Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
413/19.4T8CHV.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO
INTERPRETAÇÃO DO PEDIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - A condenação em objeto diverso do pedido resulta da violação do disposto no artigo 609.º, n.º 1 do CPC que estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
2 –Contudo, é admissível que o tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribua ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

M. M., R. C., S. C., L. C. e P. C. deduziram ação declarativa contra J. S., formulando os seguintes pedidos:

a) Ser declarado que os autores são proprietários do prédio urbano n.º ... da freguesia de ..., ... e ..., localizado em ..., ..., com proveniência do artigo urbano n.º ... da freguesia extinta de ... e omisso na CRP de ...;
b) Ser o réu condenado a reconhecer tal direito, abstendo-se de praticar qualquer ato que o ofenda;
c) Ser o réu condenado a reconhecer que o acesso que se inicia na extrema a norte, com início na rua ..., onde se situa o portão de cor vermelho, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com cerca de 40 metros de cumprimento e 3,80 metros de largura é um acesso comum à habitação dos autores e à do réu e aos dois logradouros das habitações;
d) Ser o réu condenado a desobstruir, a expensas suas o identificado acesso comum, mormente, retirando a mesa em cimento, com cerca de 1 metro de largura por 2,5 metros de cumprimento e os 2 bancos em cimento com cerca de 2 metros de cumprimento da passagem, que obstruem e impedem permanentemente a circulação pelo acesso comum que vem referido no prazo de 30 dias;
e) Ser o réu condenado a retirar do acesso comum, a expensas suas, os canteiros de flores existentes na passagem, o lanço de escadas, composto por 7 degraus com uma largura aproximada de 1 metro, patamar, gradeamento em ferro no prazo de 30 dias.
f) Ser o réu condenado no futuro a manter livre, desobstruído e desimpedido o referido e identificado acesso comum e a abster-se de colocar quaisquer obstáculos ou a impedir por qualquer forma a circulação pelo referido acesso comum;
g) Ser o réu condenado a pagar aos autores uma indemnização pelos prejuízos causados aos autores em montante nunca inferior a 1.500,00 €;
h) Ser o réu condenado a pagar aos autores a indemnização que se vier a liquidar em execução de sentença.

O réu contestou impugnando o teor da petição inicial na sua generalidade.
Em audiência prévia, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Teve lugar a audiência de julgamento, com inspeção ao local, após o que foi proferida sentença, cujo teor decisório é o seguinte:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência:
a) Declaro que os Autores, na qualidade de únicos e universais herdeiros de J. S., são proprietários do prédio urbano nº ... da freguesia de ..., ... e ..., localizado em ..., ..., com proveniência no artigo urbano nº ... da freguesia extinta de ... e omisso na CRP de ....
b) Condeno o R. J. S. a reconhecer aquele direito de propriedade dos AA., referido na alínea anterior, abstendo-se de praticar qualquer acto que o ofenda.
c) Declaro que o prédio do R. descrito no artigo 5º dos factos provados se encontra onerado com uma servidão de passagem, em benefício do prédio descrito em a), tratando-se de um caminho que se inicia na extrema a norte, com início na actual rua ..., anterior rua da ..., onde se situa o portão em ferro de cor vermelha, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com um comprimento de cerca de 40 metros e largura de cerca de 3,80 metros, tratando-se de um caminho comum às habitações e logradouros dos AA. e do R.
d) Condeno o Réu J. S. a desobstruir, a expensas suas, o identificado acesso comum, retirando a mesa e os dois bancos em cimento ali colocados e que obstruem a circulação pelo referido acesso.
e) Condeno o Réu J. S. a manter livre e desobstruído o referido acesso comum, abstendo-se de nele colocar quaisquer obstáculos ou impedir por qualquer forma a circulação no mesmo pelos AA.
f) Absolvo o R. dos demais pedidos formulados pelos AA”.

O réu interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

A - Os Recorridos vêm nestes autos pedir o reconhecimento de um direito de propriedade de um espaço comum ao Recorrente e a condenação do Recorrente em abster-se de praticar quaisquer atos que ponham em caso esse direito.
B - Para isso, em suma, (i) alegam que são donos do prédio que identificam na alínea a) do seu pedido, (ii) alegam que existe um logradouro na frente do seu prédio e do prédio do Recorrente, e (iii) que esse espaço é propriedade comum sua e do Recorrente.
C - O Tribunal a quo, porém, decidiu declarar que o prédio do Recorrente se encontra onerado com uma servidão de passagem em benefício do prédio dos Recorridos. Ou seja, condenou o Recorrente em pedido diverso, assim inquinando a sentença com o vício de nulidade previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea e) do CPC.
D - O pedido de reconhecimento de propriedade não contém em si o pedido de reconhecimento ou constituição de uma servidão, sendo substancialmente diferentes um do outro. Nesse sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.03.2017, no Processo n.º 43/14.7TBMDB.G1.
E - O erro é particularmente evidente quando analisamos a posição dos Recorridos e vemos que em momento algum alegam que o seu imóvel se encontra sequer encravado, necessitado do reconhecimento ou constituição de qualquer servidão. Pelo contrário, na sua tese, existe um espaço de logradouro comum em torno da sua casa e da casa do Recorrente. Também por isso não é dado como provado que o prédio dos Recorridos se encontre encravado. Pelo contrário, o prédio dos recorridos tem entrada direta pela via pública.
F - Sem prejuízo da nulidade da sentença, cabe ainda impugnar parcialmente a matéria de facto. Quanto a Ponto 7 deve passar a ter a seguinte formulação (negrito nosso):
7. Assim, antes do ano de 1973, existia um só prédio urbano, composto de rés-do-chão e terreno de logradouro que confrontava a norte com A. D., Sul com A. S. e S. A., Nascente com A. D. e Poente com Rua da ..., pertença de J A.. O logradouro é situado do lado poente do prédio, em frente à casa aí edificada.
G - O que resulta da seguinte prova documental: fotografia junta como Documento n.º 3 da petição inicial; fotografia junta como Documento n.º 7 da petição inicial; fotografia junta como Documento n.º 1 da contestação; fotografia junta como Documento n.º 2 da contestação; fotografia junta como Documento n.º 5 da contestação.
H - Os Pontos 9 a 11 e 18 a 22 devem ser alterados nos seguintes termos (negrito nosso):
9. O único acesso ao prédio sempre foi feito, desde tempos imemoriais, pela rua da ..., actual rua ..., por uma entrada onde hoje se encontra um portão em ferro de cor vermelha.
10. Como entre a Rua da ... e o prédio de J A. existia um enorme declive, a entrada fazia-se junto à estrema norte do prédio, onde se situa neste momento um portão em ferro de cor vermelha, e continuava por um caminho interior, onde se passava apenas a pé, com bastante inclinação que passava entre a casa ali existente (lagar e loja de armazenamento do vinho e das alfaias agrícolas) e a rua da ..., até às traseiras do prédio urbano.
11. E isto sempre assim aconteceu durante anos.
18. E sempre por aí todos acederam ao prédio.
19. Desde então, quer o R. quer J. S. e posteriormente ao seu decesso, os AA. na qualidade de herdeiros daquele, em frente de toda a gente, de forma pública, pacífica e continuada utilizavam este caminho, onde se passava apenas a pé, com um comprimento de cerca de 40 metros e largura de cerca de 2 metros, que vai desde a actual rua ..., anterior rua da ..., onde se situa actualmente o portão em ferro de cor vermelho, descendo no sentido da rua ... para Sul (Norte/Sul) e de inclinação elevada, acedendo até às traseiras dos seus prédios, anteriores lagar e loja de armazenamento de vinho e alfaias agrícolas.
20. Tal como vinha sendo feito anteriormente pelo proprietário de todo o prédio, J A., por si ou por interposta pessoa, acedia a pé a todo o prédio pelo caminho aí existente, supra descrito, caminho (acesso) que permitia que as carroças puxadas por animais, descessem e subissem da e para a rua ..., quer levando as uvas, quer levando o vinho, quer levando lenha, quer guardando as alfaias agrícolas, quer para trabalhar o terreno agrícola/logradouro e posteriormente permitia o acesso a tractores com carros e carrinhas.
21. Isto dia após dias, ano após ano, há mais de 30, 40 ou 50 anos.
22 [ELIMINADO]
I - O que resulta da seguinte prova documental: fotografia junta como Documento n.º 3 da petição inicial; fotografia junta como Documento n.º 7 da petição inicial; fotografia junta como Documento n.º 1 da contestação; fotografia junta como Documento n.º 2 da contestação; fotografia junta como Documento n.º 5 da contestação.
J - Assim como da seguinte prova testemunhal, que explica que só se passava a pé e que nem um carro de bois por ali conseguia aceder, mas apenas as vacas se fossem soltas; que o acesso com o carro de bois era feito a partir de um outro prédio, hoje propriedade do Recorrente e que não é trazido à liça pelos Recorridos: O. G.; M. D., I. T. e A. D..
K - Com base nos mesmos elementos probatórios, devem ainda os Pontos 25 a 30 ser dados como não provados.
L - Também sem prejuízo da nulidade da sentença, cabe ainda impugnar a sentença quanto à matéria de direito, concluindo-se que não se verificam os requisitos que permitem o reconhecimento ou constituição de qualquer servidão de passagem.
M - Não só o prédio dos Recorridos não se encontra encravada, como o Tribunal a quo onera um prédio que não inclui na sua condenação (o prédio rústico do Recorrente), insistindo não só na condenação em algo diferente do que foi pedido e mais do que foi pedido, envolvendo um prédio rústico do Recorrente que não é objeto dos autos.
Nestes termos, deve a sentença recorrida ser declarada nula e revogada em conformidade. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, sempre deverá a mesma ser revogada e o Recorrente absolvido de todos os pedidos, atendendo à impugnação da matéria de facto e de direita feita nesta recurso.

Os autores contra alegaram, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
No mesmo despacho, a Sra. Juíza pronunciou-se sobre a invocada nulidade, considerando que não houve qualquer excesso de pronúncia ou condenação em objeto diverso do pedido.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do pedido – artigo 615.º, n.º 1, alínea e) do CPC – e impugnação da decisão de facto. O apelante questiona, também, em sede jurídica, a possibilidade do reconhecimento de uma servidão de passagem.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

“Da instrução e discussão da causa, julgou-se provada a seguinte factualidade:
1. J. S. faleceu em -/07/2009 e deixou a suceder-lhe como únicos e legítimos herdeiros a 1ª A., sua esposa e os demais AA., seus filhos.
2. Da herança de J. S. faz parte o prédio urbano com o artigo matricial nº ....º da freguesia de ..., ... e ..., localizado em ..., ..., com proveniência do artigo urbano nº ... da freguesia extinta de ... e omisso na Conservatória do Registo predial de ....
3. Os Autores, na qualidade de herdeiros de J. D. e antecessores, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, de uma forma pública, à vista de toda a gente, pacífica, sem qualquer violência, continuadamente, sem qualquer hiato, de boa-fé, ignorando lesar direitos de outrem, vêm fruindo e utilizando todas as comodidades e conveniências do citado imóvel, pagando contribuições e impostos e agindo como seus legítimos proprietários.
4. Na convicção de agirem em conformidade com o direito real de propriedade, sem lesar direitos alheios.
5. Por sua vez, o Réu, cunhado da primeira Autora e tio dos restantes Autores, é proprietário de um prédio urbano no mesmo local, ..., ..., que confronta com o prédio dos Autores a Norte e se encontra inscrito sob o artigo … da União de freguesias de ..., ... e ..., sendo proveniente do artigo … da extinta freguesia de ....
6. Quer o prédio urbano dos Autores, quer o prédio do Réu, tiveram a sua origem num prédio da herança de J A., pai do R. e de J. S. que adveio para estes através de inventário obrigatório, processo registado sob o nº 6/73 do Tribunal Judicial da Comarca de ....
7. Assim, antes do ano de 1973, existia um só prédio urbano, composto de rés-do-chão e terreno de logradouro que confrontava a norte com A. D., Sul com A. S. e S. A., Nascente com A. D. e Poente com Rua da ..., pertença de J A..
8. Enquanto propriedade de J A., o prédio era utilizado como adega, existindo no local um lagar e a loja onde se encontravam as pipas para armazenamento do vinho e também onde se guardavam as alfaias agrícolas.
9. O único acesso ao prédio sempre foi feito, desde tempos imemoriais, pela rua da ..., actual rua ..., por uma entrada onde hoje se encontra um portão em ferro de cor vermelha.
10. Como entre a Rua da ... e o prédio de J A. existia um enorme declive, a entrada fazia-se junto à estrema norte do prédio, onde se situa neste momento um portão em ferro de cor vermelha, e continuava por um caminho interior, com bastante inclinação que passava entre a casa ali existente (lagar e loja de armazenamento do vinho e das alfaias agrícolas) e a rua da ..., até às traseiras do prédio urbano.
11. E isto sempre assim aconteceu durante anos.
12. Após o óbito de J A., em data não concretamente apurada foi lavrado o documento de fls. 57, intitulado “Partilhas”, por meio do qual se procedeu à partilha dos bens de J A., cujo conteúdo aqui se considera integralmente reproduzido.
13. E por comum acordo entre todos os herdeiros e os dois irmãos, J. S. e J. A., acordaram a divisão do prédio descrito em 7., sendo que J. S. ficava com a metade do terreno/logradouro e da casa existente, ou seja ficava com a parte que começava na estrema a norte com A. D., e estendia-se até a metade do terreno/logradouro.
14. Por sua vez, J. A. ficava com a outra metade da casa e do terreno/logradouro, ou seja, ficava com a parte que começava na extrema a sul com A. S. e S. A. e estendia-se até à metade do terreno/logradouro.
15. Em 1985, o Réu, de acordo e em comunhão de esforços com o seu irmão J. D. apresenta um projecto de licenciamento na Câmara Municipal de ..., onde resumidamente requer ao Município de ... a construção de um andar por cima de um R/C já existente, tendo sido emitido o alvará de licença nº 262 pela Câmara Municipal de ....
16. Ficando, a partir desta data a existirem dois prédios autónomos, sendo um deles o descrito em 2 e o outro, o do R., descrito em 5.
17. Ficando o acesso aos dois prédios a fazer-se pela mesma entrada, junto da estrema mais a norte com a rua da ..., actual rua ..., onde se situa o portão em ferro de cor vermelha, o mesmo caminho interior inclinado que permitia o acesso às traseiras das duas habitações.
18. E sempre por aí todos acederam ao prédio.
19. Desde então, quer o R. quer J. S. e posteriormente ao seu decesso, os AA. na qualidade de herdeiros daquele, em frente de toda a gente, de forma pública, pacífica e continuada utilizavam este caminho com um comprimento de cerca de 40 metros e largura de cerca de 3,80 metros, que vai desde a actual rua ..., anterior rua da ..., onde se situa actualmente o portão em ferro de cor vermelho, descendo no sentido da rua ... para Sul (Norte/Sul) e de inclinação elevada, acedendo até às traseiras dos seus prédios, anteriores lagar e loja de armazenamento de vinho e alfaias agrícolas.
20. Tal como vinha sendo feito anteriormente pelo proprietário de todo o prédio, J A., por si ou por interposta pessoa, acedia a todo o prédio pelo caminho aí existente, supra descrito, caminho (acesso) que permitia primitivamente que as carroças puxadas por animais, descessem e subissem da e para a rua ..., quer levando as uvas, quer levando o vinho, quer levando lenha, quer guardando as alfaias agrícolas, quer para trabalhar o terreno agrícola/logradouro e posteriormente permitia o acesso a tractores com carros e carrinhas.
21. Isto dia após dias, ano após ano, há mais de 30, 40 ou 50 anos.
22. Sendo este o único acesso ao prédio urbano e a todo o logradouro.
23. Foi por esse acesso que desceram todos os materiais para a construção das duas habitações e do alpendre que veio posteriormente a ser construído por J. S. nas traseiras da sua habitação.
24. O referido alpendre serviu para, primeiramente J. D. e posteriormente os aqui Autores, armazenarem lenha, guardarem as máquinas agrícolas, como tractor, guardar as alfaias agrícolas, aparcar os automóveis.
25. Em data não concretamente apurada mas que se situa aproximadamente em 2008, por sugestão do Réu e acordo de J. S., pelo R. foi construído no seu terreno, um novo acesso a iniciar na estrema mais a sul, onde se encontra um portão em ferro de cor preto, do prédio que confronta com a rua ....
26. Sendo que por sugestão do R. e acordo de J. S., ambos começaram então a aceder por aquele novo caminho às traseiras das habitações e dos terrenos/logradouros.
27. Este acesso, para além de não ser de inclinação tão elevada como o primitivo acesso, descrito em 19. tinha como principal função evitar que, o Réu e seu irmão circulassem na frente das habitações com os automóveis, tractores, e tudo o demais que fossem veículos.
28. E bem assim tal continuou a ser efectuado pelos AA. na qualidade de herdeiros J. S., após a morte deste.
29. De tal forma que, como o acesso se começou a fazer pelo caminho mais a sul, foram construídas quer pelos Autores, quer pelo Réu, escadarias que permitem aceder das duas habitações à rua ... mas que estreitaram o anterior acesso primitivo, o existente mais a norte.
30. Tudo isto, em paz, harmonia, amizade, com a aceitação e acordo de todos, quer dos Autores e seu antecessor quer do Réu.
31. Sensivelmente na altura descrita em 25, o R. colocou uma mesa e dois bancos em cimento, no fundo do acesso que se inicia mais a norte, onde se encontra o portão em ferro de cor vermelho, primitivo acesso, de forma a não permitir a passagem de veículos por esse acesso.
32. E em data não concretamente apurada mas há sensivelmente dois anos, no novo acesso que se inicia mais a sul e por si construído, o Réu colocou uma corrente com cadeado no portão em ferro de cor preto, impedindo a passagem dos Autores também por esse acesso.
33. Ficando, desde então, os AA. impedidos de acederem com qualquer veículo às divisões que se situam nas traseiras da sua habitação, nomeadamente adega, alpendre e terreno agrícola, apenas conseguindo aceder à sua habitação e traseiras a pé através de umas escadas e passadiço existentes ao longo do alçado lateral esquerdo voltado a nascente.
34. O R., através do seu mandatário, remeteu aos AA. a carta datada de 03/08/2018, junta aos autos a fls. 22v e cujo conteúdo aqui se considera integralmente reproduzido.
35. No logradouro em frente da casa do R. existiu um alambique ali construído por J A..
36. Actualmente existe a nascente do prédio dos AA. uma garagem com frente voltada para a rua, como resulta da fotografia de fls. 55 junta aos autos.
37. Mostra-se inscrito um prédio rústico com a área de 1490m2, correspondente a terra de semeadura com videiras e fruteiras, sito no concelho de ..., União de Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ..., o qual confronta a norte com caminho, a sul com B. G. e outros, a nascente com A. C., e a poente com M. J., na proporção de metade a favor de J. S. e metade a favor de cabeça de casal da herança de J. S..

Não se provaram os seguintes factos:

a) O alpendre descrito em 23. foi construído há mais de 20 anos.
b) Por força do comportamento do R. descrito em 32, os AA. não podem trabalhar com máquinas o terreno agrícola que serve de logradouro da habitação.
c) Não podem fazer as recolhas dos produtos agrícolas para os locais próprios de armazenamento.
d) O Réu ameaçou o Autor R. C. dizendo-lhe que não permitia que passasse no local.
e) Os Autores têm medo e receio do que poderá acontecer se actuarem com força para remover os obstáculos colocados pelo Réu de forma a desimpedirem a passagem.
f) Têm receio que o Réu cometa algum acto contra a integridade física ou mesmo contra a vida de algum dos Autores.
g) Assim, viram-se obrigados a pedir ajuda para realizar as tarefas agrícolas, uma vez que a máquina agrícola e as alfaias estão bloqueadas.
h) Viram-se ainda obrigados a guardar e recolher em celeiros e lojas de pessoas amigas os bens agrícolas para não se deteriorarem com o Inverno.
i) O Autor R. C. viu-se obrigado a aparcar o seu veículo automóvel na rua pública, ficando o mesmo a mercê de todos.
j) Os Autores viram-se obrigados a comprar lenha pois não tinham máquinas para transportar a lenha do monte para casa, tendo, só neste propósito gasto cerca de € 700,00 em lenha comprada a vendedores.
k) O acesso ao alçado posterior e logradouro dos Autores foi sempre feito interiormente e apenas a pé através de umas escadas e passadiço existentes ao longo do alçado lateral esquerdo voltado a nascente e não através do prédio do réu.
l) O actual prédio dos Autores nunca teve nem tem nenhuma porta carral que permita a entrada de qualquer veículo de 4 rodas (trator, carro, carrinha, carro de tracção animal) para o seu interior.
m) De igual forma nunca a primitiva adega teve qualquer porta carral do alçado posterior para o logradouro sendo o vinho das pipas retirado através de cântaros e outro vasilhame a pé e em circunstância alguma por meio de qualquer veículo.
n) Entre a parede do alambique referido em 35. e o alçado principal da casa do Réu ou da antiga adega não existia espaço suficiente para passar qualquer veículo automóvel ou de tracção animal.
o) O acesso pedonal era feito ao longo do alçado lateral esquerdo – lado nascente, através do interior e ainda através do actual prédio do réu.
p) Há cerca de 15 anos, o Réu demoliu o referido alambique situado em frente à sua casa por dele não precisar, ficando entre o alçado frontal desta e a rua um espaço com cerca de 4 m de largura que permite a passagem de veículos automóveis.
q) Devido ao facto de os AA. não deixaram o R. passar para aceder à sua habitação, este foi obrigado a construir uma escada onde estava o alambique e o outro acesso.
r) O novo acesso foi construído pelo R. há cerca de 12 anos e destinou-se exclusivamente a uso próprio, tendo sido construído num outro prédio rústico de sua propriedade inscrito na matriz sob o artigo ... da União de Freguesias de ..., ... e ....
s) Tal prédio tem a sua estrema nascente no alçado lateral direito do prédio urbano em causa nos autos.
t) Por sua tolerância, e a maioria das vezes de forma abusiva, um ou dois dos Autores entram pelo portão largo do seu logradouro descendo de seguida pelo espaço entre a casa do Réu e a rua, e de seguida entram num prédio rústico que está pavimentado do mesmo Réu e vão estacionar um tractor na traseira de sua casa.
u) Tudo isto, tem vindo a ser feito sobretudo nos últimos 5 ou 6 anos de forma abusiva e contra a vontade do Réu, aproveitando os Autores a circunstância deste se encontrar em França para devassar o seu prédio, sabendo bem da sua oposição”.

Entende o recorrente que a sentença é nula por ter condenado em objeto diverso do pedido, uma vez que os autores pediram o reconhecimento de propriedade de um espaço comum ao réu e a sentença declarou que o prédio do recorrente se encontra onerado com uma servidão de passagem em benefício do prédio dos recorridos.

Vejamos.

No que toca a esta questão, o pedido dos autores é o seguinte:

“c) Ser o réu condenado a reconhecer que o acesso que se inicia na extrema a norte, com início na rua ..., onde se situa o portão de cor vermelho, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com cerca de 40 metros de cumprimento e 3,80 metros de largura é um acesso comum à habitação dos autores e à do réu e aos dois logradouros das habitações”

A sentença condenou no seguinte:

“c) Declaro que o prédio do R. descrito no artigo 5º dos factos provados se encontra onerado com uma servidão de passagem, em benefício do prédio descrito em a), tratando-se de um caminho que se inicia na extrema a norte, com início na actual rua ..., anterior rua da ..., onde se situa o portão em ferro de cor vermelha, inflectindo posteriormente para sul, no sentido norte/sul com inclinação, com um comprimento de cerca de 40 metros e largura de cerca de 3,80 metros, tratando-se de um caminho comum às habitações e logradouros dos AA. e do R”.

A condenação em objeto diverso do pedido resulta da violação do disposto no artigo 609.º, n.º 1 do CPC que estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Trata-se do tão proclamado princípio do dispositivo, prevalecendo “a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz” – cfr. Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, vol. I, Almedina, pág. 728.
Contudo, como bem observam os autores citados, a prática judiciária revelou situações cuja resolução implicou alguma atenuação da rigidez de tal regra, admitindo-se, designadamente, a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor (Acórdão do STJ de 07/04/2016, aí citado: “é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter”).
É, aliás, por vezes, a única forma de resolver o litígio de forma definitiva.
No nosso caso, embora os autores não peçam expressamente o reconhecimento de tal direito de servidão de passagem, ele é compatível com os factos alegados, está neles implícito, como se depreende das seguintes expressões: “O acesso ao prédio sempre foi feito, desde tempos imemoriais, pela Rua da ..., atual Rua ...…”, “J. D. e J. S. acordaram dividir a casa em duas partes e o terreno também em duas partes, tendo o J. D. ficado com a parte mais a norte e o J. S. com a parte mais a sul (evidenciando que o caminho, que passa pelos dois prédios, só pode configurar-se como uma servidão de acesso ao prédio dos autores, na parte em que passa pelo prédio do réu)”, “O réu sabe que com as suas atuações colocou o logradouro do prédio dos autores numa situação de encravado, pois neste momento não existe nenhum acesso possível ao logradouro com máquinas” (porque parte do acesso está situado no prédio do réu).
Não podendo reconhecer-se um direito comum (compropriedade??) sobre uma faixa de terreno incorporada em dois prédios distintos e de proprietários diferentes (seria uma espécie de área comum em condomínio, sendo certo que a propriedade horizontal – artigo 1414.º e seguintes do Código Civil – está prevista, apenas para “propriedade por andares”, ou seja, construção em altura em que cada condómino é proprietário exclusivo de uma das frações autónomas do prédio e é, além disso, comproprietário das partes comuns), terá que ser considerada a figura da servidão de passagem.
O direito de propriedade incide sobre os prédios onde se situa o leito do caminho (acesso), sendo que o reconhecimento do direito ao caminho (acesso) é, no fundo, o reconhecimento do direito de passagem a favor de cada um dos prédios.
Consequentemente o reconhecimento desta servidão predial de passagem não extravasa os limites do pedido, devidamente interpretado, não ocorrendo a nulidade da sentença invocada.

O apelante impugna a decisão de facto.
Entende que estão incorretamente julgados os pontos 7, 9 a 11, 18 a 22 e 25 a 30 da matéria de facto provada.
Quanto ao ponto 7, não há qualquer motivo para alterar a sua redação. O próprio apelante diz que o que se refere neste ponto é correto e verdadeiro, pretendendo apenas que dele passe a constar que o logradouro se situa do lado poente do prédio, em frente à casa aí edificada (o que se extrai das fotografias juntas aos autos). Sendo correta a redação do ponto n.º 7, não se torna necessário acrescentar a posição do logradouro, até porque vários pontos da matéria de facto descrevem o caminho/acesso, que é o que está em causa nestes autos.

A discordância do apelante quanto aos pontos 9 a 11 e 18 a 22, prende-se com o facto de considerar que estes pontos induzem em erro quanto a um aspeto fundamental: o acesso que era feito ao prédio pelo logradouro em frente às casas nunca teve dimensões que permitissem a passagem de carros, sendo um acesso que era usado apenas a pé. Isto porque, onde hoje existe uma mesa e bancos de pedra, existia antes uma adega ou alambique, pelo que o constrangimento que hoje existe, existia já antes.
Ora, analisados estes pontos da matéria de facto, constata-se que apenas o ponto 20 (ligado aos pontos 21 e 22) faz alusão às carroças puxadas por animais e a tractores com carros e carrinhas.
Ora, as fotos que o apelante refere, apenas mostram o estado atual, daí nada se podendo concluir quanto ao citado alambique.
Já as testemunhas a que o apelante se refere – que negaram a passagem de carroças ou tractores por esse caminho (O. G. - este acabou por reconhecer que desde 1963, altura em que foi para França, nunca mais voltou a este lugar, sendo que, nessa altura, ainda a propriedade original não tinha sido dividida -, M. D. I. T., filha do réu e com um depoimento muito parcial e ensaiado, A. D.) – foram contrariadas por outras testemunhas, vizinhos, que demonstraram conhecer o local e participaram em atividades agrícolas com o marido e pai dos autores (carregando uvas com o trator), lembram-se da construção das casas e da passagem dos materiais de construção por aquele caminho. A testemunha C. M. lembra-se de o falecido entrar com a sua “4L” por aquele caminho dois ou três anos antes de morrer. A testemunha A. P. viu o autor R. C. entrar com um trator de lenha, o que o pai sempre fazia antes de falecer. A testemunha A. M. lembra-se, com pormenores, que enriqueceram o seu depoimento, de ir para lá debulhar o milho, tendo entrado por aquele caminho com o trator (a mesma recordação tem a testemunha D. A., que salientou que o trator do falecido Z. foi o primeiro da aldeia e que muitas vezes o viu entrar por aquela entrada). A testemunha C. M. refere ter carregado as uvas para o trator que ia por aquele caminho. A testemunha P. A. referiu que se passava ali com o carro do gado e depois com o trator e que por ali entraram os materiais de construção para as casas.
Veja-se que são as próprias testemunhas do réu a aceitar que o réu e o irmão (marido e pai dos autores) arranjaram e cimentaram o caminho em comunhão de esforços para ficarem com uma servidão boa para as casas e que estouraram um penedo que lá havia e retiraram o alambique, com o mesmo propósito (M. D. e M. T., sendo que, este último até referiu que os filhos da M. M. começaram a passar por lá com os carros).
Daí que não se vê motivo para alterar o decidido nesta parte, aliás com fundamentação exaustiva a revelar os pormenores da convicção do julgador e a que aderimos nos termos supra referidos.
Veja-se que, igualmente, não há motivo para alterar o ponto 19 dos factos provados quanto à largura do dito caminho, que ninguém pôs em causa, nem mesmo o réu na sua contestação (artigo 31.º).

Quanto aos pontos 25 a 30, o apelante limita-se a dizer que é falso que tenha havido qualquer acordo no sentido de construir um novo acesso e que, por acordo, os recorridos utilizassem tal acesso, pedindo que os mesmos sejam dados como não provados. Contudo, não indica qualquer meio de prova em que sustente tal entendimento, limitando-se a acrescentar que não há, nos autos, qualquer prova de que isso tivesse sucedido (veja-se que, sobre estes concretos pontos da matéria de facto, a Sra. Juíza fundamentou a sua decisão com base nos depoimentos de sete testemunhas, tendo descrito a parte dos depoimentos que, segundo ela, contribuíram para a prova destes factos). Ora, o apelante, não só não indica nenhuma prova em contrário, como nada diz que ponha em causa a convicção formada acerca desta matéria. Não cumpre, assim, os requisitos enunciados no artigo 640.º do CPC, designadamente o disposto no n.º 1, alínea b), não indicando os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. Tal falta implica a rejeição do recurso nesta parte.

No recurso de direito, o apelante insiste na nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do pedido. Já vimos que não tem razão.
Alega que não pode ser reconhecida a existência de uma servidão porque o prédio dos autores nunca foi um prédio encravado. Ora, tal não resulta dos factos provados. Com efeito, o único acesso que o prédio dos autores possui, para carroças puxadas por animais, tractores ou outros veículos é o que consta dos factos provados n.ºs 9, 10, 17, 19, 20 e 22 (sendo este o único acesso ao prédio urbano e a todo o logradouro), uma vez que, conforme decorre do facto provado n.º 33, os autores apenas conseguem aceder à sua habitação e traseiras, a pé, através de umas escadas e passadiço existentes ao longo do alçado lateral esquerdo voltado a nascente.
Além do mais, nos termos do disposto no artigo 1550.º, n.º 2 do Código Civil, o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio também goza da faculdade de exigir a constituição de servidão de passagem que, assim, não é exclusiva de prédios encravados (Antunes Varela e Pires de Lima, in CC Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 637, dão como exemplo exatamente o caso de haver uma passagem a pé, por terreno próprio ou por servidão, mas a exploração do prédio exigir a passagem de carro/trator – prédio que dispõe de comunicação insuficiente para as suas necessidades normais).
A questão do alambique e da mesa, que impossibilitariam a passagem de tractores ou carroças, ficou, também, decidida na parte relativa à impugnação da decisão de facto.
Quanto ao trajeto e dimensões/medidas da servidão em causa, não há qualquer dúvida, estando a mesma perfeitamente descrita nos factos provados (incluindo na parte que ocupa parcialmente o prédio do réu).
Improcede, assim, totalmente, a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
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Guimarães, 29 de outubro de 2020

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes