Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
38/19.4GAAFE.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: REQUERIMENTO ABERTURA INSTRUÇÃO
ELEMENTO SUBJECTIVO
OMISSÃO DE FACTOS
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Até à entrada em vigor da lei 48/2007 de 29.08 a instrução estava mais próxima do inquérito do que do julgamento; a partir daí, a instrução afastou-se do inquérito para se aproximar do julgamento. Nesta alteração de paradigma, o arguido, que vê ser arquivado o inquérito e ser aberta instrução e que vai passar por uma fase processual onde já existe discussão pública ( art. 86 nº 6 do Cód. Proc. Penal), necessita e tem o direito de saber, concretamente, quais os factos que lhe são imputados pelo assistente.

2. Isto é, passando o assistente a assumir sozinho o papel de acusador que o ministério público (erradamente, no seu entender) não levou a cabo, compete-lhe concretizar factos e imputá-los ao arguido, como se de uma verdadeira acusação se tratasse, até porque, em caso de pronúncia, o juiz pode fundamentar a decisão por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas no requerimento para abertura de instrução ( art. 307 nº 1 do Cód. Proc. Penal).

3. Assim, não obstante o requerimento para abertura de instrução não estar sujeito a formalidades especiais, não pode deixar de conter, além do mais, a acusação que, de acordo com o ponto de vista do assistente, devia ter sido deduzida pelo ministério público e não foi ( arts. 283 nº 3 b) e c) e 287 nº 2 do Cód. Proc. Penal).

4. Se a não contiver (e como não pode haver um convite ao aperfeiçoamento - AFJ 7/2005 in DR, I-A, de 4.11.2005), o requerimento para abertura de instrução terá de ser rejeitado.
Decisão Texto Integral:
Juiz Desembargadora Relatora: Maria Teresa Coimbra.
Juiz Desembargadora Adjunta: Cândida Martinho.

I.
Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo comum singular que, com o nº 38/19.4GAAFE.G1, corre termos pelo juízo de competência genérica de Mogadouro foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

Ao abrigo do disposto pelo artigo 287º, nº 3 do CPP, indefere-se o requerimento para a abertura de instrução deduzido pela assistente M. F., contra a arguida, A. C., por inadmissibilidade legal.
Custas a cargo da assistente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.
*
Inconformada com a decisão recorreu a assistente M. F., concluindo o seu recurso do seguinte modo (transcrição):

A- “Entendeu assim o Tribunal a quo que: “face a todo o exposto, ao abrigo do disposto pelo artigo 287. n°3, do CPP indefere-se o requerimento para abertura de instrução deduzido pela assistente M. F., contra o arguido, A. C., por inadmissibilidade legal’.
B- Contudo, tal não corresponde à verdade.
C- Estabelecem assim os artigos 278.° n. 2 e 3 e o artigo 223°, n° 3 alínea b)
e c) que:
287°Requerimento para abertura de instrução
1-(…)
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.° 3 do artigo 283. °Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Artigo 283°Acusação pelo Ministério Publico
1-(…)
2-(…)
3-A Acusação contém, sob pena de nulidade:
a) (…)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
D- Tendo o requerimento de Abertura de Instrução apresentado pela Assistente, aqui recorrente, respeitado esses princípios.
E- Como facilmente se comprova pela transcrição dos artigos 4°,5°,9°, 10º
1 1°,13° e 14° daquele requerimento, supra mencionados.
F- Nesses artigos a Ora recorrente identificou a arguida com o sendo a
Autora material da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelo artigo 145° n° 1 alínea a) do Código Penal.
G- Identificou quais as declarações que consubstanciam a prática do crime supra referido.
H- onde foram prestadas as mesmas declarações.
I- A mesma tinha intenção de ofender o corpo e a saúde da Assistente aqui recorrente.
J- pelo que salvo melhor entendimento, estão reunidas as condições para aceitar o requerimento de Abertura de Instrução em causa.
K- Sob pena de se violar o preceituado nos artigos supra referidos, bem
como se violar o artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
Com a rejeição liminar do requerimento da Abertura de Instrução o Tribunal a quo violou diretamente a aplicação dos artigos 287° n° 2 e n° 3 e 283 n° 3 do código do processo Penal, bem como violou o artigo 20° da Constituição da Republica Portuguesa, norma imperativa no nosso Ordenamento que impõe o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva para todos os cidadãos.

Nestes temos, e com douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o despacho de rejeição liminar do Requerimento de Abertura de Instrução Apresentado pela Assistente, ora Recorrente, e consequentemente, ser aceite, por estarem reunidos os requisitos legais da sua admissão.
Assim, se fazendo a tão acostumada JUSTICA
Espera, Deferimento.
*
Em resposta, na primeira instância, o Ministério Público defendeu a manutenção da decisão recorrida.
*
Idêntica posição veio a ser defendida pelo Ministério Público nesta Relação.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2, do Código de Processo Penal (CPP).
*
Após os vistos, realizou-se conferência.

II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que os poderes de cognição do tribunal da Relação estão delimitados pelas conclusões do recurso (artigo 412º do CPP) – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – e que, analisando-as é, em resumo, pedido e este tribunal que aprecie se o despacho recorrido errou ao indeferir por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução.
*
O despacho recorrido é do seguinte teor (transcrição):

M. F. veio requerer a sua constituição como assistente e apresentar requerimento para abertura da instrução, nos termos vertidos a fls. 77 e ss., solicitando a submissão da arguida A. C. pela prática de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal e um crime de ofensas à integridade física qualificadas, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1, e 145º, n.º 1, al. a), do Código Penal, com referência ao artigo 132º, n.º 2, al. h) – 2.º segmento, do mesmo diploma legal.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 68.º, n.º4,CPP.
*
Do requerimento para constituição como assistente:
(…)

Do requerimento para a abertura de instrução:

M. F. veio a abertura da instrução, com vista a que a arguida seja submetida a julgamento por factos que em abstrato podem configurar a prática de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal e um crime de ofensas à integridade física qualificadas, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 143º, n.º 1, e 145º, n.º 1, al. a), do Código Penal, com referência ao artigo 132º, n.º 2, al. h) – 2.º segmento, do mesmo diploma legal.

Quanto ao crime de injúria:

A instrução, fase judicial de natureza facultativa, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286.º, do CPP).
Estando em causa crime de natureza particular, a instrução não pode ser requerida pelo assistente como decorre do disciplinado pelo artigo 287.º, n.º1, alínea b) do CPP. É que a acusação do Ministério Público, nos crimes particulares, se tiver lugar, segue a do assistente, sendo por esta limitada substancialmente (artigo 285.º, n.º 3 do CPP); o assistente pode, pois, promover sempre o julgamento, formulando a sua acusação e que é independente da posição que o Ministério Público venha a adoptar.
Como anota Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III Volume, Verbo, 1994, pág. 133 «Contrariamente ao que sucede nos crimes públicos e semi-públicos em que o assistente se discordar da posição do MP e quiser formular acusação autónoma, substancialmente diversa da do MP, terá de a submeter a comprovação na fase de instrução, nos crimes particulares a acusação pública é condicionada nos seu exercício e no seu conteúdo pela acusação particular (arts. 50.º, 51.º e 285.º, n.º 3) pelo que qualquer divergência entre o assistente e o MP é nesta fase do processo juridicamente irrelevante. Não cabe ao Ministério Público promover a fiscalização judicial da acusação particular; essa fiscalização é oficiosa [art. 311.º, n.ºs 1 e 2, alínea a)] ou requerida pelo arguido através da instrução [art. 287.º, n.º 1, alínea a)].» Esta solução tem vindo a merecer crítica no sentido em que pode questionar a estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente garantida (vd. artigo32.º, n.º 5 da CRP), pois que mesmo nos crimes de natureza particular se deveria permitir o controlo judicial sobre a acusação particular do assistente que sustenta o julgamento. Por isso que, de jure condendo, se sufrague o entendimento de poder o Ministério Público requerer sobre a acusação particular do assistente em tal tipo de crimes a abertura da instrução (cfr. A Acusação Particular, de Cecília Santana, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, págs. 323/4).
No caso dos autos a denunciante nem chega a assumir a sua constituição como assistente nos autos, pelos motivos exarados supra, pelo que, desde logo, careceria de legitimidade para requerer, neste particular a abertura da instrução.
Em face do exposto rejeito, por legalmente inadmissível a instrução, requerida pela denunciante quanto ao crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º do CP (artigo 286.º, n.º 3, do CPP).
*
No que concerne ao crime de ofensas à integridade física:

Como se disse supra, a instrução destina-se ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação, ou a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento – cfr. artigo 286.º, nº1, do Código de Processo Penal.
Enquanto fase jurisdicional, compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento – cfr. artigo 289.º do Código de Processo Penal.
Assim, podemos concluir que a instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar e, por isso, não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina, designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento.
Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecto o inquérito lato sensu. A comprovação judicial carece de ser desencadeada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público).

Como se diz no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/10/06, publicado em www.dgsi.pt, “O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução” – de modo a fundar a sua convicção para pronunciar ou não pronunciar o arguido –, mas tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo 287.º do CPP (cfr. artigo 288.º, n.º 4, do mesmo Código).
Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º do CPP, não é absoluta, estando antes limitada pelo objecto da acusação.
Daí que se compreenda que o objecto da instrução tenha de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Por isso, nessa fase processual, o requerimento para abertura de instrução é uma peça essencial.
O assistente pode requerer a abertura da instrução, mas, neste caso, terá de observar os requisitos ou pressupostos legais.
Nos termos do disposto pelo artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283.º”.
Assim, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente há-de conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” (al. b) do n.º 3 do artigo 283.º) e “a indicação das disposições legais aplicáveis” (al. c) do mesmo n.º 3).
Ora, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/05/13, disponível em www.dgsi.pt., esta exigência suplementar bem se compreende na medida em que, não sendo deduzida acusação, o requerimento de abertura de instrução substitui tal peça, delimitando o thema decidendum, a actividade instrutória do juiz e, em última análise, o conteúdo de eventual despacho de pronúncia (cfr. o disposto nos artigoS 303.º, 308.º e 309.º do CPP).
É em função do conteúdo dessa peça que o arguido pode praticar o contraditório e exercer, na sua plenitude, as suas garantias de defesa. Daí que o cumprimento do estatuído nas al. b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do CPP (ex vi do artigo 287.º, n.º 2, do mesmo diploma) tenha em vista, em última instância, a tutela dessas garantias de defesa: perante um requerimento de abertura de instrução onde se não delimitem, com precisão, os factos concretos a apurar, susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, carece este de elementos suficientes em ordem a organizar a sua defesa.
Como refere Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. III, pág. 144), “o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente, uma acusação alternativa que, dada a divergência com a posição assumida pelo MP, vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”, sendo objecto da instrução “os factos descritos na acusação formulada pelo MP ou pelo assistente e no requerimento de instrução do assistente”, concluindo o referido Autor que, “se não tiverem sido descritos os factos, a instrução não tem objecto, sendo consequentemente inexistente”.
Também no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/10, disponível em www.dgsi.pt, se refere que o requerimento para a abertura de instrução contém, necessariamente, a narração dos factos susceptíveis de integrar a factispecie do tipo legal de crime (no seu elemento objectivo e subjectivo), devidamente identificado pela menção das disposições legais aplicáveis, e das circunstâncias de modo, tempo e lugar e outras, com relevo para a determinação da sanção a aplicar. A lei não exige a sujeição de qualquer destas partes, em que se desdobra o requerimento, a formalidades especiais, o que, no entanto, não significa que não os sujeite a exigências de forma mínimas, adequadas à satisfação dos ónus impostos. A não sujeição a formalidades especiais não significa que se prescinda da substância – a enumeração dos factos pertinentes ao preenchimento do tipo legal de crime, e da forma minimamente adequada à sua percepção: a narração, ainda que sintética, desses factos e dos demais a que o art. 283º do C.P.P. faz referência.
Dizendo de outro modo, a instrução, em caso de arquivamento do inquérito, visa, não só a comprovação judicial dessa decisão de arquivar o inquérito, mas também submeter a causa a julgamento – o que, num processo de cariz acusatório, como o nosso, acarreta necessariamente a dedução de uma acusação. Não tendo sido formulada pelo Ministério Público, é ónus do assistente, requerente da actividade instrutória, formulá-la.
Este entendimento é o que maioritariamente tem sido defendido na jurisprudência, quer das Relações, quer do Supremo Tribunal de Justiça, quer mesmo do Tribunal Constitucional. A título de exemplo, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2006, onde se refere que o requerimento para abertura de instrução “deve constituir uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena”, ou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, onde se refere que «o objecto da instrução (tem) de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e (…) tal definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que decorre de princípios fundamentais do processo penal, designadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória». Ainda, no mesmo sentido veja-se o Ac. TC nº 674/99, publicado no DR, II, de 25/02/2000.
No mesmo sentido se pronunciaram, a título de exemplo, os Acórdãos da Relação de Évora de 14/4/95, publicado na CJ, ano XX, tomo II, pág. 280, de 21/6/2011 e de 13/4/2010, da Relação do Porto de 17/11/10, 14/3/2012 e 11/5/2011, da Relação de Lisboa de 1/4/2008 e de 31/1/2008, da Relação de Coimbra de 1/4/2009 e da Relação de Guimarães de 18/12/2012, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Aliás, atenta a estrutura da fase instrutória do processo, jamais a lei poderia prescindir da indicação pelo acusador – público ou assistente - da factualidade pertinente à sujeição do arguido a julgamento. A instrução tem natureza jurisdicional e não investigatória.

Deste modo, cabe verificar se o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente nos presentes autos cumpre os requisitos enunciados no artigo 287.º, nº2, do Código de Processo Penal e, em particular, as exigências legais expressas nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma (por força da remissão operada pelo primeiro dispositivo legal citado).

Cremos que não.
A assistente limita-se a discordar da decisão de arquivamento do inquérito.
O requerimento em análise é totalmente omisso relativamente aos factos que pretende ver imputados à arguida, com particular relevância para aqueles que relevariam para preencher o tipo subjectivo do ilícito penal em causa.
Acresce que o juiz não se pode substituir à assistente, colocando por sua iniciativa os factos em falta, que eram essenciais para a imputação de um crime, ou as disposições legais incriminatórias.
Tal solução (além de violar o princípio da igualdade de armas e até colocar em causa a própria imparcialidade e independência do julgador) está vedada porque os poderes de cognição do Juiz estão limitados pelo que consta do requerimento de abertura de instrução (assim também se assegurando as garantias de defesa do arguido).
O juiz não pode compor uma narração de factos antes inexistente: caso viesse a acrescentar factos integradores de tipo de crime, estar-se-ia perante uma alteração substancial dos factos, o que tornaria nula a decisão instrutória (artigo 309.º, n.º 1, do CPP).
Nem pode o juiz convidar o assistente a aperfeiçoar o seu requerimento.
Com efeito, como se pode ler (a título de exemplo) no douto Ac. TRP de 30/05/2012 (disponível em www.dgsi.pt), “Diga-se desde já que no nosso entendimento não pode efectivamente o juiz de instrução efectuar essa intervenção correctiva. E não pode por, claramente, isso violar um dos princípios essenciais em que se sustenta o processo penal português.

A retenção do que é essencial no princípio do acusatório – a separação entre a entidade investigadora e acusadora e a entidade que julga, por um lado e a vinculação desta ao thema decidendum, organizado por aquela – é uma aquisição jurídico cultural indiscutível».
E é-o porque é na assumpção de um modelo legitimador onde a imparcialidade do juiz como fundamento de toda a decisão – no sentido de não comprometimento absoluto com fases ou intervenções anterior ao julgamento – radica a compreensibilidadde de um processo penal adequado ao instrumentarium supra constitucional aceite e subjacente ao sistema constitucional de um Estado de Direito (vide “A tutela da imparcialidade endoprocessual no processo penal português”, Coimbra Editora, p.37).
A estrutura acusatória do processo penal, na perspectiva da jurisdição, é fundamentalmente assumida a sua dimensão orgânica, onde a diferenciação e a autonomia de papéis impõe o carácter absolutamente imparcial do julgador.
Assumir uma vertente inquisitória, ou um tempero investigatório por parte do juiz, que claramente é estabelecido no CPP, não pode questionar a essência da impositividade constitucional. Ou seja nunca a imparcialidade do tribunal pode a qualquer título ser questionada.
Reger-se-á, por isso e fundamentalmente o processo penal pelo princípio da máxima acusatoriedade, enquanto resultância da imposição constitucional decorrente da estrutura acusatória do processo penal.
Ao imiscuir-se na correcção ou incorrecção de um requerimento que necessariamente tem que moldar a sua decisão (pronuncia ou não pronuncia), o juiz de instrução que, recorde-se no nosso sistema não é um juiz investigador, mas um juiz garante dos direitos, certamente estaria a colocar em causa o princípio do acusatório e a pôr em causa a sua legitimação pela imparcialidade.
Daí que, de todo, não o possa fazer.
Ora, como se disse já a assistente não cumpriu no requerimento que formulou, as exigências contidas no artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e c), ex vi do artigo 287.º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal. O que significa que falta ao requerimento de abertura de instrução a delimitação factual e jurídica sobre a qual há-de incidir a instrução, uma verdadeira “acusação alternativa”, com o mesmo rigor e precisão que é exigível ao libelo acusatório (público ou particular).
Nestes casos, vem-se entendendo que se está perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução, sujeita ao regime do artigo 287.º, nº3, do Código de Processo Penal – cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/10 (disponível em www.dgsi.pt) e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18/12/2013 (disponível no mesmo site), no qual se pode ler que «se nos diz o artigo 283.º, n.º 2 CPP que a acusação deve observar o disposto nas alíneas b) e c) do nº2 , sob pena de nulidade - o requerimento que não observe o disposto na citada norma que impõe aquela descrição (287º2 in fine e 283º 3 b) e c) CPP), é nulo.
Ora a nosso ver, sendo nulo o requerimento apresentado e a lei não permitindo a prática de actos nulos ou o seu aproveitamento, o acto é inválido não se podendo dele conhecer, afigurando-se-nos correcto o entendimento do STJ, expresso no Ac. 12/3/2009 www.dgsi.pt/jstj (…) - No conceito de «“inadmissibilidade legal da instrução”, haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral, e não se podendo conhecer do RAI não pode ser admitida a abertura da instrução, porque a lei não o admite, e consequentemente deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal.
Daqui decorre que a nulidade do requerimento de abertura de instrução constitui um dos casos de inadmissibilidade legal da instrução, fundamento do despacho de rejeição».
Face a todo o exposto, ao abrigo do disposto pelo artigo 287.º, 3, do CPP, indefere-se o requerimento para abertura de instrução deduzido pela assistente M. F., contra o arguido, A. C., por inadmissibilidade legal.
(…)
*
Apreciação do recurso.

A questão que a assistente traz à apreciação deste tribunal resume-se, como dissemos, a saber se está ou não correta a decisão de rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado na sequência do arquivamento do inquérito determinado pelo Ministério Público.

Nos termos do artigo 286º do CPP a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter, ou não, a causa do julgamento, tem caráter facultativo e não tem lugar nas formas de processo especiais.

E de acordo com o nº 3 do artigo 287º do CPP, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado em três situações: por extemporaneidade, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Interessa-nos a rejeição por inadmissibilidade legal, porque foi este o fundamento da decisão recorrida.

Mas antes de entrarmos na concreta questão trazida à apreciação deste tribunal, detenhamo-nos, muito brevemente, sobre o que, verdadeiramente, é a instrução em processo penal, para que se possa compreender a decisão que vai ser tomada.

No processo penal até à entrada em vigor da Lei 48/2007 de 29.8 a instrução estava mais próxima do inquérito, (como que o continuava), do que do julgamento. Por exemplo, nela se continuava a respeitar o segredo de justiça e não havia total contraditório nas diligências de prova. Mas a partir da referida lei 48/2007 de 29.08, a instrução afastou-se do inquérito para se aproximar do julgamento: acabou o segredo de justiça como regra (artigo 86º do CPP) à semelhança do que ocorre no julgamento e o contraditório nas diligências de prova passou a ser uma realidade (artigo 289º, nº 2 do CPP) também à semelhança do que ocorre no julgamento.

Esta alteração de paradigma foi merecedora de várias críticas (cfr. opiniões de Costa Andrade, Nuno Brandão e Figueiredo Dias, referidas por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao CPP, 4ª edição, 779 e ainda, Maria João Antunes in Direito Processual Penal, 2ª ed Almedina, 103 e sgs) por ter sido convertida a instrução “num simulacro de julgamento antecipado e provisório”.

No entanto, se já antes da referida alteração legal se entendia que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente deveria ser similar a uma acusação alternativa ao arquivamento (Ac. RC de 24/11/93 in CJ, XVIII, 5,61 e Ac. RL de 20/05/97 in CJ, XXII, 3, 143), a partir do momento em que ocorre a referida alteração de paradigma tal exigência assume contornos muito mais claros e percetíveis: o arguido que passa por uma fase processual onde já existe discussão pública (artigo 86º, nº 6 do CPP) dos indícios – ou falta deles - da eventual prática do crime, tem o direito de se defender concretamente dos factos que lhe são imputados pelo assistente.

É, portanto, assim que tem de compreender-se a exigência decorrente do nº 2 do artigo 287º do CPP ao preceituar que, não obstante o requerimento de instrução não estar sujeito a formalidades especiais, deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação (…) sendo aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º do CPP. Isto é, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, indicando, se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve, quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada “e, bem assim, “a indicação das disposições legais aplicáveis”.

É evidente que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente não pode deixar de conter as razões de discordância relativamente à decisão de arquivamento por parte do Ministério Público que o precedeu e a referência aos atos de instrução que deverão ser praticados. Mas só isso não basta. É que, passando o assistente a assumir o papel que, no seu entender, o Ministério Público não levou cabalmente a cabo, que o mesmo é dizer, no caso, o papel de acusador, não basta, repete-se, invocar as razões da discordância, referir as diligências que não foram feitas durante o inquérito e deveriam ter sido, invocar as incongruências na apreciação dos indícios.
É necessário mais: é necessário concretizar factos, imputá-los concretamente ao arguido, como se de uma verdadeira acusação se tratasse (cfr Ac. TC 358/2004 publicado no DR 150/2004, II série, de 28.06.2004) até porque, em caso de pronúncia, de novo é aplicável o disposto no nº 3 do artigo 283º do CPP ( ex vi artigo 308º, nº 2 do CPP), podendo até o juiz fundamentar a decisão por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução (artigo 307º, nº 1 do CPP), uma vez que é o requerimento para abertura de instrução que, no caso de arquivamento, passa a definir e delimitar o objeto do processo a partir da sua formulação.

Portanto, como decorre da conjugação das normas matriciais para a situação em apreço às quais vimos fazendo referência (artigo 283º, nº 3 e 287, nº 2 do CPP), o requerimento para abertura de instrução reveste a natureza jurídica de uma autêntica acusação, uma acusação em sentido material desempenhando uma função idêntica à da acusação formal (após o inquérito): a de fixação do objeto do processo, definindo vinculativamente o âmbito dos poderes de cognição do tribunal (cfr. ac. STJ de 11.01.2017 in wwwdgsi.pt).

Ora, aqui chegados, analisando o requerimento para abertura de instrução, constata-se que ele se encontra elaborado pretendendo que, a final, venha a arguida a ser pronunciada pela prática de um crime de injúria e de ofensa à integridade física qualificada. Relativamente ao primeiro dos crimes, o qual pressupunha a constituição como assistente, que não ocorreu no prazo que para o efeito lhe havia sido concedido, a recorrente acabou por se conformar com a decisão de rejeição liminar do requerimento de instrução. Mas relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada a recorrente entende que o tribunal de primeira instância devia ter pronunciado a arguida por tal crime.
Entendeu o tribunal a quo que cabia à assistente o ónus de imputar à arguida o comportamento que entendeu ilícito e integrante do crime em causa. E entendeu bem, porque dizendo de outro modo, impunha-se à assistente que concretizasse, relativamente à atuação da arguida as circunstâncias reveladoras de especial perversidade e censurabilidade que identificava na atuação da arguida e bem assim os factos integrantes do elemento subjetivo.

É que, recorda-se, a acusação contém sob pena de nulidade (artigo 283º, nº 2 do CPP): (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

Isto é, não obstante o requerimento de instrução não estar sujeito a formalidades especiais, substancialmente não pode deixar de projetar a acusação que não foi deduzida, mas devia ter sido, de acordo com o ponto de vista da requerente da instrução.

Portanto, a recorrente diz porque é que discorda do arquivamento, mas não elenca factos (objetivos e subjetivos), nem vai além da descrição de uma tentativa de ofensa à integridade física simples (não punível), isto é, não diz qual deveria, então, ser a acusação, contra a arguida uma vez que, repisa-se, o requerimento para abertura de instrução cumpre o papel da acusação na fixação dos poderes de cognição do juiz de instrução (artigos 288º nº 4 e 303º do CPP).

Se o fizesse antes ou depois de expor as razões da discordância com o arquivamento do Ministério Público, se o fizesse articuladamente, ou não, é indiferente. Mas o que não podia faltar era a imputação concreta da factualidade sob o ponto de vista objetivo e subjetivo e das razões de direito que deveriam ter constado da acusação, caso ela tivesse sido deduzida e que deveriam passar a constar da peça processual com que a assistente pretendia corrigir o erro que, no seu entender, o arquivamento consubstanciava.

E foi por via dessa falta, que não pode ser remediada com um convite ao aperfeiçoamento – Ac. FJ 07/2005 publicado no DR, I-A, de 04/11/2005 – que o Juiz a quo decidiu rejeitar o requerimento de abertura de instrução. E, pelo que ficou exposto, decidiu bem (cfr Ac. TC 389/2005 – Relatora Maria Fernanda Palma).

É certo que entendeu estar-se perante uma situação de inadmissibilidade legal da instrução e que a jurisprudência não é unânime ao considerar que se trata, verdadeiramente, de uma inadmissibilidade legal (esta expressão aponta para as situações em que a lei exclui a possibilidade de ser requerida a instrução (Ac. STJ de 11.01.2017, cit), o que não é o caso).

De facto, há quem defenda que se a instrução pode ser requerida pelo assistente, não é legalmente inadmissível. Antes deverá ser entendido que quando ocorre uma omissão de factos que a torna nula, por manifestamente infundada, se impõe a sua rejeição, analogamente ao que sucede com o artigo 311º, nº 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – analogia não vedada neste caso (como referido no Ac. FJ 7/2005, usando os ensinamentos do Professor Figueiredo Dias) - por dela não resultar qualquer diminuição dos direitos dos arguidos.

Assim sendo, quer se considere que se está perante uma situação de inadmissibilidade legal da instrução (artigo 287º, nº 3 do CPP), quer perante um requerimento de instrução manifestamente infundado (artigo 311, nº 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP aplicável por analogia, nos termos sobreditos), a decisão sempre teria de ser a de rejeição que, pelo exposto, terá de ser mantida.
*
III.
DECISÃO.

Em face do exposto decidem os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães negar provimento ao recurso interposto pela assistente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Notifique.
Guimarães, 27 de abril de 2020

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho