Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
230/20.9T8VPA.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
USUCAPIÃO
ESCRITURA DE RETIFICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A justificação notarial não constitui ela própria o ato translativo ou constitutivo do direito real. Tal direito, no caso de invocação da usucapião, decorre dos concretos atos materiais de posse, revestidos de determinadas caraterísticas e mantidos durante certo período temporal, que conduzem a essa forma originária de aquisição e que são invocados na escritura de justificação.
II - Esses atos podem ser impugnados judicialmente, nos termos do art. 101º do Código do Notariado, em ação de impugnação de justificação notarial, a qual é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura.
III - Na ação de impugnação de uma escritura de retificação de uma outra escritura de justificação notarial compete ao réu a prova dos factos declarados na escritura de retificação.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

A. T. e R. J. intentaram ação declarativa com processo comum contra C. G. pedindo que:

A) se declare procedente por provada a exceção do caso julgado,
B) o réu seja condenado como litigante de má fé,
C) se declare a ineficácia da escritura pública de retificação de justificação a escritura pública de retificação outorgada pelo réu celebrada em 24.02.2020 e exarada a folhas setenta do livro de escrituras diversas com o número 141 do Cartório Notarial ... a cargo da notária S. A.,
D) se condene o réu ao reconhecimento dessa ineficácia jurídica com as legais consequências.

Como fundamento dos seus pedidos alegam, em síntese, que no dia 24 de março de 2015 foi publicada no jornal Notícias de …, o extrato de uma escritura outorgada em 11 de março de 2015 no Cartório Notarial ..., através do qual pretende o aqui réu efetuar a retificação de uma outra escritura de justificação de posse datada de 26/06/2014.
Não concordando com tal retificação da justificação, intentaram os aqui AA. contra o aqui R. ação de impugnação da retificação da justificação, que correu termos sob o nº 112/15.6T8VPA.

No âmbito da referida ação, foi proferida sentença que declarou a ineficácia da escritura de retificação.
Não obstante o decidido, veio o réu proceder a nova escritura de retificação da escritura de justificação lavrada no Cartório Notarial ... em 26.6.2014, declarando que o prédio tem a superfície coberta de 220,30 metros quadrados e a área descoberta de 315,20 vinte metros quadrados.
A sentença proferida no processo que correu termos sob o nº 112/15.6T8VPA constitui caso julgado quanto a esta pretensão do réu.
O réu litiga de má fé ao deduzir pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, devendo ser condenado em multa e indemnização a favor dos autores.
Independentemente do já referido, as declarações constantes da escritura de retificação são falsas.
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O réu contestou a ação, referindo que não há qualquer ofensa do caso julgado porquanto as escrituras têm conteúdo diverso, mormente quanto à antetitularidade, razão pela qual o réu não litiga de má fé, sendo verdadeiras as declarações que constam da escritura impugnada. Ao invés, os autores atuam em abuso de direito.
Concluiu, pedindo a sua absolvição e a condenação dos autores como litigantes de má-fé.
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Foi fixado à causa o valor de € 5 000,01.
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Foi proferido despacho saneador, definiu-se o objeto do processo e procedeu-se à seleção dos temas de prova.
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Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
“Pelo supra exposto, julga-se a acção procedente e, consequentemente, decide-se:
A) Declarar a ineficácia da escritura pública de rectificação de justificação outorgada pelo Réu C. G. em 24.02.2020 e exarada a folhas setenta do livro de escrituras diversas com o número 141 do Cartório Notarial ...;
B) Condenar o Réu C. G. a reconhecer o referenciado em A);
C) Absolver o Réu C. G. do pedido de condenação como litigantes de má-fé;
D) Absolver os Autores R. J. e marido A. T. do pedido de condenação como litigantes de má-fé;
E) Condenar o Réu C. G. no pagamento das custas processuais.”
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O réu não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1- A prova produzida mereciam diversa resposta à matéria de facto.
2- De facto, quer as testemunhas arroladas pelo Réu, como as testemunhas arroladas pelos Autores e o próprio Autor, confirma que o ... resulta da junção de duas propriedades, contíguas, sem delimitação,
3- Uma pertencente a J. B. e esposa A. E., e outra de E. M.,
4- Sendo que ambas foram vendidas a E. G., sendo que a que terá pertencido a J. B. terá sido vendida em 1975 e a pertencente a E. M. terá sido vendida verbalmente, por volta do ano de 1981.
5- Sendo que, a partir de tais datas foi o E. G. que as utilizou, à vista de toda a gente, e sem oposição de ninguém, usando-as sem distinção, como uma única.
6- Também ficou provado que na parte que pertenceu a E. M. foi construído um anexo, que aumenta a construção que existia na parte de J. B. e A. E., e que lá existia um anexo, construído pelo E. M. que foi demolido pelo Réu, há cerca de quinze anos.
7- Nessa parte estão também edificadas outras estruturas, como um galinheiro.
8- Ficou provado que, há mais de vinte anos, existe apenas um prédio usado indistintamente pelo Réu, e sujeito aos mesmos actos de posse, pelo que não seria possível a transmissão da propriedade, sem ser como um todo.
9- Ficou provado que o Réu está emigrado, e que a posse é feita, através de seus pais, que cá vivem, e que lhe doaram (todo) o prédio, por volta de 1995.
10- Ficaram provadas as confrontações vertidas na escritura impugnada, e nomeadamente as áreas indicadas pelo Réu.
11- A escrita de rectificação, ora impugnada verte informação defendida pelos próprios Autores, pelo que espanta o facto de agora voltarem a impugnar a escritura de rectificação.
12- O presente Recurso tem por base o disposto no artigo 640.º do C. P. C.
13- Assim, os factos não provados, 9 a 13.º, deverão ser remetidos para os provados”

Termina pedindo que a decisão recorrida seja revogada e substituída pela confirmação do conteúdo da escritura de retificação impugnada e a consequente absolvição do réu do pedido.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I – saber se a matéria de facto deve ser alterada;
II – reapreciar a decisão jurídica em função da alteração introduzida na matéria de facto.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. No dia 26 de Junho de 2014, no Cartório Notarial ..., foi lavrada uma escritura pública de justificação outorgada por Dr. M. C., na qualidade de procurador de C. G., na qual o outorgante declarou que o seu representado é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do prédio urbano sito no Lugar ..., n.º .., na freguesia de ..., concelho de Vila Pouca de Aguiar, composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com a superfície coberta com cento e sessenta e dois meros quadrados e superfície descoberta com quarenta e dois metros quadrados, a confrontar a norte com J. B., a sul com A. M., a nascente com R. M. e a poente com Estrada Municipal, inscrito na matriz sob o artigo ....
2. No dia 11 de Março de 2015, no Cartório Notarial ..., foi lavrada uma escritura pública de rectificação de justificação outorgada por Dr. M. C., na qualidade de procurador de C. G., na qual o outorgante declarou rectificar a área coberta, descoberta e quanto às confrontações do prédio indicado em 1), consignando que o mesmo é composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com a superfície coberta com cento e sessenta e cinco metros quadrados e superfície descoberta com trezentos e quinze vírgula vinte metros quadrados, a confrontar de norte com R. J., sul com caminho, a nascente com A. E. e poente com E. G..
3. Em 23.4.2015, R. J. e marido A. T., intentaram a ação de processo comum n.º 112/15.6T8VPA contra C. G. peticionando declarar-se nula e sem nenhum efeito a escritura pública de retificação mencionada em 2).
4. No âmbito da ação indicada em 3), por sentença proferida em 3.3.2017, transitada em julgado, declarou-se a ineficácia da escritura pública de retificação de justificação referenciada em 2).
5. No dia 24.2.2020, no Cartório Notarial ..., foi lavrada uma escritura pública de retificação de justificação, exarada a folhas setenta do livro de escrituras diversas com o número …, outorgada por C. G., na qual o outorgante declarou retificar a escritura enunciada em 1), consignando: “ O referido imóvel não ficou devidamente identificado quanto à área e a indicação dos antepossuidores não ficou completa, porquanto os mesmos foram indicados na referida escritura como sendo E. G. e A. C., ficando por declarar que os mesmos, por sua vez, tinham já adquirido a A. E., viúva, e E. M., este já falecido, por força de compra e venda feita sob a forma verbal no ano de mil novecentos e setenta e um. Assim, retifica-se a mencionada escritura, ainda quanto à área coberta e descoberta, pelo que o prédio é assim identificado: Prédio urbano – composto de casa de habitação ao rés do chão e primeiro andar, com a superfície coberta de duzentos e vinte virgula trinta metros quadrados e com área descoberta de trezentos e quinze virgula vinte metros quadrados, sito na Rua do ..., nº .., lugar ..., freguesia de ..., concelho de Vila Pouca de Aguiar; inscrito na matriz pelo artigo ...; descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número ... – ... (…) Que a divergência entre a descrição predial e a inscrição matricial se deve a simples erro de medição e que o prédio nunca sofreu qualquer alteração independentemente da retificação ora feita sendo a área correcta a que consta na inscrição matricial”.
6. Em 1971, J. B. declarou vender a E. G., pai do Réu, o qual declarou comprar, o prédio mencionado em 1), composto por casa rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, sito na Rua do ..., nº .., lugar ..., freguesia de ..., concelho de Vila Pouca de Aguiar; inscrito na matriz pelo artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ....
7. No circunstancialismo indicado em 6), o antedito prédio confrontava a norte com um prédio composto de palheiro e logradouro.
8. Após o mencionado em 6), E. G. e mulher A. C. habitaram a sobredita casa, lá guardando roupa, móveis e outros utensílios, na área descoberta do antedito prédio plantaram hortícolas e outros produtos agrícolas, quem limpava matos e gramíneas, à frente de todos, ininterruptamente, sem oposição de ninguém, com a convicção de quem exercia direito próprio.
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Foram dados como não provados os seguintes factos:

9. Em 1981, E. M. declarou vender a E. G., o qual declarou comprar o prédio descrito em 7).
10. Desde a data mencionada em 9), E. G. tem utilizado o palheiro para guardar utensílios e cultivado o logradouro do antedito prédio.
11. Em 1990, E. G. e mulher A. C. declararam doar ao Réu a casa enunciada em 1).
12. Desde a data citada em 6), o Réu tem habitado o prédio referido em 1), à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém, com a convicção de quem exerce direito próprio.
13. O prédio indicado em 1) tem a superfície coberta de duzentos e vinte virgula trinta metros quadrados e a área descoberta de trezentos e quinze virgula vinte metros quadrados

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

I – Alteração da matéria de facto

Dispõe o artigo 662º, n.º 1, do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.

Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

O recorrente pretende que os factos não provados 9 a 13 sejam dados como provados.

O tribunal procedeu à audição integral de todos os depoimentos das testemunhas, bem como das declarações prestadas pelos autores e pelo réu.
Dessa audição resulta que as testemunhas A. P. e A. R. nada sabem no que toca à matéria objeto dos presentes autos. As referidas testemunhas são, respetivamente, a magistrada judicial e o oficial de justiça que intervieram num outro processo em que foram partes autores e réu, o qual terminou com uma transação. Pretendia-se demonstrar que, para além da transação que foi homologada, houve um outro acordo celebrado que não ficou formalizado. Porém, as testemunhas não confirmaram tal matéria e nem sequer se lembravam do concreto teor da transação homologada, tendo apenas confirmado que o que ficou a constar na ata corresponde à verdade.
Dos demais depoimentos prestados, incluindo autores e réu, resulta de forma clara e convergente que E. G., pai do réu, comprou, em 1971, a J. B. o terreno onde se encontra implantada a casa e que foi objeto da escritura de justificação, ou seja, o prédio inscrito na matriz sob o art. .... Todos confirmaram que esse terreno não era confinante com o dos autores pois entre ambos existia um outro terreno que pertencia a E. M.. Mais tarde, por volta de 1981, E. G. adquiriu este terreno que pertencia a E. M.. Após a aquisição, passou a usar os dois terrenos conjuntamente visto que ambos lhe pertenciam. Ou seja, os terrenos de J. B. e de E. M. eram distintos, autónomos e confinantes. Ambos foram adquiridos por E. G., o primeiro, em 1971, e o segundo, em 1981. Só depois da aquisição dos dois ocorrida em 1981 é que E. G. passou a usá-los indistintamente, de forma conjunta, posto que ambos lhe pertenciam.
É esta a versão dos factos que resulta do conjunto dos depoimentos prestados quer pelos autores e suas testemunhas, quer pelo réu e respetivas testemunhas.
No que diz respeito à existência da doação do imóvel ao réu, esta matéria foi confirmada pelo réu, por E. G., pai do réu, e por A. J., sendo que este último sabe apenas o que sobre a matéria lhe foi contado pelo réu.
De acordo com as regras da experiência comum não é uma situação normal ou frequente os pais efetuarem a doação da sua própria casa de habitação a um filho que tem apenas 15/16 anos de idade, sendo essa a idade que o réu tinha quando foi feita a invocada doação posto que o mesmo nasceu em 1975.
Pese embora a pouca normalidade da situação, admite-se que, em tese, a mesma poderia suceder. Porém, não se compreende que essa doação seja de feita de forma meramente verbal, em vez de ser devidamente formalizada, e também não se compreende que sendo feita tal doação em 1990, o imóvel continue inscrito na matriz em nome de E. G. em vez de estar em nome do filho a quem tinha sido doado, situação que resulta da certidão matricial junta aos autos com a p.i. e que tem data de 24.9.2014, sendo até posterior à própria escritura de justificação que foi outorgada em 26.6.2014. Tanto mais que E. G. declarou que era o réu que efetuava o pagamento dos impostos referentes ao imóvel.
Por outro lado, todas as pessoas inquiridas confirmaram que quem sempre viveu na casa foram os pais do réu, sendo que o réu reside em França e apenas se desloca a Portugal de visita, o que corre cerca de 2 ou 3 vezes por ano.
Assim, à luz das regras da experiência comum, os depoimentos prestados por E. G. e pelo réu são insuficientes para demonstrar a veracidade da existência da doação, sendo que a única testemunha que aludiu a tal doação também não possui qualquer conhecimento direto sobre a matéria, sabendo unicamente o que lhe foi relatado pelo réu.
Finalmente, e no que toca às áreas, ninguém confirmou as áreas do prédio e nem sequer do relatório elaborado pelo perito P. S. que se encontra junto aos autos resulta minimamente que as áreas sejam as referidas. Em primeiro lugar, porque as áreas são de dois prédios e não do prédio inscrito na matriz sob o art. ...; em segundo lugar, porque desse relatório, mesmo nas medições feitas pelo perito com base nos limites indicados pelo mandatário dos réus, não resulta a área referida no facto 13.
Assim sendo, dos elementos probatórios constantes dos autos impõe-se alterar a matéria de facto considerando provados os factos 9 e 10, que têm a seguinte redação:

9. Em 1981, E. M. declarou vender a E. G., o qual declarou comprar o prédio descrito em 7).
10. Desde a data mencionada em 9), E. G. tem utilizado o palheiro para guardar utensílios e cultivado o logradouro do antedito prédio.
Quanto aos factos 11, 12 e 13 os quais têm a seguinte redação:

11. Em 1990, E. G. e mulher A. C. declararam doar ao Réu a casa enunciada em 1).
12. Desde a data citada em 6), o Réu tem habitado o prédio referido em 1), à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém, com a convicção de quem exerce direito próprio.
13. O prédio indicado em 1) tem a superfície coberta de duzentos e vinte virgula trinta metros quadrados e a área descoberta de trezentos e quinze virgula vinte metros quadrados.

os mesmos têm que continuar a ser considerados como não provados.

II – Reapreciação da decisão jurídica em função da alteração introduzida na matéria de facto

A sentença proferida nos autos declarou a ineficácia da escritura pública de retificação de justificação outorgada pelo réu em 24.02.2020 essencialmente atenta a falta de prova dos factos 9 a 13.
Pretende o réu que a sentença seja revogada e substituída por outra que o absolva do pedido.
Vejamos, então, se a sua pretensão pode proceder à luz da alteração supra introduzida na matéria de facto e que consistiu em considerar provados os factos 9 e 10 que tinham sido dados como não provados.
O objeto dos autos consiste em saber se a escritura de retificação outorgada em 24.2.2020 é ou não eficaz. Não está em causa nem é impugnada a escritura de justificação de 26.6.2014 que, por isso, não será objeto de análise.
A escritura de retificação tem o teor que consta do facto 5 e retifica a escritura de justificação de 26.6.2014 que tem o teor que consta do facto 1.

A justificação notarial é um meio que permite ao adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito obter a primeira inscrição, ou, caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, um meio que permite suprir a falta de intervenção do respetivo titular (art. 116º, do Código do Registo Predial).

Nos termos dos arts. 89º a 91º, do Cód. do Notariado, a justificação pode ter como finalidade:
a) o estabelecimento do trato sucessivo;
b) o reatamento do trato sucessivo;
c) o estabelecimento de novo trato sucessivo.

Recorrendo às palavras do Acórdão do STJ, de 5.11.2019, Relatora Maria Clara Sottomayor (in www.dgsi.pt) “a escritura de justificação notarial é um instituto que contribui para a paz social e para a justiça, na medida em que, nos casos em que os interessados encontram dificuldades no registo, derivadas da falta ou insuficiência dos documentos normalmente necessários, e estão impossibilitados de demonstrar o seu direito e, consequentemente, de transmitir ou onerar os seus bens, a lei permite-lhes a prova da aquisição por usucapião. Criou, assim, a lei uma providência de natureza excecional, a justificação, destinada a possibilitar o estabelecimento do princípio do trato sucessivo (inscrição prévia e continuidade das inscrições), sempre que os interessados não disponham de títulos que comprovem os seus direitos.
No acórdão do Supremo Tribunal, de 25.06.2015, Relator Abrantes Geraldes (in www.dgsi.pt) refere-se que a justificação notarial é um instrumento com “uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objectivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à acção de justificação judicial, quer à acção de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa.
Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afectados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de acção que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa acção de reconhecimento do direito real pela mesma via.
A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a percepção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objecto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspectos de ordem substancial ou material e os aspectos de ordem formal atinentes ao património imobiliário”.

Todavia, nos termos do art. 92º do Cód. do Notariado, a justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, só é admissível em relação aos direitos nela inscritos.
Trata-se de norma que tem natureza imperativa e que impede que se constituam, por via da justificação notarial, direitos relativos a bens imóveis que estejam omissos na matriz.
Escreveu-se, a este propósito, no parecer nº R.P 112/2010 SJC-CT do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado que “a ratio da exigência de que a escritura de justificação apenas se possa celebrar quando exista inscrição matricial do prédio objeto do direito alegadamente usucapido releva com efeito da necessidade sentida pelo legislador de se assegurar da real existência do bem, e de que portanto o ingresso e definição da identidade dele no registo, designadamente na sua mais elementar e radical configuração, enquanto porção delimitada de solo (com a área que tiver) não fica inteiramente confiada à declaração «interessada» do justificante, e isto pese embora a intervenção no acto de três outros sujeitos unissonamente confirmando a veracidade de tal declaração. (…) A segurança propiciada pela prévia inscrição matricial advém da possibilidade que os serviços fiscais têm de, no terreno, e designadamente para efeitos de avaliação, procederem às inspecções e vistorias se justifiquem. E se é certo que nem sempre (e porventura nem sequer maioritariamente) a inscrição na matriz será precedida de tal de verificação in loco, a simples possibilidade de que ela se tenha realizado ou venha a realizar, através dos meios técnicos e humanos de que para isso os serviços de finanças estão dotados, garante aos olhos da lei aquele mínimo de certeza acerca da existência e identidade do prédio de que se não quis prescindir e que a mera declaração verbal por parte do justificante se tem por incapaz de produzir”.

A justificação notarial não constitui ela própria o ato translativo ou constitutivo do direito real. Tal direito, no caso de invocação da usucapião, decorre dos concretos atos materiais de posse, revestidos de determinadas caraterísticas e mantidos durante certo período temporal, que conduzem a essa forma originária de aquisição e que são invocados na escritura de justificação.
Esses atos podem ser impugnados judicialmente, nos termos do art. 101º do Código do Notariado, em ação de impugnação de justificação notarial, a qual é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura.
Assim, como decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/08, de 4.12.2007 (in DR, SÉRIE I, de 2008-03-31) “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.”
O quadro legal explanado a propósito da justificação notarial tem aplicação, mutatis mutandi, para a retificação da justificação notarial.

Ora, revertendo ao caso concreto, em 26 de junho de 2014, foi lavrada uma escritura pública de justificação na qual se declarou que o réu é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do prédio urbano sito no Lugar ..., n.º .., na freguesia de ..., concelho de Vila Pouca de Aguiar, composto de casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, com a superfície coberta com cento e sessenta e dois metros quadrados e superfície descoberta com quarenta e dois metros quadrados, a confrontar a norte com J. B., a sul com A. M., a nascente com R. M. e a poente com Estrada Municipal, inscrito na matriz sob o artigo ... (facto provado 1).
Como já se referiu, esta escritura de justificação não é objeto de impugnação, incidindo a impugnação unicamente sobre a retificação desta escritura que veio a ser efetuada em 24.2.2020.
E, como decorre do facto provado 5, a escritura de justificação veio a ser retificada em 24.2.2020, referindo-se que o imóvel não ficou devidamente identificado quanto à área e que a indicação dos antepossuidores não ficou completa, porquanto os mesmos foram indicados na referida escritura como sendo E. G. e A. C., ficando por declarar que os mesmos, por sua vez, tinham já adquirido a A. E., viúva, e E. M., este já falecido, por força de compra e venda feita sob a forma verbal no ano de 1971.
Retificou-se ainda a mencionada escritura quanto à área ficando a constar que o prédio tem a superfície coberta de 220,30 m2 e a área descoberta de 315,20 m2.
Referiu-se ainda que a divergência entre a descrição predial e a inscrição matricial se deveu a simples erro de medição e que o prédio nunca sofreu qualquer alteração independentemente da retificação ora feita sendo a área correta a que consta na inscrição matricial.
Competia ao réu a prova da veracidade destes factos.
Ora, não está provada a materialidade factual que consta da retificação feita à escritura de justificação.
A escritura de justificação refere-se ao prédio inscrito na matriz sob o art. ....
Este prédio ... foi adquirido por E. G. a J. B. em 1971 (facto 6).
Este prédio ... confrontava a norte com um prédio composto de palheiro e logradouro (facto 7).
E só em 1981 E. M. declarou vender a E. G. o prédio descrito em 7), ou seja, o prédio composto de palheiro e logradouro (facto 9).
Portanto, não há nenhum erro quanto às áreas do prédio ... nem quanto aos antepossuidores que possa ser suprido por meio de uma retificação. O prédio de palheiro e logradouro que pertenceu a E. M. e que este vendeu a E. G. sempre foi um prédio distinto e autónomo do prédio inscrito na matriz sob o art. ..., sendo um prédio que confinava com este último e que foi adquirido 10 anos depois daquele.
Quanto às áreas nada se provou. Todavia, as alegadas áreas sempre integrariam a soma das áreas do prédio de palheiro e logradouro e do prédio .... Estes dois prédios são autónomos e distintos.
De referir que, como supra se explanou, não é possível adquirir por meio de justificação notarial prédios que não estejam inscritos na matriz. E o prédio de palheiro e logradouro que foi adquirido a E. M. não integra o prédio ... e não há evidência de esse prédio esteja inscrito na matriz, o que sempre impediria a sua aquisição por via de escritura de justificação notarial e ainda mais por via de retificação.
Portanto, em suma, da materialidade de facto provada conclui-se que não há nenhum lapso quanto à identificação do prédio ..., quer quanto à área quer quanto aos antepossuidores, o que impede a possibilidade de retificação da escritura de justificação referente ao prédio inscrito na matriz sob o art. ... e que foi outorgada em 26.6.2014 relativamente a essas matérias.
Como tal, não estando provado o que foi declarado na escritura de retificação da justificação notarial outorgada em 24.2.2020 que é objeto de impugnação na presente ação, tal escritura de retificação tem que ser declarada ineficaz.
Nestes termos, o recurso improcede.
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Pese embora tenha ocorrido alteração parcial da matéria de facto, a mesma não conduziu à procedência do recurso pelo que se entende que o réu decaiu na sua pretensão, e ficou vencido, tendo de suportar as custas do recurso nos termos do art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente.
Custas pelo réu.
Notifique.
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Guimarães, 23 de setembro de 2021

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas