Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
628/17.0T8AVV-F.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
ALIENAÇÃO DE BENS
CREDOR GARANTIDO
PROPOSTA DE AQUISIÇÃO – REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário do relator:

1) O direito do credor garantido a propor a aquisição do bem por si, ou por terceiro, nos termos do artigo 164º nº 3 CIRE, deve ser efetuado no prazo de uma semana ou posteriormente, em tempo útil, isto é, antes de concretizada a venda;

2) Não preenche este requisito a mera manifestação, pelo credor garantido, da intenção de adquirir o bem em questão, por valor superior ao oferecido por um terceiro, sem efetuar uma proposta concreta de aquisição com indicação do preço, acompanhada, como caução, de um cheque visado, à ordem do administrador da insolvência, no montante de 20% do valor anunciado ou garantia bancária no mesmo valor;

3) A exigência legal da entrega da referida caução pelo credor garantido constitui norma jurídica especial que não conflitua de modo algum com a dispensa concedida ao credor garantido do depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tenha direito a receber, pelo que não pode ser dispensada.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal das Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) Nos autos de Liquidação (CIRE) em que são insolventes F. V. e M. T. procedeu-se à venda, mediante proposta em carta fechada, do imóvel corresponde à verba nº 2 do auto de apreensão de bens relativo a um prédio urbano, situado em …, com a área total de 827 m2, sendo 167 m2 de área coberta e 660 m2 de área descoberta, composto por casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, que confronta a norte com R. V., a sul com M. M., a nascente com C. V. e a poente com M. C., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob a ficha …/19860714 e inscrito na matriz predial urbana com o artigo … da freguesia de ….
Devidamente publicitado o anúncio da venda, em 12/10/2018 procedeu-se à abertura de propostas, sendo que a única recebida para aquisição do referido imóvel foi de A. M., pelo montante de €131.000,00.
Não tendo estado presentes os representantes dos credores, foi determinada a notificação dos credores hipotecários para, querendo, no prazo de 5 dias, exercerem o direito de preferência, tendo a notificação sido efetuada em 05/10/2018.
Em 19/10/2018, a credora Caixa ... (Caixa ...) veio informar a administradora da insolvência que estava a ponderar o exercício, ou não, do direito de preferência, acrescentando que o prazo de 5 dias era insuficiente, tendo solicitado a prorrogação do prazo por mais três dias úteis, para a Caixa ... se pronunciar.
Entretanto, em 23/10/2018, a credora Caixa ... veio informar a administradora da insolvência que exercia o direito de preferência, sobre o imóvel em questão.
Em 05/11/2018 a credora Caixa ... veio apresentar o requerimento de fls. 15 vº e segs, onde impetra que se decida que a requerente tem o direito de propor a compra por si do referido prédio, por valor superior ao oferecido pelo proponente.
Pelos insolventes F. V. e M. T. foi apresentado o requerimento de fls. 20 vº e seg., onde conclui que deve ser indeferido o requerido pelo credor hipotecário Caixa ..., porque tal proposta é extemporânea e claramente violadora do nº 4 do citado artigo 164º do CIRE e, no mais, deve manter-se a proposta vencedora, por ser a única legal e regular.
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Foi proferido o despacho de fls. 24 e segs. onde se refere:

“A credora hipotecária Caixa ..., CRL, veio requerer que lhe fosse concedida a possibilidade de apresentar uma proposta de aquisição do imóvel em fase de venda.
Alegou para o efeito e em síntese que a Sra. AI realizou a diligência de abertura de propostas para a compra do prédio tendo sido apresentada uma proposta no valor de €131.000,00. Nesse mesmo dia notificou a credora para, querendo, no prazo de cinco dias exercer o direito de preferência na aquisição. Nesse seguimento, a credora informou a Sra AI que estava a ponderar exercer o direito de preferência requerendo o prazo adicional de três dias para tomar posição, o que fez, informando a Sra AI que pretendia exercer esse direito. Após, foi notificada pela Sra. AI para informar se aceitava que o exercício desse direito era extemporâneo. Entende agora a requerente que a Sra. AI não devia tê-la notificado para preferir, mas sim nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 164º do CIRE.
Termina, pedindo que seja proferido despacho a autorizá-la a apresentar proposta de aquisição do prédio por valor superior ao apresentado pelo proponente.
Os devedores opuseram-se ao requerido pela credora Caixa ... alegando em síntese que esta credora não se fez representar no dia da abertura de propostas em carta fechada, não licitou nem apresentou qualquer proposta tendo sido notificada para exercer o seu direito de preferência. A credora pretende apenas criar um impedimento ao exercício do direito de remição a exercer pelos ascendentes dos devedores. Pugna, assim, pelo indeferimento do requerido.
A senhora administradora de insolvência veio informar que considerou intempestivo o exercício do direito de preferência, aliado ao facto de os pais dos insolventes terem manifestado a intenção de exercerem o direito de remição. Entende assim que o requerimento apresentado deve ser indeferido até porque o credor não apresentou qualquer proposta concreta, incumprindo as formalidades exigidas pelo artigo 164º do CIRE.
Do requerimento do credor Caixa ... alcança-se que se encontra ultrapassado o exercício do direito de preferência (que foi considerado intempestivo pela Sra. AI) pretendendo que lhe seja concedida a possibilidade de apresentar uma proposta de aquisição do imóvel por valor superior à apresentada.
Decorre do disposto no artigo 164º do CIRE que 1 - O administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
2 - O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada.
3 - Se, no prazo de uma semana, ou posteriormente, mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.
4 - A proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 20% do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824º e 825º do Código de Processo Civil.
No caso em apreço, a Sra. AI realizou a diligência de abertura de propostas tendo sido apresentada uma proposta de aquisição do prédio. A credora Caixa ... não invocou qualquer irregularidade na publicidade dessa venda e, na nossa perspetiva, o que decorre do nº 3 da referida disposição legal é a possibilidade que é concedida ao credor reclamante de apresentar uma proposta por valor superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado no prazo de uma semana ou em tempo útil. E a definição de tempo útil não pode ser entendida como podendo ser apresentada proposta por valor superior um mês depois da apresentação da proposta de aquisição que ocorreu no passado dia 12.10.
Deveria o credor ter desde logo apresentado a proposta que entendesse mais conveniente, o que não fez.
Acresce que não compete ao tribunal autorizar ou não a apresentação de proposta.
O credor deve apresentá-la à Senhora Administradora de Insolvência que decidirá admitir ou não. Só então deve o credor reclamar dessa decisão.
Termos em que se indefere o requerido.
Notifique.”
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B) Inconformada com o despacho, veio a Caixa ... (Caixa ...) interpor recurso (fls. 27 e segs.), o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo (fls. 52 vº).
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A apelante Caixa ... formula as seguintes conclusões:

1ª A recorrente considera ter havido erro na aplicação e interpretação de direito pelo tribunal a quo porque o mesmo não atentou devidamente ao regime previsto para apresentação de propostas de aquisição de bens pelos credores garantidos - vd. art. 164º do CIRE.
2ª O tribunal recorrido desconsiderou que, nos termos desse regime legal, o credor garantido pode apresentar a sua proposta a todo o tempo, desde que em tempo útil, e que esse hiato finda apenas com a formalização e concretização da adjudicação do bem ao proponente - vd. nº 3 do art. 164º do CIRE,
- vd. Ac. TRG, DE 31.03.2016, proc. 8579/09.5TBBRG-E.G1
- vd. Ac. TRP, de 29.05.2014, proc. 615/11.1TYVNG-D.P1
3ª Independentemente disso, a recorrente deu a conhecer a sua intenção de aquisição do imóvel dentro de todos os prazos que se pudessem aplicar - seja o prazo supletivo de 10 dias, o prazo geral de uma semana, ou o prazo de 5 dias estabelecido unilateralmente pela administradora de insolvência -, sendo, por isso, tempestivo o pedido de aceitação da proposta,
- vd. arts. 17º do CIRE e 149º, 248º e nº 5 do art. 139º do CPP
4ª A proposta a apresentar pela recorrente respeita todos os requisitos de admissibilidade e será mais favorável aos credores da massa insolvente, razão pela qual não deverá ser liminarmente indeferida,
- vd. art. 164º CIRE
5ª A decisão quanto à (não) aceitação da proposta a veicular pela recorrente deverá ser uma decisão proferida pelos Tribunais, não só atendendo à atuação concertada para favorecer os insolventes que transparece da tramitação processual, mas também pelo risco de renúncia ao princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva,
- vd. Ac. STJ, de 15.02.2018, Proc. 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1.
Conclui entendendo que em conformidade com as razões expostas deve conceder-se provimento à presente apelação, revogando-se o despacho proferido e determinando-se a admissibilidade da apresentação da proposta da caixa de crédito para aquisição do prédio.
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Os apelados F. V. e M. T. apresentaram resposta onde entendem dever o recurso ser julgado totalmente improcedente.
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C) Foram colhidos os vistos legais.
D) A questão a decidir na apelação é a de saber se se deverá manter-se a decisão recorrida.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 608º nº 2, 635º nº 2 e 3 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC).
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C) A questão a decidir na apelação é a de saber se deverá ser alterada a decisão recorrida.
Entende a apelante que houve erro na apreciação que o tribunal recorrido fez da matéria de direito.

Conforme a apelante reconhece, após a abertura de propostas – a que a credora não esteve presente – a administradora da insolvência notificou a recorrente para exercer o direito de preferência no prazo de cinco dias.
Refere a apelante que a administradora estabeleceu uma confusão entre o direito de preferência, para o que indicou o prazo de cinco dias e a apresentação de uma proposta de aquisição nos termos do nº 3 do artigo 165º do CIRE.
Quanto à referência ao nº 3 do artigo 165º CIRE trata-se de um lapso, na medida em que o artigo 165º CIRE tem um corpo único e não tem números, pelo que, possivelmente, a apelante se pretendia referir ao artigo 164º nº 3 CIRE.
E acrescenta a apelante que tal assume particular relevância nestes autos, uma vez que, na primeira situação, o prazo estabelecido, ao contrário do que refere na sua comunicação de 26 de outubro, não é um prazo legal, mas um prazo meramente indicativo e por si unilateralmente estabelecido.
Isto porque, não estando previsto um regime especial para o “direito de preferência do credor garantido”, o prazo aplicável para o efeito seria o prazo supletivo de 10 dias - vd. arts. 17º do CIRE e 149º CPP (trata-se do CPC e não do CPP, como por lapso, se refere).

Mas não é, exatamente, assim.

Conforme referem Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, a páginas 547 e segs., “uma vez notificado, o credor pode adotar um de três comportamentos diferentes. Nada diz; oferece um valor superior ao mínimo fixado ou ao da alienação projetada; oferece um valor igual ou inferior a este último.
Na primeira hipótese, não há, naturalmente, consequências juridicamente relevantes. O silêncio do credor não importa qualquer vinculação, limitação ou constrangimento para o administrador na sua atividade posterior. Ele pode, pois, sem quaisquer sequelas, vender a quem projetou ou a quem quiser, desde que o faça nos termos projetados – no primeiro caso -, e pelo valor base ou acima dele – no segundo.
Na segunda hipótese, se não aparecer atempadamente uma proposta superior à do credor oferente e a venda lhe for feita, nada mais há a considerar.
(…)
Falta considerar a hipótese de uma oferta ao preço base ou projetado ou mesmo abaixo dele.
À primeira vista, dir-se-ia que essa situação é desconsiderada pela lei em termos de não resultar nunca qualquer consequência para o administrador da não aceitação da proposta.
Assim é, sem dúvida, se a venda foi feita, pelo menos, pelo valor oferecido pelo credor, o que parece ser o pressuposto claro da estatuição normativa.
Mas, na eventualidade de o administrador acabar por vender abaixo do preço oferecido pelo credor – e, por isso, também abaixo do valor fixado como mínimo ou do inicialmente projetado -, não poderá, razoavelmente, deixar de se aplicar a cominação da última parte do nº 3, por idêntica razão de decidir com relação à hipótese nele diretamente prefigurada.
Há ainda dois esclarecimentos complementares que importa prestar e que respeitam às condições em que releva a proposta do credor oferente.
Resultam elas, respetivamente, da primeira parte do nº 3 e do nº 4 do artigo em anotação.
A proposta deve ser apresentada ao administrador no prazo de uma semana após a notificação recebida pelo credor e, se apresentada depois disso, só releva quando ainda tenha sido oferecida em tempo útil, isto é, antes de concretizada a venda ou da tomada do compromisso firme de vender assumido pelo administrador. Além disso, a proposta só é eficaz quando seja acompanhada, como caução, de um cheque visado, à ordem da massa insolvente, de valor, no mínimo, correspondente a 20% do montante da proposta, aplicando-se o regime dos artigos 897º e 898º do Código de Processo Civil (824º e 825º NCPC).”
Há que distinguir duas situações: o direito do credor garantido a propor a aquisição do bem por si, ou por terceiro, por um lado (artigo 164º nº 3 CIRE) e, por outro, o direito de preferência do credor hipotecário (artigo 165º CIRE).
Quanto ao primeiro, existe o prazo de uma semana ou posteriormente, em tempo útil, isto é, antes de concretizada a venda, para que o credor garantido proponha a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada.
Ora, o que se colhe dos autos é que a credora Caixa ... se limitou a manifestar a intenção de propor a compra por si do prédio em questão, por valor superior ao oferecido, o que é diferente da apresentação tempestiva e concreta, efetiva, de uma proposta, com indicação do preço, acompanhada, como caução, de um cheque visado, à ordem do administrador da insolvência, no valor de 20% do montante da proposta, o que o credor não fez, motivo pelo qual, terá de improceder a sua pretensão.
Quanto ao direito de preferência do credor hipotecário, embora a questão não se coloque diretamente no presente recurso, cumpre esclarecer que no artigo 165º CIRE se estabelece que aos credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respetivos direitos na venda em processo executivo, o que significa que se aplica o disposto no artigo 823º NCPC onde se estabelece no seu nº 1 que aceite alguma proposta, são interpelados os titulares do direito de preferência presentes para que declarem se querem exercer o seu direito.
A este propósito referem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo in A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2016, a páginas 490 e seguinte que “o legislador manteve intocável o regime anterior, pelo que resulta do nº 1 que, após a aceitação de alguma proposta (este é o requisito primeiro para poder ser exercido o direito de preferência: a existência de aceitação de uma proposta), são interpelados os titulares do direito de preferência presentes (seja ele legal ou convencional) para que declarem, no ato, se querem ou não exercer esse seu direito. Caso nada declarem, no sentido de pretender exercer o seu direito de preferência, ou não estejam presentes, fica precludido esse direito. Aliás, precisamente por essa razão, é que os titulares do direito de preferência, conhecidos no processo, têm de ser notificados da data designada para a abertura de propostas e demais elementos previstos do nº 1 do artigo 819º. Com essa notificação, são logo advertidos de que devem estar presentes para que, caso seja aceite alguma proposta, possam exercer o seu direito de preferência.
Esta realidade apenas admite um desvio: nos casos em que o proponente, que viu ser aceite a sua proposta, não tenha efetuado o depósito do preço no prazo legalmente previsto, sendo que a lei concede um prazo de 5 dias a contar do termo daquele prazo, para que o preferente que não tenha exercido o seu direito no ato de abertura e aceitação de propostas, possa efetuar o depósito do preço em falta (o preço oferecido pelo proponente que viu a sua proposta ser aceite naquele ato) – vide nº 3 do artigo 825º.”
Do exposto resulta que havia já decorrido o prazo para a credora Caixa ... exercer o direito de preferência.
Quanto ao período de tempo até ao qual é lícito ao credor apresentar uma proposta concreta para a aquisição do bem já acima nos pronunciamos.
Refere a apelante que a notificação do auto de abertura de propostas feita ao mandatário da recorrente não contemplou a data prevista para a concretização da venda.
Nem tinha de contemplar, dado que a lei tal não impõe e, como tal, não há omissão de qualquer elemento essencial para a formação da vontade da recorrente, sendo certo que no anúncio da venda constava, designadamente a data até à qual eram admitidas as propostas de venda e a data hora e local em que seriam abertas as propostas.
Refere ainda a apelante que não se pode alegar que Caixa ... não acompanhou a proposta com a caução prevista no nº 3 do artigo 164º CIRE.
A verdade é que não houve qualquer proposta concreta e, portanto, a questão da caução – que não foi prestada – sempre ficaria prejudicada.
No entanto, não deixaremos de esclarecer que tal não é assim.

Com efeito, como muito bem se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães de 14/03/2019, relatado pela Desembargadora Raquel Baptista Tavares, no processo 117/15.7T8PRG-H.G1, “… a junção do cheque visado a título de caução conforme impõe o artigo 164º reporta-se a um primeiro momento em que é apresentada a proposta e é condição de eficácia desta; enquanto que a notificação para depósito de parte do preço ou de quantia necessária a salvaguardar o pagamento das custas do processo e das dívidas da massa reporta-se já a um segundo momento quando a proposta já foi aceite.

Assim, não tendo a proposta da recorrente sido acompanhada da caução referida no nº 4 do artigo 164º do CIRE a mesma carecia de eficácia e, por isso, não podia ser atendida para os efeitos previstos no nº 3 do mesmo preceito legal; sendo que, nenhuma imposição recai sobre o administrador da insolvência no sentido de notificar o credor para juntar o cheque visado, este é que com a sua proposta o deve juntar, a título de caução, como condição de atendibilidade e eficácia da mesma.”

E acrescenta o mesmo acórdão que “em face do teor do nº 4 do artigo 164º do CIRE, que rege expressamente para as propostas apresentadas pelos credores com garantia real, a junção à proposta de um cheque visado no valor de 20% do montante da proposta, é uma formalidade de cumprimento obrigatório, cujo não cumprimento afeta a sua eficácia e, por isso determina que a proposta não deva ser aceite (neste sentido o Acórdão da relação do Porto de 11/01/2011 relatado pelo Desembargador M. Pinto dos Santos e o Acórdão da Relação de Évora de 13/09/2018 relatado pelo Desembargador Mata Ribeiro, podendo ler-se no sumário deste último que: “1. No âmbito de alienação de bens em processo de insolvência, a proposta apresentada por credor garantido tendo em vista a aquisição do bem a vender, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projetada ou ao valor base fixado, deve ser acompanhada de caução, por meio de um cheque visado, no valor de 20% do montante da proposta, como o impõe artº 164º nº 4 do CIRE, por ser uma formalidade não dispensável, de cumprimento obrigatório. 2. Perante o não cumprimento de tal formalidade a proposta não deve ser aceite”, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).”

E prossegue o mesmo acórdão que “conforme bem se refere na decisão recorrida “A exigência legal da entrega da referida caução pelo credor garantido constitui norma jurídica especial que não conflitua de modo algum com a dispensa concedida ao credor garantido do depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tenha direito a receber (remissão do artigo 165º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para as regras do processo executivo). Com efeito, a caução constitui, não contraprestação pecuniária parcial da venda, mas sim apenas e tão só garantia especial do cumprimento de uma obrigação (cfr. artigos 623º e seguintes do Código Civil), a qual deverá ser devolvida quando se concretizar o cumprimento da obrigação em causa, neste caso, a concretização da aquisição do bem vendido com o pagamento do preço que for devido (considerando a medida da dispensa do depósito do preço nos termos do artigo 815.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do disposto no artigo 172º nº 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.

Daí que não tenha razão a recorrente.

Refere ainda a apelante que a decisão quanto à (não) aceitação da proposta a veicular pela recorrente deverá ser uma decisão proferida pelos tribunais, não só atendendo à atuação concertada para favorecer os insolventes que transparece da tramitação processual, mas também pelo risco de renúncia ao princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva e, para tanto, baseia-se no Acórdão do STJ de 15/02/2018, no processo 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Henrique Araújo.

No entanto, aquilo que se diz no Acórdão não é exatamente o que menciona a apelante, dado que no aresto se refere que de jure constituendo, se deverá alterar a lei, nesse aspeto, acrescentando-se que “é, de facto, intolerável a proteção da eficácia dos atos praticados pelo administrador da insolvência, mesmo que produzidos com total desrespeito pelas normas que tutelam as operações da fase de liquidação, sendo indispensável e urgente, a nosso ver, uma intervenção legislativa que corrija este estado de coisas. Na atual situação, o administrador da insolvência pode atropelar as disposições legais, omitir procedimentos essenciais, fazer e desfazer a seu critério, deixando aos que se mostrem lesados com a sua atuação, a possibilidade, no horizonte, de moverem uma ação declarativa em que lhe peçam responsabilidades.
A celeridade e a desjudicialização do processo de insolvência não podem ter esse preço. Como se diz no acórdão deste STJ e desta secção, a que fizemos referência, “a celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência”. Aceitar tal interpretação seria o mesmo que desistir do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata atuação do julgador.”
E conclui aquele acórdão que “as irregularidades cometidas pelo Senhor Administrador da Insolvência, oportunamente denunciadas pela credora “.., S.A.”, consistentes na falta de identificação da entidade que ofereceu a melhor proposta (note-se que apenas foi enviado à recorrida o auto de licitação) e no incumprimento do prazo estabelecido para apresentação de eventual proposta mais favorável para a massa, configuram nulidade processual com influência na decisão da causa, nos termos dos artigos 195º e 197º, nº 1, do CPC.”
Mas, conforme já tivemos ocasião de salientar, não há, no caso que nos ocupa, nenhum vício na decisão da administradora da insolvência que deva ser sancionado com a nulidade.
Assim sendo, conclui-se que não houve erro na aplicação e interpretação de direito, uma vez que a apelante não apresentou qualquer proposta concreta de aquisição do imóvel em causa, nem nenhum ato da administradora da insolvência que deva ser considerado inválido, pelo que o conhecimento das demais questões suscitadas, fica prejudicado, motivo pelo qual a apelação terá que ser julgada improcedente e, em consequência, ser confirmada a douta decisão recorrida.
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D) Em conclusão e sumariando:

1) O direito do credor garantido a propor a aquisição do bem por si, ou por terceiro, nos termos do artigo 164º nº 3 CIRE, deve ser efetuado no prazo de uma semana ou posteriormente, em tempo útil, isto é, antes de concretizada a venda;
2) Não preenche este requisito a mera manifestação, pelo credor garantido, da intenção de adquirir o bem em questão, por valor superior ao oferecido por um terceiro, sem efetuar uma proposta concreta de aquisição com indicação do preço, acompanhada, como caução, de um cheque visado, à ordem do administrador da insolvência, no montante de 20% do valor anunciado ou garantia bancária no mesmo valor;
3) A exigência legal da entrega da referida caução pelo credor garantido constitui norma jurídica especial que não conflitua de modo algum com a dispensa concedida ao credor garantido do depósito da parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tenha direito a receber, pelo que não pode ser dispensada.
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III. DECISÃO

Nesta conformidade, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida.
Custas pela apelante.
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Guimarães, 19/09/2019

Relator: António Figueiredo de Almeida (83501081920)
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares