Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
473/10.3TBFLG-A.G1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
INTERESSADO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O processo próprio para exigir de um interessado num inventário que, não obstante não ter a qualidade de cabeça de casal, detém e administra o património a partilhar é o processo de prestação de contas autónomo nos termos dos art.ºs 1014.º a 1017.º do CPC e não a prestação de contas na dependência do inventário nos termos do art.º 1019.º;
II - Se erradamente se interpôs, por quem tem legitimidade para o fazer, acção de prestação de contas na dependência de inventário, ocorre a nulidade do erro do processo, de conhecimento oficioso, que será sanada nos termos do art.º 199.º do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I-RELATÓRIO
Por dependência de inventário, já findo, intentado na sequência do divórcio que dissolveu o casal constituído por Ana … que foi nomeada cabeça de casal e pelo interessado João …, com vista á partilha do património comum daquele ex-casal, veio a referida cabeça de casal intentar acção especial de prestação de contas contra o seu ex-cônjuge.
Para tanto alega que, não obstante ter sido investida no cargo de cabeça de casal, de facto e com excepção da casa de morada do casal, foi o interessado João quem administrou todos os bens comuns do casal, colhendo os seus rendimentos sem que lhe tenha prestado quaisquer contas.
Pede, assim, que o Réu seja citado para apresentar contas ou contestar a acção, sob a cominação legal e, apurando-se um saldo favorável à Autora, que aquele seja condenado a pagar-lho, acrescido de juros à taxa legal contados desde a respectiva liquidação.

Citado, o Réu contestou a obrigação de prestar contas, alegando que não tem administrado qualquer bem comum do ex-casal, sendo certo que apenas um imóvel produz rendimento que é insuficiente para as despesas respectivas.
A Autora respondeu á contestação, reafirmando que o Réu tem efectivamente administrado todos os bens comuns, com exclusão da que foi a casa de morada de família.
Designou-se então data para a inquirição da testemunha arrolada pela Autora e, posteriormente, foi suspensa a instância a pedido das partes, a fim procederem a conciliação sobre o objecto do processo.
Não sendo possível o acordo no prazo da dita suspensão da instância, os autos correram os seus termos, tendo-se admitido o aditamento do rol das testemunhas requerido pela Autora e designado data para o julgamento.
Posteriormente, por ordem verbal concluíram-se os autos ao Mm.º Juiz a quo que proferiu o seguinte despacho:
Da análise dos autos constata-se que a A. propôs a presente acção na sequência da pendência do processo principal de inventário, alegando para o efeito ser cabeça-de-casal e não ter a administração da maioria dos bens comuns do casal, que se encontrava entregue ao ora R..
Sucede que, como se verifica do processo principal, foi aquele já extinto, por sentença homologatória de transacção quanto à partilha dos bens comuns das ora partes.
Assim sendo, a causa de pedir alegada na petição inicial já não existe, pelo que se verifica não poder haver lugar ao prosseguimento dos presentes autos com base em tal causa de pedir.
Assim sendo, e face à extinção do processo de inventário e consequente cessação das funções de cabeça-de-casal da ora A., verifica-se que, no âmbito dos presentes autos, deve ser declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 287º alínea e) do CPC, o que se determina.
Atendendo ao facto da transacção ocorrida no processo de inventário se ter verificado após a citação do R. para os presentes autos, considera-se que as custas referentes aos presentes autos serão a cargo de ambas as partes, em partes iguais. Consequentemente, dá-se sem efeito a audiência designada para esta data.

Inconformada com tal despacho a Autora interpôs recurso de apelação do mesmo, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1. O recorrido estava na administração de todos os bens comuns do seu extinto casal à data da propositura da presente acção, com excepção da casa que foi de morada do casal, cujo uso foi atribuído à recorrente,
2. E manteve-se na referida administração até à partilha daqueles bens efectuada por transacção homologada em 07.02.2013.
3. Nesse contexto, é obrigado a prestar contas à recorrente, nos termos dos arts. 464º do C.C. e 1016º do C.P.C..
4. A invocada obrigação do recorrido não se extinguiu com a partilha,
5. Esta teve apenas a virtualidade de balizar no tempo a obrigação.
6. A forma de obrigar o recorrido a prestar contas é, nos termos do disposto nos arts. 1016º e ss do C.P.C. a acção de prestação de contas, no caso, processada por apenso ao processo de inventário.
7. O presente processo é, pois, o próprio para o citado efeito.
8. Ao contrário do decidido na douta sentença recorrida não se verifica, pelo contrário, a inutilidade superveniente da lide, nem nenhuma outra causa de extinção da instância.
9. A douta sentença recorrida fez incorrecta interpretação e aplicação da Lei e violou os arts. 464º do C.C., 287º e 1016º e ss do C.P.C..

Não consta dos autos qualquer resposta ás alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO
OBJECTO DO RECURSO
Considerando que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações, a questão a decidir é a de saber se a acção de prestação de contas intentada pela Autora, na dependência do inventário, é o meio próprio processual próprio para obter a pedida prestação de contas por parte do Réu.

O circunstancialismo fáctico-processual a ter em conta é o descrito no relatório.

DECIDINDO
Adiantamos desde já que, em nosso entender, não se verifica qualquer inutilidade superveniente da lide, pois que, o cerne da questão em causa é o de saber, no caso concreto, qual o meio processual adequado, tendo em conta o pedido da Autora.
A acção especial de prestação de contas está regulada nos art.ºs 1014.º a 1019.º do CPC.
Esta acção pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e a aprovação de receitas obtidas e realizadas, por quem administra bens alheios.
A obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa-fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte» (cf. VAZ SERRA, Scientia Iuridica, vol. XVIII, 115).
A obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens ou interesses em causa, mas a que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação (cf. Alberto dos Reis, “Processos Especiais, vol I, pag. 303 Coimbra, 1956
A acção com processo especial de prestação de contas pode ser proposta por quem tem direito a exigir a prestação de contas (prestação forçada), ou por quem tem o dever de prestá-las (prestação espontânea).
O processo de prestação forçada de contas comporta duas fases distintas: Uma fase inicial, na qual se decide se o réu deve prestar contas. Se a decisão for no sentido de afirmar a dita obrigação, haverá lugar à prestação de contas, definindo-se os termos em que a mesma se deve processar.
Para além do processo especial de prestação de contas autónomo, prevê também a lei processual, no art.º 1019.º do CPC, os casos em que o processo de prestação de contas é dependência de outra causa.
Este processo no dizer de Alberto dos Reis, “especialíssimo”, segue a tramitação do processo de prestação de contas autónomo, apenas tendo a particularidade de ser apensado aos autos de que são pendência, apenas se aplicando á prestação de contas pelas entidades referidas no art.º 1019.º( cf. Alberto dos Reis, obra citada, vol I, pag. 330).
Uma dessas entidades e no que releva para o caso é o cabeça-de-casal que, por regra, no período em que fica investido neste cargo, em sede de inventário, tem o dever de administrar o património objecto de partilha. Assim, qualquer interessado pode requerer a prestação de contas por parte do cabeça de casal no período do exercício do cabeçalato, através do processo de prestação de contas na dependência do inventário, independentemente de este processo estar findo, pois que, a obrigação de prestação de contas só prescreve no prazo de 20 anos a contar do termo do primeiro ano que se segue ao desempenho da função (cf. Arts. 309.º, 306.º n.º 1 e 2093.º do CC).
Contudo, a prestação de contas pelo cabeça-de-casal como dependência do inventário, só é devida quanto aos bens que efectivamente administra, pois que pode suceder que, de facto, alguns bens sejam detidos por outro interessado, que os administram.
Neste caso, o interessado administrador de facto, não fica na posição de cabeça de casal, mas nem por isso fica desonerado da obrigação de prestar contas pela sua administração.
Seguindo o entendimento de Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, 3.º edição, vol III, pag. 60), quer o cabeça-de-casal, quer os demais interessados podem exigir a prestação de contas não por via do dito processo especialíssimo, ou seja por dependência do inventário, mas antes intentando processo de prestação de contas autónomo.
O caso dos autos de acordo como a Autora configurou a acção que intentou é precisamente o que acabamos de referir: foi a própria Autora, cabeça-de-casal que, alegando que o interessado João detinha bens que são património comum do seu ex-casal administrando-os pretende que sejam prestadas contas de tal administração.
Tendo em conta o exposto, afigura-se que inexiste qualquer inutilidade superveniente da lide. O que sucede é que a Autora deveria ter intentado um processo de prestação de contas autónomo e não o processo previsto no art.º 1019.º do CPC, na dependência do inventário.
Ou seja, está em causa um erro na forma do processo, nulidade prevista no art.º 199.º do CPC, que, neste momento, ainda pode ser conhecido oficiosamente pelo tribunal (cf. Art.º 206.º do CPC).
As consequências desta nulidade estão previstas no art.º 199: “O erro do processo importa unicamente a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida.”
Como já se referiu a tramitação do processo de prestação de contas do art.º 1019.º, no essencial é igual à do processo autónomo, só dele se distinguindo por ser dependência de outra causa á qual fica apensado.
Assim, é possível aproveitar todos os actos do processo em causa, apenas sendo necessário que, à semelhança do processo autónomo, se desapensem do inventário os autos de prestação de contas, remetendo-os à distribuição na espécie adequada, ou seja a acção especial de prestação de contas nos termos dos art.ºs 1014.º a 1017.º do CPC.
Deve pois proceder a apelação nos termos expostos, revogando-se em conformidade o despacho apelado.

Em conclusão:
I- O processo próprio para exigir de um interessado num inventário que, não obstante não ter a qualidade de cabeça de casal, detém e administra o património a partilhar é o processo de prestação de contas autónomo nos termos dos art.ºs 1014.º a 1017.º do CPC e não a prestação de contas na dependência do inventário nos termos do art.º 1019.º;
II- Se erradamente se interpôs, por quem tem legitimidade para o fazer, acção de prestação de contas na dependência de inventário, ocorre a nulidade do erro do processo, de conhecimento oficioso, que será sanada nos termos do art.º 199.º do CPC.


III- DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar verificada a nulidade do erro do processo, determinando a validade dos actos praticados nestes autos de prestação de contas e a desapensação dos mesmos aos autos de inventário, remetendo-os à distribuição como processo autónomo de prestação de contas regulado nos art.ºs 1014.º a 1017.º do CPC (actualmente, no NCPC art.ºs 941.º a 945.º).

Custas pela parte vencida a final.

Guimarães, 17 de Dezembro de 2013
Isabel Rocha
Moisés Silva
Jorge Teixeira