Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1124/05-2
Relator: ANTÓNIO ELEUTÉRIO
Descritores: LENOCÍNIO
MEDIDAS DE COACÇÃO
DIREITO AO TRABALHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Indiciando-se que um arguido, proprietário e gerente de um estabelecimento, nele fomentava e facilitava, com fins lucrativos, a prática de prostituição, aproveitando-se da fragilidade e debilidade económica das mulheres que exerciam tal actividade, ajusta-se, além de outras, a medida de coacção de proibição de o arguido entrar no dito estabelecimento.
II – Igual medida ajusta-se também a uma empregada do estabelecimento de quem se indicie ser co-autora dos factos praticados pelo empregador.
III – Ainda que, com aquela medida, o arguido fique impossibilitado de, pessoalmente, continuar o giro comercial do estabelecimento e a empregada de nele prestar o seu trabalho, não há violação do direito ao trabalho, garantido na Constituição da República Portuguesa, pois, além de a medida ser compatível com as exigências cautelares que o caso requer, o proprietário pode manter o giro comercial por outras vias e a empregada não vê atingido o seu direito de não ser privada do seu posto de trabalho, o qual só pode ser atacado por justa causa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no tribunal da Relação de Guimarães.
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Em relação aos recorrentes A. e P. (idºs no processo) (inquiridos no âmbito de um 1º interrogatório judicial cfr. art. 141º do CPP) foi proferido o seguinte despacho:
As detenções foram efectuadas ao abrigo do disposto dos art° 255°, n° l ai. a) e 256°, n° l do C.P.Penal, porque foram legais e, assim, as valido.
Igualmente, valido as apreensões efectuadas, ao abrigo do disposto no art° 178°, n°s l e 5, do C.P.Penal.
(…)
Tendo em consideração os vários relatórios de diligências externas e os autos de apreensão constantes dos autos, bem como os vários autos de declarações prestadas pó diversas mulheres que trabalhavam no "bar ... " e que referiram que aí praticavam relações sexuais com clientes, bem como as declarações prestadas por alguns destes clientes que atestam a existência de tais relações, somos forçados a concluir que os autos indiciam a prática pêlos arguidos A. e P. de um crime de lenocínio, p. e p. pelo art° 170.° n°l do CP.
Relativamente aos arguidos B. e C., tendo nomeadamente em consideração os apontados elementos de prova, bem como os seus autos de interrogatórios judiciais, os presentes autos indiciam, para já, a prática por estes do mesmo crime de lenocínio, p. e p. pelo art° 170.° n°l do Código Penal, pelo menos, como cúmplices.
O crime em apreço é punido com uma pena de prisão de 6 meses a 5 anos, assumindo elevada gravidade. Para além de atentar contra a dignidade da pessoa humana dessa mulher que, merece de circunstâncias alheias à sua vontade, se vêem forçada a prostituir-se, a maioria das vezes, por razões económicas.
Por isso, são graves as exigências cautelares que no caso fazem sentir e que, por isso, deverão ser ponderadas em sede de aplicação das medidas de coacção. -
Assim, relativamente aos arguidos B. e C. e atendendo à natureza do crime que cria na sociedade em que vivemos alarme social, entendemos que os mesmos devem aguardar os ulteriores termos do processo, com a obrigação da apresentação semanal à autoridade policial da sua residência, para além do TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA , já prestado, cfr. os art°s 191° a 193° e 204°, ai. c), 198° e 196°, todos do C.P.Penal.
Relativamente aos arguidos A. e P., as exigências cautelares são mais severas, tendo em consideração que os mesmos eram os proprietários do "bar ..." e o exploravam profissionalmente e com fins lucrativos fomentando, favorecendo e facilitando a prática por parte das mulheres que aí se deslocavam, da prostituição, aproveitando-se da sua fragilidade e da sua débil situação económica. -
Assim, relativamente aos mesmos arguidos existe, em concreto, perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente, para a aquisição, conservação e veracidade da prova, bem como, perigo face à natureza e circunstância do crime e da personalidade dos arguidos da perturbação e tranquilidade da ordem públicas e ainda da continuação da actividade criminosa. -
Tudo ponderado, e embora fosse admissível ao caso uma medida privativa de liberdade, entendemos tal como o doutamente promovido, que, por agora, se mostra suficiente e adequado sujeitar os arguidos, às seguintes medidas de coacção:
- TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA.
Prestar, cada um dos arguidos uma caução, por depósito, no valor de
5.000,00 Euros, no prazo de 15 dias,
Serem proibidos de entrar no estabelecimento "... Bar";
Serem proibidos de se ausentar para o estrangeiro e,
- Serem proibidos de contactar com quaisquer pessoas que habitualmente frequentavam o referido estabelecimento, quer como clientes quer como empregados, designadamente as pessoas que aí se encontravam de nacionalidade brasileira, cuja identificação consta dos autos.
O fundamento legal: art° 191° a 193°, 204°, ais. b) e c), 200°, n°1 alínea a), b) e d) e o 196°, todos do C. P. Penal.
Restitua-se de imediato os arguidos à liberdade D.N.
Notifique.
Comunique à autoridade policial a media de obrigação de apresentação periódica e ainda a execução da medida de coacção prevista no art° 200°, do C.P.Penal - proibição de entrar no estabelecimento "... Bar", por forma a que a referida medida possa ser implementada e executada.
Remeta cópia do despacho ao Serviço de Estrangeiro e Fronteiras competente.
Neste acto foram, ainda, os arguidos notificados da realização para prestação de declarações para memória futura agendada, nos termos e para os efeitos do art° 271°, n°s 2 e 3 e 4 do C.P.P.
Fixo os honorários à Ilustre Defensora Oficiosa Dra. Fátima Macedo, de acordo com a tabela em vigor.
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Os arguidos interpuseram recurso do sobredito despacho e apresentaram as seguintes conclusões:
1. No momento em que foram detidos, os arguidos não estavam a cometer e também não tinham acabado de cometer qualquer crime, pelo que a detenção dos arguidos foi indevidamente validada ao abrigo do disposto nos artigos 255° e 256°.
2. O arguido António Fernandes é sócio-gerente da sociedade ... Bar Lda., que explora o estabelecimento com o mesmo nome. Está devidamente licenciado a funcionar pelas autoridades administrativas.
3. A arguida P., é trabalhadora da referida sociedade que explora o estabelecimento, tendo a categoria de “barman de 2ª”.
4. A medida de coação ora imposta, proibição de entrada e permanência no estabelecimento impede ambos os arguidos de exercerem o seu trabalho, o que viola o disposto no artigo 58° da CRP.
5. A medida ora imposta equivale ao encerramento do estabelecimento, já que quer o seu dono, quer os restantes trabalhadores, no qual se inclui a arguida P., estão impedidos de entrar e permanecer no estabelecimento.
6. A medida de coação ora imposta — proibição de entrar e permanecer no estabelecimento -é demasiado gravosa, já que na prática consubstancia um encerramento do estabelecimento, situação que não aconteceria, mesmo que os arguidos fossem condenado pêlos crimes de que estão indiciados.
7. Além das normas já indicadas foi também violado o artigo 200° do CPP
Termos em que julgando o presente recurso, de modo a suspender a medida de coação de proibição de entrada e permanência dos arguidos no estabelecimento, farão V. Exas justiça.
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O Magistrado do Mº Pº pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso (fls 71 e 72).
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Os recorrentes colocam as seguintes questões (extraídas das conclusões do recurso, que o delimitam):
1) A detenção foi indevidamente validada;
2) A medida de coacção de proibição de entrada e permanência no estabelecimento supra referido impede ambos os recorrentes de exercerem o seu trabalho pelo que viola o disposto no art. 58º do CRP;
3) A dita medida de coacção equivale ao encerramento do estabelecimento e é demasiado gravosa.
Validade da detenção
Em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, qualquer autoridade, judiciária ou policial, procede à detenção entendendo-se por flagrante delito todo o crime que se está ou se acabou de cometer (arts. 255º nº 1 al. a) e 256º nº 1 do CPP).
No caso em apreço, os recorrentes encontram-se indiciados pela prática de um crime de lenocínio p. e p. pelo art. 170º nº 1 do CP.
Nos termos do supra citado artigo “Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”.
A título de exemplo, consta das declarações de Márcia Martins de Oliveira (fls 27 e 28) que trabalha no bar em causa há três anos e seis meses, que tem sexo com os clientes (30 euros no reservado e 50 euros nos quartos), por cada acto sexual entrega 15 euros ou 5 euros aos recorrentes cfr actos praticados nos quartos ou no reservado, que o indivíduo que estava no quarto consigo, aquando da fiscalização, pagou 50 euros por sexo oral e vaginal e que estava a ter relações sexuais com D. quando ocorreu a acção de fiscalização em questão.
Neste contexto, ocorreu uma situação de flagrante delito (atentos os pressupostos do lenocínio e o que se constatou, a título de exemplo, com a declarante em causa) que legitimou a detenção e a tornou válida.
Violação do artigo 58º nº 1 da CRP
O citado artigo da Constituição dispõe que “Todos têm direito ao trabalho”.
Estamos perante uma norma constitucional de natureza programática.
O direito ao trabalho tem um conteúdo positivo (direito de obter emprego ou de exercer uma actividade profissional) e uma dimensão negativa ou de garantia (liberdade de procurar emprego, igualdade no acesso a quaisquer cargos, direito ao exercício efectivo da actividade e direito de não ser privado do posto de trabalho, dimensões estas do direito em questão que beneficiam do regime próprio dos direitos, liberdades e garantias (a este propósito, CRP anotada, Gomes Canotilho, Vital Moreira, 3ª edição, pág. 315).
O direito de não ser privado do posto de trabalho materializa-se na proibição, que se impõe directamente a terceiros, de não ser despedido sem justa causa.
De acordo com o preceituado no art. 53º da CRP são proibidos, designadamente, os despedimentos sem justa causa.
Neste contexto, a proibição decretada pelo tribunal (dos arguidos entrarem e permanecerem no estabelecimento) não põe em causa o seu direito ao trabalho porquanto só com justa causa (a averiguar no processo próprio) é que se pode pôr termo à relação de trabalho.
Quanto ao exercício efectivo da actividade laboral (que os recorrentes consideram violado) este tem a ver com o direito à ocupação efectiva do trabalhador ou seja é operante nas relações entre o trabalhador e a entidade patronal.
Acresce que “A execução de medidas de coacção … não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer”.
Consequentemente, inexiste a violação da lei constitucional supra referida porquanto o disposto no art. 200º nº 1 al. d) do CPP, que fundamentou a proibição em questão, não só não põe em causa, directa ou indirectamente, a estabilidade da relação de trabalho como é estranho à violação do direito à ocupação efectiva do trabalhador, consubstanciada no exercício efectivo da sua profissão.
Encerramento do estabelecimento e gravosidade da medida de proibição de entrada e permanência
Mesmo considerando que, na prática, o recorrente é o único responsável pelo estabelecimento referido a medida decretada pelo tribunal a quo não tem a virtualidade de equivaler ao seu encerramento.
Efectivamente, atentas a circunstâncias, resta ao recorrente gerir o estabelecimento lançando mão de outros meios que não impliquem a sua presença física no local, o que se afigura ser perfeitamente viável.
Quanto ao mais, rege o princípio da adequação e da proporcionalidade.
A este propósito rege o disposto no art. 193º nº 1 do CPP o qual dispõe que “As medidas de coacção … a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.
Estando em causa indícios da prática, pelos arguidos, do crime de lenocínio (alegadamente perpetrado no estabelecimento supra referido) a medida aplicada pelo tribunal a quo mostra-se proporcional e adequada às circunstâncias tendo em conta maxime a relação estabelecida pelos recorrentes (marido e mulher) com os factos materializadores do ilícito em investigação.
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Nestes termos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes (taxa de justiça – 3 Ucs).
Guimarães, 11/7/05