Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3/21.1GTBRG.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: DESPACHO DE RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Proferido o despacho que recebe a acusação e designa dia para a audiência de julgamento, fica vedado ao Juiz ordenar a devolução do processo à fase de inquérito para dedução de nova acusação (para suprimento de um elemento típico do ilícito em falta na acusação recebida).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Relatório

1. No processo comum (tribunal singular) com o nº 3/21.1GTBRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Competência Genérica de Póvoa do Lanhoso, após recebimento da acusação deduzida contra o arguido J. P. e designação de data para a realização da audiência de julgamento, na sequência da contestação apresentada pelo arguido, o Mmo. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho, datado de 07/09/2021 (transcrição):
“ACUSAÇÃO – QUESTÃO PRÉVIA
1.
O arguido alega que da acusação não consta um elemento objetivo essencial.
Com efeito, na sua tese, da acusação não consta que devido à influência de estupefacientes o arguido não estivesse em condições de conduzir com segurança tal como exige o tipo incriminador – cf. art. 291, nº 2, do CP.
Foi exercido o contraditório, reconhecendo o MºPº razão ao arguido.
Cumpre decidir.
2.
O arguido tem efetivamente razão.
Na verdade, da acusação não consta tal elemento objetivo essencial.
Por essa omissão, a acusação não devia ter sido recebida por manifestamente infundada uma vez que a conduta imputada não consubstancia um crime (por falta daquele elemento objetivo) – cf. al. d), do nº 3, do art. 311 do CPP.
Nada obsta a que o tribunal aprecie, neste momento, a questão, pois o saneamento do processo exige, em questões desta complexidade, o contraditório (no caso, a apresentação de contestação).
Pelo exposto, a falta daquele elemento essencial obsta à apreciação do mérito da causa, o que se declara.
Remeta os autos a inquérito.
Sem custas.
Notifique.”
*
2 – Por requerimento de 13/09/2021, o arguido suscitou a irregularidade processual do referido despacho por, em síntese:
- o despacho que recebeu a acusação e designou dia para a audiência de julgamento, datado de 07/05/2021, ter transitado em julgado há muito;
- a remessa a inquérito nessa fase processual constituir uma flagrante violação do princípio da irretratabilidade da acusação;
- o arguido e as testemunhas terem sido desconvocadas sem que exista qualquer despacho a dar sem efeito a audiência.
*
3 – Sobre tal arguição recaiu, em 16/09/2021, despacho do seguinte teor:
“IRREGULARIDADE PROCESSUAL
1
O arguido veio alegar que a decisão proferida a 7.9.2021 padece de irregularidade à luz do disposto no art. 123, n° 1, do CPP.
Mas sem razão.
Na verdade, não foi cometido nenhum vício processual.
As razões apontadas têm que ver com o fundo (ou mérito) da decisão e não com a sua forma.
Pelo exposto, indefiro o requerido.
2
O arguido veio, ainda, alegar outra irregularidade processual à luz também do disposto no art. 123, n° 1, do CPP.
No seu entender, a desconvocação do arguido e das testemunhas “sem que haja qualquer despacho judicial a dar sem efeito a audiência de discussão e julgamento” é também irregular.
Mas sem razão.
O despacho referido supra é claro.
O tribunal concluiu (apreciando os fundamentos da contestação e com eles concordando) que há razão que obsta ao conhecimento do mérito da causa e remeteu, em consequência, os autos a inquérito.
Ora, com o reenvio dos autos a inquérito não é possível realizar-se qualquer audiência de julgamento.
O despacho, por isso, não pode ser interpretado como tendo qualquer outro sentido nomeadamente o de que se mantém a audiência.
Pelo exposto, indefiro o requerido.”
*
4 - Não se conformando com a decisão, o arguido J. P. interpôs recurso da mesma, oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):

“1ª O douto despacho recorrido não pode manter-se quer por razões de forma, quer por razões de fundo, sufragando-se pelo presente a sua revogação e substituição por outro que ordene a extinção do procedimento criminal contra o aqui recorrente, ou caso assim não se entenda – o que se avança como hipótese académica -, maxime, que remeta a acusação já deduzida nos autos para julgamento e fixe data para a audiência de discussão e julgamento, seguindo o processo seus demais termos até final.
2ª O visado despacho viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e das mais elementares garantias de defesa do arguido, consagrados nos artigos 13º nº. 1 e 18º nº. 2 e 32º, todos da Constituição da República Portuguesa, mais violando os princípios infra constitucionais do acusatório, da irretratabilidade da acusação e da preclusão consumativa, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
3ª Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, o despacho recorrido sempre violará o efeito de caso julgado e a sua intangibilidade, bem como o princípio da legalidade – artigos 311.º, n.º 2, al. a) e 3 e 411º nº. 1 do CPP, 18º, 20º, 29º nº.1, 32º da CRP e art. 1º do CP, o que expressamente vai invocado caso não procedam as invocações supra.
4ª A esmagadora maioria da jurisprudência considera que não há possibilidade de reformular, corrigir ou completar uma acusação (improcedente), uma vez que tal reformulação subverteria o espírito do sistema processual penal, assente nalguma forma de protecção das expectativas do arguido em face de uma acusação determinada – este entendimento é, de resto, o único compatível com o disposto nos arts. 309º, nº 1 ou 359º do C.P.P.
5ª Por maioria de razão, afigura-se não ser legalmente permitido que perante uma acusação manifestamente infundada, o julgador remeta os autos a inquérito para que a acusação possa ser corrigida, pois conceder tal prerrogativa ao Ministério Público significaria uma violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos artigos 13º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesas.
6ª O exercício da acção penal é sempre orientado pelos princípios da legalidade e objectividade decorrentes da Constituição da República Portuguesa e da lei, os quais são fundamento da autonomia daquele órgão da administração da justiça.
7ª Verificou-se, pois com a prolação do douto despacho recorrido, um atropelo grosseiro dos princípios do processo justo, da igualdade de armas, da lealdade processual e da vinculação temática da acusação, ao consagrar, a fim de evitar a prática de atos processuais inúteis, que é lícito que a nulidade da acusação possa ser reparada, mesmo depois do processo ser remetido à fase de julgamento mas antes da ocorrência do mesmo.
8ª Se a acusação fosse rejeitada, por se considerar manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, al. d) e 3, do C.P.P, o procedimento criminal instaurado contra o arguido seria declarado extinto, sem mais, não havendo lugar a qualquer reenvio do processo à fase do inquérito para que se profira nova acusação, e sufraga-se nem sequer haver a possibilidade do Ministério Público exercer a ação penal relativamente aos factos contemplados na acusação rejeitada naqueles termos - acórdão do TRL de 30.01.2007 [proc. n.º 10221/2006 – 5], Ac. do TRC de 06.07.2011, Ac. RL de 06.04.2016, Ac. RE de 07.04.2015, todos in http://www.dgsi.pt.
9ª Da articulação do modelo jurídico-constitucional do Ministério Público com a estrutura do processo penal, em particular dos princípios do acusatório e do contraditório, resulta uma tendencial irretractabilidade dos actos decisórios do inquérito, sendo essa autovinculação imediata quando em causa está um despacho de acusação e este princípio da irretractibilidade da acção penal tem como corolário lógico, no que respeita ao despacho de acusação, a vinculação externa do Ministério Público, com a consequente proibição de intervenção intra-orgânica revogatória, poder de intervenção que, no acto processual de encerramento do inquérito, se cinge apenas a determinadas decisões de arquivamento.
10ª Uma vez proferido o despacho acusatório, e à semelhança daquilo que sucede com qualquer despacho judicial que decida sobre o mérito da causa, fica esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respectivo objecto (ou qualquer possibilidade de intervenção hierárquica revogatória), apenas se excluindo deste regime a possibilidade de correcção de erros materiais ou outros lapsos cuja eliminação não importe uma modificação essencial, aplicando assim, nesta parte, o regime previsto no artigo 380, n.º 1, alínea b) e n.º 2 e 97.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal.
11ª A omissão de um dos elementos objectivos que compõe o tipo legal de crime não poderá jamais ser considerado como um mero erro ou lapso – até porque importa uma modificação não essencial, mas antes determinante.
12ª Estando vedada à Sr.ª Magistrada do Ministério Público titular do inquérito a possibilidade de alterar o despacho de acusação que havia inicialmente proferido, por maioria de razão, não pode agora o despacho recorrido dar-lhe a oportunidade de deduzir uma segunda acusação sobre a mesma factualidade.
13ª Sendo o artigo 613.º do Código de Processo Civil aplicável também ao processo penal, por força da remissão feita no artigo 4.º do Código de Processo Penal, a acusação representa um acto decisório que não pode ser repetido, por com a sua prolação se ter esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respectivo objecto, independentemente de a acusação conter ou não deficiências que possam comprometer o seu êxito.
14ª Nesta medida, à semelhança daquilo que se fez consignar no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 24.04.2017, Processo n.º 180/07.4JABRG.G1, relatado pela Sr.ª Desembargadora Fátima Furtado, a nova acusação a proferir na sequência do despacho recorrido será – seguindo o entendimento jurisprudencial deste Venerando Tribunal - indubitavelmente um acto juridicamente inexistente, não lhe podendo ser atribuído qualquer efeito jurídico, pelo que o tribunal a quo, ao invés do despacho ora recorrido, teria de ter proferido um outro no sentido de julgar extinto o procedimento criminal por inexistência de crime - Acrd. TRG de 22-10-2018, Proc. 1958/15.0T9BRG.G1, relatado por CLARISSE GONÇALVES, Acrd. TRG de 03-12-2018, Proc. 987/16.1T9VNF.G1, relatado por AUSENDA GONÇALVES, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
15ª No despacho de recebimento da acusação (art. 311º CPP) está constitucional e legalmente vedado ao juiz acrescentar ou suprimir factos da acusação, alterar ou compor uma acusação eventualmente deficiente, sendo actualmente incontroverso que, o juiz não pode interferir na descrição da factualidade imputada ao arguido na acusação pública; a estrutura acusatória do processo impede o desvio do juiz da posição de terceiro imparcial e supra-partes na tríade juiz-acusador-arguido, decorrendo que o acusador não pode ser ajudado nem corrigido pelo juiz, sob pena de violação desse modelo acusatório.

Subsidiariamente
16ª Quando o tribunal a quo profere o despacho recorrido, o despacho de recebimento da acusação nos exactos termos que que havia sido deduzida, e que naquele despacho foi dada como reproduzida proferido ao abrigo do artigo 311º do CPP, há muito havia transitado em julgado e ainda que se possa defender tratar-se de caso julgado formal, i.e., intraprocessual, a verdade é que com o respectivo trânsito o poder jurisdicional do tribunal consumiu-se naquele momento quanto ao thema ali decidendum.
17ª Tendo o julgador recebido a acusação, não pode “dar o dito pelo não dito” e vir rejeitá-la ordenando a sua remessa a inquérito, para assim “dar a mão” ao Ministério Público [numa flagrante violação dos princípios constitucionais das garantias de defesa do arguido, da igualdade de armas e da garantia de um processo equitativo – art. 20º e 32º CRP], uma vez que a sua anterior decisão assumira já natureza definitiva, tendo-se estabilizado no ordenamento jurídico.
18ª No despacho recorrido vem o tribunal a quo sufragar que assiste razão ao arguido no que diz respeito à invocada nulidade da acusação, mas olvidou-se que a mesma, sendo sanável e, como tal, dependente de arguição, à data da prolação de tal despacho, encontrava-se já sanada uma vez que o arguido, aqui recorrente, (ou qualquer outro interveniente processual) não a havia invocado tempestivamente. Por essa razão, e encontrando-se sanada a visada nulidade, não sendo a mesma de conhecimento oficioso e não tendo sido proclamada no despacho proferido ao abrigo do art. 311º do CPP ao julgar a acusação manifestamente infundada, o julgador outra solução não teria que retirar as consequências da omissão do identificado elemento objectivo em sede decisória finda a audiência de discussão e julgamento.
19ª Tendo sido a acusação recebida por despacho transitado em julgado, outra solução não resta à luz dos princípios da legalidade, do acusatório e da preclusão que levar a acusação nos exactos termos em que foi recebida a julgamento, independentemente do insucesso da mesma, cuja responsabilidade caberá exclusivamente ao Ministério Público, não competindo ao julgador – e estando-lhe excluído – o poder de colmatar as falhas daquele atento o principio da igualdade de armas, da legalidade e do acusatório - Acrd. TRG de 22-10-2018, Proc. 1958/15.0T9BRG.G1, relatado por CLARISSE GONÇALVES, disponível em www.dgsi.pt.:
20ª Proferido o despacho do artº 311º CPP, recebendo a acusação e designando dia para julgamento, deve proceder-se a este, salvo ocorrência de alteração superveniente de factos ou de direito, que sobre o processo se repercutam, tal como não pode proceder, depois de receber acusação e em despacho posterior, à alteração da qualificação jurídica constante na acusação a não ser na audiência de julgamento seguindo a doutrina, que se nos afigura extensível a despacho posterior ao recebimento da acusação, do AFJ nº 11/2013 “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º ns. 1 e 3 do CPP».
21ª O despacho recorrido não é meramente tabelar, pois o recorrente não crê possível que o tribunal a quo ao receber a acusação não se tenha debruçado sobre ela e não a tenha analisado, e por não ver nela obstáculo, a tivesse recebido, até porque além de identificar o arguido no despacho recorrido nele dá por reproduzida a imputação factual e criminal feita no libelo acusatório ao arguido.
22ª Atento o princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação – neste sentido Paulo Pinto de e Acrd. TRL de 24/03/2010, Acrd. TRP de 6/07/2005, Acrd. TRG de 11-01-2016, Proc. 339/14.8IDBRG-A.G, relatado por ANA TEIXEIRA e Acrd. TRP de 26.02.2020, Proc. 634/18.7GAMCN.P1, relatado por JOSÉ CARRETO, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
23ª A forma como o M.m.º Juiz interpretou o art. 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3 do CPP, com a amplitude normativa que lhe permite após a prolação e trânsito em julgado do mesmo, rejeitar a acusação por manifestamente infundada e remetê-la de novo a inquérito, além de ilegal, é inconstitucional, sendo ainda materialmente inconstitucional o despacho recorrido, por violadores do artigo 20.º da CRP, o qual consagra o direito de tutela jurisdicional efectiva, e de um processo justo e equitativo, do artigo 29º da CRP como garante do princípio da legalidade criminal, do artigo 32º da CRP das elementares garantias de defesa do arguido.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido e ser substituído por outro que ordene a extinção do procedimento criminal contra o aqui recorrente, ou caso assim não se entenda, máxime, que remeta a acusação já deduzida nos autos para julgamento, fixe data para a audiência de discussão e julgamento, seguindo o processo seus demais termos até final, por só assim se fazer
JUSTIÇA!
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5 – A Digna Procuradora da República junto da primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):

“1- O douto despacho recorrido, reconheceu a questão prévia, que à apreciação do mérito da causa, por falta de um elemento objetivo essencial do ilícito, de condução sob o efeito de estupefacientes, p. e p. no artº 291º, nº2 do CP: “Devido à condução sob influência de estupefacientes, o arguido não estivesse em condições de o fazer com segurança”;
2- Após verificar a falta de tal elemento essencial, remeteu os autos para inquérito;
3- O despacho recorrido, não violou qualquer normativo legal, nomeadamente o disposto no artº 311º, nº1 do CPP;
4- Assim, o despacho recorrido não merece qualquer reparo devendo ser mantido nos seus precisos termos.”
6 – Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência da declaração de extinção do procedimento criminal, mas concedendo-se provimento ao recurso no que toca à declaração de irregularidade do despacho proferido, revogando-se o mesmo e devendo os autos prosseguir os seus termos com a designação de data para julgamento.
7 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
8 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal.
* * *
II - Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação - artº 412º, n1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A -, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas - artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48).
2 - A questão fundamental a apreciar é saber se, depois de recebida a acusação e designada data para a audiência de julgamento, o processo pode ser devolvido à fase de inquérito para suprimento de um elemento objectivo essencial em falta na acusação ou se devia ter sido declarada a extinção do procedimento criminal.
3 – Para melhor esclarecimento, transcreve-se o teor da acusação deduzida e que foi recebida, inicialmente, nos seus precisos termos:
“No dia - de Setembro de 2020, pelas 18H, o arguido conduziu o motociclo de matrícula UB, na EN ns 103 ao Km 50.700, em …, Póvoa de Lanhoso.
Submetido a teste de pesquisa a exa…:e hematológico, apresentou presença positiva de canabinóides no sangue.
Agiu o arguido, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que não podia conduzir na via pública veículo motorizado após ingerir produtos estupefacientes e que desse modo incorria na prática de crime.
Incorreu, o arguido, em autoria material na prática do crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes, p. e p. pelo artº 292°, nº 2 do Código Penal, ao qual é aplicável a proibição de conduzir veículos motorizados nos termos do art° 69º, n° 1 al. a) do mesmo diploma legal.”
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III - Apreciação do recurso

Como já se assinalou, a questão que importa decidir é saber se, depois de recebida a acusação e designada data para a audiência de julgamento, o juiz titular do processo o pode devolver à fase de inquérito para o Ministério Público poder deduzir nova acusação suprindo um elemento objectivo essencial que não constava da acusação inicial ou se devia ter sido declarado, desde logo, extinto o procedimento criminal.

Produzindo uma breve resenha do processado:
- o Ministério Público, por despacho de 24/02/2021 declarou encerrado o inquérito, acusando o arguido da prática de um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes, p. e p. pelo art. 292º, nº 2, do Cód. Penal;
- por despacho proferido em 07/05/2021, a acusação foi recebida “pelos factos e disposições legais nela constantes que dou por reproduzidos” e designado dia para a realização da audiência de julgamento;
- o arguido apresentou contestação, na qual suscitou a improcedência da acusação por ser manifestamente infundada;
- o tribunal a quo, reconhecendo a justeza da alegação do arguido, prolatou o despacho recorrido (no qual considerou que a conduta descrita na acusação não consubstancia qualquer crime, que a falta do elemento essencial obsta à apreciação do mérito da causa e que nada obsta à apreciação da questão suscitada), determinando a remessa dos autos a inquérito.
Portanto, a única questão a apreciar é saber se o Mmo. Juiz a quo podia, naquela fase processual (após recebimento da acusação e designação de data para a audiência) ter proferido tal despacho, fazendo o processo “regressar” à fase de inquérito.
O recorrente defende que, reconhecida a falta de factualidade essencial à consubstanciação do crime imputado, deveria ter sido declarada a extinção do procedimento criminal ou, alternativamente, o processo ter seguido os ulteriores termos, realizando-se a audiência de julgamento e proferindo-se a sentença que ao caso coubesse.
Relativamente à primeira hipótese (extinção do procedimento criminal), a resposta é, obviamente, negativa.
Na verdade, como bem refere o Exmº PGA no douto parecer emitido: “como a jurisprudência dos Tribunais superiores tem repetidamente afirmado (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6/7/2005, Proc. n.° 0541884 e o Acórdão da Relação de Évora de 26/2/2008, Proc. n.° 2736/07.1), proferido despacho a receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, não pode o juiz proferir outro despacho a rejeitá-la. Depois de recebida a acusação e antes da prolação da sentença não pode o juiz conhecer do mérito da acusação, apenas lhe sendo permitido conhecer de questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa (art.° 388.°, n.° 1, do CPP), que podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc.) ou adjectiva (incompetência do Tribunal, desistência da queixa, ilegitimidade, etc.), (…).”
Esta pretensão é manifestamente improcedente.
No que concerne à segunda questão (o prosseguimento dos autos), a solução é outra, assistindo razão ao recorrente.

Efetivamente, como já decidimos em situação algo semelhante (acórdão deste TRG de 22/10/2018, relatado pela Exmª Desembargadora Clarisse Gonçalves no proc. 1958/15.0T9BRG.G1, citado pelo recorrente e em que o ora relator foi adjunto):

De acordo com o princípio da preclusão, uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão).
Assim, recebida que foi uma determinada acusação será ela que fixa o objecto dos autos e com base na qual será realizada a audiência de julgamento. O poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado).
Proferida a sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade do Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correcção de lapsos a que se refere o artº 380º do Código de Processo Penal.
(…)
Proferido o despacho a que alude o artº 311º está precludida a possibilidade de o juiz renovar a prática do acto. O acto praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado.”
A questão tem sido apreciada de forma uniforme na jurisprudência, como se alcança, quer dos acórdãos citados na motivação do recurso, quer dos indicados no parecer do Exmº PGA, nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/3/2021 (Proc. n.° 80/18.2 PZLSB.C1), “não é consentido (ao Ministério Público) sanar os vícios de que a acusação padeça, praticar novos atos de inquérito ou alterar a acusação deduzida. O processo penal é constituído por uma sucessão de atos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, não prevendo a lei a possibilidade da reabertura (do Inquérito) senão nos casos em que tenha havido arquivamento (cfr. art. 279.°,n.° 1, do CPP)” e desta Relação de Guimarães de 24/4/2017 (Proc. n.° 180/07.4JABRG.G1) “o despacho do Ministério Público no qual considera findo o inquérito e deduz acusação representa um ato decisório que não pode ser repetido, por com a sua prolação se ter esgotado o poder do magistrado titular do inquérito sobre o respectivo objecto, independentemente de a acusação conter ou não deficiências que possam comprometer o seu êxito”.
Tem razão o recorrente, quando invoca que o despacho a determinar a devolução do processo á fase de inquérito (para correcção da acusação), viola o caso julgado, bem como o respeito do princípio da preclusão intraprocessual e da irretratabilidade da acusação, de que decorre a violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido consagrados na CRP.
Impõe-se declarar que o despacho em causa é irregular e que afeta os termos subsequentes do processo (art. 123º do CPP).
A irregularidade foi arguida tempestivamente.,
Nestes termos, importa declarar a sua invalidade, revogando a decisão de remeter os autos a inquérito e determinando o prosseguimento do processo, com a designação de data para a audiência de julgamento.
Neste segmento, o recurso procede.
*
IV – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em, concedendo parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido J. P.:
- declarar irregular o despacho recorrido, revogando-o;
- ordenar a prolação de outro despacho que determine o prosseguimento dos autos, com a designação de data para a realização da audiência de discussão e julgamento.
*
Sem custas.
*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Guimarães, 21 de Fevereiro de 2022

(Mário Silva - Relator)
(Maria Teresa Coimbra - Adjunta)