Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2000/22.0T8VCT-B.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE DESTITUIÇÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
LEGITIMIDADE PASSIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Numa sociedade por quotas apenas com dois sócios, simultaneamente gerentes, em que existe um terceiro gerente, não sócio, pretendendo um dos sócios gerentes a destituição do cargo do gerente não sócio, com justa causa, no âmbito do processo especial de destituição de titulares de órgãos sociais, previsto no art.1055º do CPC, deve demandar o gerente e a sociedade, por força do nº4 do art. 257º do CSCom., tratando-se de litisconsórcio necessário.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

A. M., sócio gerente da sociedade comercial Quinta de X, Ld.ª instaurou a presente acção com processo especial de destituição de titulares de órgãos sociais, pedindo que os réus H. M., sócio gerente, e M. A., gerente, sejam destituídos da gerência da referida sociedade, requerendo ainda, ao abrigo do nº 2 do art. 1055º do CPCivil, a suspensão cautelar preliminar dos mesmos do cargo,
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Inquiridas duas testemunhas indicadas pelo A. e tomadas declarações ao mesmo, foi proferida decisão do pedido cautelar de suspensão dos RR. do cargo, com o seguinte
Dispositivo:
“Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal procedente, por indiciariamente provada, a presente medida cautelar e, consequentemente, determina a suspensão dos Requeridos H. M. e M. A. do cargo de gerentes da sociedade comercial Quinta de X, Ld.ª.---
Custas pelo R [art.º 539.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil].---
Registe e notifique.”
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Os RR. inconformados com esta decisão cautelar, interpuseram o presente recurso, terminado as suas alegações, com as seguintes
CONCLUSÕES (transcrição)

2.3.1 Ilegitimidade processual passiva
1. Pela presente acção o Autor, sócio da sociedade comercial Quinta de X, Ld.ª, pretende a destituição dos outros dois gerentes dessa sociedade mediante invocação de justa causa, sendo que um desses gerente é o seu único sócio e o outro gerente é pessoa que não é sócia da referida sociedade.
2. Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade (artº 257º, nº 4 do CSC).
3. Sendo a sociedade, por determinação legal, a titular desse interesse, carecem os Recorrentes de legitimidade processual passiva (artº 30º, nº 3 do CPC).
4. A sentença recorrida violou, por erro manifesto de interpretação e de (não) aplicação, o disposto no artigo 257º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais, bem como o disposto no artigo 30º, nº 3 do CPC.
5. Deve tal sentença ser revogada e substituída por outra que, face ao disposto em tais normas, declare a ilegitimidade processual passiva dos Réus e os absolva da instância (artº 278º, al. d) do CPC).
2.3.2 Sem prescindir: ainda a ilegitimidade processual passiva
6. A relação jurídica de gerência não se estabelece entre os sócios nem entre um sócio e o gerente, mas sim entre o gerente e a sociedade, sendo este os titulares passivo e activo de tal relação.
7. Ainda que se entenda que no caso de uma sociedade constituída apenas por dois sócios, o sócio destituindo tenha também interesse em contradizer e que seja isso o que resulta da melhor interpretação do nº 5 do artigo 257º do CSC, o facto é que isso não afasta a norma do nº 4 do mesmo preceito que, de forma clara, determina que a sociedade é titular do interesse processual em contradizer.
8. A sentença recorrida, no que à demanda contra o Réu H. M. concerne, único sócio do Autor e gerente destituendo violou, por erro manifesto de interpretação e de (não) aplicação, o disposto no artigo 257º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais, bem como o disposto nos artigos 33º, nº 1 e 30º, nº 3 do CPC.
9. Deve tal sentença ser revogada e substituída por outra que, face ao disposto em tais normas, declare a ilegitimidade processual passiva dos Réus por preterição de litisconsórcio e os absolva da instância (artº 278º, al. d) do CPC).
2.3.3 Independentemente disso: a ilegitimidade processual passiva da segunda Ré.
10. A Recorrente M. A. não é sócia da sociedade.
11. Na acção movida por um sócio para destituição de gerente de quem não é sócio, a única pessoa jurídica com interesse em contradizer é a própria sociedade, contra a qual imperativamente a acção tem que ser proposta, por força do disposto no artigo 257º, nº 4 do CSC.
12. Não tendo o Autor proposto a acção contra a sociedade mas contra tal gerente não sócia, a decisão recorrida violou por erro manifesto de interpretação e de (não) aplicação, o disposto no artigo 257º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais, bem como o disposto no artigo 30º, nº 3 do CPC.
13. Deve tal sentença ser revogada e substituída por outra que, face ao disposto em tais normas, declare a ilegitimidade processual passiva dos Réus e os absolva da instância (artº 278º, al. d) do CPC).
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O A. contra-alegou defendendo a manutenção do decidido, sustentando que os RR. são parte legítima e não há litisconsórcio necessário, tanto mais que conduziria a posições inconciliáveis.
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O recurso foi admitido como apelação com subida imediata e efeito meramente devolutivo, o que foi confirmado neste Tribunal.
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Foram colhidos os vistos legais.
Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 e 2 do CPC.
Assim, face às conclusões dos recorrentes a única questão a decidir consiste em aferir a legitimidade passiva dos mesmos.

III. Fundamentação de facto

A 1ª instância considerou indiciariamente provados os seguintes factos que não foram impugnados:
1. A Quinta de X, Ld.ª é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto social é a indústria hoteleira ou similar, com especial vertente para o turismo rural de habitação e agroturismo, desenvolvimento de actividades de lazer e entretenimento, que tem a sua sede na Rua …, nº …, freguesia de …, concelho de Viana do Castelo, com o capital social de cinco mil euros, e o NIPC ……….---
2. A gerência da predita sociedade é exercida pelos sócios A. M. (Requerente) e H. M. (1º Requerido) e por M. A. (2ª Requerida).---
3. Para obrigar a sociedade são necessárias as assinaturas dos três gerentes.---
4. A actividade de turismo rural a que se dedica a sociedade desenvolve-se no prédio urbano propriedade de Requerente e 1.º Requerido, sita na Rua …, nº .., inscrita na matriz predial respectiva sob o art. ..º e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ….--
5. Os Requeridos gerem exclusivamente a actividade de turismo rural sem dar qualquer conhecimento ao Requerente, quer quanto às despesas geradas com a referida actividade quer quanto aos seus rendimentos, nem solicitar o seu parecer ou discutir com aquele alguma decisão que seja necessário tomar, deixando-o completamente à margem da gestão da empresa.---
6. A actividade de turismo rural é publicitada em sites/plataformas de reservas como a Edreams, a Booking, a Trpadvisor, a Airbnb, a Escapada Rural, e outras.--
7. Os Requeridos alteraram as palavras passe de acesso às referidas plataformas da sociedade, de modo a impedir o Requerente de verificar e controlar reservas, entradas e saídas da referida Quinta.---
8. Os Requeridos contratam prestadores de serviços quer de jardinagem, quer de manutenção da referida Quinta sem dar saber ao Requerente, limitando-a depois a colocar em autorização na conta bancaria da empresa o pagamento dos serviços prestados.---
9. Os Requeridos não permitem ao Requerente aceder ao escritório da Quinta, nem lhe dão a saber nada do que à actividade da empresa diz respeito.---
10. Perante esta situação o Requerente procurou junto da contabilidade, por consulta da conta bancária e das plataformas do turismo inteirar-se da situação da empresa, tendo constatado que diversos hóspedes fizeram pagamentos para contas pessoais dos Requeridos.---
11. Durante o ano de 2018 os hóspedes E. A., F. J., D. P., H. O., A. S., B. V., E. M., E. U., J. K., M. A. e M. M. fizeram pagamentos para contas pessoais dos Requeridos, totalizando a quantia de € 5.595,50 que não entraram nos cofres da empresa.---
12. Nos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio, Setembro, Novembro e Dezembro de 2018 através da plataforma Airbnb foram cobrados diversos serviços de alojamento que não foram facturados, no montante global de € 8.756,55, quantia que não deu entrada nos cofres da sociedade e que os Requeridos utilizaram em proveito próprio.---
13. Os Requeridos consomem pessoalmente diversos bens e serviços, que nada tem a ver com a actividade da empresa, e que contabilizam e são pagos pela sociedade, nomeadamente, no “B. V.”, “… Modas”, “V.”, “V. P.”, “R. P.”, “Pastelaria do …”, “Talhos …”, “H. G.”, “W”, “M”, “MC”, “F.”, “VL.”, “C.”, “SS”, “T.”, etc.---
14. Tais bens esses que no ano de 2018 atingiram o valor de € 1.133,18, e que os Requeridos consumiram consigo próprios.---
15. Para além disso, os Requeridos, durante o ano de 2018, procederam ao levantamento em numerário da quantia de € 9.545,00, que utilizaram em proveito próprio.---
16. E, durante o ano de 2018 foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal da Requerida M. A. no montante de € 29.429,54, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
17. Ainda, durante o ano de 2018 foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal do Requerido H. M. no montante de € 999,35, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
19. Durante o ano de 2019 os hóspedes E. R., S. M., P. P., O. C., P. N., S. T., W. J., A. E., K. M. fizeram pagamentos para contas pessoais dos Requeridos, o que totalizou a quantia de € 10.705,50 euros que não entraram nos cofres da empresa, quantia da qual os Requeridos se apropriaram.---
20. Nos meses de Abril, Junho, Agosto, Setembro, Outubro e Dezembro de 2019 através da plataforma Airbnb foram cobrados diversos serviços de alojamento que não foram facturados, no montante global de € 7.954,40 euros, quantia que não deu entrada nos cofres da sociedade e que os Requeridos utilizaram em proveito próprio.---
21. Durante o ano de 2019, os Requeridos continuaram a consumir pessoalmente diversos bens e serviços que nada tem a ver com a actividade da empresa, e que contabilizam e são pagos pela sociedade, nomeadamente, no “…”, “…”, “…”, “…”, “…”, etc., tendo atingido o valor de € 381,62.---
22. Para além disso, durante o ano de 2019, os Requeridos procederam ao levantamento em numerário da quantia de € 13.615,00, quantia que utilizaram em proveito próprio.---
23. E, durante o ano de 2019 foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal da Requerida M. A. no montante de € 18.633,37, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
24. Ainda durante o ano de 2019 foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal do Requerido H. M. no montante de € 2.849,07, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
25. Durante o ano de 2020 os hóspedes J. L., C. A., H.L., A. N., P. M. e S. T., fizeram pagamentos para contas pessoais dos Requeridos, o que totalizou a quantia de € 5.306,00, que não entraram nos cofres da empresa, quantia da qual aqueles se apropriaram.---
26. Nos meses de Fevereiro, Março, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2020 através da plataforma Airbnb e Booking.com, foram cobrados diversos serviços de alojamento que não foram facturados, no montante global de € 16.041,82, quantia que não deu entrada nos cofres da sociedade e que os Requeridos utilizaram em proveito próprio.---
27. Durante o ano de 2020, os Requeridos continuaram a consumir pessoalmente diversos bens e serviços que nada tem a ver com a actividade da empresa, e que contabilizam e são pagos pela sociedade, nomeadamente no “B. V.”, “…”, IRS e IUC do Requerido H. M., “…”, “…”, “Bar …”, “…”, “…”, “…”, “…”, “Pizaria …”, “Pastelaria …”, “…”, “…”, “bar do …”, “…”, “restaurante …”, “…”, etc., tendo atingido o valor de € 1.627,26.---
28. Para além disso, os Requeridos, durante o ano de 2020, procederam ao levantamento em numerário da quantia de € 18.255,00, que utilizaram emproveito próprio.---
29. Ainda durante o ano de 2020, foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal da Requerida M. A. no montante de € 5.893,00, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
30. E, também durante o ano de 2020, foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal do Requerido H. M. no montante de € 4.458,00, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
31. Durante o ano de 2021 nos meses de Janeiro, Agosto, Setembro e Novembro através da plataforma Airbnb e Booking.com, foram cobrados diversos serviços de alojamento que não foram facturados, no montante global de € 5.074,69, quantia que não deu entrada nos cofres da sociedade e que os Requeridos utilizaram em proveito próprio.---
32. Por outro lado, em 2021, os Requeridos continuaram a consumir pessoalmente diversos bens e serviços, bens esses e serviços que nada tem a ver com a actividade da empresa, e que contabilizam e são pagos pela sociedade, nomeadamente, no “…”, “…”, “…”, “…”, “Pizaria …”, “…”, “…”, “Restaurante …”, “…”, etc.,bens esses que atingiram o valor de € 1.475,55.---
33. Para além disso, durante o ano de 2021, os Requeridos procederam ao levantamento em numerário da quantia de € 13.270,00 euros, que utilizaram em proveito próprio.---
34. Durante o ano de 2021 foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal da Requerida M. A. no montante de € 6.675,18, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
35. E, durante o mesmo ano, foram efectuadas diversas transferências bancárias da conta da sociedade para a conta pessoal do Requerido H. M. no montante de € 2.278,23, movimentos esses sem qualquer suporte contabilístico ou que digam respeito à actividade da sociedade.---
36. As condutas supra descritas, levadas a cabo pelos Requeridos, foram-no em união de esforços, sem o conhecimento e o consentimento do Requerente.---
37. Requerente e 1º Requerido, enquanto únicos herdeiros da herança dos seus avós, são donos e legítimos possuidores de pelo menos oito pavilhões destinados a aviário, pavilhões esses, que até Março deste ano, estavam a ser ocupados para a criação de aves, por força de um contrato com a XX.---
38. Os Requeridos ocultaram entretanto do Requerente as comunicações recebidas daquela entidade (XX).---
39. Os Requeridos, em nome da Quinta de X, Ld.ª, tomaram decisões, assumindo responsabilidades perante aquela XX que sabiam não poder assumir sem conhecimento e consentimento do Requerente.---
40. A actividade de criação de aves desenvolvida naqueles pavilhões era acompanhada e orientada pelo Requerente e ainda, no período compreendido entre Outubro de 2021 e inícios do mês de Março de 2022, por uma funcionária contratada para o exercício das funções de limpeza, manutenção e manuseamento dos referidos pavilhões.---
41. Pelo trabalho desenvolvido naqueles aviários nos meses de Outubro, Novembro e Dezembro, a referida funcionaria emitiu já uma factura no valor de € 1.500,00.--
42. O Requerente colocou em pagamento na conta bancaria da sociedade referida quantia de € 1.500,00, sendo que os Requeridos não autorizaram nem autorizam tal pagamento.---
43. Os Requeridos não pagaram a funcionários que exerciam a sua actividade nos aviários pondo em causa a continuação daqueles.---
44. Por consulta aos extractos da conta bancaria da sociedade, o Requerente apurou que estão a ser pagas despesas que não têm que ver com a actividade desenvolvida por aquela, nomeadamente de uma dívida pessoal e da responsabilidade da Requerida M. A., assim como verificou a existência dos supra descritos levantamentos de quantias em dinheiro e transferências feitas para as contas pessoais dos Requeridos.---
Além destes factos, importa ainda considerar o seguinte resultante da certidão comercial permanente da sociedade Quinta de X, Lda, junta com a petição inicial:
5. O Requerente e o 1º Requerido são os únicos sócios da sociedade Quinta de X, Lda, sendo cada um deles titular de duas quotas, uma no valor de 625,00 e outra no valor 1875,00 euros.
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Fundamentação de direito

Este processo especial de jurisdição voluntária de destituição e/ou suspensão de titulares de órgãos sociais está previsto no art. 1055.º do CPC (em tudo idêntico ao anterior 1484.º-B do CPC). Tal preceito engloba dois procedimentos processuais: o processo principal e definitivo de destituição; e, enxertado em tal processo principal, a providência cautelar inominada de suspensão, é o que decorre do n.º 2 do preceito em causa.
Assim, na presente acção são proferidas duas decisões/sentenças, a de suspensão e a de destituição, autónomas entre si; a 1.ª apreciando cautelarmente, a pretensão cautelar do requerente e, mostrando-se fundada, decretando a suspensão; a 2ª apreciando, definitivamente, a pretensão principal e definitiva do requerente e, em caso de procedência, decretando a destituição.
E a pretensão cautelar de suspensão tem sido considerada um “especialíssimo” procedimento cautelar de suspensão, a que se aplica, subsidiariamente, o regime jurídico do procedimento cautelar comum, previsto no art. 362.º e ss do CPC, em tudo o que, atenta singularidade deste processo especialíssimo, nele não esteja especialmente regulado; ou seja e no que aqui interessa, sendo de aplicar o disposto no art. 372.º do CPC, segundo o qual, quando a providência for decretada antes do requerido ser ouvido, este pode, alternativamente, recorrer (da decisão que decretou a providência sem prévio contraditório) ou deduzir oposição, seguindo-se/aplicando-se depois, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 367.º e 368.º do CPC.
Ora, o presente recurso tem por objecto precisamente a decisão cautelar que suspendeu os requeridos do cargo de gerência.
O requeridos/recorrentes circunscrevem o recurso à questão da legitimidade passiva, sustentando, em suma, que mercê do disposto no nº 4 do art. 257º do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC), segundo o qual, existindo justa causa, a acção proposta por qualquer sócio, em ordem à suspensão e destituição de gerente deve ser intentada também contra a sociedade, o que não sucedeu, pelo que tal preterição, tratando-se de litisconsórcio necessário determina a ilegitimidade passiva e a absolvição de ambos os RR. da instância.
Vejamos as regras gerais que enformam o nosso sistema processual em matéria da legitimidade.
A legitimidade ad causam, enquanto pressuposto processual ou da instância, constitui excepção dilatória cuja procedência implica a absolvição da instância – artºs 278º, nº 1, alínea d), 576º, nºs 1 e2, 577º, alínea e) do Cód. Proc.Civil (diploma a que pertencerão todos os normativos sem indicação de proveniência).
Compete ao tribunal, oficiosamente, dela conhecer e providenciar pelo respectivo suprimento, quando possível, ou decidir a inerente consequência, em despacho liminar quando previsto na tramitação ou no saneamento dos autos – artsº 6º, nº 2, 278º, nº 3, 578º, 590º, nº 2, alínea a), 595º, nº 1, alínea a).
Nos artºs 30º a 39º, o legislador definiu o conceito de legitimidade, indicando critérios gerais para a sua determinação e trata-se de algumas hipóteses concretas.
A legitimidade passiva afere-se pelo interesso directo em contradizer e este exprime-se pelo prejuízo que possa advir da procedência da acção – artºs 30º, nºs 1 e 2.
E na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor - art. 30º, nº3.
Não obstante estas regras gerais, nem sempre é fácil determinar, com exactidão, e aplicar nas situações concretas, especialmente nas de carácter mais específico, o critério de determinação da legitimidade processual e, sobretudo, distinguir esta da legitimidade substancial, pois, tratando-se de relações jurídicas diversas (formal/processual, uma; material/substantiva, a outra), muitas vezes não se apresenta diferenciada, com clareza, a relação controvertida, tal como delineada pelo demandante, do seu eventual reflexo efectivo na esfera jurídica do demandado, caso a acção proceda, por forma a discernir sobre o interesse directo deste em contradizê-la.
Porém, como resulta do nº3 do art. 30º, por vezes, a própria lei fornece-nos a indicação específica sobre a quem cabe a legitimidade para certo procedimento (nessa indicação se pressupondo definidos a priori pelo legislador os titulares dos interesses em demandar ou contradizer). Nada dispondo a lei em contrário, então há que considerar titulares do interesse relevante em demandar ou em contradizer os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Como vimos, na presente acção com processo especial, o autor sócio gerente da sociedade Quinta de X, Lda, invocou, o seu direito a requerer a suspensão e, a final, a destituição judiciais dos réus, igualmente gerentes da referida sociedade, sendo o primeiro também sócio, com uma participação de 50%, igual à sua, e a segunda apenas gerente, com fundamento em “justa causa”, consubstanciada em alegada violação grave por estes dos deveres inerentes ao respectivo cargo.
Nesta matéria da destituição dos gerentes, a própria lei, mais precisamente o art. 257º do CSC, nos casos de intervenção judicial dá-nos indicações sobre os titulares dos interesses relevantes para efeitos de legitimidade.
A vida societária é por regra reservada aos próprios sócios e respectivos órgãos de gestão e fiscalização, é o chamado princípio da intervenção externa mínima na vida interna das sociedades. Mas nalgumas matérias o legislador entendeu necessária a intervenção judicial. Uma delas é precisamente a destituição dos gerentes das sociedades por quotas nalgumas situações previstas no art. 257º.
No nº1 prevê-se que os sócios possam deliberar a destituição de gerentes.
E mesmo nos casos de a um deles estar atribuído o direito especial à gerência, compete aos sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial (nº 3).
Porém, de acordo com o nº 4, “Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade”.
E nº 5 diz-nos que “Se a sociedade tiver apenas dois sócios, a destituição da gerência com fundamento em justa causa só pelo tribunal pode ser decidida em acção intentada pelo outro”.
Ora, são estes dois últimos normativos que nos dão indicações sobre os titulares dos interesses relevantes para efeitos de legitimidade na presente acção.
No caso, a legitimidade activa é manifesta, sendo o A. um dos dois únicos sócios da sociedade, alegando a existência de justa causa, tem interesse directo em requerer a suspensão e destituição dos demais gerentes.
A legitimidade passiva aqui em apreço pode algumas suscitar dúvidas e tem sido objecto de ampla discussão em sede da jurisprudência.
Os réus/ recorrentes não estão ambos em idêntica posição. Face à factualidade indiciada, a 2º R. M. A. é apenas gerente, enquanto 1º R. H. M. é sócio gerente tal como o A. A. M., sendo os dois os únicos sócios da sociedade Quinta de X, Lda.
- Da legitimidade do 1ºR.
Tendo a sociedade apenas dois sócios, atento o disposto no citado nº5 do art. 257º do CSC, não há dúvida de que qualquer deles, pretendendo a suspensão e destituição do outro das funções de gerência, com fundamento em justa causa, tem de intentar acção judicial contra ele, sendo manifesto que a acção nunca poderia ser intentada apenas contra a sociedade, como sustentam os recorrentes nos nºs 1ª 5 das suas conclusões.
Porém, os recorrentes sustentam ainda que mesmo que se entenda ser de aplicar o nº 5, por se tratar de sociedade com apenas dois sócios, tendo o sócio destituendo de ser sempre demandado, tal facto não afasta a aplicação do nº4 segundo o qual a sociedade também tem interesse claro em contradizer, tratando-se de litisconsórcio necessário, cuja preterição determina em seu entender a absolvição da instância.
Salvo o devido respeito, discordamos de tal entendimento. O nº5 não diz expressamente contra quem a acção deve ser proposta, só diz quem a deve propor (o outro sócio). Porém, como refere Raúl Ventura, in Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Sociedade por Quotas, Almedina, Reimpressão 1999, Vol. III, pág. 118, “A intenção do n.º 5 é deslocar o litígio do campo sociedade- sócio, para o campo sócio-sócio, pois nenhum deles deve ser considerado como sendo a «sociedade», devendo a acção ser proposta apenas contra o sócio destituendo…”
E esta é a interpretação que tem sido feita também pela jurisprudência de forma unânime. Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 08/01/2008, Proc. 0723957( Relator Carlos Moreira) disponível em www.dgsi.pt, “ Há que atender à diferenciação, fáctica e jurídica, das realidades previstas nos ditos números 4 e 5. Só faz sentido proteger e salvaguardar o interesse social como valor autónomo quando existem terceiras posições a considerar, ou seja, posições que possam ser dissidentes face às propugnadas por qualquer um dos sócios em conflito, o que pode ocorrer, quando existam mais de dois sócios. Se existirem apenas dois sócios o interesse social coincide plenamente com o interesse dos sócios, não se justificando a sua autonomização. No caso de desacordo entre estes - e não olvidando que jurídico-formalmente, a sociedade é um ente autónomo, com direitos e deveres próprios - tal significa, material e efectivamente, que a posição de um dos sócios está em dissonância apenas com a posição do outro, não fazendo, pois, sentido demandar também a sociedade que nesses casos não representa qualquer outra posição, interesse ou direito autónomo, pois que o litígio se circunscreve unicamente às relações entre ambos existentes.”
No mesmo sentido, vejam-se ainda os Acs da R.P de 20.04.2004, Proc. 0420180 (Relator Luís Antas de Barros) da R.L de 04-02-1999, proc 0078606 (relator Fernandes do Vale) in www.dgsi.pt e Ac. da RC de 18.02.2003, in CJ, 2º, 21.
Destarte, 1º R. podia ser demandado sozinho, desacompanhado da sociedade, não se verificando a alegada preterição de litisconsórcio necessário, pelo que falece em relação ao mesmo a argumentação recursiva, sendo de confirmar a decisão recorrida.
- Da legitimidade da 2ª R.
A 2ª R. é gerente mas não é sócia da sociedade da sociedade Quinta de X, Lda. Estamos perante uma situação incomum em que a sociedade tem mais gerentes do que sócios.
À primeira vista poderia pensar-se que tendo a sociedade apenas dois sócios, continuaria a aplicar-se o nº5 do art. 257º do CSC. Existindo justa causa cada um dos sócios podia pedir a suspensão e destituição do gerente não sócio, desacompanhado da sociedade. A letra da lei não afasta liminarmente tal interpretação. Mas, considerando as razões supra aduzidas para afastar a necessidade de demandar a sociedade juntamente com o 1º R., logo concluímos o contrário, pois, neste caso, havendo um terceiro com interesse próprio perante o ente societário, posto que a relação de gerência se estabelece com a sociedade, já se impõe a consideração do interesse social como valor distinto do dos sócios, o que passa pela intervenção da sociedade no processo na posição de ré, como estabelece o nº 4.
Como escreve Raúl Ventura in op.cit pág. 117, “Embora não o diga expressamente o nº 5 pressupõe que se trata de destituir um gerente-sócio e não um gerente estranha; a letra do preceito mostra com bastante clareza que se trata de um litígio entre os dois sócios.”
Por conseguinte, visando o sócio (gerente ou não) a suspensão e destituição de gerente, com justa causa, deve propor a acção contra a sociedade, como determina o nº 4 do art. 257.º CSC, e contra o gerente a destituir que tem interesse directo em contradizer (art. 30º CPC).
Apesar de o nº4 referir apenas que a acção deve ser proposta contra a sociedade, é manifesto, por força do princípio do contraditório, consagrado no nº 2 do art. 3º do CPC, que o gerente destituendo tem igualmente de ser demandado.

Estabelecendo o nº1 do art. 257º a regra da livre destituição dos gerentes pelos sócios, através deste nº 4, o legislador visou principalmente assegurar que quando exista justa causa o sócio minoritário possa requerer judicialmente a destituição dos sócios gerentes maioritários ou apoiados pela maioria, com vista a evitar o risco de se estes se manterem indevidamente na gerência, pelo facto de terem a maioria dos votos.
Mas também se aplica no caso em apreço em que, não obstante a sociedade ter apenas dois sócios, ambos gerentes, tem mais uma gerente não sócia. Podem, é certo, como refere o A., surgir dificuldades de representação da sociedade em juízo que tornem necessária a nomeação de um representante ad litem, situação prevista no art.1054º.
Destarte, não tendo a acção sido intentada também contra a sociedade, a 2ª R., só por si, não tem legitimidade passiva.
E considerando que a relação de gerência que a acção visa suspender/extinguir se estabelece precisamente entre a gerente e a sociedade, entendemos que, pela própria natureza da relação jurídica, estamos perante um caso de litisconsórcio necessário, pois a acção não pode produzir o seu efeito útil normal sem a intervenção da sociedade.
Assim decidiu, a Relação do Porto em acórdão de 7 de junho de 1994, assim sumariado no BMJ nº438, p.551: “Face à redacção do nº4 do art. 257 do CSC, se um sócio pretender a destituição de um gerente pela via judicial, optando pelo processo de jurisdição voluntária, previsto no art. 1484º do CPC, terá a acção de ser necessariamente proposta contra o sócio destituendo e a sociedade, por ser caso de litisconsórcio.”
E tal posição foi igualmente defendida por Joaquim Taveira da Fonseca no V Congresso de Direito das Sociedades em Revista (2018), em comunicação sobre o tema “Suspensão e destituição dos membros dos órgãos de administração das sociedades por quotas e anónimas”, publicada em Separata da Almedina, p.265, onde refere reportando-se ao nº4 do art. 257do CSC “Assim, nas sociedades por quotas, qualquer sócio goza de legitimidade ativa para instaurar ação, não sendo necessário que a instauração seja precedida de deliberação dos sócios nesse sentido. Apesar da letra da lei, quando a sociedade por quotas tem mais de dois sócios, a legitimidade passiva será da sociedade e do gerente destituendo. Trata-se de uma situação de litisconsórcio necessário passivo, a fim de assegurar que a decisão produza o seu efeito útil, uma vez que a suspensão interrompe, por um determinado lapso de tempo, e a destituição extingue uma relação jurídica de que o gerente é um dos sujeitos.”
Em síntese, a 2ª R. devia ter sido demandada conjuntamente com a sociedade e, tratando-se de litisconsórcio necessário, a falta desta, nos termos do disposto no art. 33º do CPC determina a ilegitimidade passiva da 2ª R.
Tal ilegitimidade podia ter sido suprida, mas não o tendo sido antes da prolação da decisão recorrida, relativamente à 2ª R. impõe-se reconhecer a sua ilegitimidade passiva e, consequentemente, absolver a mesma da instância, nos termos das disposições legais conjugadas dos arts 257º, nº4 do CSC, 30º, 33º e 278º, nº1, al. d) do CPCivil.
Assim, em relação à 2ª R. a apelação mostra-se procedente, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
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V. Decisão

Pelo exposto, os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em:
- julgar procedente o recurso em relação à R. M. A., declarando-se, ao abrigo dos arts 257º, nº4 do CSC, 30º, 33º e 278º, nº1, al. d) do CPCivil, que desacompanhada da sociedade Quinta de X, Lda, não tem legitimidade passiva para a presente acção e, consequentemente, absolve-se da instância, revogando-se a decisão recorrida relativamente à mesma.
- julgar improcedente o recurso em relação ao R. H. M., mantendo-se quanto a este a decisão recorrida.
Notifique
Custas por recorrentes e recorrido, em partes iguais, sem prejuízo da decisão do apoio judiciário relativamente aos primeiros.
Notifique
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Guimarães, 03 de Novembro de 2022

Os Juízes Desembargadores
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto: Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte