal preceito deve ser enquadrada no contexto dos objectivos que o diploma pretendeu alcançar, a saber a agilização dos procedimentos de regularização de sinistros, no domínio do seguro obrigatório do ramo automóvel, entre condutores.
Pressupõe, assim, que esteja envolvido no sinistro mais do que um condutor, o que se compreende até pelas razões acima aduzidas.
Por último, cabe dizer que a remissão genérica feita no artº 92º do mesmo diploma, no que concerne aos danos próprios, para o assinalado artº 35º, não exclui, antes pressupõe, que a participação modelo se mostre assinada por ambos os condutores – o que não é manifestamente o caso.

Também não se descortina a propalada falta de fundamentação da decisão, como imposição legal que decorre das mencionadas normas: artº 208º, da CRP e artºs 158º, 653º, nº 2 e 659º, nº 3, todos do CPC.
Quer a decisão de facto (quanto aos factos provados e não provados), quer a decisão de direito evidencia claramente os seus fundamentos, explanando-se detalhadamente os que foram decisivos para o julgador, mormente quanto à factualidade enunciada nos reditos quesitos 1º a 8º da base instrutória e às razões da resposta negativa aos mesmos, como decorre de toda a motivação explanada a fls. 829 a 837 dos autos.
Inexiste pois violação dos citados preceitos legais e dos demais incluídos na conclusão jj) supra.

Em resumo, atentas as razões expendidas, decide-se manter inalterada a matéria de facto fixada pelo tribunal de 1ª instância.
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Por último, contrapõe o apelante que, alicerçando-se a acção no contrato de seguro de danos próprios, que a demandada seguradora aceitou, e verificando-se o seu incumprimento, a pretensão do autor tinha necessariamente de proceder com base na responsabilidade contratual.
É linear que o que estava em causa nos autos era a responsabilidade contratual (e não extra contratual) com base em contrato de seguro facultativo de danos próprios decorrentes de choque, colisão e capotamento do veículo em causa.
Todavia, como emerge da decisão recorrida, não se tendo provado, ante a realidade fáctica apurada, que se verificara qualquer colisão em que interviera o aludido veículo “AD” e que fosse causa dos alegados danos, nos termos descritos pelo demandante e cujo custa reclamava, não se mostra verificado “o evento coberto pelo contrato de seguro em apreço”.
Logo, não há que falar sequer em incumprimento contratual quando o factualismo em causa não se subsume no objecto do contrato de seguro, como sucede no caso em análise.

Destarte, a apelação não pode proceder.

Sintetizando:
A presunção legal contida no artº 35º, nº 3, do Dec.Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, pressupõe, como emerge do próprio texto desse normativo, que a participação do sinistro seja assinada conjuntamente por ambos os condutores envolvidos no sinistro.
Logo, a assinatura da participação de sinistro apenas por um único condutor não faz inverter o ónus de prova, de modo a dispensar o segurado de provar o facto a que a presunção conduz, ou seja, o sinistro, circunstâncias, moldes e consequências do mesmo.
Tal declaração equivaleria a dar relevância jurídica probatória a factos confessórios, quando estes eram favoráveis ao confitente, ao arrepio do disposto no artº 352º, do Código Civil, nos casos em que o condutor é o segurado e/ou dono do veículo.

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IV – Decisão;

Em face do exposto, na improcedência da apelação, acordam os Juízes desta 1ª secção cível em confirmar a sentença recorrida.


Custas pelo apelante.


Guimarães, 11.07.2012
António Sobrinho
Isabel Rocha
Manuel Bargado