Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1446/18.3T8VRL.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CONHECIMENTO DO MÉRITO
DISCUSSÃO ORAL DA CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO DA SENTENÇA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O Julgador que, no início da audiência de julgamento, conhecer do mérito da causa, prescindindo da produção de qualquer prova, e sem ter avisado previamente as partes que o iria fazer, nem dar a palavra aos respectivos Mandatários para alegações, viola o princípio do contraditório, princípio essencial e estruturante de todo o processo civil.

II- O Legislador entende que é essencial a discussão oral pelos mandatários das partes perante o Julgador, imediatamente antes do conhecimento (no todo ou em parte) do mérito da causa.

III- A violação desta regra atinge frontalmente o princípio do contraditório, podendo assim interferir na decisão da causa, e como tal configura nulidade processual
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

X, LDA intentou a presente acção declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, contra:

A) M. M. e marido, M. J.;
B) M. A. e esposa M. S.;
C) A. T.
D) A. M. e marido José
E) M. C.
F) F. T. e esposa A. L.
G) M. R. e esposa J. S.,

pedindo que lhe seja reconhecido o direito de preferência na venda de três prédios rústicos, que identifica, descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os nºs …, … e ….

Para tanto alega que é proprietária de três prédios rústicos, que identifica nos artigos ..º, ..º e ..º da petição, descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os nºs …, … e …, da união de Freguesias de ..., ... e ....

Mais alega que os segundos réus se arrogam ser donos dos prédios rústicos descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os nºs …, … e …, por os terem comprado aos primeiros réus, conforme escritura pública junta aos autos.

Sucede porém que esses prédios confinam com os prédios da autora, nos termos descritos nos artigos 38 a 41 da petição.

Tendo tomado disso conhecimento, a autora pretende, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 1380º,1,2 CC, exercer o seu direito de preferência na compra de tais prédios.

Citados, os réus apresentaram contestação, na qual se defendem por impugnação e por excepção, na qual em síntese afirmam que se encontra totalmente afastado o exercício do direito de preferência uma vez que o acto jurídico que subjaz à transferência dos prédios em causa, se consubstancia numa partilha, seguida de doação do adjudicatário ao filho.

Acrescentam ainda que em 18/1/2018, data da escritura aqui posta em crise, os proprietários dos terrenos confinantes com os aqui réus não eram os autores, mas sim os identificados no art. 61 da petição inicial.

Assim, em síntese, os réus afirmam que na data da outorga da escritura os proprietários dos prédios confinantes conhecidos dos réus eram os supra elencados e não a autora, circunstância que se encontra plasmada não só na liquidação de IMT emitida pela AT mas também pelo facto de os prédios se manterem exactamente no mesmo estado em que se encontravam antes da venda à autora, sendo certo que nunca lá foram vistos trabalhadores a mando da autora a tratar dos prédios em questão.

A autora, com a omissão da alteração da titularidade dos prédios junto da AT coarctou aos réus a possibilidade de a notificarem para o exercício do direito de preferência, pois estes desconheciam a sua existência e tinham perfeito conhecimento do desinteresse dos confinantes na aquisição dos prédios correspondentes às matrizes rústicas em causa.

Em síntese conclusiva, defendem a total improcedência da acção.

A autora apresentou réplica.

Findos os articulados, foi proferido despacho que dispensou a realização de audiência prévia, uma vez que se destinaria somente às finalidades elencadas no art. 593º,1 CPC.

Foi de seguida proferido despacho saneador, que julgou da validade e regularidade da instância. De seguida, foi fixado o objecto do processo e os temas da prova.

Foi agendada a audiência de julgamento.
Da leitura da respectiva acta, resulta que se começou pela tentativa de conciliação das partes, que fracassou, seguida da prolação do seguinte despacho:
“Nos termos do disposto no art. 612º CPC, o Juiz goza de todos os poderes necessários para tornar útil e breve a decisão e assegurar a justa decisão da causa.
Também nos termos do art. 6º CPC cumpre ao Juiz adoptar mecanismos de simplificação e agilização processual para garantir a justa composição do litígio em prazo razoável.
Analisando os autos entendemos que os mesmos reúnem desde já todos os elementos para a boa decisão da causa, pelo que se passa a proferir a seguinte sentença”.
E segue-se sentença, que termina assim: “o Tribunal decide julgar improcedente a presente acção e em consequência absolver os réus da presente instância”.

Inconformada com esta decisão, a autora X, LIMITADA, dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo, findando a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

A. No caso dos autos, houve dispensa da audiência prévia e as partes não foram, posteriormente e previamente notificadas de que o Tribunal estaria em condições de conhecer do mérito da causa.
B. As questões a decidir não são simples e por outro lado a argumentação expendida pelo Tribunal não encontra qualquer apoio ou resposta, quer na lei, quer na doutrina ou na jurisprudência. E mais, não foi o despacho fundamentado nesse sentido nem, por fim, as partes foram previamente auscultadas sobre a possibilidade de ser proferida decisão de mérito.
C. Referira-se, as partes na data em que se prepararam para proceder à realização da audiência de discussão e julgamento foram brindadas com uma verdadeira sentença surpresa.
D. Temos assim que foi cometida nos autos uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 196.º do C. Processo Civil), a qual se invoca para os devidos efeitos legais.
E. É entendimento da recorrente que a douta sentença violou o disposto no n° 3 do artigo 3° do C. Processo Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa.
F. Na verdade, dispõe o n° 3 do art° 3° do C. Processo Civil que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem...”
G. A não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 195° n.º 1 do C. Processo Civil, obedecendo a sua arguição á regra geral prevista no artigo 197º do C. Processo Civil.
H. Em 18/01/2018, data da compra dos Réus, a Autora já havia adquirido os três prédios e procedido ao registo da sua propriedade, na competente Conservatória do Registo Predial, em 24/08/2017, 05/09/2017 e 05/12/2017.
I. Assim, uma vez que não existe, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início dessa posse, a Autora, enquanto possuidora, sempre goza da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre os referidos prédios (artigos 1268º e segs. do C. Civil), a qual, de modo algum, é abalada por qualquer dos documentos. E nem sequer pelo documento comprovativo de pagamento de IMT de fls. 138, a que a sentença, em crise, faz referência.
J. Como sabemos, ou deveríamos saber, as realidades prediais objecto de direitos reais não se alcançam com o recurso a elementos identificativos dos prédios em poder de serviços ou entidades públicas. As descrições prediais, as informações de quaisquer entes públicos, como as autarquias, ou as inscrições matriciais, podem revelar-se ser úteis na identificação ou localização daquelas realidades prediais, mas já não podem ter qualquer repercussão nas relações jurídico-privadas, nomeadamente para delimitação das áreas ou das confrontações dessas mesmas realidades prediais.
K. Na verdade, todos esses elementos identificativos do prédio, resultam da declaração dos próprios titulares, pelo que tais documentos, como o aludido comprovativo de pagamento de IMT a que se faz referência na sentença, não poderá, jamais, contribuir para o Tribunal considerar assente tal factualidade, sem recurso a outra prova, designadamente a prova testemunhal.
L. Por outro lado, se, como se disse, as realidades prediais objecto de direitos reais não se alcançam com o recurso a elementos identificativos dos prédios constantes nas descrições prediais e/ou cadernetas prediais e muito menos, dos comprovativos de pagamento de IMT. Pelo que a conclusão do Tribunal é absolutamente infundada.
M. Não se ignora que a descrição tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios (artigo 79º n.º 1 do C. Registo Predial) e que o registo se compõe da descrição predial, da inscrição dos factos e respectivos averbamentos (artigo 76º n.º 1 do C. do Registo Predial), mas não fazendo a descrição parte do elenco dos factos a registar que se mencionam nos artigos 2º e 3º do C. Registo Predial, não podem a área e confrontações dos imóveis constantes da descrição considerar-se abrangidas pela presunção que se estabelece citado artigo 7º.
N. Com o devido respeito, a solução preconizada pelo Tribunal não tem qualquer sustentabilidade legal, nem factual. O ónus que o Tribunal a quo atribuiu à Autora, ou seja o ónus e/ou obrigação de proceder à alteração das inscrições matriciais, após a sua aquisição, para actualização das confrontações, não é concebível, nem possível, do ponto de vista pretendido e/ou querido pelo Tribunal.
O. Adianta, ainda, a sentença que a Autora deveria ter invocado a falsidade da escritura. Porém, considerando a natureza da presente acção, o pedido de reconhecimento do direito de preferência, com a inerente substituição da Autora na posição dos segundos Réus compradores, jamais faria sentido invocar a falsidade daquele documento autêntico.
P. Como sabemos, o artigo 394º, n.º 1, do CC, relativo à inadmissibilidade da prova por testemunhas quanto a convenções contra o conteúdo de documento ou além dele, destina-se a “defender a autoridade e a estabilidade dos documentos contra a falibilidade da prova testemunhal”, nomeadamente nos casos em que as partes podiam ter-se munido da prova documental das suas convenções (A. VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 113.º Ano, 1980/1981, pág. 121).
Q. Nesta medida, a prova a fazer quanto às confrontações de cada um dos prédios, ainda que contrária ao que se refere na escritura, jamais tem a virtualidade de alterar o seu conteúdo, como sendo a venda dos prédios. E, nesta medida, as confrontações dos prédios podem e devem (face ao que acima já se deixou expresso) ser objeto de qualquer meio de prova, designadamente testemunhal, por inspecção ao local ou outra, visto não estar abrangida pela proibição constante do n.º 1 do artigo 394º do C. Civil, nem pelas presunções derivadas do artigo 7º do C. Registo Predial.
R. Aliás, mal andaríamos se a escritura pública fizesse prova plena desses elementos, como pretende o Tribunal. Onde estaria a segurança jurídica de todos os não intervenientes nesses actos e que de uma ou outra forma podem ver lesados os seus direitos.
S. Nesta medida, a prova testemunhal a produzir em sede de audiência de discussão e julgamento, não é, de todo, contrária à força plena que constitui o ato que é a escritura pública.
T. A sentença recorrida viola as disposições constantes dos artigos 2º, 3º, 7º, 28º, 29º 30º, 76º n.º 1 e 79º n.º 1 do C. do Registo Predial; artigos 342º n.º 1, 376º, 394º n.º1 e 1268º do C. Civil; artigos 3º, 6º 547º, 590º, 591º e 592º do C. Processo Civil; artigo 20º n.º 1 e 4 da Lei Fundamental

Os recorridos contra-alegaram, sustentando a total improcedência do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:
a) ocorreu alguma nulidade processual
b) ocorreu violação do princípio do contraditório

III
O teor da sentença recorrida é o seguinte:

“A autora refere que o prédio rústico referido em 30, alínea a) da petição inicial inscrita na matriz predial rústica sob o artº … e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .., confina do lado Norte com o prédio rústico inscrito na matriz predial rústica da actual União de freguesias .../.../... sob o artº …º e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº …º da mesma freguesia e com o prédio inscrito na matriz predial rústica da actual União de freguesias .../.../... sob o artº …º e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o artº … da mesma freguesia.

Refere ainda o autor que o prédio rústico referido em 30, alínea b) da petição inicial inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artº ...º e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº …, confina do lado Norte com o prédio inscrito na matriz predial rústica da actual União de freguesias de .../.../... sob o artº ...º e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº … da mesma freguesia.

Por fim, refere que o prédio rústico referido em 30, alínea c) da petição inicial inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artº …º e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº … confina do seu lado Sul com o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artº ... e descrito na Conservatória do registo Predial ... sob o nº … da mesma freguesia.

Pretende assim, a autora que lhe seja conhecido o direito de preferência, na venda dos prédios registados sob os números …; ... e … na escritura pública de compra e venda realizada pelos réus e ser ordenado o cancelamento de quaisquer inscrições prediais averbadas ao prédio a preferir e relativas a qualquer transmissão ou oneração do direito de propriedade, entre outros.

Ora, verifica-se que em 18 de Janeiro de 2018 (data da outorga escritura pública em crise nos autos e sobre a qual se pretende exercer o direito de preferência), os proprietários dos terrenos confinantes com os dos réus eram os indicados a fls. 48 relativamente ao artº ...º e …º, relativamente ao artº ... e …, relativamente ao art. … e não a autora.

A autora, com a omissão da alteração da titularidade dos prédios junto da autoridade tributária, coarctou aos réus a possibilidade de a notificarem para o exercício do direito de preferência pois estes desconheciam assim a sua existência (no que diz respeito aos prédios sob os artigos …; ... e ... referidos supra).

Consta de fls. 138 relativamente aos bens …, ... e ..., respectivamente, bem 1, bem 2 e bem 4.

Verificamos ainda que a escritura pública de compra da autora do artº ...º, data de 24-08-2017, do artº …º data de 5-09-2017 e do artº ... data de 05-12-2017, sendo que a escritura de compra e venda feita pelos réus foi a 18-01-2018. Ora, aquando do pagamento do imposto municipal sobre a transmissão onerosa dos imóveis não constava o autor como sendo titular de qualquer bem imóvel que confrontasse com aqueles objecto de venda de escritura pública a 18-01-2018 que os réus efectuaram conforme fls. 138.

Tal ónus ao autor incumbia sendo que se entende que nem neste momento se tal fosse determinado poderia o mesmo Autor fazer-se valer, porquanto de tal omissão não podem os réus ser responsabilizados e verem desfeito o negócio que efectuaram.

Por outro lado, não se diga que com a prova testemunhal a autora obteria a prova de que os imóveis lhe pertenciam à data da escritura pública da venda, porquanto a força probatória de documento autêntico, no caso a escritura pública, nos termos do artº 372º do C. Civil, só pode ser ilidida com base na sua falsidade. Em momento algum o autor invocou a falsidade de tal escritura pública de venda em 18-01-2018, feita pelos réus, tendo apenas a impugnado.

Deste modo, nos termos do artº 371º do C. Civil tal escritura pública de venda faz prova plena dos factos que referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim, como dos factos que nela são atestados com base nas percepções da entidade documentadora. E finalmente a autora não invoca e não alega qualquer facto que fundamente o motivo pelo qual não terão efectuado junto dos serviços competentes, serviços de finanças, Câmara Municipal e registo Predial o requerimento no sentido de ver alteradas as confrontações dos imóveis com aqueles cuja venda pretende preferir.

Assim sendo, entendemos ser um acto inútil que a Lei não permite e que ao Juiz está vedado efectuar-se qualquer diligência de inquirição de testemunhas ou audição/declarações de parte, visto os autos já terem todos os elementos necessários para uma decisão final que com a presente sentença analisando como questão prévia se efectua. Assim, o tribunal decide julgar improcedente a presente acção e em consequência absolver os réus da presente instância”.

IV
Conhecendo do recurso.

Resulta da natureza das coisas que na apreciação de um recurso se deva sempre começar pelos vícios formais ou processuais, e só na ausência destes se deva conhecer da substância da decisão.

No caso em apreço, a autora começa logo por apontar um vício processual, que é o de ter havido dispensa da audiência prévia e as partes não terem sido posteriormente e previamente notificadas de que o Tribunal estaria em condições de conhecer do mérito da causa. Nem foi o despacho fundamentado nesse sentido nem, por fim, as partes foram previamente auscultadas sobre a possibilidade de ser proferida decisão de mérito. Ao invés, na data em que se prepararam para proceder à realização da audiência de discussão e julgamento, as partes foram brindadas com uma verdadeira sentença surpresa.

Em seu entendimento, foi assim cometida nos autos uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 196º CPC).

Vejamos.

O art. 591º,1 CPC dispõe que “concluídas as diligências do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada (1) audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes: a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º; b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;…”.
O art. 592º CPC fixa as situações em que não se pode realizar a audiência prévia: é o que sucede nas acções não contestadas que tenham prosseguido em obediência ao disposto nas alíneas b) a d) do artigo 568.º, e quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
E o art. 593º estabelece quais as situações em que o Juíz tem a faculdade de dispensar a audiência prévia.
Ora, no caso destes autos, não podemos dizer que deveria ter sido convocada a audiência prévia, apenas porque no início da audiência de julgamento o Julgador proferiu logo sentença.
Resulta directamente do art. 591º,1 CPC a obrigatoriedade de realizar a audiência prévia nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa. Mas isto aplica-se, como parece evidente, à fase de saneamento e condensação. É quando o Julgador pretende conhecer do pedido nessa fase que tem a obrigação legal de convocar a audiência prévia. Ora, da simples leitura do despacho de fls. 154 e ... verifica-se que o Julgador não conheceu do pedido nessa fase. Limitou-se a proferir o que se habituou chamar-se de “saneador-tabelar”, em que não conheceu de nenhuma excepção peremptória ou dilatória, nem de qualquer questão prévia, e elencou os temas da prova.

Assim, podemos ter como adquirido, ao contrário do que afirma a recorrente, que não era obrigatória a convocação da audiência prévia.

Mas continua a recorrente, dizendo ser seu entendimento que a sentença violou o disposto no n° 3 do artigo 3° do CPC, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa, o que sucedeu por não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 195° n.º 1 do CPC, obedecendo a sua arguição á regra geral prevista no artigo 197º do CPC.

Aqui já temos de reconhecer que assiste razão ao recorrente.

No início da audiência de julgamento, sem qualquer notificação prévia, o Juiz a quo entendeu, ao invés de dar início à produção de prova convocada para aquele dia, conhecer de imediato do pedido.

Fê-lo sem aviso prévio, e sem sequer permitir aos Ilustres Mandatários a possibilidade de efectuarem alegações.

Não somos, de todo, adeptos de um excessivo formalismo processual, castrador da desejável celeridade processual, e por isso qualquer decisão que subordine a forma à substância será sempre vista por nós com simpatia. Mas isto é em tese geral. Neste caso concreto, temos de reconhecer que o legislador se preocupou em impor uma regra que é também o afloramento de um princípio processual que está espalhado pelos vários loci do ordenamento jurídico: a obrigatoriedade de facultar a discussão oral aos Mandatários das partes, perante o Juíz do processo, antes de ser conhecida a substância da causa.

Sem preocupação de sermos exaustivos, veja-se:

a) em sede de incidentes da instância, o art. 295º CPC dispõe que “finda a produção da prova, pode cada um dos advogados fazer uma breve alegação oral, sendo imediatamente proferida decisão por escrito;”
b) em sede de audiência de discussão e julgamento, as alegações orais igualmente obrigatórias, precedem o momento da decisão do mérito da causa (art. 604º,3,e CPC);
c) em sede de recurso de revista perante o STJ, o art. 681º CPC permite que o relator, oficiosamente ou a requerimento fundamentado de alguma das partes, determina a realização de audiência para discussão do objecto do recurso, onde serão feitas alegações orais pelos mandatários, antes do conhecimento da substância do recurso;
d) na audiência de julgamento em processo penal as alegações orais do MP, assistente, parte civil e Defensor precedem obrigatoriamente o conhecimento do mérito (art. 360º CPP);
e) ainda em sede de processo penal, em recurso perante os Tribunais da Relação, a dicotomia é entre o recurso ser decidido em conferência ou em audiência, sendo que na conferência apenas intervêm o presidente da secção (art. 419º CPP), o relator e um juiz-adjunto, e na audiência são obrigatórias as alegações orais (art. 423º,3 CPP); e o legislador preocupou-se em garantir que se algum dos recorrentes quiser alegar oralmente, tem o direito potestativo de impor a realização da audiência, ainda que o Relator entendesse que podia decidir o recurso em conferência (art. 419º,3,c CPP).

Já para não falar no caso que começamos por analisar, do art. 591º,1 CPC, do qual resulta a obrigatoriedade de convocar a audiência prévia, sempre que o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.

Por outro lado, a necessidade de ouvir as partes antes de ser proferida decisão sobre o fundo da causa é ainda decorrência imediata do princípio do contraditório, princípio essencial e estruturante de todo o processo civil. Veja-se o que dispõe o art. 3º,3 CPC: “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Esta disposição legal, desde logo pelo seu teor literal, demonstra que o Tribunal recorrido não poderia ter proferido sentença, em sede de audiência de julgamento, sem primeiro ter dado aos Ilustres Mandatários das partes a possibilidade de alegarem oralmente.

Poder-se-ia tentar argumentar em sentido contrário, dizendo que toda a argumentação das partes sobre este litígio já tinha sido oferecida nos articulados, donde não ser estritamente necessário dar-lhes outra vez a palavra, agora sob a forma de alegações orais, antes de conhecer do mérito.

Mas tal argumentação não procederia de todo. Uma coisa é a definição do litígio, que, essa sim, foi já feita nos articulados. O juiz do processo, no início da audiência de julgamento já sabe o que é que o autor pretende com aquela acção, já sabe qual a posição do réu perante a pretensão do autor, e já conhece os argumentos de um e outro. Simplesmente, conhecer do mérito é aplicar o Direito a factos provados. E onde o contraditório foi aqui espezinhado foi justamente quando o Juiz conheceu do mérito, sem dar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre qual a solução legalmente correcta em face da factualidade provada.

Outro argumento que podemos ir buscar em sustento da posição aqui defendida é o que resulta do facto de na redacção actual do art. 604º,3,e CPC as alegações orais, ao contrário do que sucedia na vigência do CPC de 1961, versam não só matéria de facto mas também matéria de direito.

Na Jurisprudência, veja-se o Acórdão do TRL de 5.5.2015 (Cristina Coelho), que acrescenta ainda o argumento da necessidade de evitar as decisões surpresa.

Assim, estamos em condições de afirmar que o Legislador, bem ou mal (não importa agora determinar) entende que é essencial a discussão oral pelos mandatários das partes perante o Julgador, imediatamente antes do conhecimento (no todo ou em parte) do mérito da causa. Podemos quase dizer que se trata de um formalismo tão relevante para o Legislador, que este o elevou ao patamar de substância.

Temos por isso de concluir que a prolação de sentença, sem aviso, e sem previamente ter sido dada a palavra aos Mandatários das partes para alegações orais atingiu frontalmente o princípio do contraditório, podendo assim interferir na decisão da causa, e como tal configura nulidade processual (art. 195º,1 CPC).
Assim, a procedência do recurso implica, por força do art. 195º,2 CPC, a declaração de nulidade da sentença.
Dessa forma, o conhecimento dos outros argumentos que a recorrente apresenta, e que já se prendem com a substância da causa, fica prejudicado.
Não podemos porém deixar de referir que a sentença proferida nos autos ainda seria nula por duas outras ordens de razões: a) por não conter o elenco dos factos provados (art. 607º,3 e 615º,1,b CPC); b) e por terminar com um segmento decisório totalmente contraditório, qual seja o de decidir “julgar improcedente a presente acção e em consequência absolver os réus da presente instância” (art. 615º,1,c CPC).

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência declara nula a sentença recorrida, devendo previamente à sua prolação ser dada a palavra aos Ilustres Mandatários das partes para alegações.

Custas pelos recorridos (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 16/1/2020

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)

1 - Destaque nosso.