Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2721/07-1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: EXECUÇÃO
ISENÇÃO
PENHORA
REDUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/31/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: - A intervenção correctiva do juiz nos termos do nº 4 do artigo 824º do CPC no sentido da redução da penhora por período razoável ou da isenção pelo período máximo de um ano é excepcional.
- Dada tal excepcionalidade, as necessidades do executado devem ser ponderadas por um critério que apele ao padrão de consumo normal de um homem comum em idênticas circunstâncias, sendo de desconsiderar gastos em vício ou que extravasem desse padrão de consumo.
- Ponderados os critérios plasmados no nº 4 do artigo 284º do CPC e apresentando-se a situação do executado como relativamente estável, sem perspectivas de mudança no espaço de um ano, deve preferir-se a redução por período considerado razoável da parte penhorável.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.


Neste recurso de agravo é recorrente J... Veloso, e recorridos M... Silva, M... Peixoto, J... Peixoto e M... Peixoto.

O recurso foi interposto da decisão proferida na oposição à penhora na parte em que não determinou a isenção de penhora pelo período de um ano, e subsidiariamente na parte em que reduziu o montante a penhorar apenas pelo período de seis meses.

Conclusões do agravo:

l. No âmbito dos presentes autos, resultaram provados: - a penhora, em benefício do exequente, da quantia de € 182,53 mensais a subtrair á pensão de reforma (€ 547,60) de que o ora recorrente é titular, 8. - mercê de um contexto crucial e abundante em dificuldades económico-financeiras, pobreza material e inexistência de quaisquer outros bens ou rendimentos susceptíveis de tradução em capital, (cfr. Declaração fiscal que sob o Doe. 9 foi objecto de anexação aos autos executivos em 30/03/2007) - padecendo sua esposa uma conjuntura de desemprego, (cfr. Declaração que sob Doe. 10 foi carreada para o autos executivos em 30/03/2007), 9. - ademais com dois descendentes ao seu encargo, um dos quais toxicodependente, (fls. 60, último parágrafo da sentença objecto do presente recurso) - possuindo encargos invariáveis associados á pensão de reforma na quantia de € 24,94 e € 1,63.

2. Circunscrevendo-se o presente aresto á decisão a quo, no domínio do desenlace em 1a instância do meio defensional caracterizado pela "Oposição á penhora" deduzida pelo ora apelante, em que se procede á redução para € 100,00 pelo período de 6 meses do quantitativo inicialmente objecto de dedução (€ 182,53) á referida pensão de reforma.

Considerando o ora apelante tal redução insuficiente, e por um período de tão-só 6 meses, pois deveria tal decisão consubstanciar a ISENÇÃO PENHORISTICA ou redução para período superior a 6 meses da penhora dos rendimentos do ora recorrente.

3. Correctamente subsumida a presente matéria no art. 324° n°1 al. b) do C.P.C., segundo o qual a impenhorabilidade tem como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente ao salário mínimo nacional. Neste âmbito proferiu o Tribunal a quo sentença de elevação do quantitativo impenhorável do rendimento, reduzindo a quantia objecto de penhora a € 100,00 mensais.

4. Da violação do art. 824° n°4 C.P.C.: não obstante tal redução, sofre quotidianamente o ora apelante do pungente impacto da dedução do valor de € 100,00. Efectivamente, auferindo uma pensão mensal de € 547,60, a subtracção de € 100,00 cifra tal pensão em € 447,60, quantitativo que, embora observador dos parâmetros aritméticos do Salário Mínimo Nacional (€ 403,00, DL 2/2007 de 3 de Janeiro) o respectivo remanescente IMPOSSIBILITA O ORA RECORRENTE DO PERFEITO CUMPRIMENTO da totalidade do respectivo rol obrigacional.

5. Na verdade, os encargos mensais de teor constante , liminarmente documentados:

- renda habitacional de € 185,00 mensais - deduções conexas com a pensão de reforma: € 24,94 e € 1,63, - para além de outros igualmente documentados: dispêndios farmacológicos relativos ao próprio recorrente no valor de € 15,07 mensais, por padecimento de patologia crónica ( cfr. Receituário que sob o Doc. 11 foi objecto de anexação aos autos executivos, bem como o relatório médico igualmente carreado) além de encargos indiscriminados concernentes ao tratamento medicamentoso de desintoxicação do descendente do ora apelante.

6. De onde promana uma quantia sobrante á pensão de reforma ( € 547,60) -subtraídos os dispêndios mensais - de € 236,03!!!

7. Sucede que o próprio Tribunal a quo declara o executado jazeria em situação intoleravelmente necessitada, não se justificando contudo a ISENÇÃO DE PENHORA!

Ora, salvo o devido respeito, o ora recorrente não partilha de tal acto interpretativo dirigido ao art. 824° n°4 C.P.C. (última parte) "...ponderado o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e agregado familiar, pode o juiz excepcionalmente reduzir pelo período que considere razoável a parte penhorável dos rendimentos e mesmo.. .isentá-lo de penhora", já que se impunha a conduta interpretativa no sentido da determinação da ISENÇÃO DE PENHORA DOS RENDIMENTOS DO EXECUTADO, ORA APELANTE. Da violação dos art. 1°, 59° n°2 al. a) e 63°n° 1, 3 da Constituição da República Portuguesa: pois a singela dedução de € 100,00 e tão-só pelo hiato de 6 meses á magra pensão de reforma posterga o ideal de asseguramento dos meios de susbsistência necessário a uma vida condigna, redundando num pungente e desproporcionado sacrifício inferior ao mínimo considerado vital a uma existência humanamente justa.

8. Consequentemente, impunha-se a ISENÇÃO DA PENHORA dos rendimentos do ora recorrente, pois tal não colide com os interesses conflituantes do exequente - de ver satisfeito o respectivo crédito - e do executado - de não se ver privado de qualquer rendimento ( o que ora sucede, já que é reconduzido a uma conjuntura tal que demanda a PLENA ISENÇÃO ( ainda que pelo período de l ano) PENHORÍSTICA dos respectivos rendimentos.

9. Ademais, a dívida exequenda reveste contornos solidários, caracterizando-se por uma OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA , pressupondo a execução contra os demais 3 co-executados.

10. A decisão a quo inobservou consequentemente os art.324° n° 4 C.P.C, e arts. 1°, 59° n° 2 al. a) e art. 63° n°s 1,3 da Constituição da República Portuguesa. Decisão á qual se impunha a subsunção da presente casuística na última parte do art. 324° n°4 - promanando consequentemente um erro interpretativo de tal segmento normativo - no sentido da isenção de penhora dos rendimentos do ora recorrente pelo período mínimo de l ano ou subsidiariamente a dilatação para l ano do período de 6 meses que acompanhou a redução do montante objecto de penhora - € 100,00 - á pensão de reforma do ora recorrente.

Nas contra-alegações os recorridos defendem a manutenção do julgado.

Colhidos os vistos dos Ex.mºs Srªs. Adjuntas há que conhecer do recurso.


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Factualidade com interesse para apreciação do recurso:

1) A 22 de Novembro de 2004, M... Silva, M... Peixoto, J... Peixoto e M... Peixoto propôs contra V... Veloso, J... Veloso, N... Luz e M... Dias acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, onde peticionava a resolução do contrato de arrendamento celebrado e a condenação destes no pagamento das rendas vencidas desde Janeiro de 2003, no valor mensal de € 225,00, até trânsito em julgado da decisão que resolver o contrato, bem como juros vencidos e vincendos;
2) Por sentença, transitada em julgada, foi a acção julgada parcialmente procedente e, consequentemente, declarado resolvido o contrato de arrendamento, bem como condenados os Réus a pagarem aos Autores as rendas vencidas relativas aos meses de Julho de 2003 a Maio de 2006, no valor de € 7.650,00;
3) Os Autores deram como título executivo à execução apensa a sentença aludida em 3.;
4) No âmbito da execução apensa, cuja quantia exequenda se cifra em € 7.900,00, foi penhorado 1/3 da pensão de reforma (€ 182,53) de que o Executado, ora Opoente, é titular na Caixa Geral de Aposentações, no valor mensal de € 547,60 (quinhentos e quarenta e sete euros e sessenta cêntimos);
5) O Executado/Opoente J... Veloso tem como encargo mensal fixo a renda habitacional no montante de € 185,00 (cento e oitenta e cinco euros);
6) O Executado/Opoente J... Veloso tem como descontos fixos associados à pensão de reforma aludida em 4. as quantias de € 24,94 (vinte e quatro euros e noventa e quatro cêntimos) e € 1,63 (um euro e sessenta e três cêntimos).
Aditados:
7) (Aditado) O executado/opoente não tem outros rendimentos, tem a seu cargo pelo menos a sua mulher, que se encontra desempregada.

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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 684º, n.º 3 e 690º do CPC o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.

O recorrente coloca essencialmente a seguintes questões:

- Violação do artigo 824, 4 do CPC, por não isenção de penhora, ou redução por período superior a 6 meses.

- Violação dos artigos 1, 59, 2, a) e 63 nºs 1 e 3 da CRP, por a penhora constituir sacrifício desproporcionado não ficando assegurado o mínimo para uma subsistência condigna violando-se o princípio da dignidade humana.


***

Antes de entrarmos na apreciação do litígio, importa esclarecer o adicionamento à matéria de facto, que verdadeiramente não o é, pois a materialidade ora adicionada foi considerada na decisão recorrida, e a mesma resulta dos autos designadamente fls. 7 a 10.

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Violação dos artigos 1, 59, 2, a) e 63 nºs 1 e 3 da CRP.

O recorrente sustenta a violação das normas referidas, no facto de a singela redução para € 100,00 do valor a descontar e tão-só pelo período de 6 meses, à sua magra pensão de reforma, a qual já em si e de per si tem como filosofia subjacente a salvaguarda dos meios de subsistência adequados e necessários a uma vida condigna constituirá para este um Sacrifício excessivo e desproporcionado.

Defendendo o carácter assistencial da pensão de reforma, adequada e necessária a uma existência média quotidiana condigna, destinando-se a assegurar o mínimo de subsistência, defende que aquela singela redução atenta contra o princípio da dignidade humana contida no princípio do Estado de Direito que resulta daquelas disposições.

Conclui que se impunha a isenção pelo período de um ano.

Se bem se interpreta a alegação, o recorrente não invoca qualquer inconstitucionalidade – até porque a inconstitucionalidade se reporta a normas e não a decisões -. São as normas, ou determinada interpretação destas que podem estar feridas de inconstitucionalidade por atentarem contra os comandos e princípios constitucionais -, invoca antes a violação directa de norma constitucional pela decisão proferida.

As normas constitucionais respeitantes a direitos liberdades e garantias, bem como os direitos fundamentais de natureza análoga, são directamente aplicáveis – arts. 17 e 18 da CRP.

Relativamente ao comando dos artigos 59, 2, a) e 63, 1 e 3 da CRP, tratando-se de comando dirigido ao Estado, não se vê que relevo possa ter a sua invocação na relação privada de que ora se trata – exequente V executado -. A “aplicação imediata” nas relações privadas não pode valer para aqueles direitos fundamentais que só podem ter por sujeito passivo o Estado ou as autoridades públicas…” – Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., Vol. I, 4ª ed., 2007, pag. 272, em nota ao artigo 17.

Relativamente ao comando do artigo 1 (principio da dignidade humana), trata-se de um princípio geral que pela sua generalidade necessita de concretização pela lei ordinária, o que, no que ao que ora respeita, foi efectuado pelo artigo 824 do CPC. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anot., Vol. I, 4ª ed., 2007, pag. 382, em nota ao artigo 18, “o facto de serem directamente aplicáveis não dispensa, porém, a investigação dos pressupostos da aplicabilidade directa. Com efeito, e em primeiro lugar, a aplicabilidade directa não significa que as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias configurem, desde logo, direitos subjectivos absolutos e autónomos susceptíveis de poderem valer como alicerce jurídico necessário e suficiente para a demanda de posições jurídicas individuais. A aplicabilidade directa não dispensa, em segundo lugar, um grau suficiente de determinabilidade…”.

O direito à dignidade, neste especifica vertente, não tem no texto constitucional a suficiente densificação de molde a permitir a sua imediata aplicação a partir do texto constitucional, ou por outro, densifica-se no texto constitucional nos diversos direitos fundamentais, enquanto seu princípio fundante (visão personocêntrica) e princípio limite. Aquele direito, designadamente enquanto direito aos meios necessários para uma existência condigna, carece de concretização pela lei ordinária – com excepção eventualmente quanto ao “mínimo indispensável”, como o TC já referiu.

A pretender invocar uma qualquer inconstitucionalidade no artigo 824 do CPC, não formula o recorrente a razão porque a norma é inconstitucional, ou dito de outro modo, não diz qual a interpretação dada à norma, ou segmento desta que reputa inconstitucional.

Sempre se dirá que, e no que respeita à invocada natureza assistencial da pensão (poder-se-ia ver aqui uma pretensão a uma absoluta impenhorabilidade, por constituir de per si a pensão o mínimo para uma subsistência condigna – na senda do que defendeu o TC para o RMG no ac. 62/2002 -), que o TC teve o ensejo de se pronunciar, no sentido de que é impenhorável, por violação do principio da dignidade humana, o valor das pensões na medida em que não sejam superiores ao salário mínimo nacional. Acs. TC nº 318/19, 62/2002, 177/2002. Doutrina que levou aliás à alteração da lei, pelo D.L. 38/2003.

A lei, na sequência dos desenvolvimentos doutrinais do tribunal constitucional, veio a reflectir aqueles princípios constitucionais, determinando designadamente a impenhorabilidade do montante equivalente ao salário mínimo nacional (salvas as excepções consagradas).

Reconhece assim o legislador este montante como o correspondente ao mínimo necessário para garantir uma existência minimamente condigna, e não outro.


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Violação do artigo 824, 4 do CPC, por não isenção de penhora, ou redução por período superior a 6 meses.

Sustenta o recorrente que em face da sua situação económica se impunha a isenção da penhora dos rendimentos pelo período de um ano.

Dispõe o normativo:

1 – São impenhoráveis:
a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2 – A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.

4 – Ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excepcionalmente, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, isentá-los de penhora.

Nos termos do nº 4 do normativo, o juiz, recorrendo a critérios de equidade e ponderando as circunstâncias no normativo referidas, deve reduzir por período razoável o montante a penhorar, ou isentar da penhora pelo período máximo de um ano.

Dado a natureza excepcional desta intervenção correctiva, as necessidades do executado devem ser ponderadas por um critério que apele ao “padrão de consumo normal” de um homem comum em idênticas circunstâncias –(de rendimento, agregado, local de habitação, etc…)-.

Gastos em vício ou que extravasem desse padrão normal de consumo, demonstrativos de um excessivo consumo para os rendimentos disponíveis (Ex: excessivo e injustificado consumo de serviços telefónicos) exigem antes do executado que adapte o seu padrão de consumo de molde a poder cumprir com a obrigações assumidas, designadamente as exequendas.

As despesas apresentadas e comprovadas, tendo em conta a localidade – relevante designadamente para o montante da renda -, mostram-se adequados e equilibrados. Considerando o valor da pensão (547,60), o valor das despesas fixas ( 211,57 incluindo habitação, mais 15,07 de medicamentos), deduzindo 1/3 (com a salvaguarda do smn) restam ao executado e seu agregado (esposa que se encontra desempregada) 176,36 (88,18 per capita).

Considerando os interesses do credor, e até porque a situação do executado se apresenta relativamente estável (sem perspectiva de mudança no período de um ano), não se vê razão para a pretendida isenção.

Com a redução da penhora de 144,60 para 100 € o valor disponível passa para 220,96 (100,48 cada), o que, não sendo valor de grande monta, e estando fora dele o dispêndio com habitação e a despesa médica permanente do executado, satisfará, com ligeiro ajuste as exigências mínimas do casal.

Quanto ao período fixado, considerando a situação do executado e seu agregado e a natureza do crédito, o mesmo mostra-se efectivamente curto. Nada aponte no sentido de que dentro de tal prazo poderem ocorrer alterações sensíveis na percepção de rendimentos quer pelo executado quer pelo respectivo agregado. É pois de conceder o solicitado prazo de um ano.

Entende-se fixar o valor penhorável, por redução para 1/6 do valor da pensão pelo período de 1 ano.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso, determinando-se que durante o período de um ano após transito, se proceda à redução da penhora referida em “a” da decisão recorrida, para o montante correspondente a 1/6 da pensão de reforma do executado.

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Custas nesta relação pelo recorrente e recorrido em ½ cada, sendo as de primeira instância nos termos aí fixados, considerando o ora decidido.