Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
135/14.2T8MDL.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
ACÇÃO POPULAR
DOMÍNIO PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para julgarem uma acção (popular) em que, para além do mais, se pede a condenação de um município, de uma junta de freguesia e de um casal a "reconhecerem que as parcelas de terreno onde" esse casal ampliou a sua "casa de habitação, apropriando-se de cerca de 60 m2, e construíram os barracos ou anexos, ocupando uma área de cerca de 61 m2, são espaços do domínio público", bem como a condenação do dito casal a "demolirem a parte ampliada da casa de habitação e os barracos ou anexos, desobstruindo tais parcelas do domínio público, restituindo-as ao domínio público".
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
Manuel C e sua mulher Maria C instauraram a presente acção declarativa, que corre termos na Secção de Competência Genérica da Instância Local de Mirandela, da Comarca de Bragança, contra o Município M, a Junta de Freguesia V e Adriano L e sua mulher Belmira C, pedindo a condenação dos réus a:
"A) - reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano identificado no artigo 2.º deste articulado;
B) - reconhecerem que as parcelas de terreno onde os réus Adriano e esposa ampliaram a casa de habitação, apropriando-se de cerca de 60 m2, e construíram os barracos ou anexos, ocupando uma área de cerca de 61 m2, são espaços do domínio público;
C) - condenar os réus Adriano e esposa a, no prazo de trinta dias, demolirem a parte ampliada da casa de habitação (cave, garagem, quarto, varanda, telhado, pátio e muro) e os barracos ou anexos, desobstruindo tais parcelas do domínio público, restituindo-as ao domínio público, ou, se o não fizerem em 30 dias, ser o réu Município condenado a proceder a tal demolição, através dos serviços municipais, imputando os custos inerentes àqueles réus;
D) - condenar os réus Adriano e esposa a reconhecerem a apropriação ilícita, ilegal e abusiva daquelas duas parcelas de terreno do domínio público, devendo desocupá-las de pessoas e bens;
E) - condenar os réus Adriano e esposa a absterem-se de praticar quaisquer actos que ofendam e prejudiquem a dominialidade pública sobre tais parcelas de terreno, no Lugar da Arroteia ou Roteia, em Vale de Telhas".
Alegaram, em síntese, que são donos do prédio urbano sito na Rua da Arroteia, n.º 1, em Vale de Telhas e que, há uns anos, o réu Adriano L comprou uma casa, com cerca de 100 m2, que tinha apenas rés-do-chão, sita no Lugar da Arroteia. Posteriormente, neste imóvel, o réu Adriano L edificou uma cave, uma garagem e, sobre esta um quarto, com uma varanda. Com tal edificação ocupou "solo e subsolo e espaço aéreo do domínio público, tendo invadido o espaço público", tendo "tais construções, quer os barracos, ocupando cerca de 61 m2, quer a ampliação da casa de habitação, incluindo o muro lateral e pátio, ocupando cerca de 60 m2".
Mais alegam que "como cidadãos e munícipes do concelho de Mirandela e da freguesia de Vale de Telhas, no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, têm os autores legitimidade para intentar a presente acção - artigo 2.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e artigo 365.º do Código Administrativo."
Os réus Adriano L e Belmira C contestaram, designadamente, invocando a incompetência material do tribunal, visto que "a presente acção deveria ser conhecida, apreciada e decidida pelo Tribunal de Jurisdição Administrativa e Fiscal".
Os autores replicaram defendendo que "tratando-se de uma acção popular, em que se pretende defender direitos públicos e privados, deve ser proposta nos tribunais civis."
Foi proferido despacho saneador em que se decidiu:
"Termos em que, julgo a excepção da incompetência em razão da matéria procedente, absolvendo-se os Réus Município M, Junta de Freguesia V e Adriano L e sua mulher Belmira C, da presente instância – cfr. artigos art. 4.º, n.º 1, alínea l) do ETAF; 96.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.º 2, e 577.º, n.º 1, al. a), todos do CPC."
Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1 - O Tribunal "a quo", por despacho saneador, decidiu julgar procedente a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria, tendo absolvido os Réus da instância.
2 - Com a presente acção, os Autores pretendem defender os seus direitos relativamente ao imóvel descrito na petição inicial e defender os bens do domínio público que revistem natureza comum e/ou pública, como é o caso.
3 - Como cidadãos e munícipes do concelho de M e da freguesia de V, no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, têm os autores legitimidade para intentar a presente acção – artigo 2.º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e artigo 365.º do Código Administrativo.
4 - O Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Secção de Instância Local de Mirandela, é o materialmente competente para o conhecimento e a decisão da presente acção popular, tendo em consideração o preceituado no art.º 12, n.º 1, da Lei 83/95, de 31 de agosto.
5 - Trata-se de uma acção popular de natureza civil, uma vez que visa a defesa dos bens públicos ilegitimamente apropriados por particulares.
6 - A decisão recorrida, ao considerar materialmente incompetente o tribunal Judicial de Bragança, Secção da Instância Local de Mirandela, violou o art.º 12.º, n.º 1, da Lei 83/95, de 31 de agosto.
7 - Citando um douto acórdão de 04/04/2013 do Tribunal de Relação de Guimarães, «a jurisdição civil é a competente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção popular intentada por particulares contra dois particulares e dois entes públicos autárquicos, em que os primeiros pretendem que seja declarada como pertencendo ao domínio público uma parcela de terreno ocupada pelos dois réus particulares, face à inércia dos demandados entes públicos».
8 - «As causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais (art.ºs 66.º do CPC e 18.º n.º 1 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro)».
9 - «O art. 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa consagra o direito de petição e acção popular, ao preceituar que é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural (alínea a) e assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais (alínea b)».
10 - «O Decreto-Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, veio concretizar a lei constitucional e definir os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição (art.º 1.º n.º 1)».
11 - A pretensão dos autores tem como finalidade a defesa do que consideram ser um bem do domínio público autárquico, mas esse facto não permite que se qualifique a relação jurídica como administrativa, o que exclui, desde logo, a competência da jurisdição administrativa.
12 - O art.º 212.º, n.º 3, da CRP preceitua que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais.
13 - Por sua vez, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro (com as alterações posteriores), prescreve no seu art.º 1.º, n.º 1, que os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais.
14 - A questão que os apelantes pretendem ver resolvida com a acção popular que intentaram não tem como fundamento um litígio em que estejam em causa relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo ou fiscal e não se enquadra também em nenhuma das situações elencadas exemplificativamente no art.º 4.º do ETAF, nem na teleologia normativa do art.º 1.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
15 - Nestes termos, entendem os recorrentes que a jurisdição administrativa não é a competente para a acção popular intentada pelos autores, mas sim a jurisdição civil, nos termos dos art.ºs 64.º do CPC e 18.º n.º 1 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, pelo que deve ser revogado o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os seus trâmites normais no tribunal de primeira instância cível.
16 - Portanto, o douto despacho recorrido tem de ser substituído por outro que julgue improcedente a excepção de incompetência material, e, em consequência, se considere competente para dirimir o presente litígio, prosseguindo os presentes autos os seus termos legais,
17 - Pelo que o douto despacho saneador violou, nesta parte, o disposto no artigo 615.º do Código de Processo Civil, uma vez que o Tribunal "a quo" está obrigado e limitado pelos factos articulados pelas partes (artigo 5.º do C.P.C.), violando também o disposto nos artigos 552.º, 578.º, 577.º, 609.º e no artigo 186.º, todos do Código de Processo Civil e seus basilares princípios.
Os réus Adriano L e Belmira C contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil , delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se o Tribunal a quo é, ou não, materialmente competente para a presente acção.
II
1.º
Para a decisão da questão que constitui o objecto do recurso importa ter presente o que acima já se deixou dito, em sede de relatório.
"Como é sabido e constitui jurisprudência constante quer (…) [do] Tribunal de Conflitos quer do STJ e do STA, a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos".
No caso dos autos temos, como núcleo da acção, a alegação na petição inicial de que os réus Adriano L e Belmira C são donos de um prédio situado próximo de um outro pertencente aos autores, que o réu Adriano L edificou uma cave, uma garagem e, sobre esta um quarto, com uma varanda e que, com tal edificação ocupou "solo e subsolo e espaço aéreo do domínio público, tendo invadido o espaço público", tendo "tais construções, quer os barracos, ocupando cerca de 61 m2, quer a ampliação da casa de habitação, incluindo o muro lateral e pátio, ocupando cerca de 60 m2". Ainda segundo o alegado nessa peça processual, "as obras ilícitas realizadas pelos réus Adriano L e esposa causam prejuízo imediato e notório aos autores, cuja casa de habitação e respectivo acesso público estão estrangulados, (…) bem como prejudicam o interesse público, porquanto foram edificadas sobre espaço do domínio público."
E, face a esta realidade, os autores pedem, para além do mais, que se condene "os réus Adriano e esposa a, no prazo de trinta dias, demolirem a parte ampliada da casa de habitação (cave, garagem, quarto, varanda, telhado, pátio e muro) e os barracos ou anexos, desobstruindo tais parcelas do domínio público, restituindo-as ao domínio público, ou, se o não fizerem em 30 dias, ser o réu Município condenado a proceder a tal demolição, através dos serviços municipais, imputando os custos inerentes àqueles réus".
Esta é a essência da lide.
Consequentemente, nesta acção há que indagar se os réus Adriano L e Belmira C edificaram ocupando terreno do "domínio público" e, em caso afirmativo, então terá que se apurar se as edificações em causa, por se encontrarem parcialmente no domínio público , "prejudicam o interesse público" .
Considerando este concreto contexto coloca-se, então, a questão de saber se, tal como entendeu o Meritíssimo Juiz a quo , e já antes os réus Adriano L e Belmira C tinham defendido na sua contestação , a situação descrita está abrangida pelo disposto no artigo 4.º n.º 1 l) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Nesta norma estabelece-se que "compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto promover a (…) cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de (…) urbanismo, ordenamento do território (…), quando cometidas por entidades públicas (…).
Ora, na relação jurídica controvertida, tal como ela nos é apresentada pelos autores, é com a edificação que "invadiu" o "domínio público" que se terá dado a violação de "valores (…) [ou] bens constitucionalmente protegidos, em matéria de (…) urbanismo [ou de] ordenamento do território". Sucede que essa edificação foi realizada pelos réus Adriano L e Belmira C, o que significa que aquela violação, a ter ocorrido, é imputável a estes, o mesmo é dizer que não foi cometida "por entidades públicas".
Logo, não se mostra preenchido um dos pressupostos do citado artigo 4.º n.º 1 l), o que implica que, à luz dessa norma, os tribunais administrativos não são competentes, em razão da matéria, para julgarem esta acção, sendo certo que, por força do disposto nos artigos 211.º n.º 1 da Constituição da República, 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 64.º do Código de Processo Civil, os tribunais judiciais têm uma competência residual; "têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional."
Portanto, o Tribunal a quo é materialmente competente para a presente lide .
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso e declara-se o Tribunal a quo competente em razão da matéria para julgar esta acção.
Custas pelos autores.
2 de Maio de 2016
(António Beça Pereira)
(António Santos)
(Maria Amália Santos)
*
1 São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
2 Ac. Trib. Conflitos de 20-9-2012 no Proc. 02/12, www.gde.mj.pt. Neste sentido veja-se, a título de exemplo, o Ac. STJ de 6-5-2010 no Proc. 3777/08.1TBMTS.P1.S1, www.gde.mj.pt.
3 Veja-se que nos artigos 13.º, 21.º, 22.º, 23.º e 28.º da petição inicial se vai repetindo o mesmo pressuposto, "o réu Adriano edificou (…) ocupando solo e subsolo e espaço aéreo do domínio público, tendo invadido o espaço público"; "os réus Adriano e esposa construíram (…) sobre o espaço do domínio público"; "a utilização abusiva, ilícita e ilegal [,pelos réus Adriano L e Belmira C,] do solo, do subsolo e do espaço aéreo das identificadas áreas do domínio público"; as "estruturas (…) encontram[-se] sobre o leito da parcela de domínio público, que outrora integrava o caminho público"; há uma "ocupação ilícita e ilegal do espaço do domínio".
4 Quanto ao que é o "domínio público" veja-se José Figueiredo Dias e Fernanda Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, 2010, pág. 335 a 340 e Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 1983, pág. 896 a 937.
5 É oportuno recordar que no artigo 35.º da petição inicial, quanto à legitimidade dos autores, se invoca o "artigo 2.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e artigo 365.º do Código Administrativo".
6 Neste preciso ponto o Meritíssimo Juiz foi muito comedido na sua fundamentação, pois, em boa verdade, só faz alusão a esta norma no decisório; antes não se menciona este preceito, nem se explica em que medida e por que razão ele é aplicável ao caso em análise.
7 Cfr. artigo 5.º da contestação.
8 Sublinhado nosso.
9 Dentro desta orientação veja-se o Ac. STJ de 23-12-2008 no Proc. 08B4107, www.gde.mj.pt: "Os tribunais da ordem judicial são os competentes para conhecer do objecto da acção popular intentada por um cidadão da freguesia com vista à declaração de se integrar no domínio público da freguesia uma parcela de terreno ocupada por um terceiro."