Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
48825/19.5YIPRT.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE CRÉDITO
CONTRATO DE SEGURO DE COBERTURA DE GRANDES RISCOS
PAGAMENTO DO PRÉMIO
CESSAÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- não demonstrando a autora apelante que o contrato de seguro outorgado com a ré apelada cobria qualquer dos riscos elencados nas alíneas do nº 14º do art. 123º do DL nº 94-B (insolvência, crédito à exportação, vendas a prestações, crédito hipotecário ou crédito agrícola), não pode considerar-se que o contrato celebrado entre as partes integra a categoria de contrato de seguro de cobertura de grandes riscos, pelo que está por isso o mesmo contrato sujeito ao regime imperativo traçado pelos artigos 59º a 61º do RJCS;
- do regime legal do contrato de seguro decorre que o não pagamento do prémio determina a cessação do contrato de seguro, acarretando também a insubsistência da obrigação do respectivo pagamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Autora apelante: X – Companhia de Seguro de Créditos, S.A.
Ré apelada: F. S., Lda.

Juízo local cível de Fafe - Tribunal Judicial da Comarca de Braga
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X – Companhia de Seguro de Créditos, S.A., instaurou procedimento de injunção para haver de F. S., Lda., a quantia global de 7.092,92€, correspondente a capital (6.430,73€), juros de mora vencidos (560,19€) e taxa de justiça paga (102,00€), sustentando a pretensão em contrato de seguro de crédito celebrado com a demandada pelo qual esta se vinculou ao pagamento dos prémios, o que não fez, apesar de lhe terem sido reclamados, mostrando-se em dívida o montante peticionado.

Na oposição invocou a ré a ineptidão do requerimento de injunção e sustentou a inexistência de qualquer obrigação de pagamento de prémios em razão de ter resolvido o contrato com justa causa, concluindo pela improcedência da acção.
Cumprido o contraditório, julgada improcedente a invocada excepção da nulidade de todo o processo por ineptidão do requerimento inicial, foi realizada audiência de julgamento após o que foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de 3.601,50€ (três mil seiscentos e um euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal dos juros comerciais, contados desde a citação e até integral pagamento.

Inconformada, apela a autora, pugnando pela total procedência da acção e consequente condenação da ré na totalidade do pedido, extraindo da motivação as seguintes conclusões (que se transcrevem):

1ª- As principais obrigações do contrato de seguro são: i) para o segurado, o pagamento do prémio; ii) para a seguradora, o pagamento do capital ou renda acordado em caso de verificação do evento previsto.
2ª- Porém, o contrato ‘sub judice’ que se discute nos presentes autos não é o mero contrato de seguro, mas sim, o contrato de seguro de crédito, que é dotado de características próprias que o distingue dos demais contratos de seguro.
3ª- A apelante é uma sociedade comercial que se dedica à actividade seguradora de crédito que no exercício da sua actividade, a apelante celebrou com a requerida um contrato de seguro de crédito interno, titulado pela apólice n.º 4500001749, como de resto resulta provado na douta sentença.
4ª- A douta sentença recorrida aplica o regime previsto nos artigos 59.º a 61.º Regime Jurídico do Contrato de Seguro, segundo o qual o não pagamento do prémio de seguro ou sua fracção implica a resolução automática do contrato de seguro.
5ª- Não atentou a douta sentença na excepção prevista no art. 58.º do referido regime jurídico, segundo o qual, o disposto nos artigos 59.º a 61.º não se aplica aos seguros de grandes riscos.
6ª- Ora, nos termos do Decreto-Lei 94-B/98 de 17 de Abril, são considerados grandes riscos os riscos que respeitem, aos ramos de seguro de crédito e caução, sempre que o tomador exerça a título profissional uma actividade industrial, comercial ou liberal e o risco se reporte a essa actividade, o que é, como ressuma da sentença o caso da apelante.
7ª- O que significa que o contrato de seguro de crédito, não está sujeito à aplicação imperativa do princípio estipulado nos artigos 59.º a 61.º RJCS, do ‘no premium, no risk’.
8ª- A douta sentença em causa violou assim o disposto no art. 58.º RJCS, aplicando o princípio segundo o qual o não pagamento de prémio de seguro ou sua fracção implica a resolução automática daquele mesmo contrato, já que o mencionado artigo excepciona desta aplicação o contrato de seguro de crédito em causa nos autos.
9ª- Constata-se, assim, um erro na determinação das normas aplicáveis por parte do Tribunal ‘a quo’ – artigos 59.º a 61.º do RJCS – ao invés da norma jurídica que devia ter sido aplicada: o artigo 58.º do citado comando legal.
Contra-alegou a ré em defesa da decisão recorrida, concluindo pela improcedência do recurso.
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Objecto do recurso

Considerando as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), a questão a decidir reconduz-se a apreciar se o contrato de seguro de crédito dos autos deve ser havido como contrato de seguro de cobertura de grandes riscos (artigo 58º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro - DL 72/2008, de 16/04) e, por isso subtraído às regras estabelecidas nos artigos 59º a 61º do RJCS, consequenciando o direito da apelante a exigir da apelada a totalidade dos prémios peticionados.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
Na sentença recorrida consideraram-se:

A. Factos provados

1. Autora e ré celebraram, no âmbito da respectiva actividade profissional, contrato de seguro de crédito, para vigorar durante o ano de 2018, obrigando-se a ré, designadamente, a pagar pontualmente os respectivos prémios de seguro.
2. No âmbito do referido contrato, e após pagamento de duas fracções do prémio de 3.001,25€, foram emitidas pela autora à ré, e não pagas nem compensadas por notas de crédito, as facturas AP …1/00040881, 07/03/18, 3.151,31€, F ...1/00060491, 09/01/18, 0,62€, AP …1/00044723, 10/02/18, 3.151,31€, F ...1/00064577, 11/02/18, 129,49€ e F ...1/00067094, 01/02/19, 0,31€.
3. As aludidas facturas foram remetidas à ré para pagamento, que não pagou os valores constantes das mesmas, na data de vencimento nem posteriormente.
4. Por carta de 17/08/2018 a ré informou a autora que pretendia resolver o contrato, ao que a autora nada disse.
5. A autora procedeu a alguns débitos indevidos na conta da ré, que veio a repor ainda antes da data referida em 4.
6. De acordo com as condições particulares da apólice do contrato referido em 1, o prémio inicial era de 3.001,25€, o prémio anual estimado era de 12 005,00€, a pagar em quatro prestações com periodicidade trimestral, no valor de 3.001,05€, correspondendo a primeira ao prémio inicial, e o prémio anual mínimo era de 9.604.00€.
7. De acordo com o disposto no art. 13º das cláusulas gerais da apólice do contrato referido em 1:
‘- 1. O contrato de seguro termina por denúncia, resolução ou caducidade.
- 2. A denúncia pode ser efectuada por qualquer das partes, mediante comunicação escrita à outra, com antecedência não inferior a sessenta dias relativamente à data fim de cada período de vigência da APÓLICE, mantendo-se o seguro em relação aos créditos constituídos até essa data. Nos casos em que o período de vigência da APÓLICE inclua mais do que uma anuidade, a denúncia só produz efeitos no final da última anuidade desse período de vigência.
- 3. Qualquer das partes pode resolver o contrato com efeitos futuros quando o SEGURADO cesse a sua actividade profissional, comercial ou industrial ou se for submetido a quaisquer medidas de recuperação ou processo de insolvência. A resolução produz efeitos na data de recepção da notificação, salvo nos casos de processo de insolvência, em que se atenderá à data especificamente indicada na notificação.
- 4. Sem prejuízo da aplicação de outras penalizações previstas na lei ou no contrato, a X pode, nos casos em que a lei o permita e nos indicados nestas Condições Gerais, resolver o contrato, por incumprimento das obrigações do SEGURADO, com efeitos ao início do período de vigência em que se verificou o incumprimento.
- 5. A resolução prevista nos números anteriores opera-se mediante notificação escrita à outra parte, a enviar no prazo máximo e seis meses contado da data do conhecimento da ocorrência que a determina.
- 6. Terminado o contrato, quer por iniciativa do SEGURADO, quer por iniciativa da X:
a) A X mantém o direito e o SEGURADO é devedor dos preparos e custos processados ao abrigo do contrato até à data da resolução, não havendo lugar à devolução de quaisquer quantias que tenham sido pagas a esse título.
b) A X mantém o direito e o SEGURADO é devedor do PRÉMIO ANUAL NÃO REEMBOLSÁVEL, do PRÉMIO ANUAL MÍNIMO, ou de prestação equivalente, mesmo que a cessação do contrato se dê antes de terminada uma anuidade ou período de vigência da apólice.
c) Cessa a cobertura dos créditos constituídos posteriormente à data a que se reporta a produção de efeitos da resolução, podendo a X exigir a devolução das indemnizações que tenham sido indevidamente pagas.
- 7. O contrato caduca decorrido o prazo por que foi contratado, de acordo com o estipulado na APÓLICE’.
8. De acordo com o disposto no art. 9º das cláusulas gerais da apólice do contrato referido em 1.
‘- II. PAGAMENTO DO PRÉMIO
- 1. O prémio, calculado nos termos indicados na parte I deste artigo, será pago de acordo com o previsto nas Condições Especiais e nas Condições Particulares da apólice, tendo em consideração que o pagamento do prémio é sempre condição da eficácia plena do seguro.
- 2 O PRÉMIO INICIAL indicado nas Condições Particulares é sempre devido no início da vigência da APÓLICE, não será reembolsável e o seu pagamento é condição de eficácia da cobertura dos CRÉDITOS constituídos no período de vigência, anuidade ou exercício de seguro a que respeita.
3. O prémio, ou fracção, na parte que acresce ao PRÉMIO INICIAL, é devido na data do respectivo vencimento e deve ser pago na data e pelos valores e forma de pagamento estipulados na APÓLICE ou constantes do aviso.
4. Nos casos de atraso ou falha no pagamento do PRÉMIO INICIAL ou de prestações subsequentes ao prémio, a X pode optar entre resolver o contrato de seguro ou aplicar as penalidades previstas nas Condições Especiais de tarifação da APÓLICE, sem prejuízo da exigibilidade, designadamente com recurso à via judicial, do prémio que se mostra devido, acrescido das penalidades legalmente determinadas.’

B. Factos não provados

i) A autora nunca procedeu à análise da carteira e clientes da ré.
ii) A autora recusou a devolução dos montantes referidos em 5.
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Fundamentação de direito

Estriba a apelante a sua argumentação recursória na sustentação de que o contrato de seguro de crédito em que se traduz o relacionamento contratual entre as partes constitui um contrato de seguro de grandes riscos, subtraído à disciplina legal estabelecida nos artigos 59º a 61º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL 72/2008, de 16/04 (assim o dispõe o art. 58º do diploma).

Considerou a decisão recorrida que a falta de pagamento da fracção do prémio vencida em Julho de 2018 (prestação a cargo da ré apelada) determinou, nos termos dos artigos 59º e 61º, nº 3, a) do RJCS, a resolução automática do contrato, não tendo fundamento a exigência de valores vencidos posteriormente a essa data (como são os reclamados e referidos no facto provado número 2), pois não demonstrou a autora qualquer prestação efectiva de serviço ou cobertura de risco posterior a tal data.

Consideração inteiramente conforme ao regime legal estabelecido para a falta de pagamento de prémio de seguro.

Deste regime decorre que em caso de não pagamento do prémio de seguro, por um lado, o risco não chega a estar coberto em nenhum momento e, por outro, deixa o pagamento do prémio de poder ser judicialmente exigido pelo segurador (1) - o art. 59º do RJCS ‘consagra a regra de que, na generalidade dos contratos de seguro, o pagamento do prémio é condição necessária da cobertura’, ou seja, os ‘riscos só serão cobertos se, previamente, houver lugar ao pagamento do prémio de seguro’ (2, havendo que concluir-se, noutra perspectiva, que o não pagamento do prémio na data aprazada, ao invés de constituir o devedor (tomador do seguro) em mora, determina a cessação do contrato (não há que aferir da subsistência do interesse do credor, dada a insubsistência dessa obrigação em razão da cessação contrato) (3).
Por isso inteiramente assertiva a conclusão de que ‘a regra que determina que a obrigação de pagar o prémio correspondente ao período em que a cobertura produziu os seus efeitos, acrescido de juros de mora, sobrevive à cessação do contrato por falta de pagamento do prémio, ou de uma fracção deste’ (art. 57º, nº 3 do RJCS), tem ‘um alcance prático muito limitado, nos seguros subordinados ao «regime especial», em virtude da regra de base desse «regime especial» de que o pagamento do prémio deve preceder a eficácia da cobertura’ (4).
Deste «regime especial» traçado nos artigos 59º a 6º1 do RJCS (regime imperativo, nos termos o art. 12º, nº 1 do diploma) ficam arredados (no que à economia da presente apelação importa) os contratos de seguro de cobertura de grandes riscos (art. 12º, nº 2 e 58º do diploma) – esse o argumento esgrimido pela apelante, sustentando a inaplicabilidade do regime legal considerado na decisão recorrida em razão de dever o contrato de seguro celebrado entre as partes ser qualificado como contrato de seguro de grandes riscos, face ao disposto nos art. 2, nº 3, b) e 123º, nº 14, b) do DL 94-B, de 17/04, ponderando ser ela, seguradora de crédito que celebrou com a apelada seguro de crédito interno, no exercício da actividade de ambas, resultando que a apelada exerce actividade industrial, comercial ou liberal e o risco assumido é reportado a essa actividade.
O regime da imperatividade absoluta das regras consagradas no nº 1 do art. 12º do RJCS para a generalidade dos contratos de seguro visa proteger os tomadores nos seguros de massa, não se justificando nos seguros de grandes riscos, nos quais cabe à livre disponibilidade das partes estipular o regime que considerem mais adequado (5).
Conceito oriundo do direito comunitário (6), considera-se grande risco, no que à apelação importa, o que respeita ao ramo de seguro de crédito que abranja os riscos de insolvência geral, declarada ou presumida, de crédito à exportação, de venda a prestações, de crédito hipotecário e crédito agrícola (art. 123º, nº 14 do DL nº 94-B, de 17/04), sempre que o tomador exerça a título profissional uma actividade industrial, comercial ou liberal e o risco se reporte a essa actividade (ar. 2º, nº 3, b) do DL nº 94-B, de 17/04).
Da matéria de facto provada não pode concluir-se, porém, que o contrato de seguro celebrado entre as partes integre tal categoria, pois que não resulta provado que o risco coberto pelo seguro e assumido pela apelante corresponda a qualquer um dos previstos nas várias alíneas do nº 14º do art 123º do DL nº 94-B (insolvência, crédito à exportação, vendas a prestações, crédito hipotecário ou crédito agrícola).
Assim sendo, terá de decidir-se contra a apelante (parte a quem incumbe o ónus da prova do facto, pois que facto constitutivo do direito invocado – art. 342º, nº 1 do CC), uma vez que o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal de­cidir no caso de se não fazer prova do facto, ou seja, terá de considerar-se que o contrato celebrado entre as partes não integra a categoria de contrato de seguro de cobertura de grandes riscos e, por isso, que tem inteira aplicação o regime imperativo traçado pelos artigos 59º a 61º do RJCS.

Concluindo (o que vale também para sumário):

- não demonstrando a autora apelante que o contrato de seguro outorgado com a ré apelada cobria qualquer dos riscos elencados nas alíneas do nº 14º do art. 123º do DL nº 94-B (insolvência, crédito à exportação, vendas a prestações, crédito hipotecário ou crédito agrícola), não pode considerar-se que o contrato celebrado entre as partes integra a categoria de contrato de seguro de cobertura de grandes riscos, pelo que está por isso o mesmo contrato sujeito ao regime imperativo traçado pelos artigos 59º a 61º do RJCS;
- do regime legal do contrato de seguro decorre que o não pagamento do prémio determina a cessação do contrato de seguro, acarretando também a insubsistência da obrigação do respectivo pagamento.
Improcede, pois, a apelação.
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela apelante.
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Guimarães, 10/09/2020
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Jorge Teixeira
José Fernando Cardoso Amaral


1. Margarida Lima Rego, O Prémio, in Temas de Direito dos Seguros, Almedina, p. 202.
2. Autora e obra citada, pp. 200/201.
3. Autora e obra citada, pp. 195/196
4. Autora e obra citada, p. 196.
5. Joana Galvão Teles, Liberdade Contratual, e seus Limites – Imperatividade absoluta e imperatividade relativa, in Temas de Direito dos Seguros, Almedina, p. 113.
6. Segunda Directiva 88/357/CEE relativa à coordenação das disposições legislativas , regulamentares e administrativas respeitantes ao seguro directo não vida, que fixa disposições destinadas a facilitar o exercício da livre prestação de serviços e que altera a Directiva 73/329/CEE.