Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2116/13.4JAPRT.G1
Relator: TOMÉ BRANCO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE
INSTITUIÇÃO DE ACOLHIMENTO
EXERCÍCIO DA RESPONSABILIDADE
CONSERVAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE O DO ARGUIDO, PROCEDNETE O DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário: Comete o crime de “abuso sexual de menores dependentes”, p. e p. na disposição do art. 172º/1 do Código Penal, com referência às disposições dos nº 1 e 2 do mesmo diploma legal, respectivamente, quem (verificados todos os elementos objectivos e subjectivos):
-Valendo-se do seu ascendente sobre a menor, em sua casa, em ocasiões em que a sua filha, de 14 anos de idade, confiada judicialmente a uma instituição de acolhimento, a quem fora conferido o exercício das responsabilidades parentais, ali ia passar, no respeito pela decisão respectiva, uns dias de férias ou fins-de-semana, numa ocasião, num colchão do quarto onde todos pernoitavam, quando se preparavam para dormir, se encosta a ela e começa a acariciar-lhe os seios e a vagina, dizendo-lhe: “já está na altura…, quando é que vamos fazer sexo?”;

- E, noutras três ocasiões, lhe tira as cuecas e as calças do pijama que tinha vestidas e se coloca por cima dela, introduzindo-lhe o seu pénis erecto na vagina, mantendo com ela relações de cópula, aí se esfregando até ejacular, causando-lhe dores e sangramento na primeira vez.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
Na Secção Criminal da Instância Central de Bragança, no processo Comum Colectivo supra referido, foi proferido acórdão que, para além do mais, decidiu da seguinte forma:

“Absolver o arguido JOSÉ A. dos crimes de abuso sexual de menor dependente, previstos e puníveis pelo artigo 172.°, n." 1, do Código Penal, um deles por referência ao artigo 171.º, n.º 1, e os restantes três por referência ao artigo 171.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, todos agravados nos termos do artigo 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por que veio acusado.

Condenar o arguido JOSÉ A., por haver cometido três crimes de actos sexuais com adolescentes, previstos e punidos nos termos do disposto no artigo 173.º, números 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, por cada um dos crimes.

Em cúmulo jurídico, condenar o arguido JOSÉ A. na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais do arguido JOSÉ A., relativamente à menor ….

Condenar o arguido JOSÉ A. a pagar à ofendida …. a quantia de € 3 500, 00 (três mil e quinhentos euros).

Inconformado o arguido José A. interpôs recurso do acórdão, concluindo na sua motivação: (transcrição)

«1ª O douto acórdão alheou-se em absoluto do relatório social deixando de salientar factos que, embora não determinantes para a medida da pena são relevantes para a sua execução.

2ª O douto acórdão deveria ter dado como provado que a comunidade social tendo conhecimento dos factos do processo não nutre quaisquer sentimentos de rejeição para com o arguido, que continua a gozar de uma imagem globalmente positiva.

3ª Que o arguido reconhece a ilicitude dos factos formulando sobre os mesmos um juízo de censura.

4ª O arguido actualmente vive com a esposa, em residência facultada pela entidade patronal e que terminado o vínculo laboral em consequência do cumprimento da pena perde a habitação.

5ª Que o seu salário é o único sustento do agregado familiar.

6º Que a suspensão da execução da pena de prisão seja condicionada ao cumprimento de medidas de carácter probatório.

Legislação Violada: artigos 70º e 71º, nº 2 alínea d) do C. P.»

Termina requerendo que seja “proferido douto acórdão suspendendo a execução da pena de prisão efectiva, substituindo-a por medidas não privativas da liberdade no condicionalismo já proposto”.

O magistrado do Ministério Público, também interpôs recurso da decisão do colectivo, concluindo na sua motivação: (transcrição)

«1)- Comete o crime de “abuso sexual de menores dependentes”, p. e p. na disposição do art. 172º/1 do Código Penal, com referência às disposições dos nº 1 e 2 do mesmo diploma legal, respectivamente, quem (verificados todos os elementos objectivos e subjectivos):

-Valendo-se do seu ascendente sobre a menor, em sua casa, em ocasiões em que a sua filha, de 14 anos de idade, confiada judicialmente a uma instituição de acolhimento, a quem fora conferido o exercício das responsabilidades parentais, ali ia passar, no respeito pela decisão respectiva, uns dias de férias ou fins-de-semana, numa ocasião, num colchão do quarto onde todos pernoitavam, quando se preparavam para dormir, se encosta a ela e começa a acariciar-lhe os seios e a vagina, dizendo-lhe: “já está na altura…, quando é que vamos fazer sexo?”;

E, noutras três ocasiões, lhe tira as cuecas e as calças do pijama que tinha vestidas e se coloca por cima dela, introduzindo-lhe o seu pénis erecto na vagina, mantendo com ela relações de cópula, aí se esfregando até ejacular, causando-lhe dores e sangramento na primeira vez.

2)-Medida das penas parcelares:

-Tendo o arguido cometido, em autoria material e concurso efectivo, os quatro crimes em causa, nas concretas circunstâncias assim reveladas na douta decisão;

-E salientando ainda, essencialmente, à luz dos critérios tipológicos previstos na disposição do art. 71º do Código Penal para a determinação da pena, as circunstâncias já destacadas em II, A)-, 1:

-Mostra-se justa, criteriosa e adequada às finalidades da punição a aplicação das penas de:

-02 anos de prisão pelo crime de “abuso sexual de menores dependentes”, p. e p. na disposição do art. 172º/1 do Código Penal, por referência ao art. 171º/1 do mesmo diploma legal;

-03 anos e 06 meses de prisão por cada um dos três crimes de “abuso sexual de menores dependentes”, p. e p. na disposição do art. 172º/1 do Código Penal, por referência ao art. 171º/2 do mesmo diploma legal;

3)-Pena única:

-E nos pressupostos já definidos em II, B)-, 1:

-Deve o arguido, em cúmulo jurídico, ser condenado, na pena única de 05 anos e 10 meses de prisão.

-Violou a douta decisão recorrida as disposições dos arts. 172º/1 e 173º/1 do Código Penal».

O Exmº magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu à motivação do recorrente/arguido, argumentando no sentido da improcedência do recurso.

A Exmª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação emitiu parecer esgrimindo bem elaborada argumentação jurídica tendente a demonstrar a razão do recorrente/Mº Pº nas suas pretensões de ver o arguido condenado nos termos constantes da acusação. Caso assim se não entenda defende a condenação do arguido pela prática de um crime de coacção agravado, p. e p. pelos artºs 163º, nº 2 e 177º, nº 5, do C. Penal e de três crimes de violação agravado, p. e p. pelos artºs 164º, nº 2, al. a) e 177º, nº 5, do mesmo diploma.

Relativamente ao recurso interposto pelo arguido defende a sua improcedência.


***

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

***

Com relevância para a decisão do presente recurso, importa que se transcreva agora a matéria de facto que foi dada como provada na 1ª instância:

1.º - O arguido é pai da menor …., nascida em .. de Junho de 1999.

2.º - No âmbito do processo n.º 1043/11.4TBBCC, do extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Bragança, por decisão de .. de Outubro de 2011, o exercício das responsabilidades parentais e a guarda da menor foram confiados ao Director da Instituição … …, sito em B….

3.º - Porém, por força dessa decisão, os progenitores da menor não estavam proibidos de contactar com a mesma, pelo que, nas férias escolares e aos fins-de-semana, a … passava alguns dias com os seus pais e pernoitava na residência da família, sita em ….

4.º - Nesses períodos, como um irmão mais novo da menor, …., pernoitava com a mãe na cama existente no único quarto da habitação, a … pernoitava com o arguido num colchão que ficava aos pés daquela cama.

5.º - Em Agosto de 2013, em dia não concretamente apurado, à noite, quando já se encontravam no referido colchão e se preparavam para dormir, o arguido encostou-se à … e começou a acariciar-lhe os seios e a vagina, dizendo-lhe “já está na altura…, quando é que vamos fazer sexo?".

6.º - Nessa altura, a … virou-se de costas para o arguido.

7.º - Entre 12 e 16 de Agosto de 2013, em dois desses dias, não concretamente apurados, o arguido não se bastou com as carícias.

8.º - Assim, valendo-se do seu ascendente sobre a Elisabete, o arguido tirou-lhe as cuecas e as calças de pijama que tinha vestidas.

9.º - De seguida, colocou-se por cima da … e introduziu o seu pénis erecto na vagina da mesma, mantendo com ela relações de cópula, aí se esfregando até ejacular, causando-lhe dores e sangramento.

10.º - Tal conduta foi reiterada, nas mesmas circunstâncias de modo e lugar, pelo menos, mais uma vez, entre os dias 9 a 15 de Setembro de 2013.

11.º - O arguido ordenou à … que não contasse a ninguém o sucedido, dizendo-lhe que podia ir preso, se o fizesse, e prometendo-lhe vários presentes, como roupas, dinheiro e um telemóvel, presentes que efectivamente lhe ofereceu.

12.º - O arguido não usou preservativo em qualquer uma das situações acima descritas.

13.º - Manteve assim o arguido actos sexuais de relevo, nomeadamente de cópula vaginal, pelo menos, três vezes, com a menor ….

14.º - A menor …, até essa data, nunca tinha mantido relações sexuais com ninguém.

15.º - Após a ocorrência destes factos e apesar de ter sido advertido pela Instituição "….." para não contactar com a menor, o arguido procurava a menor e dava-lhe presentes, de forma a convencê-la a continuar a aceder aos seus propósitos libidinosos e a não contar o sucedido a quem quer que fosse.

16.º - O arguido sabia a idade da sua filha.

17.º - Mais sabia que não lhe era permitido constrangê-la a qualquer acto de cariz sexual e a com ela manter relações sexuais.

8.º - Sabia, ainda, que pelo facto de a ofendida ser sua filha, sobre si recaía um especial dever de a respeitar.

19.º - Apesar disso, o arguido não se coibiu de o fazer, agindo com o propósito concretizado de satisfazer a sua lascívia, não obstante saber que actuava contra a vontade da menor.

20.º - Para tanto, pelo facto de ser seu pai, valeu-se do seu ascendente sobre a menor.

21.º - Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

22.º - O arguido não tem antecedentes criminais.

23.º - Tem condição social humilde e, tratando vacas, possui precária situação económica.

21.º - Profissionalmente, é uma pessoa cumpridora e dedicada, exercendo as suas funções com sentido de responsabilidade

22.º - Tem a segunda classe da antiga instrução primária.

Factos não provados:

Não se provaram outros factos; nomeadamente não se provou que, apesar da recusa, o arguido continuou a tocá-la em todo o corpo, conduta que reiterou nos dias seguintes e beijou a Elisabete nos lábios.

Motivação:

No que respeita aos factos provados, o tribunal fundou a sua convicção mediante a análise e ponderação de todos os meios probatórios carreados para os autos e a audiência, valorando positivamente as declarações para memória futura prestadas pela menor …., que, por forma pueril, límpida, versátil, revelando coerência e isenção, relatou os factos por si sofridos e praticados pelo arguido, que resultaram provados, e, bem assim, os depoimentos das testemunhas A….e S…., que exerciam e exercem funções de, respectivamente, directora técnica e assistente social na instituição (…) que a menor frequenta, e por forma simples, clara, coerente e, bem assim, isenta, revelaram as circunstâncias em que ouviram da boca da menor o relato dos actos sexuais que o arguido com ela praticou e a persistência do mesmo na procura da menor junto da instituição e, outrossim, os relatórios de perícia médico-legal, junto a fls. 60 a 63, e de perícia médico-legal (pedopsiquiatria), junto a fls. 104 a 107 – que atesta a credibilidade do testemunha da menor – e os teores do auto de notícia da PSP de Bragança, junto a fls. 19 e 20, do relato de diligência externa da Polícia Judiciária, junto a fls. 125, do auto de reconstituição dos factos, junto a fls. 133 a 137 – que contextualiza as circunstâncias em que os factos ocorreram –, do certificado do registo criminal, junto a fls. 169, e do relatório social, junto a fls. 336 a 342 – que refere as condições socioeconómicas do arguido.

As declarações do arguido, que emergiram apenas no fim da audiência e se traduziram num táctico balbuciar que estava “arrependido” e queria pedir “perdão à filha”, corroboraram, nesta medida, o depoimento prestado pela menor ….

O depoimento da testemunha M… de L., mãe da menor …, mostrou-se irrelevante, porquanto, dormindo no espaço onde os factos aconteceram, acabou por dizer que os não tinha presenciado.

O depoimento da testemunha L…, patrão do arguido, relevou quanto ao conhecimento das qualidades de trabalho e condições socioeconómicas do arguido.

Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal resultou da subjacente falta de prova dos mesmos factos.


II)

As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso (artº 412º, nº 1 do C.P.P.).

Assim as questões suscitadas nos recursos são as seguintes:

Recurso do arguido:

Saber se a decisão impugnada padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto;

Saber se perante o quadro factual apurado se justifica a suspensão da execução da pena aplicada ao recorrente.

Recurso do Ministério Público:

Saber se o quadro factual apurado justifica a condenação do arguido na prática de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo art. 172°, n.° 1, do Cód. Penal, um deles por referência ao art. 171°, n.° 1, e os restantes três por referência ao art. 171°, n.° 2, do mesmo diploma legal.

Postas as questões passemos à sua apreciação:

A) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto (questão suscitada pelo arguido):

Na perspectiva do arguido a decisão impugnada deve ser alterada por forma a dela constarem determinados factos que constam do relatório social, os quais a seu ver assumem relevância para a questão da suspensão da execução da pena de prisão.

Pois bem.

É consabido que a matéria de facto pode ser impugnada por duas formas: invocando os vícios do art. 410.º n.º2 do C.P.Penal, a designada “revista alargada” ou através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do art. 412.º n.º3 e 4 do mesmo diploma.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido art. 410.º, os quais têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não se podendo lançar mão de elementos estranhos àquela.

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova produzida em audiência, mas dentro dos limites do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art.412.º do C.P.Penal.

Porém, a impugnação ampla da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, uma reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, destinando-se tão-só a corrigir erros manifestos de julgamento quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

Analisando o recurso interposto, verifica-se que o recorrente José A. não impugnou a factualidade dada como assente, nos termos do artº 412, nº s 3 e 4 do CPP e, por isso, a apreciação da matéria de facto tem de se cingir aos vícios do art.410.º n.º2 do C.P.Penal, vícios, aliás, de conhecimento oficioso.

Dispõe o art.410.º nº2 do C.P.Penal: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

Erro notório na apreciação da prova.

O vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.

O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorre quando há uma incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através do texto da decisão recorrida, entre os factos provados, entre factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio.

Atentando no acórdão recorrido, não se verificam quaisquer dos vícios do art.410.º n.º2 do C.P.Penal.

O recorrente, alega que o acórdão padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por a seu ver faltarem elementos determinantes para a apreciação da questão da suspensão da execução da pena de prisão que constam do relatório social.

Mas não lhe assiste razão.

O recorrente confunde este vício - previsto no art.410.º n.º2 al.a) - com a insuficiência de prova produzida. O vício em causa não se reporta à insuficiência de prova na perspectiva do recorrente mas antes à insuficiência dos factos apurados para a decisão que veio a ser proferida. “Quando o recorrente pretende contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos à convicção que o tribunal (…) teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invocar como vício a alínea a) do artigo 410º do CPP, está a confundir a insuficiência da matéria de facto com insuficiência da prova para decidir, sendo a sua convicção irrelevante” – Ac. STJ 09.12.1998, BMJ 482,68. No mesmo sentido, Ac. STJ 21.06.2007, Proc. 07P2268, Rel. Simas Santos.

No caso vertente, os factos dados como provados são suficientes para a decisão de direito, não ocorrendo, assim, o vício previsto na al.a) do citado art.410.º n.º2 do C.P.Penal

Na verdade, as condições pessoais do arguido apuradas nos autos, estão bem reflectidas nos factos que a este respeito foram considerados pelo colectivo, a saber:

O arguido não tem antecedentes criminais.

Tem condição social humilde e, tratando vacas, possui precária situação económica.

Profissionalmente, é uma pessoa cumpridora e dedicada, exercendo as suas funções com sentido de responsabilidade

Tem a segunda classe da antiga instrução primária.

De resto considerar como provados os factos vertidos nas conclusões 2ª e 3ª, como pretende o arguido, seria até contraditório com o facto de o arguido não haver assumido uma atitude confessória e de arrependimento sincero em audiência de julgamento. Relembre-se que como observa o Colectivo na motivação “As declarações do arguido, que emergiram apenas no fim da audiência e se traduziram num táctico balbuciar que estava “arrependido” e queria pedir “perdão à filha”, corroboraram, nesta medida, o depoimento prestado pela menor …”.

Por outro lado, e como adiante se comprovará, a argumentação do arguido tendente a demonstrar uma situação favorável à tese da suspensão da execução da pena, cai por base, na medida em que a pena que será aplicada ao recorrente não permite legalmente o recurso ao referido instituto.

Daí que se conclua pela inexistência do pretextado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto.

Tão-pouco se verificam os vícios previstos nas al.b) e c) do art.410.º n.º2 do C.P.Penal. Analisado o texto da decisão recorrida, o raciocínio explanado pelo tribunal a quo na formação da sua convicção é perfeitamente claro, sem contradições, explicando as razões que o levaram a dar como provados determinados factos, assim se percebendo o raciocínio efectuado, o qual em nada contraria as regras da experiência comum.

Concluindo, não se detecta nenhum erro de julgamento ou qualquer um dos vícios prevenidos nas alíneas do n° 2 do art° 410°, do CPP, e, por isso, tem-se por definitivamente estabilizada a matéria de facto provada,

Improcede, pois, o recurso do arguido neste particular.

B) Da subsunção jurídica operada pelo Colectivo na decisão recorrida.

Na perspectiva do recorrente Mº Pº, e ao contrário do decidido pelo colectivo, o quadro factual apurado faz incorrer o arguido na prática de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo art. 172°, n.° 1, do Cód. Penal, um deles por referência ao art. 171°, n.° 1, e os restantes três por referência ao art. 171°, n.° 2, do mesmo diploma legal

Assim defende a condenação do arguido na pena de 2 anos de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo art. 172°, n.° 1, do Cód. Penal, por referência ao art. 171°, n.° 1, do mesmo diploma legal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão por cada um dos três crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo art. 172°, n.° 1, do Cód. Penal, por referência ao art. 171°, n.° 2, do mesmo diploma legal, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos e 10 meses de prisão.

Será então que assiste razão ao recorrente no enquadramento jurídico-penal que reclama para o caso em apreciação?

E avançando desde já para a solução da questão diremos que a razão está do lado do Mº Pº.

Senão vejamos:

Temos por certo que a abordagem da matéria inerente aos elementos objectivos da tipicidade dos imputados crimes poderia passar pela citação mais ou menos extensa, da pertinente doutrina e jurisprudência, elaborando-se um acórdão recheado de referências e transcrições. Porém, face à fundamentação do acórdão recorrido, entendemos adequado expor o que de essencial nos determina a não manter tal decisão.

Com essa preocupação de síntese, logo verificamos que os elementos essenciais do crime de abuso sexual de menor dependente do artº 172º, do C. Penal, de que vinha acusado o arguido José A. , se verificam no caso dos autos.

Na verdade, tendo-se considerado como provado que o arguido praticou com a menor …, de 14 anos de idade, os actos de cariz sexual e de cópula completa aí descritos, contra a sua vontade, valendo-se, pelo facto de ser seu pai, do seu ascendente sobre a mesma, para a constranger a sofrer tais actos, então dúvidas não subsistem de que o está em causa o crime do artº 172º, do C. Penal.

A argumentação do colectivo parte do pressuposto, a nosso ver errado, de que ao ter sido institucionalizada a menor …, cessaram por completo as relações de pai e filha antes existentes. Ora não pode ser assim. Apesar das responsabilidades parentais e da guarda da … haverem sido confiadas à guarda do director do Lar…, o certo é que o arguido nem por isso deixou de ser pai da menor e, tanto assim é que a menor nas férias escolares e nos fins-de-semana pernoitava na casa de família do arguido. E foi justamente nessas circunstâncias, valendo-se da sua qualidade de pai que o arguido acabou por praticar os actos sexuais com a sua filha ….

Como bem refere o recorrente “a confiança para a educação e assistência de um menor tem como primeiros destinatários, do ponto de vista legal, os seus progenitores.

Tal vínculo não se esbate – antes pelo contrário – nas situações de regresso ao lar em períodos e férias ou fins-de-semana da menor confiada judicialmente a uma instituição de acolhimento, a quem é conferido o exercício das responsabilidades parentais”.

Acrescem os argumentos aduzidos nesta matéria pela Exmª PGA, no seu douto parecer, que vale a pena transcrever:

Foi dado como provado que por decisão judicial, o exercício das responsabilidades parentais e a guarda da menor …., filha do arguido, foram confiados ao Director da Instituição…, sito em …, não tendo, contudo, os seus progenitores sido proibidos de a contactar, pelo que, nas férias escolares e aos fins-de-semana, a menor passava alguns dias com os seus pais, pernoitando na residência da família.

Ora, o art. 1919° do Cód. Civil determina o seguinte:

"1. Quando tiver sido decretada alguma das providências referidas no artigo anterior, os pais conservam o exercício das responsabilidades parentais em tudo o que com ela se não mostre inconciliável.

2. Se o menor tiver sido confiado a terceira pessoa ou a estabelecimento de educação ou assistência, será estabelecido um regime de visitas aos pais, a menos que, excepcionalmente, o interesse do filho o desaconselhe."

Não tem, pois, fundamento legal, salvo o devido respeito, a conclusão a que o Tribunal a quo chegou de que "o relacionamento que, então, se estabelecia entre a menor e o pai não relevava de uma especial relação de dependência que decorresse de uma hipotética confiança da menor para educação e assistência".

Na verdade, no caso sub judice, a confiança da menor … ao arguido para assistência resulta da lei, já que, pese embora aquela estivesse, por decisão judicial, confiada ao Director do Lar …, os seus progenitores conservaram o exercício das responsabilidades parentais, nos termos do art. 1919° do Cód. Civil.

Assim, durante as férias escolares, quando a menor … vinha passar uns dias a casa dos seus pais, era sobre estes, nomeadamente sobre o arguido, que não estava inibido do exercício do poder paternal, que recaía o especial dever de velar pela sua segurança e saúde e de prover ao seu sustento, nos termos do art. 1878°, n.° 1, do Cód. Civil.

Mesmo que se considerasse, como entendeu o Tribunal recorrido, que não se verificava, na situação em apreço, o requisito exigido pelo tipo do crime de abuso sexual de menores dependentes do art. 172° do Cód. Penal, de a menor … ter sido confiada ao arguido para educação ou assistência, sempre, a nosso ver, os factos dados como provados não se integravam na previsão do crime de actos sexuais com adolescentes do art. 173° do Cód. Penal, por que o mesmo foi condenado, o qual pressupõe o consentimento da vítima, embora obtido por meio fraudulento, abusando da sua inexperiência, mas sim na dos crimes de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163°, n.° 2, do Cód. Penal, e de violação, p. e p. pelo art. 164°, n.° 2, al. a), do referido Código, agravados nos termos do art. 177°, n.° 5, do mesmo diploma, dado a ofendida ser menor de 16 anos.

Com efeito, o art. 163°, n.° 2, do Cód. Penal prevê que "Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar acto sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até dois anos."

Por seu lado, o art. 164°, n.° 2, do Cód. Penal determina o seguinte:

"Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa:

A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, ou

A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;

é punido com pena de prisão até três anos."

E o art. 177°, n.° 5, do Cód. Penal estabelece que "As penas previstas nos artigos 163º, 164º, 168º, 174º, 175º e no n.° 1 do artigo 176.° são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos."

Ora, o acórdão deu como provado que o arguido praticou com a menor …, de 14 anos de idade, os actos de cariz sexual e de cópula completa aí descritos, contra a sua vontade, valendo-se, pelo facto de ser seu pai, do seu ascendente sobre a mesma, para a constranger a sofrer tais actos”.

Em face do exposto, forçoso é concluir, como defende o recorrente/Mº Pª, que a apurada conduta delituosa do arguido preenche a previsão dos crimes de abuso sexual de menores dependentes do art. 172° do Cód. Penal, de que o arguido estava acusado.

Da medida da pena:

Sabido que o arguido José A. se constituiu autor, em concurso real, de quatro crimes de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo art. 172°, n.° 1, do Cód. Penal, um deles por referência ao art. 171°, n.° 1, e os restantes três por referência ao art. 171°, n.° 2, do mesmo diploma legal, o que decorre do factualismo apurado em julgamento, Importa agora retirar as consequências desta nova qualificação jurídica dos factos ao nível da dosimetria penal e, por outro lado, apurar se a pena deve ou não ser suspensa na sua execução.

Vejamos.

Dentro das molduras legais abstractamente aplicáveis, a pena é determinada no âmbito de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

No intervalo destes dois parâmetros, haverá então que atender às considerações de prevenção geral de integração e às exigências de prevenção especial, que poderão ser positivas ou de socialização ou negativas ou de intimidação ou segurança individuais.

Os crimes que o arguido cometeu protegem quer o direito à saúde, quer a autodeterminação sexual pessoal.

No caso vertente, a ilicitude da actuação do arguido mostra-se elevada, pois em causa está uma vítima de apenas 14 anos de idade, sua filha, que o arguido não se coibiu de iniciar sexualmente, circunstância que determinou que aquela menor tivesse de ser confrontada com uma área das relações humanas de foro extremamente íntimo, de uma forma desadequada e prematura.

A culpa do arguido tem de se considerar como intensa, situando-se em patamar superior, visto que o arguido se comportou com dolo directo, para satisfação da sua lascívia e desejo sexual, aproveitando-se do facto de ter um ascendente sobre a sua filha.

O arguido não demonstrou qualquer arrependimento pelos actos que praticou.

O arguido não tem antecedentes criminais, o que releva para efeitos de prevenção especial.

Possui inserção social, familiar e profissional.

Usufrui de modesta condição social e cultural.

Nenhuma outra circunstância ocorre que abone a favor do arguido.

As necessidades de prevenção geral são prementes, pois segundo um recente relatório proveniente da Procuradoria-Geral da República, os crimes sexuais contra menores triplicaram em Portugal entre 2002 e 2007, numa média de 1400 casos por ano.

O crime de abuso sexual de crianças é, actualmente, dos crimes que mais alarme provoca. De facto, a comunidade, tem vindo a manifestar crescentes preocupações com a defesa dos seus elementos mais frágeis.

Tendo em atenção tudo o que se deixa dito e face à moldura penal abstracta, entende-se dever o arguido ser condenado na pena de 2 anos de prisão pelo crime de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. na disposição do art. 172º, nº 1 do Código Penal, por referência ao art. 171º, nº 1 do mesmo diploma legal e na pena de 3 anos e 6 meses de prisão por cada um dos três crimes de “abuso sexual de menores dependentes”, p. e p. na disposição do art. 172º, nº 1 do Código Penal, por referência ao artº 171º, nº 2 do mesmo diploma legal.

E assim sendo, resta efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares que foram fixadas.

A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, e que se constrói a partir das penas aplicadas aos citados crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, como já referido, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art. 77º, nº 1 do C. Penal: o conjunto dos factos e da personalidade do arguido.

Levando em conta este critério, cremos que a pena única deverá, pois, ser de 5 anos e 10 meses de prisão.

E assim sendo, fica prejudicada a apreciação de uma eventual suspensão de tal pena, uma vez que o vertido no artº 50 do C.Penal, a não permite.

Resta decidir:

Decisão
Em conformidade com o exposto, os Juízes desta Relação acordam nos seguintes termos:

A) Julgam improcedente o recurso interposto pelo arguido.

B) Julgam procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, alteram a decisão recorrida, nos seguintes termos: condena-se o arguido José A., na pena de 2 anos de prisão pelo crime de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. na disposição do art. 172º, nº 1 do Código Penal, por referência ao art. 171º, nº 1 do mesmo diploma legal e na pena de 3 anos e 6 meses de prisão por cada um dos três crimes de “abuso sexual de menores dependentes”, p. e p. na disposição do art. 172º, nº 1 do Código Penal, por referência ao artº 171º, nº 2 do mesmo diploma legal, penas estas que se resolvem, em cúmulo jurídico, na pena única de (5) cinco anos e (10) dez meses de prisão.

C) No mais confirmar o douto acórdão recorrido.

Fixa-se em três Ucs a taxa de justiça devida pelo recorrente/arguido.